Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
356/06.1TACNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
RECURSO
INSOLVÊNCIA
PROCEDIMENTO CRIMINAL
EXTINÇÃO
Data do Acordão: 03/06/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CANTANHEDE (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 310º Nº 1 CPP, 141º Nº 1 E), 146º Nº 2, 160º Nº 2 CSC
Sumário: 1.- A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais;

2.- Tal norma não fere o núcleo essencial do direito de defesa, pois trata-se de uma decisão judicial que assenta num juízo indiciário, de efeitos provisórios e processualmente reversível até à fase de julgamento e durante a fase de julgamento, já que o despacho de pronúncia não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas.

3.- A declaração de insolvência de uma sociedade, embora provoque a sua dissolução, não provoca a sua extinção nem a extinção do procedimento criminal contra ela instaurado. A sociedade não pode considerar-se extinta enquanto não se mostrar efetuado o registo do encerramento da liquidação

Decisão Texto Integral: Precedendo conferência, acordam na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I. Relatório.
1.1. Tramitado competente inquérito, o Ministério Público deduziu acusação, sob a aludida forma de processo comum singular, ut fls. 405 e segs., contra U... –; A...; B... e C..., pessoas singulares estas todas entretanto já melhor identificadas nos autos, imputando-lhes a prática indiciária de factos consubstanciadores da co-autoria material, sob a forma continuada, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido através das disposições conjugadas dos art.ºs 6.º e 107.º, n.º 1, por referência ao art.º 105.º, n.º 1, todos da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho [vulgo doravante RGIT], bem como 30.º, n.º 1 e 79.º, n.º 1, estes ambos do Código Penal, advindo a responsabilização da arguida pessoa colectiva ademais do estatuído pelos art.ºs 7.º, do mesmo RGIT, e 11.º, do Código Penal.
1.2. Visando infirmar judicialmente tal acusação, requereram os mencionados arguidos a abertura da fase facultativa de instrução, sendo que no âmbito do respectivo debate invocaram dois deles (A... e António) a nulidade da acusação deduzida pois que não continha um facto essencial à perfeição do ilícito co-assacado, qual fosse a menção da notificação prevista nos art.ºs 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, a título pessoal. Com efeito, aduzem, nessa peça apenas é feita alusão relativamente à sua notificação na qualidade de legais representantes da arguida pessoa colectiva (fls. 608).
Dado sem efeito o RAI ofertado por esta arguida (cfr. despacho de fls. 510), e realizadas as diligências indispensáveis, foi prolatada decisão instrutória (fls. 617 e segs.) determinando a submissão a julgamento de todos os mencionados arguidos enquanto co-agentes do ilícito aludido, e concretamente ponderando daquela arguição nos moldes seguintes:
«Compulsados os autos verificamos que todos os arguidos foram pessoalmente notificados para proceder ao pagamento da quantia de € 35.084,35, com a cominação expressa de que, não o fazendo, o respectivo procedimento criminal prosseguiria, tal como a própria sociedade arguida, conforme resulta de fls. 102, 157, 167 e 365 dos autos.
O facto de, na acusação proferida, se fazer (apenas) referência a que os arguidos foram notificados na qualidade de legais representantes da sociedade arguida, omite um facto que, na verdade, resulta já do próprio inquérito, e que é a circunstância de todos os arguidos terem sido notificados pessoalmente, nas suas próprias pessoas, para efectuar o referido pagamento, para além da própria sociedade.
Tal situação configura, em nosso entendimento, um mero e notório lapso omissivo, que, nos termos do disposto nos artigos 666.º, n.º 3, e 667.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, ambos aplicáveis ex vi do artigo 4.º do Código Processo Penal, pode ser rectificado, acrescentando-se à acusação o que já resulta dos próprios autos de inquérito, ou seja, que os arguidos requerentes da abertura de instrução, tal como a própria sociedade arguida, foram notificados nos termos e para os efeitos previstos no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, nas suas próprias pessoas.
Tal circunstância não fere de nulidade a acusação proferida, na medida em que se encontra perfeitamente explicitada a factualidade imputada aos ora arguidos, quer seja à arguida sociedade U..., quer seja aos arguidos A... B..., C..., representando apenas, e tão-só, um mero e óbvio lapso passível de ser rectificado.
Por todo o exposto, e ao abrigo das disposições legais supra mencionadas, julgo improcedente a invocada nulidade da acusação deduzida nos autos e determina-se a rectificação material da mesma nos seguintes termos: no único parágrafo constante de fls. 410, a seguir à enunciação «apesar dos arguidos A... e B..., a 16 de Fevereiro de 2007, bem como o arguido C..., a 7 de Julho de 2009, terem sido notificados», acrescentar a expressão «por si e enquanto legais representantes da sociedade arguida, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT», substituindo, desta forma, a expressão que ali se encontra nesse lugar.»
1.3. Segmento este da decisão instrutória alvo de arguição de irregularidade e nulidade nos termos expressos a fls. 663 e segs., pelo co-arguido A.... Irregularidade já que a “rectificação material” elencada se traduziu, assim, no aditamento à acusação da condição objectiva de punibilidade prevenida no art.º 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, relativamente aos arguidos pessoas singulares, da omissão de pagamento, no prazo de 30 dias, a contar da notificação para o efeito, quando na dita peça apenas se descrevia a notificação dos mesmos na mera qualidade de representantes da arguida. Nulidade porquanto a admitir-se tal “rectificação material” o que emerge então é uma alteração substancial dos factos, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 1.º, al. f); 303.º e 309.º, todos do Código de Processo Penal.
1.4. Invocação tida por improcedente através da fundamentação constante do despacho que sobre ela recaiu a fls. 686/9, e cujos termos reproduzimos:
«Veio o arguido A... arguir, “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 123.º do Código de Processo Penal e, subsidiariamente, do artigo 309.º do Código de Processo Penal, a irregularidade e nulidade da decisão instrutória.”
Alegou para o efeito, e em síntese, ter o despacho de pronúncia, na parte em que procede à rectificação material daquilo que considerou lapso de escrita, procedido, em seu entender, a uma alteração substancial dos factos descritos na acusação o que levaria, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1.º, al. f), 303.º e 309.º do Código de Processo Penal, à sua nulidade. Contudo, acrescentou (de forma aparentemente contraditória) ser “a rectificação da acusação declarada pelo JIC irregular e desprovida de quaisquer efeitos, em conformidade com o artigo 123.º do Código de Processo Penal.”
Dada vista para o efeito, considerou a Digna Magistrada do Ministério Público não padecer o despacho de pronúncia de qualquer nulidade. Que, a considerar-se a rectificação operada nos termos do disposto nos artigos 666.º, n.º 3 e 667.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal, uma alteração dos factos descritos na acusação tal sempre consubstanciaria mera alteração não substancial dos mesmos, a qual, não sendo comunicada ao arguido nos termos do disposto no artigo 303.º do Código de Processo Penal, importaria uma mera irregularidade (que, ao abrigo do artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, carecia de ter sido arguida no próprio acto da leitura da decisão instrutória, o que não foi feito).
Cumpre apreciar.
Dispõe o artigo 303.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, “Se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritas na acusação do Ministério Púbico ou do assistente… o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias”. No n.º 3 do mesmo preceito estatui o legislador que “Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso.”
Por seu lado, no n.º 1 do artigo 309.º do Código de Processo Penal pode ler-se que “A decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritas na acusação do Ministério Público”, devendo, nos termos do seu n.º 2, tal nulidade ser arguida no prazo de oito dias contados da notificação da decisão.
Por último, nos termos do n.º 1 do artigo 123.º do Código de Processo Penal, “Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelo interessado no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.”
Ora, de acordo com o disposto no artigo 1.º, al. f), do Código de Processo Penal entende-se por “alteração substancial dos factos aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”, sendo que o arguido A... entende que a decisão de pronúncia proferida procedeu a uma alteração substancial dos factos descritas na acusação.
Não sufragamos, de todo, tal entendimento.
No caso vertente, mantém-se e reafirma-se, que a rectificação operada no despacho de acusação configurou numa mera correcção de um lapso de escrita.
Com efeito, resulta por demais evidente ser o despacho de acusação perfeitamente claro e cognoscível nas imputações que faz aos arguidos, não padecendo o mesmo, repita-se, de qualquer nulidade. O arguido entendeu (e entendeu o tribunal) quais os concretos factos de que vinha acusado, não havendo, como invoca, qualquer prejuízo para a sua defesa, sendo para mais certo que dos próprios autos resulta evidente que as notificações a que aquele refere tiveram lugar, tendo todos os arguidos sido notificados não apenas na qualidade de legais representantes da sociedade arguida como também nas suas próprias pessoas, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT.
Com total pertinência para o caso vertente, veja-se a jurisprudência vertida no Acórdão da Relação do Porto de 6/10/2010, disponível em www.dgsi.pt, onde pode ler-se que: “A simples precisão, concretização ou esclarecimento de factos constantes da acusação não equivale, como é bom de ver, a uma qualquer alteração dos factos na medida em que nenhum facto se muda ou modifica, como não se introduz nenhum facto estranho.”
Mas, mesmo a entender-se que estaríamos perante uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação que devesse ter sido comunicada ao abrigo do que dispõe o artigo 303.º do Código de Processo Penal, a omissão de tal acto configuraria, sempre e apenas, uma mera irregularidade que, como tal, deveria ter sido arguida no próprio acto de leitura da decisão instrutória, ao abrigo do regime consagrado no artigo 123.º do Código de Processo Penal. Com efeito, e uma vez que não existe norma expressa que comine de nulidade a falta de comunicação da alteração não substancial, ocorrida na instrução ou no debate instrutório e prevista no artigo 303.º, n.º 1, a mesma deve entender-se como mera irregularidade ao abrigo do regime previsto no artigo 123.º do Código de Processo Penal (neste sentido Maia Gonçalves, “Código Processo Penal Anotado” (2005), p. 611 e Paulo Pinto de Albuquerque “Comentário do Código Processo Penal”, p. 771).
No mesmo sentido, veja-se o disposto no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/09/2008, disponível em www.dgsi.pt: “Se na decisão instrutória o juiz de instrução altera a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura de instrução sem cumprir a norma do n.º 5 do art.º 303.º do Código de Processo Pena, verifica-se uma mera irregularidade, que fica sanada se não for arguida nos termos do n.º 1 do art.º 123.º do mesmo código.”
Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais supra mencionadas, julgam-se improcedentes a irregularidade e nulidade invocadas.
Notifique.»
1.5. Co-arguido A... que almejando impugnar o decidido, interpôs recurso nos moldes constantes de fls. 696 e segs., entretanto admitido na 1.ª instância conforme despacho de fls. 748.
1.6. Prosseguindo os autos seus regulares termos, realizado o contraditório, veio a ser proferida sentença decretando, ao por demais ora irrelevante:
(parte criminal)
- A condenação dos arguidos enquanto agentes do ilícito apontado, nas penas individuais seguintes: i) a arguida U... –., 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante global de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros); ii) o arguido A..., 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de € 960,00 (novecentos e sessenta euros); iii) o arguido B..., 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 3,00 (cinco euros), o que perfaz o montante global de € 480,00 (quatrocentos e oitenta euros); iv) o arguido C..., 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), o que perfaz o montante global de € 1.600,00 (mil e seiscentos euros).
(parte civil)
- A condenação solidária de todos esses arguidos a pagarem ao Instituto da Segurança Social, I.P., o valor de € 35.074,35 bem como os juros vencidos desde a data da sua notificação para contestarem o pedido e até efectivo e integral pagamento, calculados à taxa legal em vigor.
1.7. Desavindos (a arguida e arguidos com a totalidade do sentenciado, e o demandante cível apenas com o segmento que arbitrou os juros moratórios), interpuseram recurso todos eles, extraindo dos requerimentos através dos quais motivaram as discordâncias respectivas estas conclusões:
(a arguida)
1. Na sentença recorrida, mostram-se incorrectamente julgados os seguintes factos provados:
“3. Com efeito, a gerência da sociedade U... –. esteve, desde sempre, a cargo dos tês arguidos e irmãos que, de forma colegial, tomavam a generalidade das decisões respeitantes à organização e funcionamento da mesma e, bem assim, à distribuição de tarefas pelos empregados.
4. Eram os três arguidos que, além das específicas funções que cada um desempenhava, geriam as actividades da primeira arguida e que procediam ao pagamento das remunerações dos empregados da sociedade U... –.
5. Em Janeiro de 2005, os arguidos A..., B...e C... decidiram, de comum acordo, apoderar-se dos montantes pecuniários que, em virtude do regime social contributivo instituído, a sociedade por “ambos”[1] gerida deveria entregar à Segurança Social.”
2. Isto porquanto a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento impunha decisão diversa. Na verdade,
3. Não existe nenhuma testemunha que comprovasse os factos de que os arguidos vinham acusados.
4. Os depoimentos das testemunhas de acusação traduzem apenas e tão só uma prova meramente indiciária, indirecta e circunstancial, manifestamente insuficiente, por si só, para criar no julgador a convicção de considerar provada a matéria constante da acusação, designadamente os aludidos pontos 3 a 5.
5. Em obediência ao princípio in dúbio pro reo e da presunção constitucional de inocência dos arguidos, impunha-se que o tribunal a quo tivesse decidido em favor reo, não dando por provados tais factos e, consequentemente, absolvendo a arguida quer da prática do crime de que vinha acusada, quer do pedido de indemnização cível deduzido.
6. Neste circunspecto, decidindo pela forma em que o fez, a decisão recorrida violou o disposto pelos art.ºs 127.º e 372.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, bem como 32.º, n.º 2, da Constituição da República.
7. Na parte decisória consta da sentença recorrida, mormente, que: “o tribunal decide condenar a arguida U... –. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 7.º, n.º 1; 107.º; 105.º, n.ºs 1, 2 e 7, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias e 11.º do Código Penal, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante global de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros)”.
8. Ora, sucede que a declaração de Liquidação da arguida, transitada em julgado no dia 3 de Julho de 2006, acarreta a extinção da sua responsabilidade criminal relativamente à prática do crime ajuizado.
9. A adequação desta conclusão resulta ainda mais evidente ao verificar-se que a eventual condenação da arguida pelo crime imputado não teria qualquer consequência ao nível da sua actividade – cessada por efeito da declaração de Liquidação – e que ao nível patrimonial os resultados da sua condenação em multa, originando uma responsabilidade económica ulterior à declaração de liquidação, seriam inconsequentes.
10. E face do registo do encerramento da liquidação da sociedade se pode considerar a mesma definitivamente extinta e, consequentemente, se pode declarar extinto o respectivo procedimento criminal.
Terminou pedindo que no provimento do recurso, a arguida seja eximida da (s) responsabilidade (s) - penal e civil - imposta (s).
(os arguidos C...e A...)
A. A sentença em crise enferma de erro de julgamento, visto que a matéria de facto assente não admite a punição, a título de co-autoria, dos arguidos pessoas individuais. Neste sentido veja-se o Ac. do TRL, proferido em 1 de Outubro de 2008, no âmbito do processo n.º 7383/2008-3.ª, disponível in www.dgsi.pt.
B. Efectivamente, a norma extraída dos art.ºs 10.º; 14.º; 26.º, n.º 1, 3.ª parte, do Código Penal; 6.º; 105.º e 107.º, estes do RGIT, interpretada no sentido de que o facto de os arguidos virem acusados da prática do crime de abuso de confiança fiscal na qualidade de co-autores, exime o Tribunal de proceder à imputação individualizada de concretas condutas parciais a cada um daqueles, no quadro de uma conduta global, penalmente relevante é, em tal interpretação, inconstitucional, por violação dos art.ºs 2.º; 20.º, n.º 4; 26.º, n.º 1; 29.º, n.º 5 e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
C. Em face da matéria dada como assente devem os arguidos ser absolvidos, na senda do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa supracitado.

Subsidiariamente,
D. A sentença em crise erra na apreciação da matéria de facto, por excesso e por defeito.

E. Por excesso na medida em que o Tribunal a quo considera como provados, os factos 10., 11. e 12., da matéria assente na sentença condenatória proferida.
F. Por defeito na medida em que desconsiderou factos com manifesta relevância para a boa discussão da causa alegados nos art.ºs 30.º a 35.º e 41.º a 46.º da contestação apresentada pelo arguido A... e sobre os quais foi produzida prova em julgamento.
G. Efectivamente, o teor dos depoimentos dos arguidos C...– prestado no dia 16/11/2011, com inicio pelas 11:03:04 e fim pelas 11:14:59 –, e A... – prestado no mesmo dia, com inicio às 11:36:50 e fim pelas 12:23:11 –, bem como das testemunhas– …………………..–, implica que a matéria de facto seja apreciada nos moldes indicados nas conclusões B) e C).
Assim,
H. De tais depoimentos dos arguidos C...e A..., bem como das testemunhas, resulta, com evidência, que o arguido C...não exercia no seio da empresa arguida quaisquer actos que pudessem indiciar a sua influência na gestão, de facto, da sociedade arguida.

1. Consequentemente, e de acordo com o art.º 431.º, do Código de Processo Penal, deve a decisão sobre a matéria de facto ser substituída por outra que dê como assente que esse arguido nunca teve qualquer participação na gestão dos negócios da sociedade arguida, não participou na decisão de não entrega das cotizações à Segurança Social objecto dos autos, e nunca deu qualquer ordem aos serviços administrativos para que não liquidassem aqueles valores.
J. Também dos aludidos depoimentos prestados pelo arguido A..., e pelas testemunhas, resulta que, conforme alegado nos art.ºs 30.º a 35.º e 41.º a 46.º da contestação por si próprio apresentada, o arguido, ao verificar que a empresa não dispunha de fundos para liquidar todas as suas dívidas, optou por privilegiar o pagamento dos salários dos trabalhadores, alocando as quantias devidas à Segurança Social para esse efeito.
K. O que sempre fez, conforme depoimento das testemunhas  ….
L. Atenta a relevância de tal facto para a boa decisão da causa, deve a sentença recorrida ser, em conformidade com o que se expõe e com o disposto no citado art.º 413.º, corrigida constando as conclusões I) e K) da matéria assente.
M. Mais decorre de tais depoimentos do arguido A... e da testemunha … , que nenhum dos arguidos se apropriou, desviou ou utilizou a título pessoal e em proveito próprio os fundos não entregues à Segurança Social, devendo, em conformidade, a sentença ser corrigida conforme disposto no mesmo art.º 431.º.
Subsidiariamente,
N. A sentença
sub judice padece ainda de nulidade por omissão de pronúncia nos termos do art.º 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.
O. Como disserta Paulo Pinto de Albuquerque: “O dever de fundamentação da sentença exige: a enunciação como provados ou não provados de todos os factos relevantes para a imputação penal, a determinação da sanção, a responsabilidade civil constantes da acusação ou pronúncia e do pedido de indemnização civil e das respectivas contestações (acórdãos do STJ, de 29.6.1995, in CJ, Acs do STJ, III, 2, 254, e acórdão do STJ, de 11.2.1998, in BMJ, 474, 151), incluindo os factos não provados da contestação, importando saber se o tribunal recorrido apreciou ou não toda a matéria relevante da contestação (acórdão do STJ, de 5.6.1991, in CJ, XVI, 3, 29, e acórdão do STJ, de 18.12.1997, in BMJ, 477, 185, [...]) (...).”
P. Todavia, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre os factos concretos alegados nos art.ºs 30.º a 35.º e 41.º a 46.º da contestação do arguido A..., provados nos termos da conclusão J) e K) que, por consubstanciarem causa de exclusão da ilicitude, nos termos dos art.ºs 31.º e 36.º, do Código Penal, revestem relevância especial para a boa decisão da causa.
Q. Face ao exposto a sentença encontra-se ferida de nulidade por violação do disposto nos art.ºs 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.
R. No que respeita à responsabilidade criminal do arguido António, da apreciação sistemática dos art.ºs 107.º e 6.º, do RGIT, resulta a exigência legal de que, para que se verifique um crime de abuso contra a segurança social exista uma actuação voluntária do agente, na não entrega das contribuições, sendo naturalmente insuficiente, para gerar responsabilizado penal, a posição de mero representante da mesma.
S. Neste sentido veja-se o Ac. do TRP, de 4 de Junho de 2009, o qual decide que “do simples facto de determinada pessoa ser gerente de direito de uma sociedade não pode inferir-se que aquela tem a gerência de facto e portanto agiu voluntariamente como representante desta”, concluindo que “exigindo a lei expressamente uma actuação voluntária, a mera identificação da posição nominal ou de direito de representante não basta para desencadear responsabilização penal pelas dívidas tributárias como bem se compreende, pois a responsabilidade penal é, por natureza, subjectiva.”
T. Não é suficiente o mero vínculo funcional para a responsabilização do agente em caso de crime de confiança contra a Segurança Social sob pena de responsabilidade penal objectiva do arguido por força das suas funções estatutárias, o que, atenta, irremediavelmente, contra o princípio da culpa e é constitucional e legalmente inadmissível.
U. Do exposto nas conclusões H) e I) resulta que o arguido C...não exercia, de facto, qualquer actividade com influência na administração da sociedade arguida, devendo por isso ser absolvido do crime imputado in casu.
De todo o modo, sem conceder,
V. Ainda que o Tribunal não considerasse provado que o arguido não exercia a gerência de facto da sociedade arguida, face à prova produzida e referida nas conclusões H) e 1), não dispunha também o Tribunal a quo de qualquer indício capaz de demonstrar o contrário, i.e., o envolvimento do arguido na gestão – de facto –, na administração, da sociedade arguida, pelo que nunca poderia tal facto estar inscrito na matéria provada.
W. A observância do princípio do in dúbio pro reo, plasmado no art.º 32.º, da Constituição da República, a que o Tribunal está obrigado implica, pois, que face à falta de indícios capaz de demonstrar a efectiva gestão por parte deste arguido da sociedade U..., o tribunal julgasse a prova a favor do arguido, não levando à matéria assente factos non liquet.
X. Deste modo sempre se dirá que a valoração da prova produzida nos presentes autos levada a cabo pelo Tribunal a quo colide, como se demonstra, com o princípio do in dúbio pro reo e da presunção de inocência, o que implica a violação do disposto nos art.ºs 18.º e 32.º, da Constituição da República Portuguesa.
Y. No que concerne à exclusão da ilicitude da conduta do arguido A..., conforme conclusão J) e K), o arguido encontrava-se numa situação de colisão de deveres, previsto no art.º 36.º, do Código Penal.
Z. Com efeito, à data da prática dos factos o agente estava onerado com dois deveres:
Por um lado,
i) O dever de pagar impostos, assim como o dever de entregar as cotizações para a segurança social, que encontra consagração constitucional, nos termos do art.º 103.º, da Constituição da República Portuguesa.
ii) O dever fundamental de pagar a retribuição, correlativo do direito plasmado no art.º 59.º, al. a), da mesma Lei Fundamental, que preconiza que todos os trabalhadores têm direito à retribuição do trabalho de forma a garantir uma existência condigna.
AA. Ora, o dever de entregar as prestações à Segurança Social não é superior ao dever de retribuir o trabalho prestado pois “aos valores e interesses tutelados pelos deveres jurídicos em questão correspondem valores e interesses, de valor, no mínimo, igual”.
Assim,
BB. Quando um devedor, motivado pela óbvia insuficiência de rendimentos, como é o caso do arguido A..., usa a prestação tributária para pagamento de salários aos trabalhadores e aquisição de matérias-primas em detrimento de efectuar as entregas devidas, in casu, nos serviços da Segurança Social, encontra-se perante uma situação de colisão de deveres reconhecendo-lhe a Lei Penal uma total liberdade de escolha, nos termos do art.º 36.º, do Código Penal, para cumprimento de um ou outro dever.

CC. Nem procede o argumento contra de que o dever de entrega das prestações à segurança social consubstancia um dever jurídico-penal, estando a não entrega tipificada como crime, ao passo que o pagamento da retribuição é um dever não penal.
DD. De acordo com o ensinamento de Paulo Pinto de Albuquerque: “2. O conflito de deveres supõe a existência de dois deveres jurídicos de acção, dos quais só um deles pode ser cumprido, incluindo o conflito entre um dever jurídico-penal e um dever não penal (Figueiredo Dias, 1983:63, Cortes Rosa, 1995:205, Germano Marques da Silva, 1998:124, e Taipa de Carvalho, 2004: 250, com o exemplo do patrão que cumpre os deveres salariais em detrimento dos deveres fiscais).”
EE. Nestes termos, e porque a negação da aplicação de causas justificativas em matéria de incriminações fiscais comporta a negação da existência do Direito e da própria Justiça Social, deve o arguido A... ser absolvido do crime pelo qual foi condenado pelo tribunal a quo por, ao estar a sua actuação em conformidade com o instituto da colisão de deveres, não ser a sua acção passível de censura e por isso ilícita nos termos do disposto nos art.ºs 31.º e 36.º, do Código Penal.
Por fim, nota-se que
FF. O art.º 113.º, da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2009, veio alterar a redacção do n.º 1, do art.º 105.º do RGIT, passando o crime de abuso de confiança fiscal a deter um limite mínimo a partir do qual a conduta do agente é criminalmente punível, descriminalizando-se a não entrega das prestações tributárias deduzidas de valor inferior a € 7.500,00.
Ora,
GG. O crime de abuso de confiança contra a segurança social está previsto no art.º 107.º do RGIT, verificando-se uma expressa remissão para o regime do crime de abuso de confiança fiscal vertido nos n.ºs 1, 4, 5, 6 e 7 do art.º 105.º do RGIT e identidade de regimes.

Nessa medida,
HH. Decidiu o TRL, num aresto de 25 de Fevereiro de 2009 que: “não se compreenderia, pois, que prevendo agora o legislador uma menor severidade quando estão em causa quantias não superiores a € 7.500, se aplicasse tal alteração apenas aos crimes de abuso de confiança fiscal e não também aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, não se fazendo a identidade de punições que sempre o legislador entendeu fazer”.
II. Assim, facilmente se constata que essa identidade de regimes fundamenta e reclama a aplicação do limite de punição ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, verificando-se que todas as prestações deduzidas e não entregues abaixo do valor de € 7.500,00 não são criminalmente puníveis.
JJ. In casu foram os arguidos condenados pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada.
KK. Assim, atentos os períodos em causa, bem como os respectivos montantes deduzidos e não entregues, verifica-se que cada uma das condutas, isoladamente considerada, não é susceptível de integrar a prática de um qualquer tipo de ilícito.
LL. Na verdade, a conduta mais grave corresponde à não entrega das contribuições retidas e não entregues em Janeiro de 2005, no montante de € 2.372,53, sendo que, nos demais períodos todas as contribuições retidas e não entregues totalizam montantes inferiores.
MM. Por conseguinte, tendo por base o limite de punição de € 7.500,00 aplicável, é possível concluir que nenhuma das condutas é criminalmente punível, devendo os arguidos ser absolvidos da prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Terminaram pedindo a revogação do decidido, com a sua absolvição penal e irresponsabilização civil.
(o arguido B...)
1. O recorrente impugna os pontos 2 a 12 da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida e as als. b) a g) da sua contestação aí tida como não provada.
2. Relativamente àqueles pontos provados (e no que ao ora recorrente concerne), impunha-se a sua consideração como factos não provados, padecendo a dita decisão nesse segmento, consequentemente, de erro notório na apreciação da prova.
3. Por seu turno, quanto aos factos elencados nas mencionadas als. b) a g), resulta dos depoimentos das testemunhas  …………………………………….que:
a) O arguido B...nunca exerceu a gerência efectiva da sociedade arguida desde a sua constituição e também não era sócio da mesma, ou seja, nunca tomou decisões enquanto representante da sociedade arguida.
b) Por força da estrutura organizativa da sociedade arguida todas as decisões e directivas, a nível funcional, organizacional e financeiro eram tomadas pelo arguido A....
c) Neste contexto, era o arguido A... que decidia sobre os pagamentos a efectuar, designadamente, impostos e as contribuições à Segurança Social.
d) O ora recorrente nunca exerceu uma função activa na sociedade arguida, cujo objecto consistia na prestação de serviços às empresas do grupo e outras, antes, era responsável pelo departamento comercial de outra empresa do grupo), onde dirigia sete lojas:
e) O arguido não tomou a decisão de não proceder à entrega das prestações e quotizações à Segurança Social, designadamente, as descriminadas nos autos.
4. Assim alterado o acervo fáctico que resultou da prova produzida, e por tal forma sanados os vícios do art.º 410.º, n.º 2, als a) e c), do Código de Processo Penal, que o inquinavam, não resultam então preenchidos os requisitos do tipo de ilícito objectivo e subjectivo do crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, na medida em que, de acordo com o art.º 6.º, do RGIT, se não provou que o ora recorrente haja agido voluntariamente como representante legal da sociedade arguida.
5. Da prova produzida (documental) não resultou sequer provada a gerência nominal, pois tais documentos não são adequados a provar tal facto, sendo que os mesmos reflectem que a sociedade arguida não foi registada na conservatória do registo predial, e na ausência de registo o alegado gerente que conste do pacto social não se vincula perante terceiros.
6. Estatui o art.º 6.º, do RGIT: Quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija: …
7. Tal preceito exige uma actuação voluntária do agente na linha traçada pelo art.º 12.º, do Código Penal e da sua redacção retira-se que a posição de representante legal é insuficiente para gerar responsabilidade penal, na medida em que sempre será necessário que o mesmo actue voluntariamente como titular dos órgãos da pessoa colectiva representada.
8. Neste contexto, e face à inexistência de provas quanto ao exercício da gerência nominal ou de facto, pelo arguido/recorrente, em representação da sociedade arguida, não se encontram preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime de abuso de confiança fiscal.
9. Decidindo na forma em que o fez, a decisão recorrida violou o disposto pelos art.ºs 6.º; 7.º; 107.º e 105.º, n.ºs 1, 4 e 7, todos do RGIT.
Terminou pedindo igualmente a sua absolvição penal e civil.
(o Instituto da Segurança Social, I.P.)
1. O recorrente discorda da sentença recorrida quanto ao momento a partir do qual foi fixado que os arguidos condenados passariam a estar instituídos em mora para consigo, bem como quanto à taxa que venceriam esses mesmos juros. Com efeito,
2. Sendo certo que de acordo com o art.º 483.º, n.º 1, do Código Civil “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
3. Devendo, conforme subsequente art.º 562.º, do mesmo diploma, “reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.”
4. Verdade é, porém, que o reconhecimento dos direitos e cumprimento das obrigações decorrentes dos regimes de segurança social estão consagrados em legislação especial (v.g., a Lei de Bases da Segurança Social, Lei n.º 32/2002, de 20 de Dezembro; o Regime Jurídico das Contribuições, constante dos Decretos-Lei n.ºs 103/80 e 411/91).
5. Assim, existindo neste regime uma legislação específica quanto ao cálculo e taxas de juros de mora, não derrogadas pela lei geral, não se aplicam as taxas e as regras previstas no Código Civil – seu art.º 7.º, n.º 3.
6. Pelo que mal andou a decisão recorrida não fazendo apelo e aplicação deste regime específico.
7. In casu, a obrigação dos demandados não só tinha prazo certo, como provinha de facto ilícito – cfr. als. a) e b) do art.º 805.º, do Código Civil.
8. Por isso, os juros de mora vencidos em Março de 2010 peticionados pela demandante, no total de € 19387,92, referentes aos meses de Janeiro de 2005 a Abril de 2006 estão correctamente calculados desde as respectivas datas de incumprimento “por cada mês de calendário ou fracção e a taxa é igual á estabelecida para as dívidas de contribuições e impostos ao Estado”, de acordo com os art.ºs 18.º do Decreto-Lei n.º 103/80; 16.º do Decreto-Lei 411/91; 18.º do Decreto-Lei 140-D/86, 14 de Junho, e 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei 199/99, de 8 de Junho.
9. Pois, de acordo com os art.ºs 1.º e 3.º da Lei 73/99, de 16 de Março, a taxa de juro aplicável ao caso vertente é de 1% mês.
10. Sabendo que o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Distrital de Coimbra continua a ter o seu fundamento na prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social,
11. Que a imposição aos arguidos da obrigação de reparar os danos sofridos por terceiro (rectius, a segurança social) depende da verificação dos seguintes pressupostos: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante culpa; d) - o dano; e) - nexo de causalidade entre o facto e o dano.
12. Então, pode imediatamente concluir-se (como na sentença recorrida) que os mesmos se encontram integralmente verificados no caso destes autos, a saber da voluntariedade do facto, as omissões foram indiscutivelmente mais que domináveis, desejadas pelos arguidos, há ilicitude porquanto ficou já estabelecida a violação de norma penal, existe nexo de imputação do facto ao lesante, ou seja a culpa e bem assim ficou já estabelecido terem sobrevindo danos tanto para a Segurança Social que se viu privada dos valores que lhe eram devidos.
13. Devendo os demandados ser condenados a pagar, porque desde então constituídos em mora, os juros calculados a partir do momento em que deviam ter entregue as contribuições à demandante e o não fizeram.
14. Juros esses calculados até integral pagamento, e tendo em consideração as taxas de juro em vigor durante o período contributivo em dívida, dando-se prevalência à lei especial (cfr., a propósito, os seguintes Acórdãos desta RC: de 06/04/2005, Proc. 506/05, 5.ª Secção; de 01/06/2005, Proc. 1402/05, 5.ª Secção; de 30/11/2005, Proc. 3500/05, 5.ª Secção e de 01/06/2005, Proc. 1533/05, 4.ª Secção; de 03/05/2006, Proc. 818/05/06, 5.ª Secção; de 30/11/2005, no Proc. 3500/05; de 28/10/2008, no Proc. 1552/06.7 TACBR.C1 - 5.ª Secção; de 28/10/2008 no Proc. 560/07.5 TACBR.C1; de 5/11/2008, no Proc.1209/06.9 TACBR.C1; de 18/2/2009 no Proc.1553/06.1 TACBR.C1; de 17/.3/.2009, no Proc. 1461/07.2 TACBR.C1; de 28/5/200/ no Proc. 162/05.0 TAMIR.C1; de 26/1/2011, no Proc. 208/08.0 TACNT).
15. Decidindo na forma em que o fez, a decisão recorrida questionou o disposto pelos art.ºs 7.º, n.º 3; 483.º, n.º 1; 562.º e 566.º, todos do Código Civil, e ainda os art.ºs 18.° do Decreto-Lei 103/80 e 16.° do Decreto-Lei n.º 411/91, violando igualmente a Lei de Bases da Segurança Social.
Terminou pedindo que no provimento do recurso seja alterado o impugnado segmento da decisão recorrida de acordo com o ora expendido.
1.8. Acatado o art.º 411.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, contra-alegou o Ministério Público (fls. 1511 e segs.), sustentando a improcedência da totalidade dos recursos interpostos pelos arguidos.
1.9. Proferido despacho admitindo todos os recursos interpostos, cumpridas as formalidades devidas, foram os autos remetidos a esta instância.
1.10. Aqui, no momento processual a que alude o art.º 416.º, do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer sustentando da improcedência dos recursos interpostos pelos arguidos, à excepção do minutado pelo arguido A... relativamente ao qual concedeu padecer a decisão recorrida da invocada nulidade por omissão de pronúncia quanto a factos constantes da contestação ofertada e que urgiria sanar.
Observado o art.º 417.º, n.º 2, do mesmo diploma adjectivo, o co-arguido A... apresentou o requerimento/exposição constante de fls. 1589 e segs., alvo da resposta do Ministério Público que, por seu turno, é fls. 1640. Aquando do exame preliminar dos autos, nos termos do n.º 6 do mesmo inciso, por um lado, consignou-se ocorrer fundamento para a rejeição do recurso interlocutório impetrado pelo co-arguido A...; todavia, atentas razões de economia e de celeridade processuais, relegou-se para o momento presente a respectiva decisão e fundamentação. Por outro lado, e quanto aos demais recursos, exarou-se que nenhuma circunstância impunha a sua apreciação sumária, ou obstava ao seu conhecimento de meritis. Daí que a deverem prosseguir todos seus termos, com a recolha de vistos – o que se verificou – e submissão à presente conferência.
Urge agora ponderar e decidir.
*
II. Fundamentação de Facto.
2.1. Após julgamento, a sentença recorrida teve como provados os factos seguintes:
Da acusação pública:
1. A arguida “U... –.” é uma sociedade comercial por quotas, que iniciou a sua actividade em Dezembro de 2003, com sede no  …e tendo como objecto social a prestação de serviços.
2. Os arguidos A..., B... e C... foram gerentes da sociedade arguida desde a sua constituição até à prolação da sentença que declarou a insolvência da sobredita sociedade, a 12 de Maio de 2006.
3. Com efeito, a gerência da sociedade “U... –esteve, desde sempre, a cargo dos três arguidos e irmãos que, de forma colegial, tomavam a generalidade das decisões respeitantes à organização e funcionamento da mesma e, bem assim, à distribuição de tarefas pelos empregados.
4. Eram os três arguidos que, além das específicas funções que cada um desempenhava, geriam as actividades da sociedade primeira arguida e que procediam ao pagamento das remunerações dos empregados da sociedade “U... –.
5. Em Janeiro de 2005, os arguidos A..., B... e C... decidiram, de comum acordo, apoderar-se dos montantes pecuniários que, em virtude do regime social contributivo instituído, a sociedade por ambos gerida deveria entregar à Segurança Social.
6. Em concretização do referido propósito, os arguidos deduziram no valor das remunerações pagas ao trabalhadores, em cumprimento do preceituado nos art.ºs 1.º do Decreto-Lei n.º 140-D/85, de 14.06 e 3.º do Decreto-Lei n.º 199/09, de 08.06, as contribuições devidas à Segurança Social pelas mesmas, à taxa de 11% sobre as remunerações efectivamente pagas, nos períodos e montantes, convertidos em euros, infra discriminados:
Período – Contribuições retidas não entregues
- Janeiro de 2005: € 2.372,53 (dois mil trezentos e setenta e dois euros e cinquenta e três cêntimos).
- Fevereiro de 2005: € 2.346,19 (dois mil trezentos e quarenta e seis euros e dezanove cêntimos).
- Março de 2005: € 2.227,26 (dois mil duzentos e vinte e sete euros e vinte e seis cêntimos).
- Abril de 2005: € 2.049,67 (dois mil e quarenta e nove euros e sessenta e sete cêntimos).
- Maio de 2005: € 2.106,89 (dois mil cento e seis euros e oitenta e nove cêntimos).
- Junho de 2005: € 2.061,43 (dois mil e sessenta e um euros e quarenta e três cêntimos).
- Julho de 2005: € 2.156,14€ (dois mil cento e cinquenta e seis euros e catorze cêntimos).
- Agosto de 2005: € 2.604,59 (dois mil seiscentos e quatro euros e cinquenta e nove cêntimos).
- Setembro de 2005: € 1.467,56 (mil quatrocentos e sessenta e sete euros e cinquenta e seis cêntimos).
- Outubro de 2005: € 1.365,85 (mil trezentos e sessenta e cinco euros e oitenta e cinco cêntimos).
- Novembro de 2005: € 2.714,83 (dois mil setecentos e catorze euros e oitenta e três cêntimos).
- Dezembro de 2005: € 1.363,38 (mil trezentos e sessenta e três euros e trinta e oito cêntimos).
- Janeiro de 2006: € 1.378,81 (mil trezentos e setenta e oito euros e oitenta e um cêntimos).
- Fevereiro de 2006: € 1.304,32 (mil trezentos e quatro euros e trinta e dois cêntimos).
- Março de 2006: € 1.330,59 (mil trezentos e trinta euros e cinquenta e nove cêntimos).
- Abril de 2006: € 1.328,51 (mil trezentos e vinte e oito euros e cinquenta e um cêntimos).
TOTAL: € 30.538,55 (trinta mil quinhentos e trinta e oito euros e cinquenta e cinco cêntimos).
7. Os arguidos deduziram igualmente no valor das remunerações pagas aos órgãos estatutários da sociedade primeira arguida, em cumprimento do preceituado no art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 199/09, de 08.06, as contribuições devidas à Segurança Social pelas mesmas, à taxa de 10% sobre as remunerações efectivamente pagas, nos períodos e montantes, convertidos em euros, infra discriminados:
Período – Contribuições retidas não entregues
- Janeiro de 2005: € 229,89 (duzentos e vinte e nove euros e oitenta e nove cêntimos).
- Fevereiro de 2005: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Março de 2005: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Abril de 2005: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Maio de 2005: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Junho de 2005: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Julho de 2005: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Agosto de 2005: € 474,99 (quatrocentos e setenta e quatro euros e noventa e nove cêntimos).
- Setembro de 2005: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Outubro de 2005: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Novembro de 2005: € 474,99 (quatrocentos e setenta e quatro euros e noventa e nove cêntimos).
- Dezembro de 2005: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Janeiro de 2006: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Fevereiro de 2006: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Março de 2006: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Abril de 2006: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Maio de 2006: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Junho de 2006: € 237,00 (duzentos e trinta e sete euros).
- Julho de 2006: € 474,00 (quatrocentos e setenta e quatro euros).
TOTAL: € 4.258,89 (quatro mil duzentos e cinquenta e oitos euros e oitenta e nove cêntimos).
8. Os arguidos deduziram ainda no valor das remunerações pagas aos pensionistas por velhice da sociedade primeira arguida, em cumprimento do preceituado no art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 199/09, de 08.06, as contribuições devidas à Segurança Social pelas mesmas, à taxa de 7,8% sobre as remunerações efectivamente pagas, nos períodos e montantes, convertidos em euros, infra discriminados:
Período – Contribuições retidas não entregues
- Janeiro de 2005: € 29,23 (vinte e nove euros e vinte e três cêntimos).
- Fevereiro de 2005: € 29,23 (vinte e nove euros e vinte e três cêntimos).
- Março de 2005: € 29,23 (vinte e nove euros e vinte e três cêntimos).
- Abril de 2005: € 29,23 (vinte e nove euros e vinte e três cêntimos).
- Maio de 2005: € 29,23 (vinte e nove euros e vinte e três cêntimos).
- Junho de 2005: € 29,23 (vinte e nove euros e vinte e três cêntimos).
- Julho de 2005: € 29,23 (vinte e nove euros e vinte e três cêntimos).
- Agosto de 2005: € 29,23 (vinte e nove euros e vinte e três cêntimos).
- Setembro de 2005: € 29,23 (vinte e nove euros e vinte e três cêntimos).
- Outubro de 2005: € 29,23 (vinte e nove euros e vinte e três cêntimos).
Total: € 276,91 (duzentos e setenta e seis euros e noventa e um cêntimos).
9. Assim, em execução daquele desígnio apropriativo, os arguidos A..., B... e C..., não obstante terem entregue as declarações de remunerações mensais, não remeteram nem fizeram remeter à Segurança Social qualquer das cotizações retidas pela sociedade arguida, nem até ao dia 15 do mês seguinte, como lhe competia, nem nos 90 dias posteriores ao termo de tal prazo, nem até à presente data, apesar de os arguidos A... e B..., a 16 de Fevereiro de 2007, bem como o arguido C..., a 7 de Julho de 2009, terem sido notificados, por si e na qualidade de legais representantes da sociedade arguida, nos termos e para os efeitos do art.º 105.º, n.º 4, al. a) do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.).
10. Assim, agindo em representação e no interesse da sociedade primeira arguida, os arguidos A..., B... e C... lograram apropriar-se do valor total de € 35.074,35 (trinta e cinco mil e setenta e quatro euros e trinta e cinco cêntimos), montante que fizeram seu e utilizaram em benefício daquela sociedade, integrando as disponibilidades financeiras provenientes daquelas prestações no normal giro da sociedade.
11. Agindo do modo descrito, em comunhão de esforços e no âmbito de um plano previamente gizado, bem sabiam os arguidos A..., B...e C... que os montantes mensalmente retidos pela sociedade “U... –” eram pertença da Segurança Social, bem como que a sociedade devia entregá-los até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, mas não se abstiveram de omitir a sua entrega, o que queriam e fizeram.
12. Os arguidos agiram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas, o que não demoveu de agir.
Apurou-se ainda que:
13. O arguido A..., trabalha para a firma X... onde aufere o salário mensal de € 1.300,00, encontrando-se este penhorado em cerca de € 700,00.
14. A sua esposa trabalha para a mesma firma, auferindo € 900,00 de salário.
15. Vive em casa própria, pagando € 600,00 de prestação mensal para pagamento de empréstimo no qual constituiu hipoteca sobre a sua residência.
16. Tem 2 filhas, com idades de 20 e 16 anos, ambas estudantes sendo a primeira na Universidade de Aveiro.
17. O arguido B… encontra-se desempregado, habitando em casa emprestada por amigos.
18. A sua esposa encontra-se desempregada, auferindo de subsídio de desemprego € 1.000,00.
19. Tem 3 filhos, com 23, 20 e 13 anos, encontrando-se os mais velhos a estudar na Universidade de Coimbra, sendo as respectivas despesas de educação suportadas por amigos.
20. O arguido C...é médico dentista e tem um consultório dentário, onde retira o rendimento médio mensal de € 1.200,00.
21. A sua mulher é sua assistente, auferindo € 700,00 de salário.
22. Tem uma filha com 3 anos de idade.
23. Vive em casa arrendada, pagando € 1.100,00 de prestação mensal, tendo opção de compra.
24. Não tem veículos automóveis em seu nome, locomovendo-se com um Audi A4 de 2003, e a sua esposa com um Mini de 2004, ambos pertencentes ao consultório referido.
25. Nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais.
Da contestação apresentada por A...:
26. O arguido supervisionava a gestão financeira da empresa arguida.
27. A empresa arguida foi constituída dentro de uma estratégia de grupo, cujo desenvolvimento assentaria em parte em empréstimos bancários.
28. O grupo em causa, procedeu a investimento recorrendo a capitais próprios, sendo que o grupo bancário não concedeu o empréstimo citado o que gerou necessidade de recorrer a empréstimos bancários, sem que se gerassem capitais para suportar as respectivas responsabilidades.
29. A empresa arguida, apenas dispunha como clientes as demais empresas de grupo.
2.2. A mesma sentença recorrida considerou por seu turno como não provados os factos seguintes:
Da acusação pública:
a) Os arguidos A..., B... e C... foram sócios da sociedade arguida desde a sua constituição até à prolação da sentença que declarou a insolvência da sobredita sociedade, a 12 de Maio de 2006.
Da contestação apresentada por B...:
b) O arguido B..., não agiu como representante da sociedade arguida.
c) O arguido não desempenhou funções de gerente de facto.
d) Quem tomou a decisão de reter as contribuições devidas à Segurança Social foi o seu irmão A....
e) O arguido nunca interveio na gestão financeira da sociedade arguida.
f) Até receber a presente acusação desconhecia que não tinham sido pagas à Segurança Social as prestações tributárias.
g) Nunca dispôs daqueles valores em proveito próprio.
Da contestação apresentada por C...:
h) O arguido nunca teve qualquer participação na gestão financeira dos negócios da sociedade arguida.
i) Não participou na decisão de não entrega daquelas quantias à Segurança Social.
j) Nunca deu qualquer ordem aos serviços administrativos para que não liquidassem aqueles valores.
k) Nunca dispôs daqueles valores em proveito da sociedade ou do próprio.
l) A gestão da sociedade U..., estava concentrada no arguido A....
Da contestação apresentada por A...:
m) Não houve apropriação, desvio ou utilização pessoal de fundos.
2.3. Por fim tem o teor que segue a motivação probatória constante da sentença em causa:
Fundou o Tribunal a sua convicção quer no conjunto da prova testemunhal produzida em julgamento, quer nos documentos juntos aos autos, conjugada com regras de experiência comum (cfr. art.º 127.º do C.P.P.).
Assim, foram relevantes para a formação da convicção do Tribunal os documentos juntos aos autos, nomeadamente:
- Mapas de débitos e cotizações de fls. 75 a 77 e 83.
- Declarações de remuneração de fls. 89 a 96 e 247 a 308.
- Recibos de vencimento de fls. 309 a 328.
- Certidão de matricula de fls. 338 a 341.
- Notificações efectuadas a fls. 108, 157, 167e 363.
- Acta de deliberações de fls. 59 a 60.
- Certidão de escritura de constituição de sociedade de fls. 482 a 488.
- Certificados de Registo Criminal de fls. 1207 a 1209 para prova do facto 25.
Depois, e como referido, baseou-se aquela convicção numa apreciação livre da prova testemunhal, na qual se sobrelevou o conhecimento pessoal e directo dos factos perguntados, a postura denotada pelas testemunhas, bem como a convicção e transparência dos depoimentos e bem assim nas declarações do arguido A..., que confirmou boa parte dos factos descritos na acusação.
Recurso da recorrente U....
3.3. O primeiro segmento da discordância desta arguida atém-se à matéria de facto. Com efeito, alega, o tribunal a quo julgou incorrectamente os pontos de facto provados n.ºs 3, 4 e 5, isto porquanto a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento impunha decisão diversa da assumida na sentença condenatória; não existe nenhuma testemunha que comprovasse os factos de que os arguidos vinham acusados; os depoimentos das testemunhas de acusação traduzem apenas e tão só uma prova simplesmente indiciária, indirecta e circunstancial, manifestamente insuficiente, por si só, para criar no julgador a convicção de considerar provada a matéria constante da acusação, designadamente os pontos controvertidos; incumbia ao tribunal recorrido decidir em favor reo, atenta a obediência ao princípio in dúbio pro reo; não o fazendo, a decisão recorrida preteriu, consequentemente, o estatuído pelos art.ºs 127.º e 372.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, além do art.º 32.º, n.º 2, da Constituição da República.
Quid iuris?
Os pontos de facto que a recorrente controverte têm, relembramos, o teor seguinte:
 “3. Com efeito, a gerência da sociedade U... –. esteve, desde sempre, a cargo dos três arguidos e irmãos que, de forma colegial, tomavam a generalidade das decisões respeitantes à organização e funcionamento da mesma e, bem assim, à distribuição de tarefas pelos empregados.
4. Eram os três arguidos que, além das específicas funções que cada um desempenhava, geriam as actividades da primeira arguida e que procediam ao pagamento das remunerações dos empregados da sociedade U... –5. Em Janeiro de 2005, os arguidos A..., B...e C... decidiram, de comum acordo, apoderar-se dos montantes pecuniários que, em virtude do regime social contributivo instituído, a sociedade por ambos gerida deveria entregar à Segurança Social.”
Por outro lado, a motivação probatória correspondente, é, relembramos igualmente, como segue:
“Quanto à matéria dada como provada em 1 a 5, representa o âmago da prova produzida em sede de julgamento.
Começando pelas declarações dos arguidos, o arguido A... afirmou que era ele que tomava as decisões financeiras no que toca à sociedade U..., sendo ele o único a tomar as decisões de não entrega à Segurança Social das cotizações retidas.
Já o arguido B... afirmou que era mero comercial, e prestava serviço assalariado para outra empresa do grupo – a  …
Por sua vez o arguido C...afirmou que entrou para a empresa em 2005 com o único objectivo de implementar o respectivo sistema informático, não obstante ser médico dentista e não ter conhecimentos específicos de informática.
Da prova produzida resultou que a empresa aqui arguida, nasceu na sequência da expansão de um grupo económico, que designaremos por U..., grupo este familiar, titulado de resto pelos aqui arguidos, que tinha como missão inicial o préstimo de serviços contabilísticos para as restantes empresas do Grupo, sem exclusão de eventual prestações de serviços para empresas exteriores a esta âmbito – o que nunca aconteceu.
Essa relação umbilical retira-se desde logo por força da U..., laborar no mesmo local de várias das restantes empresas de grupo, facto este confirmado por arguidos e testemunhas que trabalhavam para a mesma.
Ora, as testemunhas identificadas, depuseram de forma calma e tranquila, respondendo de modo espontâneo às perguntas feitas.
Quanto às primeiras, identificaram os três arguidos como patrões e sócios da empresa arguida, qualidade esta, a de sócios, que vimos já, não terem directamente na U....
Inclusivamente acrescentaram que, tratando-se de empresa de contabilidade, os cheques que a sociedade arguida tinha necessidade de passar no âmbito das suas funções, eram assinados por qualquer dos arguidos, e que caso qualquer um deles lhes pedisse informações ou documentos, dela e das outras sociedades do grupo, prontamente seria satisfeita essa solicitação. Ademais referiu a segunda que chegou a receber diversas ordens de serviço por parte do arguido B....
De novo com a resposta que vimos seguindo, cabe acentuar que, na verdade, “[u]ma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se faz da prova e outra é detectarem-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório. Por outro lado também não pode esquecer-se tudo aquilo que a imediação em primeira instância dá e o julgamento da Relação não permite: basta pensar no que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir. O trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizados em 1.ª instância, e da fundamentação feita na decisão por via deles, traduz-se fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado como provado o que se deu por provado.” [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Julho de 2008, tirado no processo n.º 418/2008 – 5.ª Secção, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Souto Moura, disponível em www.dgsi.pt.]
E, igualmente não colhe uma pretensa preterição ao princípio do in dúbio pro reo.
Nas palavras de Figueiredo Dias, este princípio significa que “em caso de dúvida razoável, após a produção de prova, tem de se actuar em sentido favorável ao arguido.” [obra citada, pág. 215]
Por isso, não é qualquer dúvida, lançada em abstracto, que legitima o funcionamento deste princípio, mas será apenas aquela que, em concreto, após a produção e análise crítica de todos os meios de prova relevantes e sua avaliação de acordo com os critérios legais, deixa o observador (objectivo e distanciado do objecto do processo) num estado em que lhe ainda lhe parece, como razoavelmente possível, mais do que uma versão do mesmo facto.
Ou, como se exarou em aresto deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 25 de Março de 2009, tirado no processo n.º 243/08.9 GBAND.C1: «A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1996), p. 25.
Dúvida e convicção constituem como que a face e verso do critério geral de apreciação da prova, limitando-se reciprocamente: a livre convicção acaba onde surge a dúvida razoável e esta deixa de subsistir onde se estabelece a convicção ancorada numa análise objectiva e racional dos meios de prova validamente produzidos e valorados em conformidade com os critérios legais. A livre convicção assenta na legalidade da prova, nos critérios de apreciação vinculada e, na ausência destes, na razoabilidade da sua apreciação á luz do critério previsto no art.º 127.º do CPP. E o princípio
in dúbio pro reo assenta, afinal, no mesmo critério. Uma e outro estão limitados pela legalidade da prova e pela razoabilidade da análise crítica dos meios de prova validamente produzidos sobre o facto submetido a juízo – conhecimentos científicos adquiridos, racionalidade, objectividade, regras do convívio social, da proximidade, interesses, paixões subjacentes a cada depoimento na dimensão da condição humana.»
Lendo-se a decisão recorrida em ponto algum se denota que o tribunal a quo, embora reconhecendo ter caído num estado de dúvida, haja contornado esse non liquet decidindo-se, sem mais, no sentido desfavorável à recorrente. Ao invés o que da motivação probatória perpassa é a destrinça inequívoca dos factos provados e não provados sem olvidar este princípio, como, aliás, expressamente se consignou num seu segmento, quando aí se lê: “Perante este quadro global da prova produzida em audiência de discussão e julgamento não se verifica, pois, qualquer elemento perturbador capaz de criar no julgador dúvida (com as características exigidas pelo principio in dúbio pro reo) susceptível de ser apreciada em favor do arguido, e assim implicar juízo probatório diverso do supra expendido.”
Vale por dizer, então, que improcede este fundamento do recurso.
3.4. Segunda questão que a arguida coloca para ponderação nesta instância o da extinção da sua responsabilidade penal em virtude da respectiva declaração de liquidação, transitada em julgado, no dia 3 de Julho de 2006.
A jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem maioritariamente afirmado que para efeitos de extinção do procedimento criminal, nos termos do art.º 127.º, do Código Penal, não existe qualquer analogia entre a morte de uma pessoa física e a declaração de insolvência de uma sociedade.
Na verdade, a declaração de insolvência de uma sociedade, embora provoque a sua dissolução, não provoca a sua extinção nem a extinção do procedimento criminal contra ela instaurado. A sociedade não pode considerar-se extinta enquanto não se mostrar efectuado o registo do encerramento da liquidação. [v.g., o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 9 de Fevereiro de 2009,
in processo n.º 2701/08-1]
Escreveu-se neste acórdão: «§ 1. Com efeito, de há muito que se pode considerar pacífica a doutrina e jurisprudência de que a insolvência (anteriormente falência) determina a dissolução mas não a extinção da sociedade.
Por isso, a declaração de insolvência de uma sociedade não é causa de extinção do procedimento criminal contra ela.
Neste sentido, podem ver-se, entre outros, os seguintes arestos todos disponíveis in www.dgsi.pt:
- Ac. do STJ de 12-10-2006, proc.º n.º 0692930, Pereira Madeira;
- Ac. da Rel. de Coimbra 25-6-1996, Col. de Jur. Ano XXI, tomo 3, pág. 40;
Relação do Porto:
- Ac. de 05-03-2003, proc.º n.º 0210379, rel. Fernando Batista;
- Ac. de 28-05-2003, proc.º n.º 0310495, rel. Borges Martins;
- Ac. de 10-03-2004, proc.º n.º 0315960, rel. Borges Martins;
- Ac. de 08-07-2004, proc.º n.º 0441488, rel. Agostinho Freitas;
- Ac. de 06-10-2004, proc.º n.º 0413650, rel. André Silva;
- Ac. de 13-10-2004, proc.º n.º 0414013, rel. Fernando Monterroso;
- Ac. de 28-09-2005, proc.º n.º 0510726, rel. Alves Fernandes;
- Ac. de 21-12-2005, proc.º n.º 0416352, rel. Ângelo Morais;
- Ac. de 09-05-2007, proc.º n.º 0710903, rel. António Eleutério;
- Ac. de 27-06-2007, proc.º n.º 0742535, rel. Ernesto Nascimento;
- Ac. de 12-09-2007, proc.º n.º 0741140, rel. Pinto Monteiro.
*
§ 2. Toda a argumentação do despacho recorrido, já devidamente rebatida no douto Ac. da Rel. do Porto de 08-07-2004, proc.º n.º 0441488, rel. Agostinho Freitas, in www.dgsi.pt., para o qual se remete, parte da premissa de que a declaração de insolvência tem efeitos idênticos aos da morte de uma pessoa singular, apesar de não ser feito o registo do encerramento da liquidação e de ser possível a reabilitação legal
Simplesmente, esta premissa de que parte o despacho recorrido revela-se incorrecta, conforme foi superiormente demonstrado pelo Acórdão do STJ de fixação de jurisprudência n.º 5/2004 (DR. I série A, n.º 144, de 21-6-2004) e reafirmado pelo Ac. do STJ de 12-10-2006, proc.º n.º 0692930, rel. Cons.º Pereira Madeira, e inquina todo o raciocínio subsequente.

Conforme se assinalou no citado Ac. do STJ n.º 5/2004, «a assimilação, a extensão ou a equiparação da noção de “morte”, exclusiva, na natureza e na configuração directamente normativo-jurídica, das pessoas singulares, às formas de extinção das pessoas colectivas, para os efeitos de determinar a aplicabilidade (ou as dimensões relevantes de aplicabilidade) dos artigos 127.º e 128.º n.º 1, do Código Penal (…) só poderá, pois, ter lugar se e enquanto puder compreender-se e ser pensada nos critérios e instrumentos metodológicos do pensamento analógico.
Há, por isso, que apelar à “similitude de relações” e à comparação, invocando a correspondência ou semelhança, e à assimilação de qualidades diferentes numa mesma racionalidade, que possa Justificar, no plano normativo, a razão de associação na diferenciação – critérios metodológicos do same level reasoning próprios do pensamento analógico, que, como se salientou, constitui a fundamentação dogmática essencial da responsabilidade criminal das pessoas colectivas (…) no que seja comparada ou regulada pelos princípios e disposições próprios do direito penal.»
Ora, no caso em apreço não existe aquela «similitude de relações», que subjaz ao pensamento analógico.
Com efeito, pese embora a declaração de insolvência “resta um espesso «substrato» da sociedade em causa, circunstância que, à saciedade, impede que se defenda que da pessoa jurídica, nada mais resta, tal como de pode afirmar da pessoa do ser humano após a morte.” (Ac. do STJ de 12-10-2006, acima citado).
*
§ 3. Na verdade, conforme resulta do Código das Sociedades Comerciais, a declaração de falência é um dos casos legalmente previstos que faz entrar a sociedade em dissolução [art.º 141º, n.º 1, al. e): “1- A sociedade dissolve-se nos casos previstos no contrato e ainda: e) Pela declaração de insolvência da sociedade”], mas a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica [art.º 146.º, n.º 2: “A sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas”] e só se extingue pelo registo do encerramento da liquidação (art.º 160.º, n.º 2).
Por isso “ainda que esteja despojada de quaisquer bens, a sociedade não pode considerar-se extinta enquanto não se mostrar efectuado o registo do encerramento da liquidação” (cit Ac. da Rel. do Porto de 19-09-2007, proc.º n.º 0741140, rel. Pinto Monteiro).
É o que resulta de forma inequívoca do n.º 2 do artigo 160.º do Código das Sociedades Comerciais: “A sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação.”
Como ensina Raul Ventura, reconhecidamente o maior especialista português na matéria:
“A extinção da sociedade resulta da inscrição no registo do encerramento da liquidação, «mesmo entre os sócios». Não se trata, pois, de, pelo registo, tornar esse facto oponível a terceiros; mesmo entre os sócios, a sociedade mantém-se (incluindo a respectiva personalidade) até ser efectuada aquela inscrição. Na terminologia usual, o registo tem neste caso eficácia constitutiva.
O sistema estabelecido no CSC justifica-se por motivos teóricos e práticos. Por um lado, está em correspondência com o sistema estabelecido para a aquisição de personalidade pela sociedade e existência desta como tal (art.º 6.º). Por outro lado, consegue-se a certeza quanto ao momento em que a sociedade se extingue e além disso evitam-se as dificuldades de a sociedade se extinguir pelo que respeita aos sócios, sem no entanto estar extinta pelo que respeita a terceiros” (Comentário ao Código das Sociedades Comerciais - Dissolução e Liquidação de Sociedades, Coimbra, 1987, pág. 436).
Aliás, como foi demonstrado no Ac. da Rel de Évora de 2-5-2006, proc.º 394/06-1, Pires da Graça, o procedimento criminal instaurado contra uma sociedade comercial nem sequer se extingue com a extinção da própria sociedade operada nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 160.º do Código das Sociedades Comerciais.»

No caso vertente não resulta da matéria de facto dada como provada qualquer alusão à liquidação da sociedade arguida, nem ao registo do encerramento da mesma.
Apenas consta como facto provado que “os arguidos A..., B...Melo . e C...Augusto Meio . foram gerentes da sociedade arguida desde a sua constituição até prolação da sentença que declarou a insolvência da sobredita sociedade, a 12 de Maio de 2006.”
Ora, não impugnando a recorrente a decisão sobre a matéria de facto quanto a este ponto, não poderá ser a mesma alterada no sentido de aí passar a constar que a sociedade arguida foi já liquidada, sendo que nenhuma prova foi produzida quanto a este facto.
Acresce não colher também o argumento expendido pela recorrente e segundo o qual a ausência de bens da mesma não dá qualquer sentido a uma eventual condenação, uma vez que, e novamente com um dos arestos citados no último acórdão recorrido, o mesmo “a ser tomado à letra teria que ser aplicado em todas as situações em que as sociedades não têm qualquer património e apesar disso são demandadas.” [Ac. da Rel. do Porto, de 9 de Maio de 2007, in proc.º n.º 0710903, rel. António Eleutério]
Isto é, a conclusão de que não procede o recurso da arguida.
Recursos dos recorrentes C...e A....
Das questões colocadas por tais recorrentes, como supra consignámos, adiantamos sufragar entendimento da subsistência de fundamento para a procedência de uma delas [Da nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia quanto aos factos alegados pelo segundo arguido nos art.ºs 30.º a 35.º, 41.º e 46.º da respectiva contestação], que, prejudicialmente, contenderá com a ponderação de uma outra – concretamente de apurarmos se o mesmo arguido agiu a coberto de causa de exclusão da ilicitude, qual seja numa situação de colisão de deveres.
Porque outro tanto não ocorre quanto às demais, ater-nos-emos, desde já, à sua ponderação.
Assim:
3.5. Esgrimem os arguidos que tendo sido condenados como co-autores de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, deveriam constar da sentença recorrida os concretos factos praticados por cada um deles, “sob pena de violação dos princípios basilares do ordenamento jurídico nacional e das normas processuais penais que regem esta matéria.”
Continuam, afirmando que a sentença todavia “não faz qualquer referência a um qualquer plano ou decisão conjunta que admita a imputação da conduta penal em questão a todos os arguidos, pessoas singulares. Nem tão pouco, à emissão de qualquer ordem, individual ou conjunta, aos serviços administrativos, para que não procedessem à liquidação das quantias em questão, ou a qualquer conduta concreta capaz de consubstanciar um qualquer acto de execução do crime. Mais. A sentença não indica sequer como, e em que medida, os arguidos dispuseram das quantias em nome próprio e da sociedade! É, porém, evidente que os arguidos pessoas individuais não agiram, em simultâneo e em todos os momentos (de decisão e de execução) nesta liquidação e que esta indefinição corresponde a uma total ausência de circunstanciação das condutas imputadas.”
Rematam, por isso, pela inconstitucionalidade da interpretação assim extraída dos art.ºs 10.º; 14.º; 26.º, n.º 1, 3.ª parte, do Código Penal; 6.º; 105.º e 107.º, estes do RGIT; 2.º; 20.º, n.º 4; 26.º, n.º 1; 29.º, n.º 5; e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, todos da Lei Fundamental.
Em arrimo do expendido, convocam os dois recorrentes em causa o aresto do Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 7383/08-3.ª, de 1 de Outubro de 2008, disponível em www.dgsi.pt.
Ora, ressalvado o devido respeito, o que deste acórdão se extrai é justamente do bem fundado da sentença recorrida.
Com efeito, escreveu-se a certo passo do mesmo que «As incriminações constantes da parte especial do Código Penal, salvo quanto aos crimes de comparticipação necessária, descrevem os comportamentos proibidos como se eles fossem integralmente realizados por um único agente.
Se o juiz apenas aplicasse essas normas não poderia, por certo, punir pela prática de cada um desses crimes o agente que, nomeadamente, não tivesse chegado a consumar o crime, aquele que apenas tivesse prestado auxílio ao seu cometimento, quem tivesse omitido o comportamento que lhe era imposto ou o que tivesse, em colaboração com outro ou outros e por acordo com eles, realizado apenas uma parte da conduta típica, praticando os restantes os demais actos necessários à consumação do crime.
Neste último caso, o da co-autoria (3.º segmento do artigo 26.º do Código Penal), nenhum dos agentes teria, só por si, praticado os actos descritos na norma incriminadora. Nenhum deles poderia, por isso, ser punido.
Isto não é assim porque o nosso legislador incluiu, na parte geral do Código Penal, disposições que constituem verdadeiras cláusulas de extensão da tipicidade, ou seja, que alargam cada uma daquelas previsões da parte especial de forma a permitir a punição, nomeadamente, da tentativa (artigos 22.º e 23.º), da cumplicidade (artigo 27.º), da omissão (artigo 10.º) e da co-autoria (artigo 26.º).
Se o agente praticar todos os actos previstos na norma incriminadora não se torna necessária qualquer extensão da tipicidade. A sua conduta realiza, só por si, todos os elementos descritos na norma da parte especial do Código.
Assim, quando se deduz uma acusação, se pronuncia ou se condena um arguido pela prática de um crime em co-autoria torna-se necessário descrever a contribuição de cada um dos co-autores. Cada parte do conjunto é imputada ao outro ou outros que a não realizaram pessoalmente porque eles actuaram por acordo, assumindo todos o domínio funcional do facto. Porque a narração foi feita desta forma, pode então concluir-se, no plano normativo e não no da matéria de facto, que todos praticaram aquele crime em co-autoria (…)
Esta forma de comparticipação não se traduz, portanto, ao contrário do que uma deficiente técnica utilizada na elaboração de muitas peças processuais poderia fazer crer, na realização conjunta de tudo por todos, o que, muitas vezes, se não é impossível ter acontecido, desvirtua por completo a realidade.
Se cada um, só por si, praticou todos os actos típicos, deve ser punido como autor imediato.
Se se limitou a praticar parte das condutas descritas no tipo e se outros, por acordo (…), realizaram as restantes, todos devem ser punidos como co-autores.»

No caso vertente, e ao invés do alegado, o que sobressai da matéria de facto acolhida na sentença recorrida é, no que concerne, exactamente a atribuição do domínio funcional do acto – decisão e actuação conducente ao apossamento pelos arguidos dos montantes pecuniários que estavam adstritos, em virtude da sua qualidade de gerentes da arguida, a entregar à Segurança Social –, a todos e cada um deles (pontos provados 3, 4, e 5, depois especificados quanto a cada uma das distintas prestações nos pontos 6, 7 e 8), o que tanto obsta à invocação feita e determina a improcedência deste fundamento do recurso.  
3.6. Prosseguindo, pretexta o arguido C...que da prova produzida no decurso da audiência não era possível concluir, como o fez a decisão recorrida, haver o mesmo exercido qualquer influência na administração da arguida, circunstância acarretando o eximir da responsabilidade decretada que mais não seria, a subsistir, do que uma mera responsabilidade objectiva.
Retomando aqui as considerações acima expendidas acerca do critério norteador à reapreciação da prova nesta instância, o que pode afoitamente dizer-se é que não procede a oposição do recorrente.
Como se consignou na peça sindicada, e coligimos apenas resumidamente, sob pena de mera redundância, à míngua de prova directa, o Tribunal concluiu adequadamente quanto à participação também deste recorrente na administração da arguida, atentando a diferente tipos de provas produzidas no decurso da audiência, conjugadas de acordo com os critérios legalmente permitidos: desde logo, fundado nas suas próprias declarações, quando reconheceu ter sido instituído gerente da arguida (pretextando que com o único objectivo de implementar o respectivo sistema informático, não obstante ser médico dentista e não ter conhecimentos específicos de informática, afirmação controvertida pela testemunha Pinto Ângelo, como a sentença em causa fez sobressair, relembra-se); depois, na escritura de fls. 482 a 489, da qual se retira tal nomeação (simultânea com os demais), sem que fossem sócios da arguida; na acta de fls. 59 a 60, precisamente a n.º 1 da mesma sociedade, e por cujo intermédio se retracta o acordo estabelecido quanto à distribuição de remunerações pelas empresas, ficando a do ora recorrente a única a ser suportada pela mesma arguida; nos depoimentos das testemunhas Maria Alves, Maria Adelaide Damas e B... Pinto Ângelo, todos conhecedores do funcionamento da sociedade arguida, sendo que as primeiras não se mantêm em funções e o último permanece ligado ao grupo U... que o identificaram como sendo também um dos patrões da arguida; um dos gerentes que emitia os cheques que a sociedade arguida tinha necessidade de passar no âmbito das suas funções; e, um daqueles a quem, sendo solicitados para o efeito, prestavam informações ou facultavam documentos da arguida.
Tudo sem fundamento igualmente para qualquer intercedência do princípio do in dúbio pro reo, na dimensão acima definida, impondo, consequentemente, a manutenção do acervo factual acolhido e, com ele, a inverificação da aduzida responsabilização objectiva deste arguido.
3.7. Fundamento também avançado por estes dois arguidos o de que em virtude da alteração introduzida pelo art.º 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, ao art.º 105.º, n.º 1, do RGIT, se encontrariam descriminalizadas as não entregas à Segurança Social das prestações deduzidas no valor inferior a € 7.500,00.
Aquela Lei n.º 64-A/2008, que aprovou o Orçamento de Estado para 2009, consagrou importantes alterações ao Regime Geral das Infracções Tributárias, nomeadamente no que concerne ao crime de abuso de confiança fiscal.
Com efeito, de acordo com o disposto no seu art.º 113.º, foi alterada a redacção do n.º 1 do art.º 105.º do RGIT, mediante a introdução de um limite ao valor da prestação tributária ali considerada, passando-se a exigir que ela seja de “valor superior a € 7500.”
Fruto desta alteração, a redacção do n.º 1 do citado art.º 105.º passou a ser desde então a seguinte: “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
Com esta nova redacção, por força daquele limite é inquestionável que deixaram de ser punidas as condutas em que o valor da prestação tributária não excede € 7.500.
Ponto que, porém e de imediato, se passou a questionar o da (in) aplicabilidade deste novo normativo ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no art.º 107.º do RGIT.
Da querela assim suscitada, perspectivas acolhidas e solução a dever sufragar-se (no nosso entendimento, igualmente), nos dá nota o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo n.º 2692/08.3 TABGR.G1, de 11 de Janeiro de 2010, relatado pelo Ex.mo Desembargador Cruz Bucho, que passamos a citar:
«4. Uma nova vexata quaestio.
Como é sabido, a questão está a provocar divergências profundas quer ao nível da 1.ª instância quer na jurisprudência dos tribunais superiores.
Uma corrente minoritária, sufragada pelo despacho recorrido, entende que a nova redacção dada ao artigo 105.º, n.º 1 do RGIT pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2009 de 31 de Dezembro, que estabeleceu o limite de € 7500 para o crime de abuso de confiança fiscal, é também aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por força do n.º 1 do artigo 107.º desse mesmo RGIT.
Neste sentido se pronunciaram os seguintes arestos:
- Ac. da Rel. de Lisboa de 25-2-2009, proc.º n.º 102/04.4 TACLD.L1-3, rel. Nuno Garcia;
- Ac. da Rel. de Guimarães de 23-3-2009, proc.º n.º 2378/08-2ª, rel. Anselmo Lopes;
- Ac. da Rel. do Porto de 27-5-2009, proc.º n.º 343/05 TAVNF.P1, rel. Maria do Carmo Silva Dias;
- Ac. da Rel. de Lisboa de 15-7-2009, proc.º n.º 6463/07. IDLSB.L1-4, rel. Maria B... Machado;
- Ac. da Rel. de Lisboa de 13-10-2009, proc.º n.º 12323/03.2 TDLSB.L1-5, rel. Nuno Gomes da Silva;
- Ac. da Rel. do Porto de 14-10-2009, proc.º n.º 0546335, rel. António Gama (com um voto de vencido);
- Ac. da Rel. de Lisboa de 28-10-2009, proc.º n.º 77/08.0 TDLSB.L1, rel. Maria B... da Costa Pinto;
- Ac. da Rel. de Lisboa de 3-12-2009, proc.º n.º 7133/07.0 TDLSB.L1.9, rel. Moisés Silva, todos in www.dgsi.pt.
No sentido deste entendimento se pronunciaram também o Dr. Carlos de Almeida Lemos, “Crime de Abuso de Confiança Contra a Segurança Social”, in Abreu Advogados, Newsletter n.º 19, Março, de 2009, págs. 8-10, disponível in www.abreuadvogados.com e os Drs. Frederico Soares Vieira e Caiado Milheiro, “Alterações introduzidas pela Lei n.º 64-A/2008, aos artigos 105.º e 107.º do RGIT, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Boletim Informação e Debate, VI Série, n.º 1-Junho 2009, págs. 155-162.
A favor desta tese da despenalização são invocados, em síntese, os seguintes argumentos:
a) O crime de abuso de confiança contra a segurança social foi desenhado à imagem do crime de abuso de confiança fiscal do art. 105.º, sendo os interesses tutelados essencialmente os mesmos;
b) Sempre se quis que o regime punitivo de ambos os crimes fosse idêntico;
c) A remissão do art.º 107.º para o n.º 6, do art.º 105.º, do RGIT, entretanto também revogado pela Lei do Orçamento, sem revogação da remissão, demonstra que o legislador continua a não ter qualquer preocupação autónoma com os crimes contra a segurança social;
d) O argumento literal é pouco relevante porquanto o art.º 107.º remete não só para o n.º 1 mas também para o n.º 5, do art.º 105.º, pelo que se esta última norma abarca os elementos do tipo qualificado (valor da prestação superior a € 50.000) não se percebe porque é que aquela primeira não poderá também abranger a fixação de um patamar mínimo de punibilidade (ou seja € 7.500);
e) A aplicação do regime previsto no art.º 105.º n.º 1, do RGIT, aos crimes de abuso de confiança à segurança social e a descriminalização dos crimes de abuso de confiança contra o fisco quando, em ambos os casos, estivesse em causa prestação de valor não superior a € 7500, redundaria em violação do princípio da legalidade, por excesso de punição daquela primeira infracção, com a consequente violação do princípio da proporcionalidade das penas e da igualdade;
f) Numa interpretação sistemática e teleológica do art.º 107.º n.º 1, do RGIT, tem que considerar-se descriminalizada a falta de entrega à Segurança Social da contribuição deduzida e comunicada em cada declaração cujo valor não seja superior a € 7500.
Outros sustentam, porém, que o referido limite de € 7500 não tem aplicação em sede de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Neste sentido podem ver-se os seguintes arestos:
Relação de Guimarães:
- 27-04-2009, proc.º n.º 1304/00.8 TABRG.G1, rel. Tomé Branco, in www.dgsi.pt;
- 27-04-2009, proc.º n.º 1440/07.0 TABCL-A.G1, rel. Tomé Branco;
- 25-05-2009, proc.º n.º 10976/02.8 TABRG-BG1, rel. Cruz Bucho, www.dgsi.pt;
- 08-06-2009, proc.º n.º 258/07.4 TAPVL.G1, rel. Maria Augusta Fernandes;
- 29-06-2009, proc.º n.º 1443/06.1 TABCL.G1, rel. por Carlos Barreira;
- 06-07-2009, proc.º n.º 682/07.2 TAGMR.G1, rel. por Carlos Barreira;
- 09-07-2009, proc.º n.º 2438/07.3 TAGMR.G1, rel. Tomé Branco, in www.dgsi.pt;
- 09-07-2009, proc.º n.º 187/08 TABRG.G1, rel. Cruz Bucho;
- 09-07-2009, proc.º n.º 10458/02.8 TABCL.G1, rel. Tomé Branco;
- 28-09-2009, proc.º n.º 24/07. TAEPS.G1, rel. Estelita de Mendonça;
- 28-09-2009, proc.º n.º 4391/06.1 TDLSB.A.G1, rel. Estelita de Mendonça;
- 28-09-2009, proc.º n.º 2370/07.0 TABRG.A.G1, rel. Estelita de Mendonça;
- 28-09-2009, proc.º n.º 111/07.7 TABCL.G1, rel. Maria Augusta Fernandes;
- 12-10-2009, proc.º n.º 9641/05.9 TDLSB-B.G1, rel. Margarida Ramos de Almeida;
- 12-10-2009, proc.º n.º 8991/06.1 TDLSB.G1, rel Fernando Ventura, in www.dgsi.pt;
- 26-10-2009, proc.º n.º 4141/05.0 TDSLB.A.G1, rel. Estelita de Mendonça;
- 15-12-2009, proc.º n.º 3686/03.0 TDLSB.G1, rel. Cruz Bucho.
Relação do Porto:
- 25-3-2009, proc.º n.º 1131/01.5 TASTS, rel. Maria Leonor Esteves;
- 20-4-2009, proc.º n.º 8419/02.6 TDPRT, rel. B... Carreto;
- 27-5-2009, proc.º n.º 946/07.5 TABGC.P1, rel. Maria Elisa Marques (com um voto de vencido);
- 27-5-2009, proc.º n.º 1760/06.0 TDPRT, rel. B... Piedade;
- 3-6-2009, proc.º n.º 0715084, rel Francisco Marcolino;
- 15-7-2009, proc.º n.º 08446834, rel. Coelho Vieira;
- 23-9-2009, proc.º n.º 267/02.0 IDBRG-BP1, rel. Pinto Monteiro;
- 21-10-2009, proc.º n.º 7310/02.0 TDPRT.P1, rel. Melo Lima;
- 4-11-2009, proc.º n.º 491/00.0 TAMTS.P1, rel. Maria Deolinda Dionísio (com um voto de vencido);
- 11-11-2009, proc.º n.º 485/02.0 TAVLG.P1, rel. Eduarda Lobo (com um voto de vencido);
- 25-11-2009, proc.º n.º 1865/06.8 TASTS.P1, rel. Artur Vargues;
- 25-11-2009, proc.º n.º 380/06.4 TAVRL.P1, rel. Jorge Raposo, todos in www.dgsi.pt.
Relação de Coimbra:
- 4-3-2009, proc.º n.º 257/03.5 TAVIS.C1, rel. Jorge Raposo;
- 26-5-2009, proc.º n.º 206/02.8 TAACB.C1, rel. Ribeiro Martins;
- 17-6-2009, proc.º n.º 37/05.3 TASEI.C1, rel. Fernando Ventura;
- 8-7-2009, proc.º n.º 148/98.0 IDCBR.C2, rel. Ribeiro Martins;
- 16-9-2009, proc.º n.º 340/07.8 TATND.C1, rel. Orlando Gonçalves;
- 23-9-2009, proc.º n.º 413/06.4 TATND.C1, rel. Jorge Dias;
- 28-10-2009, proc.º n.º 228/05.7 TATND.C1, rel. Alice Santos;
- 9-12-2009, proc.º n.º 1497/03.2 TACBR.C1, rel. Calvário Antunes, todos in www.dgsi.pt;
Relação de Lisboa:
- 28-10-2009, proc.º n.º 685/07.7 TDLSB.L1-3, rel. Maria Elisa Marques, (com um voto de vencido):
- 21-10-2009, proc.º n.º 21-10-2009, rel. Domingos Duarte;
- 20-7-2009, proc.º n.º 7867/2008-3, rel. Conceição Gonçalves, todos in www.dgsi.pt.
A favor desta orientação são invocados, fundamentalmente, os seguintes argumentos:
a) O art.º 107.º n.º 1, do RGIT, contém todos os elementos constitutivos do tipo de crime de abuso de confiança contra a segurança social;
b) Tal dispositivo legal apenas acolhe do art. 105°, a moldura penal abstracta;
c) São diversos os bens jurídicos tutelados por cada incriminação, razão porque o legislador as autonomizou;
d) A nível da sistematização do RGIT os crimes fiscais estão previstos no capítulo III e os crimes contra a segurança social no capítulo IV;
e) O regime contra-ordenacional relativo à segurança social está previsto em legislação especial, a qual não contempla a falta de entrega de prestações não superiores a € 7.500, ao contrário do que se verifica quanto à falta de entrega de prestações tributárias de tal valor, como decorre do disposto no art. 114° n.º 1, do RGIT;
f) Se o legislador quisesse abranger o crime de abuso de confiança contra a segurança social tê-lo-ia dito expressamente.
Aguarda-se, ansiosamente, por uma orientação clarificadora por parte do STJ, através do competente acórdão de fixação de jurisprudência.
Importa, porém, decidir.
Pela nossa parte perfilhamos, claramente, este segundo entendimento, amplamente maioritário na jurisprudência desta Relação (cfr. Crónica do Tribunal da Relação de Guimarães, Scientia Ivridica, tomo LVIII-319, págs. 615/617) e dos demais tribunais superiores.
Na sua explanação vamo-nos socorrer de largos extractos de um modesto trabalho elaborado pelo relator, em 14 de Abril de 2009, intitulado “A Lei do OE 2009 e o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social”, disponível in www.trg.pt., actualizando-o com os contributos da jurisprudência entretanto publicada.
*
5. Os textos legislativos.
Era a seguinte anterior redacção do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT: “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, a prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
A alteração determinada no art.º 113.º da Lei n.º 64-A/2009, de 31 de Dezembro (OE 2009) circunscreveu-se à introdução de um limite ao valor da prestação tributária ali considerada, passando a exigir que ela seja de “valor superior a € 7500”, e à revogação do n.º 6 daquele preceito legal.
Fruto desta alteração, a redacção do n.º 1 do citado artigo 105.º é agora a seguinte: “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
Com esta nova redacção, por força daquele limite [independentemente da sua qualificação dogmática - como elemento conformador da ilicitude penal ou como condição objectiva de punibilidade - veja-se a discussão in Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Coimbra, 2006, págs. 302/305 que se inclina para a primeira categoria, aludindo a um “limite negativo da incriminação”, e Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ª ed., Coimbra, 2007, págs. 155/156] é inquestionável que deixaram de ser punidas as condutas em que o valor da prestação tributária – o de cada declaração a apresentar à administração tributária, de acordo com o n.º 7 do referido art.º 105.º – não excede € 7.500.
Por outro lado, manteve-se inalterada a redacção do artigo 107.º, que continua a ser a seguinte:
1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos 1 e 5 do art.º 105.º.
2. É aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 105.º
*
6. A interpretação da lei.
O problema de que nos ocupamos traduz-se, no fundo, numa questão de interpretação da lei.
Os cânones a que deve submeter-se a interpretação da lei constam do artigo 9.º do Código Civil, válido para todos os ramos do direito (cfr., v.g., Freitas do Amaral, Da necessidade de revisão dos artigos 1.º a 13.º do Código Civil, in Themis, ano I, n.º 1-2000, págs. 9-10 e Taipa de Carvalho, Direito Penal/Parte Geral, vol. I, Porto 2003, pág. 207).
Como muito recentemente o nosso mais Alto Tribunal teve oportunidade de salientar, e por duas vezes:
«Interpretar um preceito consiste, antes do mais, em tirar das palavras usadas na sua redacção um certo sentido, um certo conteúdo de pensamento, uma signifi­cação; em extrair da palavra – expressão sensível de uma ideia – a própria ideia nela condensada. Não se tratará, porém, de colher da lei um qualquer sentido, o primeiro que, o texto legal traga ao espírito do jurista.
É que a lei não se destina a alimentar a livre especula­ção individual; é um instrumento prático de realização e de ordenação da vida social, que se dirige sempre a uma generalidade mais ou menos ampla de indivíduos, não concretamente determinados, para lhes regular a conduta (Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, I, 1973, p. 144 - Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 5.ª ed., 1951, p. 24).
Diversos elementos contribuem para esse objectivo.
O elemento gramatical com uma primeira função de natureza negativa, eliminadora: a de eliminar dos sentidos possíveis da lei todos aqueles que, de qualquer modo, exorbitam do texto respectivo (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., p. 159), tendo presente que, quanto às normas que comportam mais de um significado (sentido, pensamento), nem todos esses sentidos recebem do texto legislativo igual apoio; uns hão-de natural­mente caber dentro da letra da lei mais à vontade do que outros; os primeiros correspondem ao sentido natural das expressões utilizadas, os outros a um sentido arrevesado, forçado.
O intérprete deve, em princípio, admitir que a lei pro­cede de um legislador que sabe exprimir com suficiente correcção o seu pensamento [...]; do simples texto da lei recebe maior impulso o sentido que melhor corresponde ao seu significado natural, ao seu alcance normal (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pp. 159 e 160).
Quando no texto da lei surgem vocábulos de sentido dúbio ou ambíguo, só o elemento lógico pode fixar o seu sentido e alcance decisivos, o que não significa que não deva esse elemento intervir mesmo quando o texto da lei é aparentemente claro, dada a possibilidade de o texto legis­lativo ter atraiçoado o pensamento real do legislador.
O elemento racional, a razão de ser, o fim visado pela lei (a ratio legis) e ainda nas circunstâncias históricas particula­res em que a lei foi elaborada (ocasio legis) contribuem para a avaliação da sua influência no espírito do legislador e, assim, para descortinar mais facilmente a disciplina que através da norma se pretendeu estatuir. O elemento siste­mático, as disposições reguladoras do instituto em que se integra a norma a interpretar e as disposições reguladoras dos institutos ou problemas afins. E o elemento histórico, os materiais relacionados com a história da norma e que lançam alguma luz sobre o seu sentido e alcance decisivo.
Sintetizando, pode reter-se que se trata de estabelecer o sentido das expressões legais para decidir a previsão legal e, logo, a sua aplicabilidade ao pressuposto de facto que se coloca perante o intérprete, cientes de que «a interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9.º, n.º 1, do CC), além de que ‘na fixação e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador con­sagrou as soluções mais acertadas’ (artigo 9.º, n.º 3).» (Acs. de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2009 in Diário da República, I.ª Série, n.º 11, de 16 de Janeiro de 2009, pág. 395, e n.º 5/2009, in Diário da República, I.ª Série, n.º 55, de 19 de Janeiro de 2009, pág. 1766).
É, pois, neste quadro de fundo, tendo em conta as regras e princípios que ficaram enunciados, recentemente reafirmados pelo Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 14/2009, de 21 de Outubro (in Diário da República, I.ª série, n.º 226, de 20 de Novembro de 2009, pág. 8447) que, sem prejuízo das especialidades ou limitações existentes em sede de interpretação da lei penal, derivadas do princípio da legalidade (cfr., por mais recentes, Taipa de Carvalho, Direito Penal/Parte Geral, vol. I, cit., págs. 204-210, Figueiredo Dias, Direito Penal/ Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2007, págs. 187-193, §§18-30 e Faria Costa, Noções Fundamentais de Direito Penal, 2.ª ed., Coimbra, 2009, págs. 135-148) deve buscar-se a solução da questão controvertida.
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7. O elemento gramatical.
“O ponto de partida da interpretação tem de estar na letra” que “é também um elemento irremovível de toda a interpretação” (Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, Lisboa, 1978, págs. 349 e 350).
A primeira e principal tarefa do intérprete “é ler a lei e ver o que aí se diz” (Castro Mendes, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1977, pág. 351).
Ora, lendo a lei e vendo o que ela diz é, desde logo, possível formular duas conclusões.
Em primeiro lugar, conforme foi, de resto, doutamente sublinhado nos citados Acs. da Rel. de Coimbra de 4-3-2009 e da Rel. do Porto 25-3-2009, da análise das duas normas em questão (artigos 107.º e 105.º, ambos do RGIT) resulta que a descrição dos elementos típicos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social consta integralmente do n.º 1 daquele art.º 107.º, que se manteve intocado [“1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos 1 e 5 do art.º 105.º”].

O crime de abuso de confiança contra a segurança social mantém, pois, a sua “tipificação autónoma e integral” (parecer do PGA Dr. João Vieira, de 26-3-2009, proferido no proc.º n.º6463/07.6 TDLSB.L1, in www.pgdlisboa.pt).
Em segundo lugar, a remissão constante do n.º 1 do citado artigo 107.º [“são punidas com as penas previstas nos 1 e 5 do art.º 105.º] circunscreve-se às penas que neles vêm cominadas.
Tendo em conta “as regras da gramática e designadamente o uso (corrente) das linguagem” e também “os modos de expressão técnico-jurídico” (Enneccerus, apud Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 3.ª ed. Lisboa, 1977, pág. 111) é forçoso reconhecer que, de acordo com a letra da lei, a remissão não abrange, o novo limite de € 7500, introduzido no n.º 1 do art.º 105.º
Isso mesmo foi, de resto, reconhecido pelo citado Ac. da Rel. de Guimarães de 23 de Março de 2009, proc.º n.º 2378/08-2.ª, rel. Anselmo Lopes, quando refere que “Numa interpretação puramente literal, a não alteração do n.º 1 do art.º 107.º, ou a falta de remessa para o novo valor inscrito no n.º 1 do art.º 105.º, encerram, sem mais, as portas à aplicação da restrição agora introduzida ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.”
Nem se diga que não faz sentido que se interprete a mesma norma de duas formas diferentes, consoante a remissão se faça para o n.º 1 ou para o n.º 5 do mesmo preceito (cfr. neste sentido v.g. o citado Ac. desta Relação de Guimarães de 23 de Março de 2009, avalizando a promoção proferida no proc.º n.º 340/07. TATND do 2.º juízo do Tribunal Judicial de Tondela que, nesta parte, reproduz a informação de serviço n.º 1/09 do Procurador da República de Viseu, Dr. Vítor Pereira Pinto, e o Ac. da Rel. de Lisboa de 25-2-2009, proc.º n.º 102/04.4 TACLD.L1-3, rel. Nuno Garcia).
O n.º 5 do art.º 105.º limita-se a prever uma circunstância agravante qualificativa, que interessa unicamente à delimitação entre o crime simples e o crime agravado, influindo em exclusivo na moldura penal aplicável, que passa para prisão de um a cinco anos, quanto às pessoas singulares, e de multa de 240 a 1200 dias, quanto às pessoas colectivas, quando a não entrega for superior a € 50.000.
Como a propósito se retorquiu no Acs. da Rel. de Coimbra de 17-6-2009, proc.º n.º 37/05.3 TASEI.C1, e desta Rel. de Guimarães, de 12-10-2009, proc.º n.º 8991/06.1 TDLSB.G1, ambos relatados pelo distinto Des. Fernando Ventura, “a circunstância de o legislador procurar sintonia na circunstância agravante qualificativa entre dois tipos penais não significa que os crimes sejam – devam ser – em todos os seus elementos típicos, inteiramente similares, ou dizendo de outra forma, que o crime de abuso de confiança contra a segurança social não seja mais do que o espelho do crime de abuso de confiança fiscal. Não se olvide que o legislador reservou um capítulo próprio para a tutela criminal da segurança social, deixando claro que os bens jurídicos respectivos, embora próximos, não se confundem.”
Numa outra perspectiva, contra a defesa de uma pretensa interpretação extensiva, merece destaque o Ac. da Rel. do Porto de 21-10-2009, proc.º n.º 7310/02.0 TDPRT.P1, relatado pelo Exmo. Des. Melo Lima: “A remissão feita no artigo 107.º para o artigo 105.º/ 1 e 5 circunscreve-se à parte respeitante à sanção aplicável e não à descrição da conduta que preenche o tipo de ilícito.
Ressalve-se, neste particular, que aquele a quem compete o exercício da iuris dictio não pode deixar de ter presente, em última instância, que subjacentes à normação jurídica hão-de estar seguramente observados, os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança (elementos constitutivos do Estado de Direito) na ideia da exigência da “precisão ou determinabilidade dos actos normativos” e/ou da conformação material e formal destes em “termos linguisticamente claros, compreensíveis e não contraditórios.»
Nesta ordem de ideias – dizer, ainda, no pressuposto razoável da fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência do acto normativo sob referência – não se vê fundamento para que o intérprete e/ou aplicador do direito deva estender o pensamento do legislador a partir de uma sua suposta falha quando não chegou a dizer o que efectivamente queria dizer.
Neste conspecto, entende-se, se fosse pretensão do Legislador aplicar a alteração ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, em obediência aos sobreditos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança tê-lo-ia determinado expressamente.
Não o fez. Porquê, fazê-lo, agora, em sua substituição (ou sobreposição), o aplicador do direito?»
Note-se que de acordo com a tese da interpretação extensiva, que outros designam de interpretação in bonam partem, o n.º 1 do artigo 107.º deveria ler-se como se tivesse a seguinte redacção: “1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos 1 e 5 do art.º 105.º, desde que o valor a entregar exceda €7500.”
Não é esse, porém, o texto da lei e, na conhecida frase de Canaris, só o texto da lei recebe a autoridade das mãos do legislador.
Pelo contrário, na perspectiva que sufragamos o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social pode revestir duas formas, em função do valor das contribuições deduzidas e não entregues:
- crime simples – se o valor daquelas contribuições for igual ou inferior a € 50.000;
- crime qualificado – se o valor daquelas contribuições for superior a € 50.000.
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8. A intenção do legislador (a “mens”ou “voluntas legislatoris”).
É claro que a certeza na interpretação da norma (artigo 107.º) sairia claramente beneficiada se o legislador tivesse optado pela sua reconstrução.
Ao invés, ao manter a redacção do artigo 107.º totalmente inalterada, esta opção legislativa conduziu até a um aparente paradoxo: o artigo 115.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro [o qual não constava da proposta de lei do Governo e foi aprovada na sequência de uma proposta de alteração proveniente do Grupo Parlamentar do Partido Socialista (cfr. Diário da Assembleia da República, de 29 de Novembro de 2008, I Série, n.º 20, pág. 73)] revogou expressamente o n.º 6 do artigo 105.º do RGIT. O legislador, manteve, porém, a remissão para o citado n.º 6 operada pelo n.º 2 do artigo 107.º do RGIT o que redunda, formalmente, na manutenção de uma remissão para uma norma revogada, impondo-se, pois, uma interpretação ab-rogante daquela remissão (cfr. Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, cit., págs. 369-372).
Mas esta técnica legislativa não autoriza a extrair outras consequências em sede de interpretação da norma, nomeadamente que “Se não fosse intenção do legislador alargar a restrição de punibilidade ao crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no art.º 107.º, então deveria ter transposto aquele n.º 6 do art.º 105.º para o art.º 107.º” – Ac. da Rel. do Porto de 14-10-2009, proc.º n.º 0546335, rel. António Gama (com um voto de vencido), nem sequer para ilustrar que “o legislador continua a não ter qualquer preocupação autónoma com os crimes contra a segurança social (atitude essa que já se vem notando desde que os transpôs para o RGIT)” – Ac. da Rel. do Porto de 27-5-2009, proc.º n.º 343/05 TAVNF.P1, rel. Maria do Carmo Silva Dias).
Pelo contrário, a não eliminação expressa da remissão para aquele n.º 6 constitui antes um indício de que o legislador não teve qualquer intenção de alterar a configuração dos crimes contra a Segurança Social.
Aliás, “mesmo que se defenda que deve ser restringida a tipicidade dos crime de abuso de confiança contra a segurança social nos mesmos termos em que o foi quanto ao crime de abuso de confiança fiscal, sempre ficará sem conteúdo a remissão para o n.º 6 do artigo 105.º do RGIT e, inerentemente, afirmada a presença da deficiência legislativa. Então, pretender reconstituir a intenção do legislador a partir de um lapso manifesto, afigura-se-nos constituir exercício incongruente.”- Ac. da Rel. de Coimbra de 17-6-2009, proc.º n.º 37/05.3 TASEI.C1, rel. Fernando Ventura.
A não eliminação expressa da remissão para aquele n.º 6, conjugada com a ausência de qualquer alteração legislativa no domínio dos crimes contra a Segurança Social, associada à falta de qualquer referência a essa pretensa aplicação do limiar de punição do abuso de confiança fiscal ao abuso de confiança contra a Segurança Social quer no Relatório do Orçamento do Estado para 2009 (relatório este que, por força do disposto no n.º 2 do artigo 31.º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto - Lei de Enquadramento Orçamental - acompanha necessariamente a proposta de lei de Orçamento de Estado), quer na discussão na generalidade da proposta de lei n.º 226/X -Orçamento do Estado (Diários da Assembleia da República I série, n.ºs 16, 17 e 18, de 5, 6 e 7 de Novembro de 2008, respectivamente; no domínio que nos interessa não houve discussão na especialidade por não ter chegado a haver inscrições para os artigos 95º e 96º daquela proposta de lei - cfr. Diário da Assembleia da República I série, n.º 28, de 27 de Novembro), tudo inculca não ter sido intenção do legislador tornar extensível o referido limite de € 7500 ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
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9. Os elementos sistemático e teleológico.
Não se ignorando as diversas críticas que foram formuladas ao subjectivismo dominante no século XIX (cfr. Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, cit., págs. 352-353 e A. Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, 3.ª ed., Coimbra 2006, pág. 322), mas sem menosprezar aquele elemento (mens legislatoris), até porque, a este respeito, o Código Civil não consagra qualquer orientação, já que apenas refere discretamente “o pensamento legislativo” (artigo 9.º, n.º 1), “colocando-se deliberadamente acima da velha querela entre subjectivistas e objectivistas” (cfr. a notável comunicação à Assembleia Nacional de 26 de Novembro de 1966, do Ministro da Justiça Prof. Antunes Varela, intitulada “Do Projecto ao Código Civil”, n.º 6, in BMJ n.º 161, pág. 26), debrucemo-nos, agora, sobre os elementos sistemático e teleológico.
Recorda-se que “o sentido literal na maior parte dos casos não basta como critério interpretativo, precisamente porque ainda permite diversas interpretações” (Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa, 1978, pág. 369). Na verdade, o elemento gramatical “é um elemento frágil: há palavras por vezes vagas, equívocas e bem pode suceder que o legislador tenha dito mais ou menos do que pretendia dizer. Por isso, o elemento literal é o menos importante e raramente dispensa o recurso aos elementos lógicos, a cujo resultado devemos, em homenagem ao espírito da lei, dar preferência se conflituar com o sentido literal (A. Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, cit, pág. 328).
A favor da tese que repudiamos, segundo a qual o limite de € 7500, do crime de abuso de confiança fiscal é igualmente aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, invoca-se a identidade dos respectivos regimes punitivos.
Como se observou no citado Ac. da Rel. de Lisboa de 25-2-2009 (proc.º n.º 102/04.4 TACLD.L1-3, rel. Nuno Garcia), “Não se compreenderia (…) que prevendo agora o legislador uma menor severidade quando estão em causa quantias não superiores a € 7500, se aplicasse tal alteração apenas aos crimes de abuso de confiança fiscal e não também aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, não se fazendo a identidade de punições que sempre o legislador entendeu fazer.”
Não cremos, porém, que deva argumentar-se com a circunstância de “os tipos legais de crimes contra a segurança social [serem] construídos em larga medida através de remissão para os seus homónimos fiscais” (cfr. Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, cit., 2.ª ed, Coimbra, 2007, pág. 151), ou com a identidade de regime punitivo entre o crime de abuso de confiança da segurança social e o de abuso de confiança fiscal para justificar um pretenso paralelismo que a letra da lei não parece consentir.
Importa não esquecer que aqueles tipos legais são autónomos, encontram-se previstos em dois capítulos diferentes do RGIT [a circunstância de os crimes contra a Segurança Social terem sido integrados, juntamente como os crimes fiscais, num mesmo e único diploma, o que vem ocorrendo desde o Dec.-Lei n.º 140/95, de 14 de Julho, não lhes retira autonomia, nunca tendo sido seguida entre nós a técnica sugerida por Augusto Silva Dias, segundo o qual “bastava criar um número em cada um dos preceitos analisados adaptando à protecção do património da Segurança Social o regime punitivo definido para a protecção do património fiscal” (“Crimes e contra-ordenações fiscais, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinais, vol. II, Coimbra, 1999, pág. 468], e tutelam bens jurídicos distintos.
Serve de exemplo desta autonomia do regime punitivo das infracções contra a Segurança Social, o diferente limite mínimo a partir do qual a conduta é punível, que no crime de fraude fiscal é de € 15.000 (artigo 103.º, n.º 5, na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 60.º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro) e no crime de fraude contra a segurança social se mantém em € 7500 (artigo 103.º, n.º 2), a consagração de um regime sancionatório contra-ordenacional especial previsto em legislação extravagante (ressalvado pelo n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho e reafirmado na parte final da alínea d) do artigo 1.º do RGIT), a circunstância de a falta de entrega de prestação tributária igual ou inferior a € 7500 constituir contra-ordenação prevista pelo artigo 114.º do RGIT enquanto a falta de entrega de quotizações deduzidas à Segurança Social não constitui contra-ordenação social [acentuando este último aspecto cfr. Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, cit. págs. 155/156; contra, mas sem razão, Costa Andrade, “O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza de um acórdão do Tribunal Constitucional”, cit., pág. 314, nota 14, o qual, porém, alterou posteriormente o seu entendimento - cfr. Costa Andrade e Susana Aires de Sousa, “As Metamorfoses e Desventuras de um crime (abuso de confiança fiscal) irrequieto”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 17, n.º 1 (2007), reproduzido in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinais, vol. III, Coimbra, 2009, págs. 333-334].
Do mesmo modo, não obstante alguma semelhança decorrente da igual conformação dos tipos de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a Segurança Social (ambos crimes omissivos puros, cuja consumação ocorre com a não entrega total ou parcial de prestações/contribuições deduzidas), e apesar da identidade de regimes punitivos até à recente Lei n.º 64-A/2008, aqueles tipos legais encontram-se previstos em dois capítulos diferentes do RGIT, são autónomos, como sempre o foram (cfr. artigo 3.º do Dec.- Lei n.º 511/76, de 3 de Julho, artigo 6.º do Dec.-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, artigo 46.º, n.º 3 da Lei n.º 28/84, de 14 e Agosto e artigo 27.º-B do Dec.-Lei n.º 140/95, de 14 de Julho) e tutelam bens jurídicos distintos (sobre este último ponto cfr., v.g., Carlos Rodrigues de Almeida, Os crimes contra a segurança social, previstos no regime jurídico das infracções fiscais não aduaneiras, Revista do Ministério Público, n.º 72, págs. 95-96 e 102, e os Ac. da Rel do Porto de 15-10-2003, proc.º n.º 0314181, rel. Borges Martins e da Rel. de Évora de 12-6-2007, rel. António João Latas, ambos in www.dgsi.pt).
Na verdade, como o STJ já teve oportunidade de salientar, “diversamente do que acontece em regra com os impostos, que constituem receitas do Estado, não afectas a fins específicos, as contribuições para a segurança social destinam-se a fins específicos da mesma, de que beneficiam apenas alguns cidadãos. Algumas das prestações sociais constituem, aliás, a contrapartida das quotizações dos trabalhadores”(Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2005, in DR, I.ª Série, n.º 63, de 31 de Março de 005, pág. 2714). É o caso do sistema providencial, que abrange, para além do mais, o regime de segurança social aplicável à generalidade dos trabalhadores por conta de outrem, assente no princípio da contributividade, segundo o qual tal sistema deve ser fundamentalmente auto financiado, tendo por base “uma relação sinalagmática directa entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações”- artigo 54º Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social (cfr. B... Casalta Nabais, O Financiamento da Segurança Social em Portugal, in Estudos em Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, Coimbra, 2007, pág. 638 e 642).
Por isso, como doutamente se salientou no Ac. da Rel. do Porto de 15-10-2003, proc.º n.º 0314181, rel. Borges Martins, justamente relembrado no Ac. da Rel. de Coimbra de 4-3-2009, proc.º n.º 257/03.5 TAVIS.C1, rel. Jorge Raposo, ambos in www.dgsi.pt):
«É certo que os crimes contra a segurança social reportam-se a condutas paralelas ou similares às dos crimes fiscais.
Mas nos crimes contra a administração fiscal os valores tutelados são os inerentes ao regular e efectivo funcionamento do sistema fiscal e de política social estabelecidos pelo Estado. O sistema fiscal não visa apenas arrecadar receitas, mas também, e primordialmente, a repartição justa dos rendimentos e da riqueza e a diminuição das desigualdades entre os cidadãos – cfr. art.ºs 103.º e 104.º da CRP.
Diferentemente, nos crimes contra a Segurança Social o bem jurídico tutelado é o património (lato sensu) da Segurança Social, ou seja, como diz o recorrente [IGFSS], “a tutela do respectivo erário, assente na satisfação dos créditos contributivos de que a segurança social é titular”. Ao contrário do que acontece com as receitas fiscais, as contribuições para a Segurança Social não servem para, indistintamente, o Estado realizar os seus fins (sociais ou outros). Não são receitas do Estado, mas do recorrente (art.º 25.º n.º 1 al. a) do Dec.-Lei 260/99 de 7-7), destinando-se à prossecução dos seus fins específicos, de que não beneficiam, sequer, todos os cidadãos.»
Aliás, essa autonomia do regime punitivo das infracções contra a Segurança Social tem vindo a ser acentuada pelo legislador que nas mais recentes leis de orçamento (Leis n.ºs 53-A/2006 e 64-A/2008) introduziu alterações restritivas nos tipos criminais de fraude fiscal e de abuso de confiança fiscal (artigos 103.º e 105.º do RGIT), deixando incólumes os correspondentes normativos protectores do sistema de segurança social (artigos 106.º e 107.º), assim procurando “manter um regime sancionatório mais exigente, conferindo-se maior eficácia à protecção dos interesses subjacentes” (Informação de serviço de 7-1-2009 do Procurador da República Dr. B... Luís Trindade, avalizada pelo Director do DIAP de Coimbra, Dr. Euclides Dâmaso).
Este reforço da autonomia do regime punitivo das infracções contra a Segurança Social funda-se e justifica-se na necessidade premente de defesa da sustentabilidade da segurança social fortemente ameaçada, em Portugal como na generalidade dos países europeus, pelo efeito conjunto de várias situações, nomeadamente o crescente envelhecimento da população, a redução da taxa de natalidade, o aumento progressivo do período contributivo (amadurecimento do sistema) e o crescimento das pensões a um ritmo superior ao das contribuições (cfr., v.g., o “Relatório Técnico sobre a Sustentabilidade da Segurança Social”, apresentado pelo Governo aos parceiros sociais, em Maio de 2006), as quais fazem perigar a própria manutenção do Estado Social.
Assim, quanto ao crime de abuso de confiança fiscal compreende-se que, por razões de eficiência, se retirem dos tribunais, contribuindo deste modo para o seu descongestionamento, processos de natureza bagatelar por não se justificar que o Estado afecte recursos humanos e materiais na perseguição criminal de ilícitos fiscais em que a prestação não entregue é igual ou inferior a € 7500, mas em que fica ressalvada a luta contra evasão fiscal (onde, de resto, se têm vindo a realizar grandes progressos), desde logo por via do procedimento contra-ordenacional (em que o valor mínimo da coima aplicável corresponde ao valor da prestação em falta, se o arguido for pessoa singular, e duas vezes esse valor, se o arguido for pessoa colectiva - cfr. artigos 114.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, ambos do RGIT).
Mas, a mesma justificação não colhe no que se refere ao abuso de confiança contra a segurança social no que toca à não entrega das quotizações deduzidas de valor igual ou inferior a € 7500, já que o orçamento do IGFSS assenta ainda primordialmente nas receitas advenientes das contribuições resultantes dos descontos nas remunerações devidas – cfr. artigos 54.º, 90.º, n.º 2 e 92.º todos da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social e Gomes Canotilho-Vital Moreira, CRP Anotada, 4.ª ed., vol. I, Coimbra, 2007, págs. 817/818 e 1105/1106.
Note-se que mesmo no sistema previdencial as receitas provenientes das contribuições obrigatórias já não são suficientes para o pagamento de todas as prestações aos beneficiários, sendo cada vez mais necessárias transferências de outras rubricas orçamentais – cfr. Glória Teixeira, e João Félix Nogueira, Segurança Social – Uma perspectiva Fiscal, in Nos 20 Anos do Código das sociedades Comerciais, vol. II, Coimbra, 2007, pág. 772 e B... Casalta Nabais, O Financiamento da Segurança Social em Portugal, cit., pág. 643/648; aliás, já em 2005 só foi possível assegurar o equilíbrio financeiro da Segurança Social, na parte contributiva, devido à contribuição do IVA que nesse ano o Governo decidiu que revertesse para a Segurança Social).
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10. De novo o elemento sistemático: a “unidade do sistema jurídico” (artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil).
Na lição, sempre cristalina, de Castro Mendes “A ordem jurídica forma um sistema, de elementos coordenados e homogéneos entre si, não podendo comportar contradições. Daqui resulta que as leis se interpretam umas pelas outras – cada norma e conjunto de normas funciona em relação às outras como elemento sistemático de interpretação” (Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1977, pág. 361).
Ora, o entendimento segundo o qual o limite de € 7500, do crime de abuso de confiança fiscal é também aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social constituiria um factor de grave desequilíbrio na unidade do sistema, pondo em causa, nas palavras de Baptista Machado, a “coerência intrínseca do ordenamento” (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 2.ª reimp., Coimbra, 1987, pág. 183).
Com efeito, passaria a existir, incompreensivelmente, um mesmo limite para a fraude e para o abuso de confiança contra a Segurança Social (€ 7500), enquanto que no âmbito dos crimes fiscais o limite mínimo para a fraude (€ 15.000) corresponde ao dobro do estabelecido para o abuso de confiança (€ 7500).
Por outro lado, a total impunidade da falta de entrega de quotizações deduzidas, em montante igual ou inferior a € 7500, já de si incompreensível uma vez que a fixação de limites negativos de criminalidade anda associada à transformação dos respectivos factos em contra-ordenações [cfr. artigos 113.º, n.º 1, 114.º, 118.º e 119.º, todos do RGIT e, na doutrina: Germano Marques da Silva, Notas sobre o regime geral das infracções tributárias, in Direito e Justiça, vol. XV, tomo 2 (2001), págs. 64/65; Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, cit., pág. 156; e Susana Aires de Sousa, Crimes Fiscais, cit., pág. 304], para além de incompatível com o propósito nacional (e europeu) de assegurar a sustentabilidade do sistema da segurança social, particularmente ameaçado em tempos de gravíssima crise económica e financeira, não teria qualquer justificação no confronto com outros comportamentos bem menos censuráveis, tipificados como contra-ordenações contra a segurança social, nomeadamente pelo Dec.- Lei n.º 64/89 de 25 de Janeiro.
Como justamente se salientou no recente Ac. da Rel do Porto de 4-11-2009, rel. Maria Deolinda Dionísio:
“ (…) considerando as regras que presidem ao apuramento das quantias devidas a título de cotização/contribuição à segurança social e cuja falta de entrega constitui crime [desconto de determinada percentagem (11 % - 10%) na remuneração devida aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais] e o valor médio dos salários em Portugal - veja-se que o tecido empresarial é constituído essencialmente por pequenas (senão mesmo micro) e médias empresas e que o SMN se fixa nos € 450, sendo irrisória a percentagem de trabalhadores/órgãos sociais que aufere salários de valor significativo - estaria encontrada a forma de praticamente extinguir tal tipo de crime, circunstância que se nos afigura exorbitar completamente a vontade do legislador.”
Uma última nota.
Quanto à pretensa inconstitucionalidade da interpretação que sufragamos segundo a qual o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social é punível com a pena prevista no n.º l do artigo 105.º do RGIT quando o montante das contribuições não entregue à Segurança Social seja igual ou inferior a € 7500, por violação dos princípios da proporcionalidade e da adequação, “por conduzir a um excesso de punição (…) com consequente violação do princípio da proporcionalidade das penas e da igualdade (na medida em que situações iguais eram tratadas em termos sancionatórios de forma desigual) e, portanto, por contrariarem o estatuído nos art.ºs 18.º, n.º 2 e 13.º da CRP” (Ac. da Rel. do Porto de 27-5-2009, proc.º n.º 343/05 TAVNF.P1, rel. Maria do Carmo Silva Dias), apenas diremos que esta tese parte de um pressuposto que não aceitamos conforme acima justificámos.
Não estamos perante situações idênticas.
Para utilizarmos uma imagem impressiva sugerida pelo Ac. da Rel. de Lisboa de 13-10-2009, proc.º n.º 12323/03.2 TDLSB.L1-5, rel. Nuno Gomes da Silva, a não entrega do IVA até ao montante de € 7500 não tem hoje, seguramente, o mesmo significado que a não entrega das prestações deduzidas a trabalhadores de semelhante valor.
Num momento em que a Pátria se confronta com mais de 500.000 de desempregados, em que se anuncia que num futuro próximo as reformas atingirão em alguns casos apenas cerca de 50% dos salários percebidos, compreende-se perfeitamente que a falta de entrega do IVA no montante de € 7500 devida pela venda de um automóvel de gama alta não tenha, num Estado de Direito assente na dignidade da pessoa humana, o mesmo significado, a mesma ressonância ético-social, a mesma relevância jurídico-criminal do que a falta de entrega à Segurança Social da quantia de € 7500 representativa dos descontos efectuados, durante um mês, nos salários de 150 (cento e cinquenta) trabalhadores que auferem o salário mínimo nacional.
Como justamente se assinalou no douto Ac. da Rel. do Porto de 21-10-2009, proc.º n.º 7310/02.0 TDPRT.P1, relatado pelo Exmo. Des. Melo Lima, «Estando em causa, como acima se deixa referido, tipos legais autónomos que, sob diferente teleologia, pretendem tutelar bens jurídicos diferentes, o que pode coarctar o legislador na adopção das medidas adequadamente diferenciadas relativamente aos diferentes interesses subjacentes?
Como se diz no AC. 242/09 de 12.05.2009 do Tribunal Constitucional:
“....cabe no âmbito da liberdade de conformação do legislador a determinação das condutas que devem ser criminalizadas. Necessário é, naturalmente, que a opção se não faça em violação das regras princípios constitucionais relevantes na matéria. E, citando o Acórdão n.º 1146/96 do mesmo Tribunal: “a Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio da humanidade e o princípio da proporcionalidade [...] o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela.” Vindo a concluir que “as condutas incriminadas (actualmente) pelos artigos 105.º (abuso de confiança fiscal) e 107.º (abuso de confiança contra a segurança social) põem em causa interesses de tal forma relevantes que legitimam a opção pelo legislador.”
Em que é que, no caso concreto – repete-se: “numa altura em que se discute, se questiona e se pretende essencialmente assegurar e defender a sustentabilidade da segurança social, objectivo que ganhou foros de princípio fundamental do Estado Previdência e como garante de satisfação do pagamento das prestações sociais e reformas dos seus beneficiários” – na adopção e na interpretação segundo a letra da lei e os valores subjacentes à mesma ocorre uma opção inadequada, desmedida, excessiva?
Não se vê.»
Na sequência do expendido, concluiu o aresto citado que o limite de € 7500 a que alude o n.º 1 do art.º 105.º do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção que lhe foi conferida pelo art.º 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no art.º 107.º do RGIT.
A orientação clarificadora por parte do Supremo Tribunal de Justiça que já se antevia impor-se, acabou por acontecer, finalmente, em 14 de Julho de 2010, data na qual o respectivo Pleno das Secções Criminais, sobre a referenciada questão de direito, prolatou o Acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 8/10, entretanto publicado no Diário da República, I.ª Série, de 23 de Setembro seguinte, decidindo:
«Fixar jurisprudência, no sentido de que a exigência do montante mínimo de 7.500 euros, de que o n.º 1 do artigo 105.º do RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e alterado, além do mais, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma.»
Acerca da eficácia dos Acórdãos do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, proferidos no âmbito de recursos para fixação de jurisprudência, fora dos processos em que tem lugar a respectiva prolação, dispõe o n.º 3 do art.º 445.º, do Código de Processo Penal, que, “A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.
O regime contido na disposição legal transcrita procura estabelecer um ponto de equilíbrio entre a desejável uniformidade, segurança e previsibilidade do direito e o princípio da independência dos Tribunais e da sua vinculação exclusiva à lei, estatuído pelo art.º 203.º, da Constituição da República.
Ao contrário do antigo instituto dos Assentos, que se caracterizava pela sua obrigatoriedade para a generalidade dos Tribunais e cuja compatibilidade com o postulado constitucional da vinculação exclusiva destes à lei era, por isso, problemática, os actuais Acórdãos de fixação de jurisprudência revestem uma força vinculativa tendencial, ou seja, os Tribunais podem divergir da orientação neles consagrada, mas, fazendo-o, ficam sujeitos a um especial dever de justificar a divergência.
Neste contexto, somos de entender que, sob pena de se esvaziar de conteúdo útil o propósito unificador da instituição dos Acórdãos a que nos vimos referindo, os Tribunais só devem afastar-se da doutrina acolhida por essas decisões perante razões ponderosas, como seja, por exemplo, a convicção de que orientação jurisprudencial preferida pelo STJ é manifestamente incompatível com algum princípio jurídico basilar, geralmente aceite, ou violadora de normas constitucionais expressas – cfr. acórdão do Tribunal da relação de Évora, de 8 de Novembro de 2011, in processo n.º 151/09.6 TALGS.E1, acedido em www.dgsi.pt.
Seguindo o critério agora enunciado, não se nos afigura que possam ser opostas à orientação jurisprudencial consagrada pelo citado Acórdão uniformizador objecções ponderosas – tal como sobressai do 1.º aresto que deliberadamente et pour cause citámos – conducentes à preterição de um valor tão relevante como a uniformidade, segurança e certeza na aplicação do direito.
Assim sendo, nada mais nos restará, em coerência com a posição adoptada, que aderir à orientação perfilhada pelo Pleno das Secções Criminais do STJ e concluir, consequentemente, que também não procede este argumento dos recorrentes C...e A....
3.8. Na contestação que apresentou a fls. 893 e segs., o recorrente A... alegou mormente nos seus art.ºs 30.º a 35.º e 41.º a 46.º:
30.º
As dificuldades financeiras sentidas pela empresa eram do conhecimento generalizado dos trabalhadores, que, por diversas vezes, se dirigiram ao Arguido A..., pedindo-lhe que fizesse tudo o que estava ao seu alcance para salvar a U... –
31.º
Informando-o de que necessitavam do seu salário para prover às suas despesas inerentes à sua sobrevivência e das suas famílias.
32.º
E implorando-lhe que a empresa não deixasse de lhe pagar as respectivas retribuições.
33.º
Neste contexto, ou seja, pressionado pelas preocupações que lhe eram manifestadas pelos trabalhadores, ao verificar que a empresa não dispunha de fundos para liquidar todas as suas dívidas, o Arguido optou por privilegiar o pagamento dos salários dos trabalhadores e dos fornecedores,
34.º
Alocando as quantias devias à Segurança Social para esse efeito,
35.º
Convicto de que a situação económica das empresas melhoraria, e de que seria capaz de liquidar as quantias em questão, a breve trecho.
41.º
Refira-se que a empresa Arguida apenas dispunha, como clientes, das demais empresas do grupo, as quais, atento o circunstancialismo exposto, obviamente, preteriram os pagamentos à U... a favor de credores externos ao grupo.
42.º
De facto, tal situação atingiu tal gravidade que, o pagamento dos salários dos funcionários foi assegurado directa e exclusivamente pelas outras sociedades do grupo.
43.º
Tal circunstancialismo culminou com a consequente apresentação à insolvência de diversas empresas do grupo, inclusive da empresa Arguida (Proc. 644/06.7 TBCNT, 1.º Juízo, Tribunal da Comarca de Cantanhede),
44.º
A que se seguiu a suspensão da actividade da mesma e à posterior dispensa da totalidade dos trabalhadores,
45.º
Bem como à impossibilidade de liquidação das importâncias objecto dos autos.
46.º
Efectivamente, não houve qualquer apropriação, desvio ou utilização pessoal de fundos.
Na impugnação apresentada contra a decisão recorrida, alega que sendo a mesma susceptível de consubstanciar uma causa de exclusão da ilicitude, foi a mesma aí totalmente desconsiderada, o que conduz à emergência, então, de uma nulidade – a de omissão de pronúncia -, isto atento o conjugadamente disposto nos art.ºs 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.
O dever de fundamentar uma decisão judicial é decorrência, em primeiro lugar, do disposto no art.º 205.º, n.º 1 da Constituição da República, quando disciplina que As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma previstas na lei.
No âmbito do processo penal, este dever de fundamentação e na perspectiva do arguido, surge, todavia e igualmente, como uma das suas garantias constitucionais de defesa, expressas no art.º 32.º, n.º 1, da mesma Lei Fundamental.
Tal implica que, ao proferir-se uma decisão judicial, se conheçam as razões que a sustentam, pois só assim é possível possibilitar a aferição sobre se a mesma está fundada na lei.
Coerente com tais normativos e entendimento, prescreve, expressamente, o art.º 97.º, n.º 4 do Código Processo Penal, que Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
Esta exigência mostra-se, simultaneamente, um acto de transparência democrática do exercício da função jurisdicional, que a legitima, e das garantias de defesa, ambas com assento constitucional, em ordem a obstar-se também a decisões arbitrárias.
A fundamentação de um acto decisório deve então estar devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido, sendo que caso de uma sentença deve obedecer aos requisitos formais enunciados no art.º 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Por isso que, e à partida, não cumprem estes requisitos os actos decisórios que não tenham fundamento algum, por mínimo que seja, e aqueles que se revelem insuficientemente motivados.
Porém, também não se deve exigir que no acto decisório fiquem exauridos todos os possíveis posicionamentos que se colocam a quem decide, esgotando todas as questões que lhe foram suscitadas ou que o pudessem ser.
O que importa é que a motivação seja necessariamente objectiva e clara, e suficientemente abrangente em relação às questões aí suscitadas, de modo que se perceba o raciocínio seguido.

Muitas vezes confunde-se motivação com prolixidade da fundamentação e esta apenas serve para confundir ou obnubilar a compreensibilidade que deve ser uma característica daquela.
O Tribunal Constitucional tem reiterado no sentido alinhado – v.g., seu Acórdão 680/98, de 2 de Dezembro.
Tratando-se de sentenças condenatórias, pelas particulares repercussões que as mesmas têm na esfera dos direitos, liberdades e garantias dos condenados, é exigível que se revelem com mais intensidade as razões de facto e de direito que conduziram à decisão concretamente proferida.
A inobservância deste falado dever de fundamentação pode sobrevir precisamente da omissão de pronúncia pelo tribunal de questões que devesse apreciar – citado art.º 379.º, n.º 1, al. c) –.
A alegação acima elencada aponta no sentido de que, no entendimento da defesa do recorrente A..., emergiria fundamento eventualmente conducente ao funcionamento de uma causa que excluiria a ilicitude da sua conduta.
Auscultando-se a factualidade acolhida como provada e como não provada na sentença recorrida em passo algum se verifica, em rigor, que a mesma haja sido considerada ou desconsiderada nos termos sobreditos.
Na verdade, como obtempera o Ex.mo PGA, sendo tais factos alegados na contestação concretos e precisos, mister se tornava que sobre os mesmos recaísse uma decisão de prova ou de não prova por forma alguma individualizada, o que se não compadece com a menção feita na peça sindicada [al. m) dos factos não provados, em cujos termos, Não houve apropriação desvio ou utilização pessoal], de forma abrangente e genérica, fazendo antever o sentido da decisão sobre tal matéria de facto, o que acresce advir da falta de motivação na sua apreciação crítica.
Vale por dizer, consequentemente, que importa anular a decisão recorrida neste segmento, a fim de que no Tribunal a quo se providencie pelo conhecimento dos factos indicados.
Corolário, o da mencionada prejudicialidade do conhecimento da emergência (ou não) da pretextada causa de exclusão da ilicitude, qual seja de colisão de deveres por parte do arguido em causa.
Recurso do recorrente B....
3.9. Como sobressai das conclusões deste recorrente, a argumentação essencial que opõe contra a decisão recorrida, traduz-se em obter uma alteração à matéria de facto para, com base nela, depois comprovar a inverificação de pressupostos indispensáveis à emergência do ilícito por cujo cometimento terminou condenado, rectius um seu elemento objectivo – o de que agiu como representante da sociedade arguida –, e um seu elemento subjectivo – o de que como tal o haja feito voluntariamente –.
Vejamos, pois.
Desiderato primeiramente prosseguido – quanto ao primeiro segmento de impugnação da matéria de facto –, o de que se tenham por não provados os factos considerados como provados nos pontos 2 a 12 da decisão recorrida, e, por outro lado, que os aí não provados da sua contestação [als. b) a g)], sejam agora acolhidos como provados.
Como bem se intui, torna-se mister que o recorrente defina, com precisão, o fundamento pelo qual se insurge contra a decisão proferida em matéria de facto, sendo indevido, por exemplo, vacilar entre a invocação de uma deficiente apreciação da prova e a invocação do vício de erro notório na apreciação da prova, de tal forma que não deixe perceber se entende que os factos que controverte sejam acolhidos na versão que propugna por força de uma reapreciação da prova ou da verificação do vício. Dito de outro modo, o recorrente deve estruturar o seu pensamento sem confundir, v.g., um pedido de reapreciação com erro notório na apreciação da prova.
Tudo porque, sabemos, se mostram questões distintas, embora ambas ao serviço do recurso relativo à matéria de facto.
Na situação da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o art.º 412.º, do Código de Processo Penal, a apreciação pretendida implica uma reapreciação da prova produzida e documentada, dentro dos condicionalismos legais, infra referidos; no caso da impugnação restrita a impugnação atém-se à letra da decisão, só por si ou conjugada com regras de experiência comum, não interferindo na análise quaisquer outros dados, ainda que resultantes do julgamento ou documentados nos autos.
Assim, existe erro notório na apreciação da prova quando, considerado o texto da decisão recorrida, por si, ou conjugado com as regras de experiência comum, se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal. Ocorre o vício, quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica normal, revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados entre si, ou entre os provados e os não provados, ou traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, insustentável, e por isso incorrecta. [Acórdão do STJ, de 24 de Março de 2004, proferido no processo n.º 03P4043, em www.dgsi.pt.]
Este vício prende-se com os limites a que está sujeito o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127.º, do Código de Processo Penal, que «não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável: Há de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão.» [Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 1165/96 e 464/97]
O princípio da livre apreciação da prova «não deve traduzir-se em mais que não aprisionar o juiz em critérios preestabelecidos pela lei para formar a sua convicção, mas não para o isentar de obediência às regras da experiência e aos critérios da lógica. Neste sentido, um elemento de legalidade entra de novo no problema da apreciação da prova. Ainda que não fixadas pela lei, ele implica, na verdade, que certas regras de direito (nas quais podem transformar-se as leis da lógica e da experiência) presidam à avaliação da prova pelo juiz, mesmo onde falamos de livre convicção. Ideia que implica, por um lado, a possibilidade de apreciar em via de recurso a violação de tais leis na apreciação da prova e, por outro lado, (…) conduz à necessidade de motivar as decisões em matéria de facto.» [A... Correia, em «Les Preuves en Droit Penal Portugais», na RDES, XIV, Janeiro-Junho/ 1967, 1-2, 29].
Ora, cingindo-nos apenas ao texto da decisão recorrida a justificação da matéria de facto fixada – quer provada, quer não provada – não suscita dúvidas quanto à sua adequação face às regras de experiência comum.
O que, é certo, não preclude que outro tanto suceda quando feita uma “reapreciação da prova”. Esta reapreciação depende do cumprimento de requisitos de forma e conhece condicionantes e limites.
No que se refere a requisitos formais, o recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto tem que dar cumprimento a um tríplice ónus, a saber:
- Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência;
- Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe. Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o n.º 4 do citado art.º 412.º);
- Indicar que provas pretende que sejam renovadas, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação.
O que se pretende é a delimitação objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos a que o recorrente se propõe. Impõe-se-lhe o dever de tomar posição clara, nas conclusões, sobre o objecto do recurso, especificando o que, no âmbito factual, pretende ver reponderado, assim como na hipótese de renovação, especificando as provas que devem ser renovadas [al. c) do n.º 3 do mesmo art.º 412.º]. «Esse imprescindível e indeclinável contributo do recorrente para a pedida reponderação da matéria de facto corresponde a um dever de colaboração por parte do recorrente e a sua responsabilização na demarcação da vinculação temática deste segmento da impugnação, constituindo tais formalidades factores ou meios de segurança, quer para as partes quer para o Tribunal.» [Acórdão do STJ, de 5 de Dezembro de 2007, no processo n.º 3460/07]. «O ónus conexiona-se com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.» [Acórdão do STJ, de 8 de Março de 2006, no processo n.º 185/06-3.ª]. «A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso.» [Acs. do STJ, de 10 de Janeiro de 2007, no processo n.º 3518/06-3.ª e de 15 de Outubro de 2008, no processo 2894/08-3.ª]
Antes de prosseguirmos, definamos as condições em que é permitida a alteração da matéria de facto, pelo Tribunal da Relação.
O recurso da matéria de facto vem concebido pela lei como remédio jurídico e não como instrumento de refinamento jurisprudencial. [Simas Santos e Leal Henriques, em “Recursos em Processo Penal” 7.ª edição, actualizada aumentada, 2008, pág. 105].
Dito de outro modo o recurso da matéria de facto não foi concebido como instrumento ao serviço da realização de novo julgamento, com reapreciação de toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento efectuado na primeira instância não tivesse existido. Trata-se, tão-somente, de um instrumento concebido para a correcção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente discriminados pelas partes [Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/206, de 18 de Janeiro de 2006, no processo 199/2005, acedido em www.tribunalconstitucional.pt, e Acs. do STJ de 27 de Janeiro de 2009, e de 20 de Novembro de 2008, tirados respectivamente nos processos 08P3978 e 08P3269, em www.dgsi.pt, e de 17 de Maio de 2007, na CJSTJ, 2007, II, 197]. A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção “cirúrgica”, no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação. «O tribunal superior procede então à reanálise dos meios de prova concretamente indicados (ou as questões cuja solução foi impugnada) para concluir pela verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e daí pela alteração ou não da factualidade apurada (ou da solução dada a determinada questão de direito).» [aludido Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/2006, publicado no DR, II.ª Série, de 13 de Abril de 2006]
Por força do princípio da livre valoração da prova, previsto pelo art.º 127.º, do Código de Processo Penal, Salvo quando a lei dispuser de forma diferente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e livre convicção do julgador.
Regras de experiência são regras que se colhem, ao longo dos tempos, da sucessiva repetição de circunstâncias, factos e acontecimentos que se sedimentam no espírito do homem comum como juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.
Livre convicção é um meio de descoberta da verdade, através da livre apreciação, subordinada à razão e à lógica, mas isenta de prescrições formais exteriores. Não se confunde com uma afirmação infundamentada da verdade, puramente impressionista ou emocional.
Na tarefa da valoração da prova exige-se ao julgador uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, nas da lógica e da ciência, sem descurar a percepção – que a imediação potencia – da personalidade do depoente.
A jurisprudência penal entende, unanimemente, que a reapreciação da prova na segunda instância, deverá limitar-se a controlar o processo da convicção decisória da primeira instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação da decisão. Na apreciação do recurso da matéria de facto, o Tribunal de segundo grau não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de manifesto erro na apreciação da prova. O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade.
Assim, o ponto de partida para sindicar a observância do princípio da livre apreciação da prova, é a fundamentação da decisão de facto feita em primeira instância, nomeadamente os motivos de facto entendidos como «os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os meios de prova apresentados em audiência.» [Marques Ferreira, em «Jornadas de Direito Processual Penal/O novo Código de Processo Penal», 228 e ss.]
Por outro lado, reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. Os condicionamentos ou imposições a observar no caso de recurso de facto, referidos nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º constituem mera regulamentação, disciplina e adaptação aos objectivos do recurso, já que a Relação, como se referiu, não fará um segundo julgamento de facto, mas tão só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham sido referidos no recurso e às provas que imponham (e não apenas sugiram ou permitam outra) decisão diversa indicadas pelo recorrente.
Delimitado o campo de intervenção deste Tribunal, atenhamo-nos à singularidade do caso em apreço.
Como resulta, quer da motivação, quer das suas conclusões, o recorrente apenas parcialmente deu cumprimento ao que a lei determina. Na verdade, pese embora tenha elencado os concretos factos controvertidos na motivação, certo é que não os transportou para as conclusões; por outro lado, referindo específicas passagens dos depoimentos que levariam à conclusão que almeja alcançar, não procedeu todavia à sua concreta localização nos suportes técnicos.
Concedendo-se que tais circunstâncias poderiam ser ultrapassadas com recurso ao convite facultado pelo n.º 3, do art.º 417.º, temos como despiciendo essa iniciativa, tudo porquanto o que em rigor se nos depara é uma mera manifestação da divergência do arguido quanto à convicção que o Tribunal formou. A reapreciação da prova não se cinge à sobreposição de depoimentos eventualmente prestados em sentido contrário no decurso da audiência. Tal dissonância é frequente e, tarefa cometida ao julgador, a de os peneirar de acordo com as elencadas regras do art.º 127.º, não colhendo, desde que observadas, a simples apresentação/contraposição de uma outra versão dos factos.
No caso em apreço, a convicção do Tribunal a quo – justificada na sentença, pela forma como procedeu ao exame crítico das provas – encontra-se fundamentada na prova produzida em audiência, conjugada com as regras da experiência comum. E esta diz-nos exactamente que a gerência exercida numa sociedade que se integre num grupo empresarial possibilita que ela se não mostre exaustiva, pois que precisamente o que se visa implementar é a economia de custos e proventos permitida por tal associação; o que não redunda no exonerar de responsabilidades, pois que porquê então a nomeação como gerente de uma sociedade a que se seria totalmente alheio?
Improcede, na conformidade, o recurso relativo à alteração da matéria de facto e invocação de vícios da sentença e, com eles, surpreende-se, a preclusão do demais invocado – segmento de impugnação de direito –, uma vez que pressuposta a reclamada e não lograda alteração ao acervo fáctico.
Recurso do recorrente Instituto de Segurança Social, I.P.
3.10. No que tange a este último recurso, a questão a decidir consiste unicamente em saber se, na condenação cível dos demandados destes autos, os juros de mora vencidos e vincendos devem ser calculados à taxa legal, estabelecida no art.º 559.º, n.º 1, do Código Civil e nas respectivas Portarias para as quais remete, e contados desde a data da notificação do pedido cível, ou, antes, nos termos dos art.ºs 1.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de Março.
A resposta a tal questão tem sido encontrada no sentido pugnado pelo recorrente em sucessivos decisões com argumentos que compreendemos e subscrevemos na íntegra.
Como sempre se salientou a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil quantitativamente e nos seus pressupostos embora, processualmente, seja regulada pela lei processual penal,
como decorre do preceituado nos art.ºs 129.º, do Código Penal, e 71.º a 84.º, do Código de Processo Penal.

Os arguidos/demandados foram aqui condenados pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, por não terem entregue ao demandante contribuições deduzidas ás retribuições dos trabalhadores e dos órgãos estatutários da sociedade arguida, sendo por isso a sua responsabilidade civil de natureza extracontratual e proveniente de um crime.
Porém, por outro lado, o regime indemnizatório em situação de incumprimento da relação jurídica contributiva perante a segurança social encontra-se definido em diploma legal que contém disciplina própria em matéria de juros moratórios.
Com efeito, nos termos do n.º 1 do art.º 16.º do Decreto-Lei n.º 411/91, de 17 de Outubro, pelo não pagamento das contribuições à segurança social nos prazos estabelecidos são devidos juros de mora por cada mês de calendário ou fracção. Sendo a taxa de juros de mora, nos termos do n.º 2 da mesma disposição legal, a estabelecida para as dívidas de impostos ao Estado aplicada da mesma forma. Por seu turno, o art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de Março, diploma que veio alterar o regime dos juros de mora das dívidas ao Estado e outras entidades públicas estabelece que a taxa de juros de mora por dívidas ao Estado e outras entidades públicas, é de 1% ao mês se o pagamento se fizer dentro do mês de calendário em que se verificou a sujeição aos mesmos juros aumentando-se uma unidade por cada mês de calendário ou fracção se o pagamento se fizer posteriormente.
Num caso como o dos autos, deparam-se assim dois regimes susceptíveis de merecerem aplicação quanto ao vencimento e taxa de juros: a regra “geral”, da “taxa legal” a contar da notificação para contestação a que alude a sentença recorrida e o normativo especial aplicável ás dividas ao Estado e entidades públicas e, por força do disposto nos art.ºs 16.º, do Decreto-Lei n.º 411/91, e 3.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 19 de Março, ás dividas por prestações da segurança social ao aqui demandante.
Sendo assim, tem de ser dada prevalência à lei especial, em detrimento da lei geral. [Neste sentido, v.g. os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 6 de Dezembro de 2004, rel. Maria Augusta Fernandes, na Colectânea, 2004, V; do Tribunal da Relação do Porto, de 18 de Maio de 2005, rel. Alves Fernandes; do Tribunal desta Relação de Coimbra, de 30 de Novembro de 2005, que nós próprios relatámos, ambos acessíveis in www.dgsi.pt, citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 3 de Março de 2010, Colectânea, 2010, II, rel. João Lee Ferreira, e demais aqui mencionados]
Aliás, como igualmente se decidiu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, tendo por relator o ora M.mo Desembargador-Adjunto Orlando Gonçalves, de 19 de Setembro de 2007, in Colectânea, 2007, IV, pág. 52, «De acordo com o art.º 7.º, n.º 3, do Código Civil, a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.
No caso em análise, a data de constituição dos demandados em mora resulta de legislação especial e nenhuma lei aponta inequivocamente que o legislador quis afastar a aplicação das taxas de juros moratórios que constam da mesma legislação especial.
(…)
Aliás, não seria razoável que, prevendo o art.º 71.º do Código de Processo penal, o princípio da adesão obrigatória como regra, fossem apenas concedidos no processo penal os juros de mora indicados nas Portarias a que alude o art.º 559 do Código Civil, obrigando as instituições de Segurança Social a instaurarem novo processo noutros Tribunais para obterem o pagamento da diferença de juros moratórios tendo em conta a legislação espacial sobre esses juros.
No sentido acabado de referir se pronunciou o Tribunal da Relação de Coimbra, designadamente nos acórdãos de 3 de Maio de 2006 (C.J., n.º 191, pág. 42) e de 30 de Novembro de 2005, no processo n.º 3500/05 (www.dgsi.pt.jtrc) e nos processos n.ºs 1533/05-4, e 1525/02.9 TACBR-A.C1; o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 11 de Outubro de 2006 (C.J., n.º 193, pág. 206); e o Tribunal da Relação de Guimarães, no acórdão de 17 de Junho de 2002 (C.J. ano XXVII, 3.º, pág. 293).» (itálico nosso)
Em conclusão, deverá ser aplicado o regime próprio das dívidas à Segurança Social e o recurso do demandante merece provimento.
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IV. Decisão.
Tudo conjugado, decide-se neste Tribunal em:
- Rejeitar o recurso interlocutório interposto pelo arguido A....
- Anular a sentença recorrida na parte em que se não pronunciou especificadamente sobre os factos invocados por esse mesmo arguido nos art.ºs 30.º a 35.º e 41.º a 46.º da sua contestação, devendo reabrir-se a audiência para tal fim e decidir-se depois em conformidade quanto à emergência (ou não) da falada causa justificativa dos factos por si praticados.
- Julgar procedente o recurso do demandante cível e, em consequência, revogar parcialmente a sentença recorrida no que concerne, condenando os demandados (por enquanto à excepção do arguido A..., visto o teor da decisão que antecede, mas sem prejuízo da posterior extensão ao mesmo da responsabilidade ora consignada) a pagarem-lhe a peticionada quantia de € 35.074,35, acrescida dos juros de mora vencidos, calculados nos termos dos art.ºs 1.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de Março, e á taxa fixada neste diploma, ut 3.10. supra.
- No demais, julgar improcedentes os recursos interpostos.
Custas:
- Do recurso interlocutório, pelo recorrente A..., fixando-se a taxa de justiça devida em 2 UCs.
- Dos recursos interpostos pelos arguidos quanto à sentença final, pelos arguidos recorrentes, à excepção do recorrente A..., fixando-se a taxa de justiça individualmente devida em 3 UCs.
- As custas atinentes ao pedido de indemnização serão suportadas tal como fixado na 1.ª instância, ressalvado o possível eximir que possa advir de eventual irresponsabilização do demandado A....  
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Brízida Martins (Relator)
Orlando Gonçalves


[1] Trata-se de lapso manifesto a menção a “ambos”, pois há-de reportar-se a “todos” na economia do que demais consta da matéria de facto provada e não provada.