Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3974/16.6T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
RETRIBUIÇÃO
TRABALHO
ÂMBITO
PRESTAÇÕES PERIÓDICAS
PAGAMENTO
PRINCÍPIO DA IRREDUTIBILIDADE DA RETRIBUIÇÃO
Data do Acordão: 06/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DO TRABALHO – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 662º, Nº 2, AL. C) DO NCPC; 249º DO C. TRABALHO DE 2003/ 129º, Nº 1, AL. D), E 258º DO CT 2009.
Sumário: I – Só se verifica contradição insanável da decisão sobre a matéria de facto quando existe factualidade com um conteúdo logicamente incompatível, que não pode subsistir por impossibilitar a utilidade da matéria de facto em oposição.

II – A retribuição do trabalho é o conjunto de valores (pecuniários ou não) que a entidade patronal está obrigada a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em razão da atividade por ele desenvolvida ou, mais rigorosamente, da disponibilidade da força de trabalho por ele oferecida, integrando a mesma não só a remuneração de base como ainda outras prestações regulares e periódicas, feitas direta ou indiretamente, com as quais o trabalhador conta para satisfação das necessidades pessoais do trabalhador e da sua família.

III – Tendo a trabalhadora auferido durante anos uma prestação pecuniária regular e periódica designada por ‘retribuição adicional’ e que a empregadora alterou para designação de ‘compensação de desempenho’, muito embora a mesma não estivesse condicionada ou dependente do desempenho e mérito profissionais da trabalhadora, tal prestação constitui uma componente da sua retribuição em sentido estrito, estando, como tal, abrangida pelo princípio da irredutibilidade da retribuição.

Decisão Texto Integral:








Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

A... intentou ação declarativa emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, contra  B... , S.A., pedindo a condenação da R. a pagar-lhe:
a) A quantia de € 11.083,92 relativa à prestação designada por “remuneração adicional”, que deixou de lhe ser paga pela R., a partir de agosto de 2010 até à propositura da presente ação;
b) Todas as quantias que se vierem a vencer a tal título, a partir de julho de 2016 até integral regularização da situação retributiva da A., correspondente ao valor da prestação trimestral de € 461,83 e cujas datas de vencimento ocorrerão nos meses de outubro de 2016 e janeiro, abril, julho e outubro dos anos subsequentes;
c) Juros de mora, à taxa legal de 4%, desde o vencimento de cada uma das prestações referidas em a) e até integral pagamento, totalizando os vencidos em 20/05/2016, o valor de € 1.161,13;
d) Juros de mora, à taxa legal sobre todas as demais quantias que se vencerem a partir da citação da R. e até integral pagamento.

Em muito breve síntese, alegou que a partir do 3.º trimestre de 2010, a entidade empregadora, a ora R., deixou de pagar a prestação designada por “remuneração adicional” que ao longo de mais de onze anos foi liquidada com caracter regular e periódico como contrapartida do trabalho prestado. O comportamento assumido viola o princípio da irredutibilidade da retribuição, pelo que a A. se considera titular dos créditos peticionados.

Realizada a audiência de partes, frustrou-se a tentativa de conciliação.

Contestou a R., propondo que o valor da causa fosse fixado em € 30.000,01 e impugnando a alegada violação do princípio da irredutibilidade da retribuição, concluindo pela sua absolvição

No âmbito do incidente do valor da causa deduzido, veio o tribunal de 1.ª Instância a fixar o valor da ação em € 30.000,01.

Foi proferido despacho saneador tabelar.

Finda a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença com o dispositivo que se transcreve:

«Por todo o atrás exposto, julgo a ação totalmente procedente, e em consequência:

1) Condena-se a R. “ B... , S.A” a pagar à A. – A...-, a quantia de 12.007,58 € (doze mil e sete euros, e cinquenta e oito cêntimos);

2) Mais se condena a R. durante a vigência da relação de trabalho a pagar à A. todas as quantias que vierem a vencer-se a título de prestação trimestral no valor de 461,83 € (quatrocentos e sessenta e um euros, e oitenta e três cêntimos), com vencimentos sucessivos a ocorrerem nos meses de janeiro, abril, julho e outubro dos anos subsequentes;

3) Sobre tais quantias, acrescem os juros de mora, à taxa legal (4%) vencidos e vincendos, desde a data de vencimento de cada uma das prestações em apreço, até efetivo e integral pagamento;

4) Custas a cargo da R..»

Inconformada com esta decisão, veio a R. interpor recurso da mesma, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

[…]

Contra-alegou a recorrida, concluindo no final:

[…]

O recurso foi admitido pelo tribunal de 1.ª instância como apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo por ter sido prestada caução.

Tendo os autos subido ao Tribunal da Relação e mantido o recurso, foi dado cumprimento ao preceituado no artigo 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer que faz fls. 287 a 290, propugnando pela improcedência do recurso.

Não foi oferecida resposta a tal parecer.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


*

II. Objeto do Recurso

            É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicáveis por remição do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).

            Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso que importam dilucidar e resolver são:

            1.ª Existência de contradição insanável entre a materialidade constante dos pontos factuais provados 17 e 18 e a descrita no ponto 31 dos factos provados;

            2.ª Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

            3.ª Não violação do princípio da irredutibilidade da retribuição.

*

III. Matéria de Facto

O tribunal de 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

[…]


*

IV. Questões suscitadas no recurso

1. Contradição na decisão sobre a matéria de facto

Alega a recorrente que em sede de decisão sobre a matéria de facto, se verifica uma contradição insanável entre a materialidade constante dos pontos factuais provados 17 e 18 e a descrita no ponto 31 dos factos provados.

Analisemos a questão.

O artigo 662.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ao processo laboral consagra um poder-dever de apreciação da decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

No exercício de tal competência, pode a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão recorrida, quando, não constando do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute, deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta, nos termos previstos pela alínea c) do n.º 2 do mencionado preceito legal.

Relativamente à mencionada “contradição”, ensina-nos Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Vol. IV, pág.553: «as respostas são contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, isto é, quando não podem subsistir ambas utilmente.»

No Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 06/10/1988, BMJ 380º/559, mencionado por Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, pág. 239, escreveu-se: «a contradição…implica a existência de “colisão” entre a matéria de facto constante de uma das respostas e a matéria de facto constante de outra das respostas, ou então com a factualidade provada, no seu conjunto, de tal modo que uma delas seja contrária da outra.»

Estes entendimentos (doutrinário e jurisprudencial), foram manifestados à luz do anterior regime processual civil que implicava a formulação de uma “Especificação” e a organização de um “Questionário”.

Todavia, os mesmos mostram-se atuais, desde que adaptados ao atual regime processual. Assim, verifica-se o vício da contradição contemplado na aludida alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º, quando a decisão da 1ª instância contiver uma oposição, uma incoerência sobre pontos determinados da matéria de facto.

Ou seja, no âmbito do aludido normativo, a contradição ou incoerência tem de resultar da própria decisão, dando-se, por exemplo, por provado um facto e o seu contrário ou como provado e não provado o mesmo facto.

Apreciando em concreto os pontos factuais invocados pela recorrente, temos em causa a materialidade que se passa a transcrever:

17) Em janeiro de 1999, a A. passou a receber da C... , S.A, para além da remuneração base mensal e diuturnidades, uma denominada “remuneração adicional”, no montante mensal de 25.608$00.

18) E a referida “Remuneração adicional” foi paga pela C... , S.A, à A., por aquele montante, todos os meses do ano, integrando, ainda, os subsídios de férias e de natal.

31) Todos os valores processados pela C... o eram por indicação expressa da D... , até abril de 2004, tanto para efeitos de processamento como de refaturação interna dos valores.

Salvaguardado o devido respeito, que é muito, não vislumbramos que entre a factualidade descrita nos pontos 17 e 18 e a factualidade inserta no ponto 31, exista oposição ou incoerência.

Conforme refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no douto parecer proferido «nos pontos n.º 17 e 18 não se diz que o pagamento era em cumprimento duma obrigação própria da C... , sendo que o ponto n.º 31 nos parece até complementar».

Efetivamente, o conteúdo do ponto do 31 esclarece a causa subjacente ao pagamento da “remuneração adicional” pela C... , durante o período cronológico referido. Trata-se de um facto que complementa o descrito nos pontos factuais 17 e 18, pois destes não consta nem resulta que o pagamento aí mencionado constituía uma obrigação própria da C... . Apenas se deu como provado, nestes pontos factuais, que o ato de pagamento das mencionadas prestações pecuniárias era realizado pela C... .

Em suma, inexiste qualquer colisão ou contradição entre a materialidade descrita nos apreciados pontos factuais.

Improcede, pois, a primeira questão suscitada no recurso.


-


2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

[…]


-

3. Violação do princípio da irredutibilidade da retribuição

Na motivação do recurso, sustenta a apelante que o CD pago à recorrida não estava abrangido pelo princípio da irredutibilidade da retribuição.

Sobre a temática, escreveu-se na sentença recorrida, com notável fundamentação:

«O cerne da questão do presente litígio, prende-se com a apreciação das componentes retributivas adotadas pela R. (anterior C... ), ao longo da execução do contrato de trabalho, com a particularidade de que a aqui A. esteve cedida pela C... durante vários anos à D... .

É que na ótica da A. a componente “retribuição adicional” que a C... aquando da sua cedência à D... processava e abonava no respetivo vencimento, desde 1999, e que foi mantida finda a cedência aquando do regresso à C... em abril de 2004, e posteriormente, em 2005, convertido em “complemento de desempenho”, constitui uma prestação certa, regular e periódica, abrangida pelo princípio da irredutibilidade da retribuição.

Sendo que, na tese erigida e defendida pela R. finda a cedência a C... deixou de processar à A. a dita “remuneração adicional” por não lhe ser oponível a manutenção de prestações pecuniárias atribuídas pela cessionária. E, que a atribuição do denominado complemento de desempenho tinha como única causa de atribuição, o mérito e o desempenho por si evidenciados ao serviço da C... , e, cuja manutenção estava (e está) condicionado à confirmação de elevado nível de desempenho futuro e ao efetivo exercício de funções,

Como se sabe, o artigo 249.º do Código do Trabalho de 2003, nos seus n.º s 1 a 3 (vide, o art. 258.º do CT2009), refere que “só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho” (n.º 1); “na contrapartida do trabalho incluem-se a retribuição base e todas as prestações regulares e periódicas feitas, direta ou indiretamente, em dinheiro ou em espécie” (n.º 2) e “até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador” (n.º 3) – do que resulta, tendo em conta os princípios de repartição do ónus da prova, e, especificadamente, o disposto no n.º 1 do art. 344.º do Cód. Civil que, sobre o empregador impende o ónus de provar que certa prestação que o mesmo fez ao seu trabalhador não tem a natureza de retribuição.

Assim cabe apenas à A. provar o recebimento da invocada prestação pecuniária, competindo à R. provar a não verificação dos elementos integrantes do conceito legal de retribuição, maxime o caráter regular e periódico acima referido, a fim de obstar a que lhes seja conferida natureza retributiva.

Por regularidade, deve entender-se que a prestação não é arbitrária, mas sim constante.

A periodicidade determina que a prestação seja paga em períodos certos no tempo ou aproximadamente certos, inserindo-se na própria ideia de periodicidade típica do contrato de trabalho.

Deste modo, em primeira linha, a retribuição é determinada pelo clausulado do contrato e pelos usos laborais, e eventualmente por certos critérios normativos (o salário mínimo, a igualdade retributiva, etc.). No entanto, num segundo momento, ao montante global da retribuição poderão acrescer certas prestações que preencham os requisitos de periodicidade e regularidade.

O primeiro critério sublinha a ideia de correspetividade ou contrapartida negocial: é retribuição tudo o que as partes contratarem (ou resultar dos usos ou da lei para o tipo de relação laboral em causa) como contrapartida da disponibilidade da força de trabalho. O segundo critério assenta numa presunção: considera-se que as prestações que sejam realizadas regular e periodicamente pressupõem uma vinculação prévia do empregador e suscitam uma expetativa de ganho por parte do trabalhador, ainda que tais prestações se não encontrem expressamente consignadas no contrato (vide, Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 11.ª edição, Coimbra, págs. 440-441).

Da conjugação das normas resulta claramente que, a retribuição do trabalho é “o conjunto de valores (pecuniários ou não) que a entidade patronal está obrigada a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em razão da atividade por ele desempenhada (ou, mais rigorosamente, da disponibilidade da força de trabalho por ele oferecida – cfr. Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, Vol. 1º, 9ª, Ed., 1994, pág. 395.1), integrando a mesma não só a remuneração de base como ainda outras prestações regulares e periódicas, feitas direta ou indiretamente, incluindo as remunerações por trabalho extraordinário, quando as mesmas, sendo de caráter regular e periódico, criem no trabalhador a convicção de que elas constituem um complemento do seu salário – neste sentido, Monteiro Fernandes, ob. cit., pág. 410.º; Bernardo Lobo Xavier in Curso de Direito do Trabalho, 2.ª ed., pág. 382.

O art. 261.º n.º 1, al. a) do CT2003 – vide, o atual art. 260.º n.º 1, al. c) do CT2009 -, diz não se considerar retribuição as importâncias devidas ao trabalhador decorrentes de factos relacionados com o desempenho, o mérito profissional ou a assiduidade, desde que o pagamento, nos períodos de referência respetivos, não esteja antecipadamente garantido (n.º 1, al. c)).

Como se disse, no que tange à prova da verificação dos pressupostos condicionantes da atribuição de natureza retributiva a qualquer prestação pecuniária paga pelo empregador ao trabalhador, a lei consagra um regime favorável aos trabalhadores. Assim, ao trabalhador cabe somente provar a perceção das prestações pecuniárias, não tendo de provar que as mesmas são contrapartida do seu trabalho. Uma vez que se trata de uma presunção iuris tantum, o empregador é admitido a provar que as prestações pecuniárias percebidas pelo trabalhador não revestem caráter de retribuição (art. 350.º n.º 2, 1.ª parte do Código Civil).

Logo, demonstrado que tenha sido pela entidade empregadora que determinada prestação assume a natureza de ajudas de custo ou, em geral, que a mesma tem uma causa específica e individualizável diversa da remuneração do trabalho, não opera a presunção do art. 249.º n.º 3 do CT2003 (vide, o n.º 3 do art. 258.º do CT2009). Neste sentido veja-se, entre outros, o Ac. do STJ, de 18.06.2008, processo n.º 07S4480, disponível em http://www.dgsi.pt.

É pacífico (veja-se João Leal Amado, in Contrato de Trabalho págs. 298.º e sgs.) que a presunção estabelecida no n.º 3 do art. 249.º do CT2003 (n.º 3 do art. 258.º do CT2009), está em perfeita sintonia com o caráter oneroso do contrato de trabalho.

Chamando à colação as palavras de Bernardo Xavier, in “introdução ao estudo da retribuição no direito do trabalho português”, in RDES, 1996, p. 90 «há que ter o maior cuidado com uma política patronal de relações de trabalho assente no disfarce de atribuições remuneratórias com outro título ou com diverso invólucro».

Com efeito, conforme salienta João Leal Amado na obra supra citada, política patronal que, note-se, pode ser ditada pelas mais variadas razões, desde motivos de ordem fiscal até ao intento de possibilitar ao empregador a supressão, no futuro, desta ou daquela atribuição patrimonial, caso as circunstâncias assim o recomendem.

Com isto, pretende-se evitar que as partes, através da simples manipulação do nomem das prestações, impeçam a correta qualificação jurídica de tais prestações.

Este é o desiderato que se nos coloca, nos termos do art. 272.º n.º 2 do CT2009, compete ao julgador decidir esta questão de direito, qual seja: - a da qualificação ou não como retribuição das atribuições patrimoniais realizadas pelo empregador em proveito do trabalhador.

Curial é questionar assim se a C... transformou/convolou a dita “retribuição adicional” (a cujo pagamento, conforme supra dissemos, finda a cedência, não estaria obrigada a cumprir), num prémio (“complemento de desempenho”) dependente do desempenho ou mérito profissional da aqui A. Com efeito, no modelo interno da C... a rubrica denominada “complemento de desempenho” destinava-se a premiar e estimular os melhores desempenhos dos seus trabalhadores – vide, facto provado em 34).

Conseguindo, desta forma, ilidir a presunção contida no n.º 3 do art. 249.º do CT2003 (vide, n.º 3 do art. 258.º do CT2009), por se enquadrar na exceção contida na alínea b) do n.º 1 do art. 261.º do CT2003 (vide, o art. 260.º n.º 1, al. c) do CT2009)?

Deflui dos factos acima provados (em súmula) que, em janeiro de 1999, a A. passou a receber da C... , S.A, para além da remuneração base mensal e diuturnidades, uma denominada “Retribuição adicional”, no montante mensal de 25.608$00 (ainda no âmbito de vigência do “contrato de cedência ocasional” outorgado entre a C... , S.A, e a D... ), pago todos os meses do ano, integrando, ainda, os subsídios de férias e de natal, sendo que o valor da dita “Remuneração adicional” com a entrada em vigor do euro, passou a ser de 131,95 € – vide, factos provados em 17), 18) e 19).

Sucede, porém, que finda a cedência, em abril de 2004, quando a A. regressou à C... , S.A, continuou a ser-lhe paga a denominada “Remuneração adicional”, até ao final desse ano – cfr. facto provado em 20) -, todavia, a partir de janeiro de 2005, a “ C... , S.A” passou a fazer tal pagamento com uma periodicidade trimestral, adiantadamente, e no início de cada trimestre (janeiro, abril, julho e outubro); o valor anualizado da referida remuneração (€ 1.847,32) era exatamente o mesmo do somatório da “Remuneração Adicional” que até dezembro de 2004 a A. vinha recebendo; tendo por referência o valor mensal de tal retribuição - € 131,95, multiplicado por 14 (catorze) meses, o valor anual era (e foi respeitado) de € 1.847,30; denominando-o na nota discriminativa de retribuições como “complemento de desempenho”, e valor de retribuição e pagamento que se mantiveram absolutamente inalterados até julho de 2010 – cfr. factos provados de 22) a 26).

Prima facie, saliente-se que, face ao facto dado por provado em 14), em princípio, finda a cedência não seria oponível à cedente (“ C... ”) o pagamento de qualquer acréscimo remuneratório entendido ser devido pela cessionária (“ D... ”), sem a prévia aceitação (anuência) dessa mesma cedente.

Ora, o certo é que os factos acima destacados (v.g de 22) a 26)), na nossa leitura, apontam no sentido da cedente (na época C... ) ter aceite em manter o pagamento, finda a cedência, do acréscimo remuneratório denominado “retribuição adicional”, numa primeira fase mantendo o respetivo nomem no boletim de vencimento (até finais de 2004), numa segunda fase (janeiro de 2005), porquanto, inexistia na C... no seu modelo de compensação interna qualquer rubrica denominada “remuneração adicional”, optaram por integrar os valores anteriormente pagos à A. a título de “retribuição adicional” aquando da sua cedência, no seu valor exato, na rubrica que passaram a denominar no boletim de vencimento da A. como sendo de “complemento de desempenho” – cfr. facto provado em 33) -, pagamento esse que passou a fazer-se com uma periodicidade trimestral, adiantadamente, e no início de cada trimestre (janeiro, abril, julho e outubro), sendo que o valor anualizado da referida remuneração era exatamente o mesmo do somatório da “Retribuição Adicional” que, até 2005, a A. vinha recebendo, isto é, tendo por referência o valor mensal de tal retribuição – 131,95 € multiplicado por 14 (catorze) meses.

Logo, existiu aqui e tão só, uma manipulação do nomens da atribuição patrimonial paga à A., sendo que, a razão de ser da atribuição do “complemento de desempenho” à A. radica do facto de se querer a manutenção do anterior pagamento da “retribuição adicional”, embora sob uma nova roupagem e pago com uma periodicidade trimestral.

Ou seja, pese embora, no modelo interno da “ C... ” a rubrica denominada “complemento de desempenho” se destine a premiar e estimular os melhores desempenhos dos seus trabalhadores, no que tange à aqui A., tal atribuição não teve por suporte tal intenção - o critério da meritocracia -, mas sim a manutenção da anterior “Retribuição adicional”, frisamos no seu exato montante (o qual, aliás, sempre foi auferido pela A. ao longo dos anos, sem qualquer decréscimo, oscilações ou variações, até ao ano de 2010), que anteriormente auferia aquando da sua cedência à D... .

Concluímos assim de todo este circunstancialismo que, a “ C... ” não se limitou a introduzir uma componente salarial nova para o futuro dependente unicamente de critérios de desempenho/mérito, antes, optou por integrar no seu modelo retributivo interno o valor exato da “Retribuição adicional” auferida pela A. aquando da sua cedência.

Logo, não estando ilidida a presunção, entendemos que tal “complemento de desempenho” integra a retribuição da A., revestindo o cariz de periodicidade, e de regularidade, constituindo para a A. uma expetativa legítima quanto ao seu recebimento.

- Diferenças salariais peticionadas:

Como se sabe, de harmonia com o art. 129.º n.º 1, al. d) do CT2009, é proibido ao empregador: “Diminuir a retribuição, salvo nos casos previstos neste Código e nos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho”.

Já o dissemos atrás que, o “complemento de desempenho” pago à A., consubstancia o conceito de prestações regulares e periódicas, a que se refere o n.º 2 do art. 249.º do CT2003 (vide, n.º 2 do art. 258.º do CT2009).

Importa, antes de mais, contextualizar o denominado princípio da irredutibilidade:

Como dizem, o Professor Mário Pinto e os Drs. Furtado Martins e Nunes de Carvalho, no comentário às Leis do Trabalho, Volume 1.º, a pág. 100: “Vimos que se proíbe uma regressão salarial, concretizada na redução da retribuição global do trabalhador. Simplesmente, essa retribuição não pode ser entendida como um bloco unitário e incindível, numa perspetiva estritamente aritmética. Retribuição é o correspondente da prestação de trabalho, uma atribuição patrimonial que serve de contrapartida ao trabalho prestado, de acordo com um certo equilíbrio, definido no contrato ou numa parte jus laboral (lei ou instrumento de regulamentação coletiva).

E a regra da irredutibilidade visa proibir uma alteração desse equilíbrio em sentido menos favorável ao trabalhador.

Todavia, o equilíbrio entre as prestações não é, em si mesmo, um bloco incindível. Podemos descortinar, para além de uma correspondência global, determinados nexos específicos entre certas atribuições patrimoniais e particulares modo de ser do trabalho prestado. Se, duma parte, temos um núcleo central da retribuição que corresponde ao exercício das funções correspondentes a uma certa atividade, durante o número de horas estipulado como período normal de trabalho, discernimos, doutra parte, outros nexos de correspondência entre específicas atribuições patrimoniais e certos modos de ser da prestação (...) A irredutibilidade da retribuição não pode, sob pena de criar situações absurdas (e de injustificada disparidade retributiva entre trabalhadores que desempenham funções semelhantes), ser entendido de modo formalista e desatendo à substância das situações. A proibição da regressão salarial designa, sob esta perspetiva, a impossibilidade de piorar o equilíbrio que existe entre a prestação a cargo do trabalhador e a contraprestação laboral”.

Desta exposição, resulta que a entidade empregadora pode alterar, unilateralmente, a forma de cálculo das componentes retributivas, desde que a referida base de cálculo não constitua um elemento essencial do contrato e desde que dessa alteração não resulte diminuição da retribuição.

Com efeito, a garantia da irredutibilidade da retribuição prevista no art. 129.º n.º 1, al. d), apenas veda à entidade empregadora a diminuição da retribuição global, nada a obrigando a manter inalterável a estrutura de todos os demais componentes retributivos, designadamente, a base de cálculo dos prémios atribuídos, estando apenas obrigada a manter os montantes médios e não a mesma estrutura de retribuição.

Com arrimo nos factos acima dados por provados, temos por seguro que a Direção a que estava afeta a autora – denominada DOI – determinou que, a partir de 2010, deixasse de ser atribuído à A. o referido complemento de desempenho – vide, facto provado em 37).

O certo é que, conforme supra dissemos, a rubrica que passou a ser denominada como sendo “complemento de desempenho” não se destinava a premiar ou a estimular o mérito da A., mas sim a integrar no modelo de processamento de remunerações da “ C... ” a denominada “Retribuição adicional” que auferia aquando da sua cedência à D... .

Logo, tratando-se de um elemento constitutivo da retribuição da A. não é possível a sua diminuição nos moldes preconizados e realizados pela “ C... ”., em 2010, dado ter atingido a retribuição global disponível à trabalhadora, acabando por gerar na mesma a expetativa razoável, face ao uso criado, de que tal se manteria, e com tal aumento fazia face as suas despesas correntes, e a do seu agregado familiar.

Concluímos assim estar violado o princípio da irredutibilidade da retribuição, pelo que, a R. será condenada a repor ao aqui A. o pagamento de tal “Complemento de Desempenho” (…)»

Cumpre desde já manifestar o nosso acordo com a análise efetuada, que emerge de consistente fundamentação e de uma lúcida e perfeita perceção da realidade sub judice.

Não obstante tenha resultado provado que no modelo interno da C... a rúbrica denominada “complemento de desempenho” se destine a premiar e estimular os melhores desempenhos dos seus trabalhadores, sendo mantido enquanto se verificar um elevado nível de desempenho e retirado por demérito do trabalhador, e o preceituado no artigo 260.º, n.º 1, alínea c) do Código de Trabalho de 2009 exclua do conceito de retribuição do trabalhador as prestações decorrentes dos factos relacionados com o desempenho ou mérito profissionais, certo é, que na situação vertente, resultou demonstrado que o CD pago à recorrida corresponde e destinou-se a assegurar o pagamento da prestação retributiva anteriormente designada por “retribuição adicional”, ainda paga pela C... sob essa denominação desde o regresso da recorrida à empresa após termo da cedência e até ao final de 2004.

Ou seja, apesar da mudança de nomenclatura, a prestação satisfeita foi a mesma, não havendo qualquer relação ou dependência entre a sua existência e o desempenho ou mérito profissionais da recorrida.

E a prestação pecuniária em causa porque paga com regularidade e periodicidade, conforme apreciação feita pelo tribunal a quo para a qual se remete, integrava o conceito de retribuição, em sentido estrito, da trabalhadora, contando a mesma com o seu recebimento para fazer face ao seu sustento como contrapartida do trabalho por si executado e como corolário do princípio da boa-fé contratual.

Ora, o princípio da irredutibilidade da retribuição, consagrado na alínea d) do n.º 1 do artigo 129º do Código do Trabalho, é comummente aceite que apenas se aplica à retribuição considerada em sentido estrito, ou seja, tal princípio não atinge a globalidade da retribuição, ficando fora da sua abrangência as parcelas da retribuição habitualmente designadas de complementares, geralmente relacionadas com um maior esforço, risco ou penosidade do trabalho (vg. subsídio de risco; subsídio de compensação por penosidade do trabalho), com situações de desempenho específicas (vg. isenção de horário de trabalho), ou situações de maior trabalho (vg. trabalho prestado para além do período normal de trabalho).

Tal entendimento tem sido defendido, a nível jurisprudencial (vejam-se, a título meramente exemplificativo: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/1/2008, P.07S3786; Acórdão da Relação de Lisboa de 18/6/2008, P. 3374/200-4; Acórdão da Relação de Coimbra de 26/03/2015, P. 806/13.0TTCBR.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Também a doutrina se tem manifestado no mesmo sentido.

A título de exemplo, Pedro Romano Martinez, “Direito do Trabalho”, 3ª edição, pág. 595, escreveu:

«[] os complementos salariais que são devidos enquanto contrapartida do modo específico do trabalho como um subsídio de penosidade, de isolamento, de toxicidade, de trabalho noturno, de turnos, de risco ou de isenção de horário de trabalho podem ser reduzidos ou até suprimidos, na exata medida em que se verifique modificações ou a supressão dos mencionados condicionalismos externos do serviço prestado. O princípio da irredutibilidade da retribuição não obsta a que sejam afetadas as parcelas correspondentes ao maior esforço ou penosidade do trabalho sempre que ocorram, factualmente, modificações ao nível do modo específico de execução da prestação laboral. Tais subsídios apenas são devidos enquanto persistir a situação de base que lhes serve de fundamento».

Por consequência, constituindo a prestação paga à recorrida sob a designação de “complemento de desempenho”, uma componente que contribuía para o valor global da retribuição auferida pela trabalhadora, a apelante estava proibida, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 129.º do Código de Trabalho, de deixar de pagar tal prestação, tal como foi enunciado na sentença recorrida, com as consequências daí extraídas.

Destarte, a sentença recorrida procedeu a uma correta subsunção dos factos ao direito, pelo que merece o nosso acordo.

Concluindo, o recurso mostra-se improcedente.


*

V. Decisão

Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Notifique.

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Sumário elaborado pela relatora:
I- Só se verifica contradição insanável da decisão sobre a matéria de facto quando existe factualidade com um conteúdo logicamente incompatível, que não pode subsistir por impossibilitar a utilidade da matéria de facto em oposição.
II- A retribuição do trabalho é o conjunto de valores (pecuniários ou não) que a entidade patronal está obrigada a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em razão da atividade por ele desenvolvida ou, mais rigorosamente, da disponibilidade da força de trabalho por ele oferecida, integrando a mesma não só a remuneração de base como ainda outras prestações regulares e periódicas, feitas direta ou indiretamente, com as quais o trabalhador conta para satisfação das necessidades pessoais do trabalhador e da sua família.
III- Tendo a trabalhadora auferido durante anos uma prestação pecuniária regular e periódica designada por “retribuição adicional” e que a empregadora alterou para designação de “compensação de desempenho”, muito embora a mesma não estivesse condicionada ou dependente do desempenho e mérito profissionais da trabalhadora, tal prestação constitui uma componente da sua retribuição em sentido estrito, estando, como tal, abrangida pelo princípio da irredutibilidade da retribuição.

Coimbra, 30 de junho de 2017

Relatora: Paula do Paço

1º Adjunto: Ramalho Pinto

2º Adjunto: Felizardo Paiva