Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
24/15.3PFVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: DIREITOS DE AUTOR
USURPAÇÃO
DIFUSÃO SONORA
COMUNICAÇÃO AO PÚBLICO
DOLO
Data do Acordão: 06/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (SI CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.149.º, 155.º, 195.º E 197.º, DO CDADC (C); ARTS. 14.º E 16.º DO CP
Sumário: I – A jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça através do Acórdão Uniformizador nº 15/2013 é incompatível com a interpretação que uniformemente vem sendo dada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia ao conceito de «comunicação ao público» de obra.

II – À luz da jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador n.º 15/2013, não constitui crime de usurpação a difusão, através de aparelhagem sintonizada em emissora de rádio, de música ambiente em estabelecimento comercial porque tal difusão não configura nova utilização das obras transmitidas.

III – A complexidade do quadro jurídico-penal e jurisdicional com que nos deparamos, onde avulta a especialíssima e relevantíssima circunstância de o Tribunal do topo da hierarquia dos tribunais judiciais portugueses ter deixado expresso, através de um Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, que condutas como a imputada nos autos pela assistente SPA ao arguido, não integram a prática do crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149.º, 195.º e 197.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, acrescida da ampla divulgação pública feita de tal aresto uniformizador, torna manifestamente desrazoável o entendimento de que, atento o disposto no art. 16.º, n.º 1 do C. Penal, se possa considerar suficientemente indiciado o dolo, em qualquer das modalidades previstas no art. 14.º do mesmo código.

Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

Nos autos de instrução nº 24/15.3PFVIS que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Viseu – Instância Central – Secção de Instrução Criminal – J2 foi proferida decisão instrutória de não pronúncia do arguido A..., no termo de instrução requerida pela assistente Sociedade Portuguesa de Autores, CRL [doravante, SPA], na decorrência de despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, para pronúncia do identificado arguido pela prática de um crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 195º nº 1 e 197º, por referência aos arts. 68º, nº 2, e), 141º, 149º e 184º, todos do C. do Direito de Autor e dos Direitos Conexos [doravante, CDADC].


*

Inconformada com a decisão, recorreu a assistente SPA, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

a) No dia 04 de Agosto de 2016, pelas 23:30h, no estabelecimento comercial denominado “ X...”, estavam a ser difundidas ao público obras musicais e literário-musicais, as quais eram radiodifundidas pela estação emissora M80, sendo o som ampliado por colunas;

b) As obras transmitidas neste estabelecimento comercial são protegidas pelo direito de autor;

c) O arguido não dispunha de autorização da Recorrente, que o habilitasse a difundir tais obras em espaço público;

d) A questão a apreciar nos autos é saber se a utilização que o arguido fazia das obras configura o conceito de “comunicação pública”, tal como previsto no artigo 3º n.º 1 da Directiva 2001/29 e se os tribunas nacionais estão vinculados á interpretação que tem sido atribuída pelo Tribunal de Justiça da União Europeia ao conceito de “comunicação pública”;

e) O CDADC tem a sua fonte de inspiração na Convenção de Berna;

f) O artigo 149º do CDADC, que tem a sua referência directa no artigo 11º bis da Convenção de Berna, prevê o direito exclusivo do autor autorizar a utilização das suas obras de três formas diferentes: a radiodifusão; a retransmissão e a comunicação pública de obras radiodifundidas;

g) A previsão destas três formas de utilização das obras pretendem assegurar que a autorização dada para uma fase (a radiodifusão) não seja automaticamente considerada extensiva às fases posteriores, por exemplo, a retransmissão ou comunicação pública das obras radiodifundidas;

h) O autor considera a sua autorização de radiodifusão no sentido de abranger apenas a audiência directa que recebe o sinal, num círculo familiar;

i) A Directiva 2001/29 consagrou o direito exclusivo do autor autorizar qualquer comunicação pública das suas obras, estipulando que “Os Estados Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras”;

j) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo, pelo menos desde 2007, em sucessivos Acórdãos a proferir decisões que nos permitem, com segurança e de modo uniforme a toda a União Europeia, circunscrever e entender este conceito;

l) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem entendido que a transmissão de obras radiodifundidas, através de aparelhos de televisão ou rádio em espaços públicos, configura o conceito de comunicação pública, uma vez que o detentor do aparelho de televisão, ao permitir a escuta ou a visualização da obra, tal intervenção deve ser considerada um acto de comunicação ao público, nos termos do artigo 3º n.º 1 desta Directiva;

m) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem circunscrito o conceito de “comunicação pública” em diversos Acórdãos, de entre os quais os Acórdãos SGAE, C-306/05; Football Association Premier League, C-403/08 e C-429/08 e OSA, C-351/12;

n) O Tribunal a quo afirmou conhecer a Directiva 2001/29, mas interpretou-a de forma diferente do sentido e alcance que tem de acordo com esta directiva;

o) As normas nacionais devem ser interpretadas no sentido que resulta da letra e do espírito da Directiva;

p) No âmbito de um processo de reenvio promovido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que “o conceito deve ser interpretado como abrangendo a transmissão de obras radiodifundidas através de um ecrã de televisão – que se estende ao aparelho de rádio – e de colunas aos clientes que se encontrem presentes num estabelecimento comercial. Em tal situação estamos perante uma nova comunicação ao público e não perante uma mera recepção de uma obra”;

q) Uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia proferida em casos de reenvio prejudicial para efeitos de interpretação vincula, quer quanto às conclusões, quer quanto à fundamentação, os tribunais nacionais.

r) O Tribunal a quo estava vinculado a seguir a interpretação que o Tribunal de Justiça da União Europeia deu ao conceito de “comunicação pública” no processo de reenvio suscitado pelo Tribunal da Relação de Coimbra;

s) Ao ter decidido de forma diferente o Tribunal a quo violou os princípios do primado e da interpretação conforme;

t) A decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo deve, por isso, ser alterada, pronunciando-se o arguido pela prática de um crime de usurpação.

Termos em que deve ser revogada a decisão proferida em primeira instância, pronunciando-se o arguido A... pela prática de um crime de usurpação, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 195º e 197º do CDADC.


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            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

                1 – Não se verificam in casu condições para revogação da decisão de não pronúncia do arguido.

2 – A instalação das colunas ligadas ao rádio nada acrescentava ou alterava à emissão.

3 – O STJ uniformizou e fixou jurisprudência, no Acórdão nº 15/2013, de 13/11, publicado no D.R. de 16 de dezembro, considera que a distribuição do som feita por colunas distribuídas por vários pontos do estabelecimento comercial, que ampliam o som, não sendo estas parte integrante do televisor ou radiofonia, não extravasa a mera receção, que é livre, não configurando assim uma nova transmissão do programa.

Assim, mantendo-se a douta decisão que não pronunciou o arguido, farão, Vossas Excelências, como sempre, e mais uma vez, JUSTIÇA.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo aos fundamentos da resposta do Ministério Público, afirmando não existirem indícios suficientes da prática do crime, que a decisão recorrida não desrespeita a Directiva comunitária nem a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia [doravante, TJUE], apenas os interpreta de forma diferente da assistente, e concluiu pelo não provimento do recurso.

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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Respondeu a assistente SPA, sustentando a existência de decisão do TJUE posterior à data do Acórdão Uniformizador nº 15/2013, decidindo que o art. 3º, nº 1 da Directiva 2001/29/CE deve ser interpretado no sentido de abranger a transmissão através de rádio, de obras musicais e músico-literárias difundidas por estação emissora, pelas pessoas que exploram um café/restaurante, aos clientes presentes no estabelecimento, entendimento que o dito tribunal segue desde 1973 e que foi adoptado pela Relação de Lisboa em acórdão de 30 de Junho de 2016, e concluiu pela pronúncia do arguido.


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  Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se o arguido deve ou não ser pronunciado, como autor material de um crime de usurpação, p. e p. pelo art. 195º do CDADC.


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Para a resolução desta questão importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:

“ (…).

            I RELATÓRIO

No âmbito dos presentes autos, findo o inquérito instaurado contra o denunciado A..., o Ministério Publico proferiu despacho de arquivamento nos termos do disposto no art. 277.º n.º 2 do Código de Processo Penal (fls. 75 – 77).

Inconformada com a decisão proferida, veio a assistente Sociedade Portuguesa de Autores, C.R.L. requerer a abertura da instrução (fls. 99 – 111), onde pugna pela pronúncia do arguido pela prática do seguinte ilícito criminal:

                - um crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 193.º n.º 1 e 197.º, por referência aos arts. 68.º n.º 2 al. e), 141.º, 149.º e 184.º, todos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.


*

Foi declarada aberta a instrução.

                No âmbito da instrução, não foram realizados actos instrutórios.


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Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade da instância.

Procedeu-se à realização de debate instrutório com observância do legal formalismo, não se tendo suscitado nem verificado quaisquer excepções, nulidades ou questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa – cfr. o art. 308.º n.º 3 do Código de Processo Penal.

A instrução está encerrada.

                II FUNDAMENTAÇÃO

A. Considerações gerais

A instrução é uma fase processual com carácter facultativo e que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – art. 286.º do Código de Processo Penal.

Se até ao encerramento de instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos ou, caso contrário, profere despacho de não pronúncia, na certeza de que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança – cfr. os arts. 283.º n.º 2 e 308.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.

O juízo a formular caracteriza-se então por ser, simultaneamente, de ordem retrospectiva (um juízo a fazer da prova realizada em torno de factos passados), bem como de ordem prospectiva (suposição acerca da produção de prova a realizar em julgamento).

O tribunal não pretende ser fastidioso na análise do que por "possibilidade razoável" se deverá entender, porque já muito se escreveu na nossa doutrina e jurisprudência sobre o tema, não deixando contudo de tecer umas breves considerações, sintetizando as três orientações que se podem respigar consoante o grau de exigência a formular:

- há quem entenda que o arguido deve ser levado a julgamento quando há a possibilidade de o mesmo ser condenado, bastando-se assim com a constatação de que é possível a simples ou a mera possibilidade de o arguido ser condenado.

- uma outra medida de indícios suficientes é aquela que se estriba na fórmula da possibilidade preponderante ou dominante da condenação, quase que assente num modelo estatístico, de que é mais provável a condenação do que a absolvição.

 - por último, subsiste a tese, mais exigente, de que só deverá ser proferido despacho de pronúncia contra o arguido, quando haja uma forte e séria possibilidade de a condenação do mesmo vir a ocorrer em fase de julgamento.

A posição que recolhe os favores da esmagadora maioria é precisamente esta última, falando-se, a propósito, em "possibilidade particularmente qualificada" ou de "probabilidade elevada" de condenação, ou ainda em "probabilidade mais forte" de futura condenação do que de absolvição do acusado ou pronunciado.

Nesta linha de orientação, posiciona-se FIGUEIREDO DIAS, que definiu a suficiência indiciária ou probatória quando, já em face dos indícios recolhidos em sede de inquérito, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição. (in Direito Processual Penal, I, 1984, pág. 133)

E também CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA se pronunciou no mesmo sentido quando defende que apenas "o critério da possibilidade particularmente qualificada ou de possibilidade elevada de condenação, a integrar o segmento legal da "possibilidade razoável", responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e que é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo." (in Indícios suficientes: parâmetro de racionalidade e instância de legitimação concreta do poder-dever de acusar, Revista do CEJ, n.º 1, pags. 151 a 190)

Na verdade, crê-se que o juízo ou a convicção a estabelecer na fase da prolação da acusação ou do despacho de pronúncia, há-de ser (quase) equivalente ao de julgamento, quer ao nível da apreciação da fenomenologia, quer na objectividade da indagação fáctica e na apreciação do material probatório, quer ainda na conformação desse material probatório às normas atinentes com as proibições de valoração de prova e na racionalidade lógica em que assenta a apreciação dos elementos probatórios coligidos. A grande diferença de convicção, no momento do inquérito/instrução ou no momento do julgamento, reside, precisamente, no contexto ou na ambiência em que essas provas se produzem, dado que, em audiência de discussão e julgamento, esta fase é marcada pelos princípios da concentração e, sobretudo, pelo princípio do contraditório, enquanto acto de defesa, cuja verificação em inquérito/instrução apenas se descortina em determinadas situações – esta opção surge reforçada pelo indelével carácter criminógeno que representa a indevida sujeição do arguido à fase de julgamento, o que, por imperativos de justiça, deve ser evitado (cfr., neste sentido e entre muitos outros, o Ac. da RP, de 20/1/2010, proc. n.º 25/08.8TARSD.P1, dgsi.pt)

Nesta sequência, dir-se-á que só indícios necessariamente fortes ou de elevada intensidade são suficientes para, findo o inquérito ou a instrução, ser deduzida acusação ou proferido despacho de pronúncia – os indícios podem ser reputados suficientes quando das diligências efectuadas durante o inquérito/instrução resultarem vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e o arguido é responsável por ele.

Ou seja e em jeito de resumo, os indícios serão suficientes quando os elementos de facto trazidos ao processo pelos meios probatórios, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão probabilidades sérias de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado, na medida em que, logicamente relacionados e conjugados, formam um todo persuasivo da culpabilidade do arguido.

B. O tipo legal de crime

A assistente SPA pretende ver o arguido pronunciado pela prática de um crime de usurpação de direitos de autor.

Aqui se transcrevem os seguintes preceitos legais do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

Art.68.º

1 – A exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se, segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos actualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser.

2 – Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:

(…)

e) A difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens e a comunicação pública por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras ópticas, cabo ou satélite, quando essa comunicação for feita por outro organismo que não o de origem;

(…).

Art. 149.º

1 – Depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual da obra, tanto directa como por retransmissão, por qualquer modo obtida.

2 – Depende igualmente de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens.

3 – Entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, ainda que com reserva declarada do direito de admissão.

Art. 155.º

É devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida, por altifalante ou por qualquer outro instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens.

Art. 195.º

1 – Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código.

2 – Comete também o crime de usurpação:

a) Quem divulgar ou publicar abusivamente uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo seu autor ou não destinada a divulgação ou publicação, mesmo que a apresente como sendo do respectivo autor, quer se proponha ou não obter qualquer vantagem económica;

b) Quem coligir ou compilar obras publicadas ou inéditas sem autorização do autor;

c) Quem, estando autorizado a utilizar uma obra, prestação de artista, fonograma, vídeograma ou emissão radiodifundida, exceder os limites da autorização concedida, salvo nos casos expressamente previstos neste Código.

3 – Será punido com as penas previstas no artigo 197.º o autor que, tendo transmitido, total ou parcialmente, os respectivos direitos ou tendo autorizado a utilização da sua obra por qualquer dos modos previstos neste Código, a utilizar directa ou indirectamente com ofensa dos direitos atribuídos a outrem.

Art. 197.º

1 – Os crimes previstos nos artigos anteriores são punidos com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infracção, agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência, se o facto constitutivo da infracção não tipificar crime punível com pena mais grave.

2 – Nos crimes previstos neste título a negligência é punível com multa de 50 a 150 dias.

3 – Em caso de reincidência, não há suspensão da pena.

C. Os indícios

O Direito de Autor assume, sobretudo nos tempos em que vivemos de globalização à escala mundial, crescente relevância jurídica, social e económica, o qual abrange as faculdades de carácter pessoal e patrimonial dos artistas, intérpretes e executantes, dos produtores de fonogramas, de videograma e dos organismos de radiodifusão, e que o legislador, através do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, visou tutelar.

Os presentes autos tiveram origem no auto elaborado pela PSP, através do qual se dá notícia que, no dia 4.08.2016, pelas 23h30, no estabelecimento comercial denominado " X...", sito junto da Rotunda Cibernética, em Viseu, pertença e explorado por A..., era difundida música ambiente através de colunas estrategicamente colocadas por toda a área do estabelecimento e cujo som era proveniente de uma aparelhagem, marca "Philips", sintonizada na emissora M80, com a frequência 95.6, que emitia música na presença de 7 clientes.

Além disso, existia também naquele estabelecimento um televisor, marca Samsung, colocado numa das paredes e que estava sintonizado no canal FOX, sinal proveniente de uma BOX da operadora NOS e que passava um filme.

Mais se afirmava que, naquelas circunstâncias, o proprietário não fez prova da existência de licença emitida pela SPA para a emissão de música.

O Ministério Público, pelos argumentos expendidos no despacho de arquivamento, entendeu não se mostrarem verificados os pressupostos de que depende o preenchimento do tipo legal de crime, escudando-se para o efei.to na jurisprudência fixada pelo STJ.

E o tribunal acompanha este raciocínio. Vejamos.

Os factos existem e não foram objecto de contestação, pelo que a questão que nos ocupa constitui, bem se percebe, matéria de direito.

Como é sabido, muito se disse e escreveu nos nossos tribunais superiores sobre este problema e que o tribunal, por fastidioso, se abstém de relatar.

Após a sucessiva troca de argumentos, o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão n.º 15/2013, de 16 de Dezembro (publicado no DR, 1ª série, n.º 243, de 16 de Dezembro de 2013), fixou jurisprudência nos seguintes termos: "A aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos."

Pode ler-se na respectiva fundamentação:

"A comunicação da obra radiodifundida por altifalante ou instrumento análogo depende, pois, de autorização c confere ao autor da obra direito a uma remuneração.

Mas que se deve entender por comunicação? Trata-se necessariamente de uma modalidade de utilização da obra diferente das previstas no n.º 1 (transmissão e retransmissão).

Na radiodifusão, como vimos, a comunicação direta entre o organismo emissor e o público recetor está prevista no n.º 1 do artigo 149.º, bem como a relação mediada por retransmissor.

A situação prevista no n.º 2 terá, pois, de ser diferente. E é diferente desde logo pelas características do lugar onde é realizada a receção: lugar público.

Mas será que a mera receção em lugar público integrará a previsão do n.º 3, envolvendo o dever de autorização por parte do autor da obra? A audição/visionamento de estações de televisão em cafés, restaurantes, bares, e outros tipos de estabelecimentos abertos ao público em geral determinará a obrigação para os seus responsáveis de obter autorização dos autores das obras transmitidas?

Para decidir tal questão, há que operar a distinção entre receção e comunicação. A receção consiste na captação pelos equipamentos adequados dos sinais de sons e imagens difundidos pelo transmissor. A receção é o terminus do processo de transmissão e só ela o justifica: transmite -se (radiodifunde -se) para o recetor.

Esta utilização das obras pelo recetor confere naturalmente aos autores o direito de a autorizarem (e o consequente direito à remuneração por essa utilização), nos termos do n.º 1 do artigo 149.º.

Mas, uma vez autorizada, a receção é livre, ou seja, o recetor pode organizá-la como bem entender. Ponto é que se mantenha no âmbito da receção.

É necessário, pois, distinguir entre a mera receção (captação dos sinais) e a reutilização da obra, situação prevista no n.º 2 do artigo 149.º. Este preceito tem de reportar -se a situações em que a transmissão acrescenta, modifica ou inova, constituindo assim uma nova utilização da obra. Só assim tem sentido conferir ao autor da obra direito a nova remuneração.

Essa nova utilização passa necessariamente por uma qualquer modificação por meios técnicos na forma de receção, em ordem a aproveitá-la para produzir um efeito visual ou sonoro espetacular, para criar uma encenação que a mera receção do programa radiodifundido não provocaria.

Será esse normalmente o caso quando a receção é convertida ela própria num espetáculo, organizado em estabelecimentos públicos, em torno de eventos desportivos ou musicais, haja ou não entradas pagas, mas publicitado, eventualmente com um arranjo ou decoração especial do espaço, tudo com vista à captação de uma audiência alargada, pelo menos mais alargada do que aquela que normalmente acorreria ao estabelecimento. Aqui já se abandona o plano da simples receção para se invadir o da criação de um espetáculo, ainda que tendo na base a captação de um programa televisivo. Há uma organização e uma "encenação" que alteram a normal receção do programa. Por isso, estamos já no plano da comunicação pública, que deve ser paga.

Aceitar-se-á a mesma solução quando se tratar de uma receção multiplicada, como acontece nos estabelecimentos hoteleiros, em que a receção é distribuída nos quartos e salas comuns, o que se traduz, para além da amplificação exponencial do sinal radiodifundido, num serviço extra prestado pelo hotel aos hóspedes, suscetível de atrair clientela, e por consequência lucros, pelo que se pode considerar uma reutilização da obra, sendo por ela devida uma remuneração.

Mas já não será o caso da mera receção em cafés ou bares abertos à generalidade das pessoas, sem obrigação de pagamento de entrada, estabelecimentos que representam tradicionalmente lugares de convivência ou reunião, sobretudo nos meios pequenos, mas não só neles, nos quais a captação de programas televisivos pode funcionar ocasionalmente como chamariz especial, mas normalmente apenas serve a clientela habitual, para a qual não constitui nenhum atrativo.

Insistindo e resumindo: haverá reutilização da obra se foram empregues meios técnicos que recriem de qualquer forma a difusão da obra, produzindo um espetáculo diferente do que é radiodifundido. Compreende -se que em tais condições, e só nelas, haja a obrigação de pagar uma nova remuneração ao autor.

Assim, sempre que a situação se configure como de mera receção, ainda que alterada por quaisquer equipamentos, mas desde que limitados à função de a aperfeiçoar ou melhorar, não se aplica o disposto nº 2 do artigo 149.º. Doutra forma, seriam cobrados direitos a dobrar sobre a mesma utilização da obra, uma vez que pela autorização da radiodifusão da obra já o autor recebeu a correspondente remuneração.

Analisemos agora a situação que motivou a divergência jurisprudencial.

Em estabelecimento comercial aberto ao público em geral, lugar público para os efeitos do artigo 149.º, n.º 3, difundia -se um programa televisivo presenciado por vários clientes. Ao televisor tinham sido ligadas colunas de som, que não faziam parte originariamente do aparelho, e que serviam para amplificar e distribuir o som pelo estabelecimento.

As colunas de som, embora não fizessem parte do televisor, no sentido de que não o integravam originariamente, não constituem, porém, material diferente do que já vem instalado normalmente nesse tipo de aparelhagem, pois qualquer televisor contém necessariamente o material adequado para difundir o som pelo ambiente.

As colunas não produziam portanto qualquer função nova, o que elas faziam era ampliar e distribuir o som que o televisor já difundia por todo o espaço do estabelecimento. A função delas era apenas a de melhorar a captação do som.

Assim, a instalação das colunas nada acrescentava ou alterava à emissão televisiva. Nenhuma recriação do programa transmitido era produzida. Insiste-se: o que as colunas permitiam era a melhoria da captação do som.

Daí que a situação se enquadre inteiramente no plano da receção da radiodifusão.".

O tribunal sabe que esta decisão não constitui jurisprudência obrigatória (ver, a propósito, o art. 445.º n.º 3 do CPP), mas entende que estas palavras são suficientemente claras e com elas se concorda na íntegra.

Todavia, após a publicação deste acórdão que se pretendia de uniformização, a SPA nem por isso deixou de continuar a esgrimir argumentos em sentido contrário, invocando para tanto a orientação alegadamente perfilhada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, designadamente através da Directiva 2001/29/CE, sobre o que por "comunicação de obra ao público" se deverá entender.

A assistente invoca ainda um despacho proferido em 14/7/2015, no processo C-151115, o qual fornece uma definição da "comunicação ao público".

O tribunal não ignora a existência ou sequer pretende recusar a aplicação da mencionada Directiva, mas entende que deve a mesma ser interpretada nos termos já decididos pelo Supremo Tribunal de Justiça, cujo acórdão a assistente defende estar "em total contradição com as Directivas e Decisões comunitárias". (ver ponto 51º do RAI)

Aliás, o estabelecimento comercial " X..." já anteriormente havia sido objecto de fiscalização, tendo sido levantado um auto de notícia por factos ocorridos no dia 28 de Setembro de 2014, relacionados com a difusão de música através de colunas, proveniente de uma aparelhagem sonora que difundia músicas da rádio cidade M80, factos que deram origem ao processo com o n.º 35/14.6PFVIS, o qual veio a ser arquivado – inconformada, veio a SPA requerer a abertura de instrução, tendo porém sido proferido despacho de não pronúncia, datado do passado dia 27/1/2016; foi interposto recurso, crê-se que ainda não decidido.

Já decididos foram outros recursos, invariavelmente no mesmo sentido.

Ac. da RC, de 14/10/2015, proc. n.º 35/12.0PFVIS.C1

A difusão de música, em estabelecimento comercial, através da aplicação, a um aparelho de rádio, de sistema de ampliação de som, não configurando uma nova utilização da obra transmitida, não carece de autorização do autor da mesma; consequentemente, não integra a prática do crime de usurpação p. e p. pelos artigos 195.º e 197.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

Ac. da RC, de 20/01/2016, proc. n.º 36/13.1PFVIS.C1

I – A usurpação é um crime comum e de execução vinculada, que tutela o bem jurídico criação intelectual, artística e científica sendo que, parte significativa da acção típica está remetida para as formas de utilização de obra ou prestação previstas no CDADC, essencialmente contidas no seu art. 68º.

II – O estabelecimento comercial gerido pelo arguido [frutaria] é, face à matéria de facto que se mostra indiciada, obviamente, um lugar público.

III – Deste modo, o que há a decidir é saber se a difusão de obra radiodifundida em local público através de colunas que, ampliando e distribuindo o som, não faziam parte integrante do aparelho que sintonizava a estação emissora de rádio, configura uma mera recepção [recepção – ampliação] da obra ou antes traduz uma nova utilização, uma recepção – transmissão, da mesma obra.

IV – Constitui mera recepção e não reutilização da obra transmitida, a difusão de música ambiente através de várias colunas de som, distribuídas pelo tecto da frutaria, aberta ao público e gerida pelo arguido, ligadas a um circuito integrado de som, marca Efapel, sintonizado em determinada estação emissora de rádio;

V – Por isso, esta actividade de difusão de música ambiente não carece de autorização dos autores das obras radiodifundidas por aquela estação emissora.

O primeiro dos apontados processos conheceu recentemente o seu desfecho, depois da prolação de um despacho datado do passado dia 7/4/2016, que indeferiu um pedido de reforma apresentado pela SPA, onde se faz referência ao acórdão ITV Broadcasting e o C-607/11, EU:C:2013:147, n.º 28 e jurisprudência aí referida (de resto mencionada pela SPA no seu pedido de reforma), segundo o qual não constitui uma "comunicação" na acepção do art. 3.º n.º 1 da Directiva 2001/29 um mero meio técnico para garantir ou melhorar a transmissão de origem na zona de cobertura – dirá a ora assistente que as colunas ligadas à televisão ou ao rádio não são um mero meio técnico para melhorar a transmissão, mas caímos uma vez mais e sempre na mesma discussão, devidamente abordada pelo referido acórdão do STJ.


*

O tribunal, em resumo e para o que nos interessa, pode portanto concluir que não se mostram suficientemente indiciados os seguintes factos:

- o arguido, ao agir da forma descrita, estava obrigado a obter autorização por parte da Sociedade Portuguesa de Autores, bem como a pagar os correspondentes direitos de autor; ou que

- o arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Por tudo, forçoso é concluir que não existem suficientes indícios da verificação dos crimes, pelo que será proferido despacho de não pronúncia.

III DECISÃO INSTRUTÓRIA

Pelo exposto, o tribunal decide não pronunciar o arguido A... pela prática do crime de usurpação de direitos de autor quer a assistente Sociedade Portuguesa de Autores, C.R.L. lhe imputava.


*

                Sem custas, por delas estar isenta a assistente.

            (…).


*

1. Decorre do disposto no art. 286º, nº 1, do C. Processo Penal que a instrução visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Esta comprovação judicial tem por objecto a formulação de um juízo sobre a existência ou não de indícios suficientes da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, juízo a ser explicitado, formalmente, na decisão instrutória. Por isso, dispõe o art. 308º, nº 1 do C. Processo Penal que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

            Os indícios são suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (nº 2 do art. 283º do C. Processo Penal, aplicável ex vi, nº 2 do art. 308º do mesmo código).

Como já se deixou referido, a instrução foi requerida pela assistente SPA, em reacção ao arquivamento do inquérito no qual era investigada a prática de um crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 195º, nº 1 e 197º do CDADC.

Nos autos é pacífica a indiciação suficiente da seguinte factualidade:

- No dia 4 de Agosto de 2015, pelas 23h10, o arguido A..., gerente e proprietário do estabelecimento denominado « X...», situado na Av. (...) , em Viseu, tinha do dito estabelecimento uma aparelhagem Philips, ligada a cinco colunas espalhadas pelos dois pisos, sintonizada na emissora M80, que difundia música ambiente para sete clientes, tendo entre aquela hora e as 23h50 passado as obras «Cry for help» de Rick Ashley, «Nothing’s gonna change my love for you» de Glenn Medeiros e «In louco» de João Pedro Pais;

- O arguido não era titular de autorização válida concedida pela SPA, para o efeito, enquanto representante em Portugal dos autores das obras musicais identificadas.

 

Cumpre, portanto, verificar se os factos indiciados são susceptíveis de preencher o tipo do crime de usurpação previsto no art. 195º, nº 1 do CDADC, como pretende a assistente ou não, como se decidiu no despacho recorrido

2. A Constituição da República Portuguesa assegura, no seu art. 42º, nº 2, a protecção legal dos direitos de autor. Ao nível da lei ordinária penal, constituindo a tipificação da usurpação, ao nível da lei ordinária penal, um elemento do respectivo escudo protector.

São elementos constitutivos do tipo deste crime, que tutela o bem jurídico criação intelectual, artística e científica:

[Tipo objectivo]

- Que o agente, sem autorização do autor, do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilize uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas no código;

- Que o agente divulgue ou publique, abusivamente, uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo autor ou não destinada à divulgação ou publicação, mesmo que identifique a respectiva autoria;

- Que o agente colija ou compile obras publicadas ou inéditas, sem autorização do autor;

- Que o agente, estando autorizado a usar obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão radiodifundida, exceda os limites da autorização, com excepção dos casos previstos no código;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade [em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal].   

A densificação da acção típica impõe a convocação de conceitos contidos noutras normas do CDADC, a saber.

O tipo remete para as formas de utilização de uma obra ou prestação previstas no CDADC o que vale dizer que remete, basicamente para o seu art. 68º. Dispõe o nº 1 deste artigo que, A exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se, segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos actualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser, e dispõe no seu nº 2, alínea e) [alínea que, para o caso, releva] que, Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes; (…) e) A difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens e a comunicação por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras ópticas, cabo ou satélite, quando essa for feita por outro organismo que não o de origem; (…).

No que concerne à autorização da radiodifusão e reprodução de sinais, sons e imagens, dispõe o art. 149º do mesmo código:

1 – Depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual da obra, tanto directa como por retransmissão, por qualquer modo obtida.

2 – Depende igualmente de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens.

3 – Entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, e ainda que com reserva declarada do direito de admissão.  

Estabelece ainda o art. 155º do CDADC que é devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida por altifalante ou por qualquer instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens.

Dito isto.

3. Não se suscita qualquer dúvida quanto a ser o estabelecimento comercial denominado « X...», pertencente ao arguido, um lugar público, atenta a definição legal contida no nº 3 do art. 149º do CDADC. Sendo assim, resta saber se a difusão de obra radiodifundida em local público através de aparelhagem de ‘rádio’ com colunas distribuidoras e ampliadoras de som, sintonizada em certa estação emissora, configura uma situação de simples recepção de obra ou, pelo contrário, traduz uma nova utilização [uma recepção – transmissão] de obra.   

O princípio geral é o da liberdade de recepção. A radiodifusão da obra está sujeita a autorização do respectivo autor, mas o mesmo já não acontece com a sua recepção no destino. É que na autorização para a radiodifusão da obra está já prevista a sua recepção, sendo, por tal razão, esta livre, mesmo que seja pública e independentemente do modo como se efectiva (cfr. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Direito de Autor e Direitos Conexos, Coimbra Editora, 1992, pág. 301 e ss.).

Mas a dificuldade reside na qualificação das situações como a objectivamente indiciada nos autos. Durante anos, esta questão fez divergir a jurisprudência nacional, dissensão a que pôs cobro o Acórdão Uniformizador nº 15/2013 (DR, 1ª série – Nº 243 – 16 de Dezembro de 2013), fixando jurisprudência no sentido de que, a aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.  

Com efeito, resulta nº 2 do art. 149º do CDADC que a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens, depende de autorização do respectivo autor, conferindo-lhe o direito a remuneração.

A comunicação pública da obra aqui prevista não se confunde com a transmissão e a retransmissão, também modalidades de utilização da obra, mas previstas no nº 1 do mesmo artigo. É que, nestas, o que está em causa é a radiodifusão da obra, incluindo a sua recepção, que constitui o termo do processo de transmissão e, como se disse, é livre. Já na comunicação pública existe uma reutilização da obra, a concreta transmissão efectuada acrescenta, modifica ou inova [relativamente à obra que está a ser radiodifundida], produzindo uma nova utilização dela, através de uma modificação da forma de recepção operada por meios técnicos, de modo a obter o seu aproveitamento para a produção de um efeito visual ou sonoro, criador de uma encenação ou espectáculo, que não teriam lugar com a mera recepção da obra radiodifundida (cfr. Acórdão Uniformizador nº 15/2013).

A jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador é, seguramente, aplicável à situação em apreço nos autos onde está apenas em causa um aparelho receptor de radiodifusão sonora da obra, um rádio, um minus portanto, relativamente a uma televisão – e desta cuidou o Acórdão Uniformizador – enquanto aparelho receptor de radiodifusão sonora e visual de obra.

4. Reconhecendo que a Directiva 2001/29/CE não define o conceito de comunicação pública, afirma a assistente SPA que o TJUE tem, pelo menos, desde 2007, vindo a entender que a transmissão de obras radiodifundidas através de aparelhos de televisão e de rádio em espaços públicos, é abrangida pelo mesmo conceito, interpretando o art. 149º do CDADC no sentido de que a autorização para a radiodifusão abrange apenas a recepção das obras em ambientes privados, e aponta, a título de exemplo, os acórdãos do TJUE C-403/08, C-429/08 e C-351/12.

Vejamos.

O art. 3º [com a epígrafe, Direito de comunicação de obras ao público, incluindo o direito de colocar à sua disposição outro material] nº 1 da Directiva 2001/29/CE tem a seguinte redacção:

Os Estados-Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público por forma a torná-las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

A Directiva foi transposta para a ordem jurídica nacional pela Lei nº 50/2004, de 24 de Agosto que, além do mais, deu nova redacção a várias disposições do CDADC, entre elas, as dos arts. 68º, 178º e 184º.

Na parte em que agora releva, as alíneas i), j) e l), do nº 2 do art. 68º passaram a ter a seguinte redacção:

Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:

(…)

i) A reprodução directa ou indirecta, temporária ou permanente, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte;

j) A colocação da obra à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a torná-la acessível a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido;

l) A construção de obra de arquitectura segundo o projecto, quer haja ou não repetições.

A alínea d) do nº 1 do 178º passou a ter a seguinte redacção:

Assiste ao artista intérprete ou executante o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:

(…)

d) A colocação à disposição do público, da sua prestação, por fio ou sem fio, por forma que seja acessível a qualquer pessoa, a partir do local e no momento por ela escolhido.

O nº 2 do art. 184º passou a ter a seguinte redacção:

Carecem também de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a difusão por qualquer meio, a execução pública dos mesmos e a colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

Tem razão a assistente SPA quando diz que a Directiva não definiu o conceito de comunicação ao público. Menciona apenas, no seu art. 3º, nº 1, a colocação à disposição do público da obra, que foi replicada nas normas do CDADC transcritas.

O considerando 23 da Directiva tem a seguinte redacção: «A presente diretiva deverá proceder a uma maior harmonização dos direitos de autor aplicáveis à comunicação de obras ao público. Esses direitos deverão ser entendidos no sentido lato, abrangendo todas as comunicações ao público não presente no local de onde provêm as comunicações. Abrangem ainda qualquer transmissão ou retransmissão de uma obra ao público, por fio ou sem fio, incluindo a radiodifusão, não abrangendo quaisquer outros atos».

Foi pois, propósito da Directiva aumentar a protecção dos direitos de autor no que respeita à comunicação das obras ao público, devendo esta ser entendida em sentido lato.

Atentemos agora na jurisprudência do TJUE.

No recurso nº 16/11.1GASJP.C1, desta Relação de Coimbra – interposto pela assistente da sentença absolutória proferida em processo comum singular que tinha por objecto factos integradores do crime de usurpação – foi determinado o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, a fim de ser conhecida, além de outra, a seguinte questão prejudicial: «[Deve o] conceito de comunicação de obra ao público previsto no artigo 3.º, n.º 1, da Directiva 2001/29 ser interpretado no sentido de que abrange a transmissão de obras radiodifundidas, em estabelecimentos comerciais, como bares, cafés, restaurantes, ou outros com características semelhantes, através de aparelhos televisores receptores e cuja difusão é ampliada  por colunas e/ou amplificadores, configurando, nessa medida, uma nova utilização de obras protegidas pelo direito de autor?».

Sobre esta questão, por despacho de 14 de Julho de 2015, proferido no processo C-151/15 [in, http://curia.europa.eu/juris/document] que cremos ser um dos processos que a assistente SPA cita, o TJUE decidiu como segue: 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

O conceito de «comunicação ao público», na aceção do artigo 3.°, n.º 1, da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, deve ser interpretado no sentido de que abrange a transmissão, através de um aparelho de rádio ligado a colunas e/ou amplificadores, pelas pessoas que exploram um café-restaurante, de obras musicais e de obras musico-literárias difundidas por uma estação emissora de rádio aos clientes que se encontram presentes nesse estabelecimento.

Na fundamentação deste despacho, suportando o nele decidido, são mencionados, além de vários outros, os já referidos acórdãos do TJUE C-403/08, C-429/08 e C-351/12.

5. Do que fica dito resulta evidente a frontal oposição entre a jurisprudência fixada pelo nosso mais Alto Tribunal no Acórdão Uniformizador nº 15/2013 e a interpretação que o TJUE tem vindo, uniformemente, a fazer sobre o conceito de «comunicação ao público».

Nos termos do disposto no art. 445º, nº 3 do C. Processo Penal, a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada na decisão.

A fundamentação da divergência tem que ir para além da comum fundamentação da decisão penal, devendo suportar-se em argumento novo, relevante e não ponderado, na notória alteração das concepções doutrinais e/ou jurisprudenciais ou na modificação da composição do Tribunal Supremo (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 1202 e Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1591). 

Sucede que não dispomos argumento novo que nos leve a afastar a jurisprudência fixada, nem temos notícia de evolução doutrinal ou jurisprudencial quanto aos argumentos utilizados, determinante, hoje, de uma decisão uniformizadora diferente, quer pela data, ainda próxima, em que foi proferido o Acórdão nº 15/2013, quer pela circunstância de nele serem expressamente referidas decisões do TJUE contrárias, como sejam os acórdãos proferidos nos processos nºs 403/08 e 429/08, este supra mencionado, e o primeiro, mencionado nos fundamentos do despacho 14 de Julho de 2015, proferido no processo C-151/15.

No que respeita aos efeitos da decisão do TJUE, é pacífico o entendimento de que ela se impõe com força obrigatória no processo que lhe deu origem e tem, quanto a outros processos, quando constitua decisão interpretativa, o valor de precedente [tendo em conta que, quando o TJUE interpreta uma norma de direito comunitário, fixa o seu sentido de forma abstracta] (cfr. Miguel Almeida Andrade, Guia Prático do Reenvio Prejudicial, 1991, Gabinete de Documentação e Direito Comparado, pág. 106 e ss., e Carla Câmara, Guia Prático do Reenvio Prejudicial, 2012, Centro de Estudos Judiciários, pág. 16 e ss.).

Mesmo que, em tese, se entendesse ser obrigatória a formulação de questão prejudicial junto do TJUE tendo por objecto a interpretação do conceito de «comunicação ao público» [dada a insusceptibilidade de interposição de recurso ordinário do presente acórdão], uma vez que aquele tribunal, como se expôs, já anteriormente apreciou e interpretou o conceito, sem qualquer modificação assinalável o que significa, por outro lado, a inexistência de dúvida razoável, sobre o alcance da interpretação feita pelo TJUE, estando assim verificadas duas das excepções à obrigação de reenvio (cfr. Miguel Almeida Andrade, ob. cit., pág. 60 e ss. e Carla Câmara, ob. cit., pág. 10 e ss.).

Deste modo, não sendo, in casu, obrigatório o reenvio prejudicial, estando claramente precisado o sentido da interpretação dada pelo TJUE ao conceito de «comunicação ao público» e não sendo esta interpretação compatível com a subscrita pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão Uniformizador nº 15/2013, cumpre antes de mais verificar o preenchimento ou não do tipo do crime em questão, na perspectiva destas duas interpretações, à luz dos factos tidos por suficientemente indiciados.

6. Considerando a factualidade objectiva, tida por suficientemente indiciada, referida no ponto 1., que antecede [No dia 4 de Agosto de 2015, pelas 23h10, o arguido A..., gerente e proprietário do estabelecimento denominado « X...», situado na Av. (...) , em Viseu, tinha do dito estabelecimento uma aparelhagem Philips, ligada a cinco colunas espalhadas pelos dois pisos, sintonizada na emissora M80, que difundia música ambiente para sete clientes, tendo entre aquela hora e as 23h50 passado as obras «Cry for help» de Rick Ashley, «Nothing’s gonna change my love for you» de Glenn Medeiros e «In louco» de João Pedro Pais; o arguido não era titular de autorização válida concedida pela SPA, para o efeito, enquanto representante em Portugal dos autores das obras musicais identificadas], temos por certo que, de acordo com a jurisprudência uniformizada pelo Acórdão nº 15/2013, ela não preenche o tipo objectivo do crime de usurpação. Porém, subordinando-se a mesma factualidade objectiva à interpretação dada pelo TJUE ao conceito de «comunicação ao público» resulta claro o preenchimento do tipo objectivo do crime de usurpação

No que respeita ao tipo subjectivo do crime, a jurisprudência uniformizada pelo Acórdão nº 15/2013 prejudica, por inútil, a análise da sua verificação. Se não está preenchido o tipo objectivo, não tem sentido discutir o preenchimento do tipo subjectivo.

Já não assim quando, por via da interpretação feita pelo TJUE do conceito de «comunicação ao público» da obra, se tem por preenchido o tipo objectivo. E neste âmbito, há que atentar no que segue.

Como dissemos já, a usurpação é um crime doloso, preenchendo-se o respectivo tipo com o simples dolo eventual.

Agora numa outra perspectiva, a usurpação é um mala prohibita, um crime artificial, cuja punibilidade não se pode presumir conhecida de todos os cidadãos, nem se pode exigir que o seja. Naturalmente que quem exerce, de forma estável, uma determinada actividade, como acontece com o arguido, têm o dever acrescido de conhecer as normas legais que a regem.

Mas a complexidade do quadro jurídico-penal e jurisdicional com que nos deparamos, onde avulta a especialíssima e relevantíssima circunstância de o Tribunal do topo da hierarquia dos tribunais judiciais portugueses ter deixado expresso, através de um Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, que condutas como a imputada nos autos pela assistente SPA ao arguido, não integram a prática do crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, acrescida da ampla divulgação pública feita de tal aresto uniformizador, torna manifestamente desrazoável o entendimento de que, atento o disposto no art. 16º, nº 1 do C. Penal, se possa considerar suficientemente indiciado o dolo, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do mesmo código.

Nesta decorrência, inexistem indícios suficientes da conduta dolosa do arguido o que vale dizer que, não obstante a consideração da interpretação feita pelo TJUE que vimos referindo, não se mostra suficientemente indiciada a prática do crime de usurpação.


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            Em síntese conclusiva:

            - A jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça através do Acórdão Uniformizador nº 15/2013 é incompatível com a interpretação que uniformemente vem sendo dada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia ao conceito de «comunicação ao público» de obra;

            - À luz da jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador nº 15/2013, não constitui crime de usurpação a difusão, a através de aparelhagem sintonizada em emissora de rádio, de música ambiente em estabelecimento comercial porque tal difusão não configura nova utilização das obras transmitidas;

- À luz da interpretação dada pelo TJUE ao conceito de «comunicação ao público», aquela difusão preenche o tipo objectivo do crime de usurpação mas a complexidade do quadro jurídico-penal e jurisdicional traçado – onde avulta a posição tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão Uniformizador e a ampla divulgação pública do mesmo feita –, tendo em conta o disposto no art. 16º, nº 1 do C. Penal, não permite razoavelmente concluir pela suficiente indiciação do dolo do arguido e portanto, pela suficiente indiciação de todos os factos necessários ao preenchimento do tipo;

- Assim, ainda que também por outros fundamentos, não merece censura o despacho recorrido.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.


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            Recurso sem tributação por estar a recorrente isenta de custas (art. 4º, nº 1, f) do R. Custas Processuais).

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Coimbra, 28 de Junho de 2017


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)