Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
466/11.3T2AND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: LEGITIMIDADE
VEÍCULO AUTOMÓVEL
RESERVA DE PROPRIEDADE
REGISTO
ACÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS
Data do Acordão: 05/28/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INST. CÍVEL DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 26º CPC
Sumário: O comprador de veículo automóvel, com registo de cláusula de reserva de propriedade a favor da instituição financeira, tem legitimidade activa, para, em acção de responsabilidade civil por acidente de viação reclamar os danos patrimoniais (reparação e desvalorização) causados ao veículo sinistrado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

            1.1.- Os Autores – C… e mulher D… – instauraram ( 18/10/2011 ) na Comarca do Baixo Vouga acção declarativa, com forma de processo sumário, contra a Ré – A… Seguros SA.

            Alegaram, em resumo:

            São proprietários do veículo automóvel de matrícula …, embora registado apenas em nome do Autor e com reserva de propriedade a favor do Banco S...

            No dia 3 de Setembro de 2010, na freguesia de Arcos, Anadia, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo …, conduzido pela Autora, e o veículo pesado de matrícula …, conduzido por E…, por conta e ao serviço da proprietária L…, Lda, que transferira para a Ré Seguradora a responsabilidade, através de contrato de seguro.

            O acidente foi causado por culpa exclusiva do condutor do …, ao invadir a faixa de rodagem contrária, colidindo frontalmente com o veículo dos Autores, que, em consequência, sofreram danos patrimoniais e não patrimoniais.

            Pediram a condenação da Ré a pagar-lhes:

            a) A título de danos patrimoniais:

            A quantia de € 6.749,00, como custo de reparação do veículo dos Autores;

            A quantia de € 1.900,00, pelo prejuízo decorrente de uma viatura de substituição;

            A quantia de € 1.000,00, pela desvalorização do veículo;

            A quantia de € 100,00, com trabalho pago a título de serviço doméstico;

            A quantia de € 98,38, custo da inspecção extraordinária do veículo;

            b) A quantia de € 2.500,00, a título de danos não patrimoniais, posteriormente ( cf. fls. 131)  reduzida para € 1.000,00

            c) Os juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias pedidos, a título de anos patrimoniais desde a citação da Ré e os relativos aos danos não patrimoniais desde a prolação da sentença.

            Contestou a Ré, defendendo-se por impugnação motivada, para concluir pela improcedência da acção.

            No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.

            1.2. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu:

            a) Julgar verificada a excepção dilatória da ilegitimidade activa dos Autores e absolver a Ré da instância quanto aos pedidos de condenação no pagamento dos danos patrimoniais de € 6.749,00 (custo da reparação do veículo), € 1.000,00 (desvalorização do veículo), € 98,38 (custo da inspecção) e respectivos juros.

            b) Julgar parcialmente procedente a acção e condenar a Ré a pagar:

i) aos Autores a quantia de € 650,00, a crescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da sentença e até integral pagamento;

            ii) à Autora D… a quantia de € 800,00, a crescida de juros de mora, à taxa de 4% desde a sentença e até efectivo pagamento, e a quantia de € 100,00, acrescida de juros de mora, à mesma taxa, desde a citação.

            1.3. – Inconformados, os Autores recorreram de apelação, com as seguintes conclusões:

            Contra-alegou a Ré no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1.- Delimitação do objecto do recurso

            As questões submetidas a recurso são as seguintes:

            (1ª) A (i)legitimidade activa dos Autores para reclamar os danos com a reparação e desvalorização do veículo sinistrado (adquirido com reserva de propriedade, registada a favor do Banco S…, SA (financiador) );

            (2ª) Em caso de legitimidade activa, os danos patrimoniais pela reparação e desvalorização comercial do veículo automóvel.

            2.2. – Os factos provados (descritos na sentença)

...

2.3. - 1ª QUESTÃO - A (i)legitimidade activa:

            A sentença justificou, nos seguintes termos, a absolvição da instância, por ilegitimidade activa dos Autores:

 “ No presente pleito, pretendem os AA., entre o mais peticionado, a condenação da R. a pagar-lhes a título de danos patrimoniais sofridos: − O custo da reparação do veículo dos Autores fixado em € 6.749,00 (seis mil setecentos e quarenta e nove euros); − O valor de € 1.000,00 (mil euros) devido pela desvalorização sofrida pelo veículo dos Autores em consequência do acidente; − O custo da inspecção extraordinária ao veículo dos Autores tem consequência do acidente, presentemente fixado em € 98,38 (noventa e oito euros e trinta e oito cêntimos)”, quantias acrescidas dos respectivos juros desde a citação. Ora, quanto a estes pedidos, não são titulares da relação controvertida os AA, porquanto a propriedade do veículo automóvel se encontra reservada a favor do Banco S…, S.A., não portanto, transmitida para os AA. – cfr. art.º 409.º do Cód. Civil: “1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento. 2. Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros”.

Por conseguinte, quem tem interesse em demandar, no tocante àqueles pedidos, é aquela sociedade e não os AA.

A ilegitimidade constitui, conforme dispõe o art.º 494.º, n.º 1, al. e), do Cód. de Processo Civil, excepção dilatória, do conhecimento ex officio do Tribunal (art.º 495.º do mesmo código), a qual, sendo procedente, nos termos do n.º 2 do art.º 493.º e do art.º 288.º, n.º 1, al. d), do mesmo código, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição do réu da instância.

Verifica-se, portanto, a excepção dilatória de ilegitimidade activa dos AA. quanto aos aludidos pedidos, cabendo absolver a R. da instância, mas, apenas, no tocante aos mesmos.”
É conhecida a controvérsia sobre as duas posições doutrinárias acerca do pressuposto processual da legitimidade das partes (art.26 CPC). Para uns, a legitimidade é aferida pela pretensa relação material controvertida, tal como a configura o autor (tese de Barbosa de Magalhães), e, para outros, ela é definida pela relação jurídica submetida à apreciação do tribunal, sendo legítima a parte que efectivamente for titular dessa relação jurídica (tese de Alberto dos Reis).
         Embora a jurisprudência se encontrasse dividida, prevalecia a que se inclinava pela tese de Barbosa de Magalhães, sufragada por CASTRO MENDES (Direito Processual Civil, vol.I, pág.487) e TEIXEIRA DE SOUSA (Estudo sobre a legitimidade singular em Processo Declarativo, BMJ 292, pág.52 e segs.), permitindo delimitar com mais clareza o que pertence à relação processual e à relação substantiva, pelo que quando o tribunal declara a parte legitima pronuncia-se sobre um pressuposto processual e não sobre uma condição de procedência da acção ou de legitimação substantiva.
         Com a actual redacção dada ao nº3 do art.26º do CPC pelo art.1º do DL nº180/96 de 25/9, o legislador veio tomar posição expressa sobre a questão quanto ao critério de determinação da legitimidade das partes, conforme resulta do próprio relatório, aderindo à posição doutrinária de Barbosa de Magalhães.
         Nesta perspectiva, a legitimidade deve ser apreciada e determinada pela utilidade ou prejuízo que da procedência ou improcedência da acção possa derivar para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, considerando o pedido e à causa de pedir, assumem na relação jurídica controvertida, tal como a apresenta o autor.

            Partindo deste critério, conforme se apresenta estruturada a acção, os Autores têm legitimidade activa para reclamar da Ré os danos causados no veículo.

            Desde logo, eles começam por afirmar serem os proprietários da viatura, pese embora se encontre registada em nome do Autor marido, com cláusula de reserva de propriedade a favor do Banco S…, SA, mas, como é sabido, o registo não é constitutivo de direitos. De resto, não estando em causa a discussão da propriedade sobre o veículo sinistrado, é patente a utilidade para os Autores da procedência da acção, tanto mais haverem sempre alegado (arts.36 e segs.) que o veículo lhes pertence (“o veículo dos Autores“), logo, no plano meramente adjectivo, não havia fundamento para a suscitação oficiosa da ilegitimidade activa.

            Por outro lado, a sentença declara que quem tem interesse directo em demandar é o Banco Santander (mutuante) a favor de quem está registada a cláusula de reserva de propriedade, mas parece revelar uma errónea concepção e finalidade da “reserva de propriedade”.

            Em primeiro lugar, ainda que exista ou possa existir uma conexão entre o contrato de mútuo, destinado ao financiamento da aquisição do bem e o respectivo contrato de compra e venda, tem-se entendido que o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade, pela simples razão de que não é o titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem, pois o art.409 do CC só se aplica aos contratos de alienação, e neles não se inscreve o de mútuo.

Também não tem aplicação analógica já que não é possível equiparar a posição de alienante com a do mutuante, que não é proprietário do bem, apenas se limitando a financiar a aquisição. Acresce que o princípio da liberdade contratual (art.405 do CC) tem como limite a imperatividade do art.280 do CC, logo a cláusula de reserva da propriedade a favor do Banco sempre seria nula (cf, por ex., GRAVATO MORAIS, União de Contratos de Crédito e de Venda para Consumo, pág.307 e segs., e Cadernos de Direito Privado, nº 6, Abril-Junho de 2004, pág. 49; Ac STJ de 10/7/2008, de 12/7/2011, em www dgsi.pt ).

A propósito da natureza jurídica da compra e venda com reserva de propriedade, tem-se adoptado maioritariamente a tese da transmissão diferida da propriedade, reconhecendo-se, no entanto, ao comprador “ um direito de expectativa com eficácia real” ou mesmo um verdadeiro “direito subjectivo real”, que pode inclusivamente ser negociado. Daí que, a propósito da posição jurídica do comprador, se fale então “de um primeiro grau da propriedade, um direito em construção, um minus de natureza idêntica ao direito de propriedade”, assumindo a reserva de propriedade uma “função de garantia” ( cf. GABRIELA DIAS, “Reserva de Propriedade”, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, pág. 417 e segs. ).

Por isso, defende-se que no negócio celebrado com reserva de propriedade, o que apenas fica suspenso é o efeito translativo da propriedade, produzindo-se de imediato todos os demais, designadamente o da transmissão da posse, passando a deter os poderes de gozo e disposição, ficando reservada para o alienante a titularidade abstracta do direito de propriedade.

Deste modo, o risco corre por conta do adquirente (art.796 nº2 CC), a partir do momento da entrega da coisa, tanto assim que em caso de veículo automóvel a obrigação de seguro, na venda com reserva de propriedade, impende sobre o adquirente (art.2º do DL nº 522/85 de 31/11 e art.6º do DL 291/2007 de 20/8).

            Como referem os Apelantes, o único interesse do Banco S… (instituição mutuante) é o do recebimento das prestações, e quem ficou prejudicado com o acidente foram efectivamente os Autores que, apesar da destruição da viatura, terão de continuar a suportar o financiamento.

            Em resumo, o interesse directo em reclamar na acção tanto o custo do veículo, como a sua desvalorização, é sem dúvida dos Autores, que por isso têm legitimidade activa (cf., neste sentido, o Ac STJ de 7/7/2010, proc. nº117/06.8TBOFR, em www dgsi.pt.).

            2.4. - 2ª QUESTÃOOs danos patrimoniais (reparação e desvalorização do veículo automóvel)

            O custo da reparação do veículo:

            Os Autores reclamam o montante de € 6.749,00, correspondendo à diferença entre o valor venal de € 9.860,00 e o dos salvados, € 3.111,00.
No direito da responsabilidade civil, como decorre dos arts.483, 562 e 566 do CC, e tem sido orientação jurisprudencial e doutrinária uniformes, é o lesante, responsável pelo acidente de viação, quem tem a obrigação de ressarcir todos os danos, em princípio mediante a restauração natural, salvo se esta não for possível, não reparar integralmente os danos ou for excessivamente onerosa para o devedor. Portanto, incumbe ao lesante efectuar ou mandar efectuar a reparação do veículo sinistrado, e não sendo esta possível, terá de operar-se uma indemnização ou restituição por equivalente, a entrega em dinheiro, correspondente ao valor dos danos.
Para se aferir da excessiva onerosidade da reparação natural de um veículo automóvel não basta apenas considerar o valor venal ou de mercado, devendo atender-se ao “valor de uso” que o lesado dele extrai pelo facto de o ter à sua disposição, com vista à satisfação das suas necessidades, também designado de “valor patrimonial”, ou seja, valor que o veículo representa dentro do património do lesado.
Na verdade, como já então defendia VAZ SERRA (BMJ 84, pág.131 e segs.), ao designar o valor de uso como “subjectivo ou interesse“, não é equitativo obrigar o lesado a suportar o maior preço de um objecto novo, quando teria continuado a usar o velho, pois a perda por ele sofrida não consiste na destruição do valor do bem, mas na necessidade de adquirir outro para substituir aquele. E esta orientação tem vindo a ser acolhida no plano jurisprudencial (cf., por ex., Ac do STJ de 7/7/99, C.J. ano VII, tomo III, pág.17, de 16/11/00, C.J. ano VIII, tomo III, pág.124, de 27/2/03, C.J. ano XI, tomo I, pág.112, de 12/1/06, de 4/12/07, de 5/6/08, de 19/3/09, disponíveis em www dgsi.pt ).
O DL nº 83/2006, de 3/5, ao transpor parcialmente para a ordem jurídica nacional a Directiva nº 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Maio, aditou ao DL nº 522/85 de 31/12, o capítulo II-A “Da regularização dos sinistros“, com os arts. 20-A a 20-O, onde a propósito da indemnização pela “perda total“ do veículo estipula (art.20-I nº2 ) como critério que o valor da indemnização é determinado com base no valor venal do veículo, calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado, caso este permaneça na posse do seu proprietário“. Estes diplomas foram entretanto revogados pelo DL nº291/2007, de 21/8, cujo art.41º estabelece o critério do valor venal antes do sinistro.
Contudo, o critério legal adoptado destina-se apenas à regularização extrajudicial dos sinistros, sem derrogação do regime civilístico dos arts.562 e 566 do CC, cuja interpretação atende ao valor de uso ou valor patrimonial.
Também JÚLIO GOMES, em anotação ao Ac. do STJ de 27/2/2003 (“Custos das reparações, valor venal ou valor de substituição?”, Cadernos de Direito Privado, nº3, pág.55 e segs.), rejeitando o critério do valor de mercado do bem, por tal implicar uma expropriação privada pelo preço de mercado, afirma que “a excessiva onerosidade só se pode decidir no caso concreto, atendendo e confrontando os interesses do lesado e os do lesante e determinando até que ponto é que é exigível ao lesante suportar o custo das reparações por tal corresponder a um interesse digno de tutela do lesado na integridade do seu património”.
Pois bem, uma vez que os Autores pedem um valor inferior ao venal, estando implícito ser o correspondente ao valor custo da reparação, sabido tratar-se de um veículo ligeiro de mercadorias de marca Mitsubishi Colt, por eles utilizado nas deslocações profissionais diárias, evidencia-se equitativo o montante reclamado de € 6.749,00. Aliás, os Autores procederam à liquidação do dano à luz do critério estabelecido no art.41 nº3 do DL nº 291/2007 (valor venal do veículo antes do acidente (€ 9.860,00), deduzido do valor dos salvados (€ 3.111,00).

A desvalorização do veículo:

Como dano patrimonial, provou-se que o veículo sofreu desvalorização (decorrente do facto de não poder nem dever ser ocultado de potencial seu comprador estar-se perante um veículo sinistrado e de deixar de ostentar a sua pintura original (de fábrica)), no valor de, pelo menos, € 1.000,00.

Procede a Apelação, revogando-se a sentença, na parte em que absolveu a Ré da instância, afirmando-se os Autores partes legítimas para reclamar os danos com a reparação e desvalorização do veículo sinistrado.

            2.5. – Síntese Conclusiva

            O comprador de veículo automóvel, com registo de cláusula de reserva de propriedade a favor da instituição financeira tem legitimidade activa, para, em acção de responsabilidade civil por acidente de viação reclamar os danos patrimoniais (reparação e desvalorização) causados ao veículo sinistrado.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, na parte em que absolveu a Ré da instância, por ilegitimidade activa dos Autores.

2)

            Condenar a Ré a pagar aos Autores o montante global de € 7.749,00, correspondente ao dano patrimonial da reparação e desvalorização do veículo automóvel, acrescida de juros de mora desde a citação.

3)

            Condenar a Ré nas custas da Apelação.

            Condenar Autores e Ré nas custas da 1ª instância, na proporção do decaimento.


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( Jorge Arcanjo -Relator )

( Teles Pereira )

( Manuel Capelo )