Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
347/17.7JALRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: PERÍCIA
LABORATÓRIO DA POLÍCIA CIENTÍFICA DA POLÍCIA JUDICIÁRIA
INQUÉRITO
PROCESSO-CRIME
NOTA DE DÉBITO
OPORTUNIDADE DO PAGAMENTO
Data do Acordão: 06/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J L CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1.º, 2.º, N.º 1, E 46.º, N.º 3, ALÍNEA B), DA LEI N.º 37/2008, DE 06 DE AGOSTO; ART. 1.º, E 2.º, N.ºS 3, E 4, DA PORTARIA N.º 175/2011, DE 28 DE ABRIL
Sumário: I – Da conjugação do disposto nos nºs 3, b) e 4 do art. 46º da Lei nº 37/2008, de 6 de Agosto com o disposto nos nºs 3 e 4 do art. 2º da Portaria nº 175/2011, de 28 de Abril cremos não ser possível extrair, tendo em conta os critérios legais estabelecidos no art. 9º do C. Civil, outra interpretação que não, a de que as normas citadas impõem ao tribunal o pagamento directo e antecipado à Polícia Judiciária do custo dos exames e perícias por ela realizados, que tenham sido requeridos no âmbito de um processo criminal, desde que tal pagamento seja por esta polícia solicitado.

II – Trata-se de um pagamento antecipado, de um adiantamento no processo, que se traduz num encargo a ser considerado em regra de custas, devendo, a final, ser suportado pelo interveniente processual responsável pelo pagamento das custas (cfr. arts. 24º, nº 2 e 30º, nº 3, c) do R. das Custas Processuais) designadamente, pelo arguido, em caso de condenação, ou a ser suportado pelo IGFIJ, IP, quando não haja interveniente processual responsável pelo pagamento das custas ou dele esteja isento (cfr. arts. 16º, nº 1, a), 19º, nº 1 e 20º, nº 2 do R. das Custas Processuais), como será o caso do arquivamento do inquérito ou da absolvição do arguido.

Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

No processo comum singular nº 347/17.7JALRA, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo Local Criminal de Leiria – Juiz 1, no seguimento de promoção da Digna Magistrada do Ministério Público no sentido de ser adiantado o pagamento da nota de débito de serviços prestados, apresentada pela Polícia Judiciária, relativa ao exame de Toxicologia nº 201718840, por despacho de 6 de Dezembro de 2018, a Mma. Juíza a quo indeferiu o promovido adiantamento de pagamento.


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Inconformada com a decisão, recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1 – Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público do douto despacho proferido no dia 5 de Dezembro de 2018, a fls. 271, que indeferiu a promoção do Ministério Público, no sentido de que as despesas geradas na realização de perícias efectuadas pela Polícia Judiciária lhe fossem pagas, por serem receita própria, a reverter para a entidade oficiante, sendo decorrentes de encargos a que o arguido deu causa e a pagar por este, a final.

2 – Para fundamento do indeferimento do promovido pelo Ministério Público, foi proferido o seguinte despacho pela Mma Juiz a quo:

No seguimento do entendimento plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.05.2017 (…) O exame toxicológico realizado nos autos foi efectuado no exercício das atribuições legais da referida entidade, no âmbito da actividade investigatória da mesma, não sendo por isso a suportar pelas partes.

3 – Ora, salvo o devido respeito, entendemos que a decisão plasmada no douto despacho da Mma. Juiz a quo teria razão de ser se tais exames tivessem sido realizados em sede de inquérito e findo o mesmo, o processo tivesse sido arquivado.

4 – Todavia, tendo havido acusação e condenação transitada em julgado, entendemos que deve o arguido ser responsável pelo seu pagamento, uma vez que se tratam de encargos a que o arguido deu causa.

5 – Nestes termos, e estando em causa a questão do pagamento do custo do exame toxicológico realizado pelo Laboratório da Polícia Científica da Polícia Judiciária, no âmbito do inquérito que teve lugar nos presentes autos, por crime de tráfico de estupefacientes, não parecem restar dúvidas de que as despesas apresentada pela Polícia Judiciária constituem um encargo processual que deve reverter como receita própria para a entidade oficiante (Polícia Judiciária) e ser paga, a final, pelo arguido, uma vez que se tratam de encargos a que este deu causa.

6 – Conforme jurisprudência sedimentada nesta matéria e, por todos, atente-se ao sumário do douto Acórdão da Relação de Coimbra de 24/10/2018, processo n.º 2/14.0T9NLS-A.C1, disponível em www.dgsi.pt: “A Portaria n.º 175/2011, de 28-04 (configurando, também, desenvolvimento da Lei n.º 37/2008, de 06-08) impõe aos tribunais o pagamento directo e antecipado à Polícia Judiciária dos custos decorrentes da realização, por aquele órgão de polícia criminal, de exames e/ou perícias que lhe sejam requeridos no âmbito de um processo penal.”

7 – Por tudo o exposto, entende-se que o douto despacho proferido pela Mma. Juiz a quo violou o disposto nos artigos 46º, nºs 3, als. b) e c) e 4, da Lei nº 37/2008, de 6/08, 1º, nº 1, 2º, nº 3, ambos da Portaria nº 175/2011, de 28 de Abril, 16º, nº 1, als. c), d) e nº 2, do Regulamento das Custas Processuais e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente, devendo Vªs. Exªs. ordenar à Mma. Juiz a quo que substitua o despacho recorrido por outro, no qual ordene o deferimento do requerido pelo Ministério Público.

Vªs. Exªs. decidirão conforme for de LEI e JUSTIÇA.


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            Não houve resposta ao recurso.

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            A Mma. Juíza a quo sustentou tabelarmente o despacho recorrido.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador da República emitiu parecer, sufragando a motivação do Ministério Público e concluiu pelo provimento do recurso.

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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela Digna Magistrada do Ministério Público recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se deve ou não ser adiantado pelo tribunal o pagamento à Polícia Judiciária do custo do exame de Toxicologia efectuado no âmbito dos autos principais.


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            Para a resolução desta questão, importa ter presente o teor do despacho recorrido que é o seguinte:

               Fls. 262 a 264: No seguimento do entendimento plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.05.2017, publicado in www.dgsi.pt, considera-se que

Não são pagas as perícias ou exames feitos pela Polícia Judiciária no âmbito da prossecução das suas atribuições legais. Só são pagas à Policia Judiciária as perícias ou exames que tiverem sido requisitados por entidade externa. É este o sentido da expressão “actividades ou serviços prestados”.

O exame toxicológico realizado nos autos foi efectuado no exercício das atribuições legais da referida entidade, no âmbito da actividade investigatória da mesma, não sendo por isso a suportar pelas partes.

Nos termos expostos, indefere-se o requerimento pagamento da despesa peticionada.

Notifique.


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            Com relevo para a decisão da questão proposta colhem-se ainda nos autos os seguintes elementos:

           

            i) Nos autos, após apreensão de 9,138 gramas de resina de canábis ao arguido …, foi solicitada ao Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária a realização do exame pericial de Toxicologia a este estupefaciente.   

            ii) O exame pericial solicitado, ao qual coube o nº 201718840-BTX, foi realizado pelo referido laboratório, em 18 de Maio de 2018.

iii) Por sentença de 14 de Junho de 2018, o arguido … foi condenada pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, a) do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena, especialmente atenuada, de sete meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período de tempo, com sujeição a regime de prova.

iv) Em 27 de Novembro de 2018, a Unidade de Administração Financeira, Patrimonial e de Segurança da Polícia Judiciária remeteu ao tribunal a nota de débito nº 2210018835/2018, no valor de € 387,60, referente ao exame nº 201718840-BTX 

v) Em 29 de Novembro de 2018 a Digna Magistrada do Ministério Público promoveu, nos termos já referidos, o adiantamento do pagamento da nota de débito, por ser decorrente de encargos a que o arguido deu causa e a pagar por este, tendo, depois, sido proferido o despacho recorrido.


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            1. Está em causa saber se, tal como se decidiu no despacho recorrido, não é devido pelo tribunal o pagamento pelos exames periciais realizados pela Polícia Judiciária no âmbito do exercício das suas atribuições legais, aqui se incluindo os exames toxicológicos solicitados em processo de natureza criminal e realizados no âmbito da sua actividade de investigação criminal, ou se, tal como entende a Digna Magistrada do Ministério Público recorrente, o tribunal deve efectuar o adiantamento daquele pagamento, pois que o exame em questão se inclui na categoria dos encargos a que o arguido do processo deu causa e por isso, deve pagar, a título de custas, como se dispõe no art. 46º, nº 3, b) e c) da Lei nº 37/2008, de 6 de Agosto e nos  arts. 1º, nºs 1 e 2 e 2º, nº 3 da Portaria nº 175/2011, de 28 de Abril.

A questão colocada no recurso não é nova e tem vindo a ser decidida, de forma quase uniforme, pela jurisprudência das relações. Vejamos então.

A Polícia Judiciária é um serviço central da administração directa do Estado, dotado de autonomia administrativa (art. 1º da Lei nº 37/2008, de 6 de Agosto) que tem por missão coadjuvar as autoridades judiciárias na investigação, desenvolver e promover as acções de prevenção, detecção e investigação da sua competência ou que lhe sejam cometidas pelas autoridades judiciárias competentes (art. 2º da Lei nº 37/2008, de 6 de Agosto).

Nos termos do disposto no art. 3º da mesma lei, a Polícia Judiciária coadjuva as autoridades judiciárias em processos que têm por objecto crimes cuja detecção ou investigação lhe compete realizar ou quando seja necessária a prática de actos anteriores ao julgamento que requerem conhecimentos ou meios técnicos especiais, actuando sempre sob a direcção e na dependência funcional das autoridades judiciárias mas sem prejuízo da sua organização hierárquica e autonomia técnica e táctica.

            No que respeita o seu financiamento, dispõe o art. 46º da Lei nº 37/2008, de 6 de Agosto, sob a epígrafe, «Receitas»:

            1 – A PJ dispõe das receitas provenientes de dotações que lhe forem atribuídas no Orçamento do Estado.

2 – A PJ dispõe das receitas provenientes das transferências do Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça, I. P. (IGFIJ, I. P.).

3 – A PJ é responsável pela arrecadação das seguintes receitas próprias resultantes da sua actividade:

a) As importâncias cobradas pela venda de publicações e de artigos de promoção institucional;

b) As quantias cobradas por actividades ou serviços prestados, designadamente acções de formação, realização de perícias e exames, extracção de certidões e cópias em suporte de papel ou digital;

c) Quaisquer outras receitas que lhe sejam atribuídas por lei, contrato ou a outro título.

4 – As quantias cobradas ao abrigo do disposto no número anterior são pagas à PJ de acordo com a tabela aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área da Justiça.

5 – As receitas referidas nos n.ºs 2 e 3 são consignadas à realização de despesas da PJ durante a execução do orçamento do ano a que respeitam, podendo os saldos não utilizados transitar para o ano seguinte.

A portaria referida no nº 4 do artigo transcrito é a Portaria nº 175/2011, de 28 de Abril que aprovou a tabela de preços a cobrar pela Direcção-Geral de Reinserção Social, pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P., e pela Polícia Judiciária por perícias e exames, relatórios, informações sociais, audições e outras diligências ou documentos que lhes tenham sido requeridos ou que por eles tenham sido deferidos a entidades públicas ou privadas (art. 1º, nº 1).

Dispõe o art. 2º da portaria citada, com a epígrafe, «Preços e pagamentos»:

1 – Para os efeitos do disposto no artigo anterior, os preços são expressos com recurso à unidade de conta processual (UC).

2 – Sempre que necessário, a Direcção-Geral de Reinserção Social, o Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P., e a Polícia Judiciária podem apresentar propostas de alteração à tabela de preços anexa à presente portaria.

3 – O custo das perícias e exames bem como dos instrumentos técnicos elaborados para apoiar as decisões das entidades judiciárias são considerados para efeitos de pagamento antecipado do processo.

4 – As perícias e os exames realizados pela Direcção-Geral de Reinserção Social, pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P., ou pela Polícia Judiciária são pagos directamente a essas entidades pelos tribunais ou pelas entidades públicas ou privadas não isentas que os requeiram, de acordo com a tabela de preços anexa à presente portaria.

Aqui chegados.

2. Da conjugação do disposto nos nºs 3, b) e 4 do art. 46º da Lei nº 37/2008, de 6 de Agosto com o disposto nos nºs 3 e 4 do art. 2º da Portaria nº 175/2011, de 28 de Abril, e sempre com ressalva do respeito devido por diversa opinião, cremos não ser possível extrair, tendo em conta os critérios legais estabelecidos no art. 9º do C. Civil, outra interpretação que não, a de que as normas citadas impõem ao tribunal o pagamento directo e antecipado à Polícia Judiciária do custo dos exames e perícias por ela realizados, que tenham sido requeridos no âmbito de um processo criminal, desde que tal pagamento seja por esta polícia solicitado.

Com efeito, trata-se, como se disse, de um pagamento antecipado, de um adiantamento no processo, que se traduz num encargo a ser considerado em regra de custas, devendo, a final, ser suportado pelo interveniente processual responsável pelo pagamento das custas (cfr. arts. 24º, nº 2 e 30º, nº 3, c) do R. das Custas Processuais) designadamente, pelo arguido, em caso de condenação, ou a ser suportado pelo IGFIJ, IP, quando não haja interveniente processual responsável pelo pagamento das custas ou dele esteja isento (cfr. arts. 16º, nº 1, a), 19º, nº 1 e 20º, nº 2 do R. das Custas Processuais), como será o caso do arquivamento do inquérito ou da absolvição do arguido.

Neste sentido, que é dominante, podem ver-se os acs. da Relação de Coimbra de 22 de Maio de 2019, processo nº 145/17.8GBNLS-A.C1 e de 24 de Outubro de 2018, processo nº 2/14.0T9NLS-A.C1, da Relação de Lisboa de 22 de Maio de 2018, processo nº 14/16.9SVLSB-A.L1-5, da Relação do Porto de 29 de Março de 2017, processo nº 411/14.4PFVNG-B.P1 e de 24 de Maio de 2017, processo. nº 209/14.0TAVLC-.P1, e da Relação de Évora de 22 de Setembro de 2015, processo nº 27/12.0TABJA-A.E1, de 20 de Outubro de 2015, processo nº 31/11.5TAMTL-A.A.E1, de 3 de Novembro de 2015, processo nº 225/12.6TABJA-A.E1 e de 19 de Fevereiro de 2019, processo nº 25/12.GACCH-A.E1, todos in www.dgsi.pt. Em sentido diverso, podem ver-se os acs. da Relação de Coimbra de 24 de Maio de 2017, processo nº processo nº  306/12.6JACBR-A.C1 [no qual se apoiou o despacho recorrido, no sentido de que não são pagas à Polícia Judiciária as perícias por ela realizadas por iniciativa própria, no âmbito da prossecução das suas atribuições legais] e da Relação de Lisboa de 31 de Janeiro de 2017, processo nº 291/13.7PAAMD-A.L1-5 [no sentido de que, tendo a nota de débito sido apresentada após condenação e portanto, quando já estava determinado o responsável pelo pagamento, não se justificava o adiantamento do respectivo pagamento pelo Estado], ambos in www.dgsi.pt.       

Assim, e sem necessidade de mais considerações, pelas razões sobreditas entendemos não poder manter-se o despacho recorrido.


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            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso.

Em consequência, revogam o despacho recorrido e determinam a sua substituição por outro que ordene o pagamento da nota de débito nº 2210018835/2018, no valor de € 387,60, referente ao exame nº 201718840-BTX, apresentada pela Polícia Judiciária.

Recurso sem tributação por não ser devida



Coimbra, 12 de Junho de 2019

Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – e Helena Bolieiro – adjunta.