Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2315/13.9TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
DESTITUIÇÃO DE GERENTE
JUSTA CAUSA
ALTERAÇÃO DE FACTO
Data do Acordão: 07/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - 1ª SEC.COMÉRCIO - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 64, 65, 257 CSC, 607 CPC
Sumário: 1.No ordenamento jurídico nacional vigora o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz, plasmado no art. 607º, nº 5, 1ª parte, do NCPC, decidindo o Juiz segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.

2. Nesta apreciação livre há que ressalvar que o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, os princípios da lógica, ou as regras científicas.

3. É contraditória a decisão sob pontos determinados da matéria de facto quando exista oposição entre diversas respostas, ou seja, quando têm um conteúdo logicamente incompatível;

4. O conceito de justa causa, para efeitos de destituição de gerente, previsto no art. 257º, nº 6, do CSC, deve ser interpretado com o fim primacial de protecção da confiança; no sentido de que perante determinada situação fáctica, e atendendo aos interesses da sociedade e do gerente, se torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o gerente violou gravemente os seus deveres, praticando actos nocivos para a sociedade.

5. Deve ser destituído, por justa causa, o único gerente de uma sociedade por quotas com apenas dois sócios, que não elaborou e submeteu à assembleia geral da sociedade, o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos ao exercício anual, em violação do seu dever legal específico previsto no art. 65º, nº 1, do CSC, nem convoca a respectiva assembleia geral, ou constitui a mesma, para os sócios deliberarem sobre o dito relatório de gestão e contas do exercício (em violação, igualmente, dos arts. 65º, nº 5, 67º, nº 1, 246º, nº 1, e), e 248º, nº 3, do CSC), condutas que são também tipificadas nos arts. 515º e 528º do CSC como crime e contra-ordenação.

6. E assim, também, privando o outro sócio de toda e qualquer informação sobre a situação de gestão da sociedade e suas contas, sua situação patrimonial e financeira, eventual atribuição de lucros e tratamento de prejuízos, etc., referentes ao exercício anual.

Decisão Texto Integral:

I - Relatório

1. M (…), residente em Leiria, intentou a presente acção especial de destituição judicial de titular de órgão social contra MA (…), residente em Leiria, e a sociedade D (…) Lda., com sede em Leiria, pedindo a suspensão e destituição com justa causa da requerida da gerência desta última sociedade.

Para tanto alegou, em síntese, que ele e a 2ª R. são os únicos sócios, com quotas idênticas, na referida sociedade e que esta se obriga apenas com a assinatura da 2ª R.; que a mesma não convocou qualquer assembleia geral para apreciação e votação do relatório de gestão e das contas de exercício do ano de 2012 da 1ª R.; a 2ª R. não entregou ao TOC da 1ª R., entre Abril e o mês de Novembro de 2012, os documentos contabilísticos desta última, não obstante as insistências daquele, que vieram a motivar a renúncia ao exercício de funções por parte do mesmo; a única conta bancária da 1ª R. no espaço de 2 meses evidenciou uma diminuição de cerca de 40.000 €; a 1ª R., representada pela 2ª R., vendeu um imóvel de sua propriedade em 8.2012 pelo valor de 90.000 €, quando o seu valor tributário seria de 119.060 € e o valor de mercado de 140.000 €. A não elaboração e submissão à assembleia geral das contas sociais, por si só, representa uma omissão grave quer para a sociedade, quer para os sócios, quer para os credores, quer ainda para a economia nacional, além de o gerente praticar a contra-ordenação prevista e punida pelo art. 528º do CSC.

Foi determinada a suspensão imediata do exercício de funções de gerente da 2ª R. na 1ª R.

As RR deduziram oposição, por excepção dilatória, advogando a ilegitimidade passiva da 1ª R., e por excepção peremptória, aduzindo que a aprovação das contas respeitante ao ano de 2012 teve lugar na Assembleia Geral realizada a 9.3.2013 (acta n.º 45) e que a declaração de IES da sociedade e depósito da prestação de contas de 2012 foram efectuadas pelo TOC da 1ª R., no respectivo serviço de Finanças e Conservatória do Registo Comercial de Leiria, respectivamente, no dia 21.6.2013, impugnando a demais matéria alegada. Pediram a condenação do A. como litigante de má fé e concluíram pedindo a improcedência da acção.

O A. respondeu aceitando haver a aludida ilegitimidade, e alegando ser falso que tivesse sido realizada a referida AG, com aprovação de contas, ou que tivesse assinado a suposta acta.

Por decisão incidental, foi julgada procedente a excepção dilatória de ilegitimidade processual passiva da 1ª R., e, como tal, absolvida da instância.

Mais se decidiu julgar improcedente a oposição deduzida pela requerida M (...)à decisão da sua suspensão do exercício de funções de gerente, que, assim, foi mantida  

*

A final foi proferida sentença que julgou procedente a acção, sendo consequentemente decretada a destituição da requerida MA (…) do exercício das funções de gerente na sociedade D (…), Lda. 

*

2. A R. MA (…) interpôs recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

3. Inexistem contra-alegações.

II - Factos Provados

1. Por escritura pública lavrada no dia 24 de Junho de 1987, na secretaria notarial de Leiria, perante a notária do primeiro cartório, licenciada MV (...), M (…) e MA(…) casados entre si no regime de comunhão de adquiridos, declararam que constituíam uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, da qual ficam sócios, com o capital social de um milhão de escudos, que adota a denominação de D (…) Lda., sede em Marrazes, em Leiria, tendo por objeto a atividade de construção civil e compra e venda de imóveis.

2. Atualmente o capital social é de 49.879,80 € dividido por duas quotas no valor de 24.939,90 €, que são tituladas pelos únicos sócios, M (…) e MA (…)

3. E encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Leiria sob o n.º 501.871.829.

4. Do pacto social que é parte integrante da escritura referida em 2.1.1., decorre do seu artigo 8.º que “Todos os sócios ficam desde já nomeados gerentes.” E do artigo 9.º n.º 1 que “a sociedade é administrada e representada por um dos gerentes (…).

5. Pela Ap. 3 de 11.09.2007, o AA fez inscrever no registo a renúncia à gerência da sociedade D (…) Lda..

6. A gerência tem sido exercida desde então, e até à sua suspensão de funções nos termos do presente processo, pela 2.ª RR.

7. O exercício económico da 1ª RR corresponde ao ano civil e as suas contas não estão sujeitas a regimes especiais, designadamente à obrigação de consolidação ou ao método da equivalência patrimonial, pelo que a 2ª RR estava obrigada a elaborar e a apresentar à assembleia geral da 1ª RR o relatório de gestão e contas e os demais documentos de prestação de contas até ao dia 31 de Março do ano subsequente.

8. Até ao momento, a 2ª RR não convocou ou constituiu validamente a assembleia geral da 1ª RR para apreciação e votação do relatório de gestão e contas do exercício de 2012.

9. Entre meados de Abril e Novembro de 2012, a 2ª RR não entregou ao TOC da 1ª RR, nem mesmo quando lhe foi solicitado, repetidas vezes, por este último, os documentos contabilísticos desta.

10. Chegando mesmo, por mais do que uma vez, a pedir à 2ª RR que marcasse uma reunião com os sócios da 1ª RR, para dar conhecimento da inexistência de escrita desde Abril de 2012 e assim forçar a regularização da situação.

11. Este TOC prestava os seus serviços à 1ª RR desde a constituição desta.

12. Sem que a 2ª RR tenha acedido na marcação da requerida reunião.

13. Em Novembro de 2012, o TOC da 1ª RR comunicou à 2ª RR, na qualidade de gerente, que dadas as sobreditas omissões e falta de resposta às suas interpelações deixaria de prestar os seus serviços àquela a partir de Dezembro de 2013, disponibilizando-se, apesar de tudo, para encerrar a contabilidade da mesma relativa a 2012, caso lhe fossem entretanto fornecidos os documentos em falta.

14. O que não aconteceu, tendo renunciado ao exercício das suas funções sem que a escrita desta se mostrasse devidamente concluída.

15. A conta bancária n.º (...) da Caixa Geral de Depósitos é titulada pela 1ª RR, sendo movimentada apenas com a assinatura da 2ª RR.

16. Entre o dia 09.10.2012 e 28.12.2012 o saldo dessa conta passou de € 41.174,89 para € 1.422,43.

17. A 02.11.2012 foi daí transferida a quantia de € 20.000,00 para subscrição de um Fundo, e a 14.12.2012 foi resgatado desse Fundo a quantia de € 5.000,00.

18. Por escritura designada de compra e venda celebrada no Primeiro Cartório Notarial de Competência Especializada de Leiria a 02.08.2012, a 1ª RR, representada pela 2ª RR, vendeu a C (…) pelo preço de € 90.000,00, que aquele declarou comprar, a fração autónoma designada pela letra C, correspondente ao rés-do-chão e a duas garagens na cave, referenciadas pela letra C, destinada a comércio, do prédio sito na MV (...), concelho de Leiria, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria sob a ficha n.º 5118 da dita freguesia e inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo 7351º.

19. O seu valor patrimonial à data era de € 119.060,00.

20. Em momento anterior à renúncia do AA à gerência, a 1ª RR dedicava-se em exclusivo à gestão e manutenção dos seus imóveis, não exercendo outras atividades, como seja a de construção ou de compra de imóveis, nem tendo trabalhadores a seu cargo.

21. A prestação de contas da sociedade requerida respeitante ao ano de 2012 foi efetuada, por meio de depósito, na Conservatória do Registo Comercial, no dia 21.06.2013.

*

Factos não provados

(…)

6. Que no dia 09.03.2013, em assembleia geral, a sociedade tenha aprovado as contas do ano de 2012, nos termos documentados na sua acta n.º 45.

(…)

*

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Fundamentos que justifiquem a destituição da 2ª R. do cargo de gerente da 1ª R. 

2.1. A recorrente impugna os factos provados 8. a 10. e 12. a 14., e o não provado 6., pretendendo que aqueles passem a não provados e este a provado. Baseia a sua impugnação no depoimento das testemunhas (…) por si arroladas, no depoimento de (…), arrolada pelo A., que descredibiliza por um lado e valoriza noutra parte, e ainda no doc. nº 4 junto com a p.i.

Foi, igualmente, com base nesses depoimentos, em prova documental e prova pericial que o julgador de facto se baseou para responder a tais factos. Como se pode ver da respectiva motivação que ora se transcreve:

“O Tribunal para dar como provados os factos consignados como tal valorou em termos positivos os documentos autênticos e particulares não impugnados pelas partes; o elemento de prova pericial tendo por objeto a letra do AA aposta na acta 45 da 1.ª RR; e ainda à prova testemunhal naquilo em que ela se mostrou consistente, lógica e idónea para o complemento, contextualização ou corroboração daqueles elementos probatórios, tudo isto analisado à luz das regras da experiência comum e dos cânones impostos pela vida societária e das regras por que se pauta aquele que exerce funções de gerente.

Concretizando.

(…)

Quanto ao facto referido em 3.1.8. o mesmo mostra-se articulado com aquele outro vertido em 3.1.20 do qual resulta que as contas da 1.ª RR apenas foram depositadas naquela data e não antes, portanto para lá do limite legalmente estabelecido, e, por outro lado, pelo parecer pericial que foi realizada à reputada assinatura do AA aposta na alegada acta n.º 45, de uma suposta assembleia geral da 1.ª RR, ocorrida a 09.03.2013, melhor documentada a fls.89, em que se conclui, sem que o tribunal tenha quaisquer elementos qualificados que contrariarem aquele juízo pericial (fls.287 a 305) - num juízo probabilístico inferior a 50% - ser pouco provável que a letra do texto da referida acta e assinatura nela aposta e atribuída ao AA haja sido feita pelo seu punho (fls.295). Razão pela qual foi dado como não provado o facto referido em 3.2.6.

O depoimento em sentido diverso da testemunha (…), filho do AA e da 2.ª RR, alegando a fidedignidade de tal acta, foi desvalorizado e não teve suficiente força para infirmar aquele relatório pericial face ao contexto familiar disfuncional vivenciado (não relacionamento com o AA) e a perspetiva parcial que mostrou ter do caso, não obstante não ser sócio ou funcionário da firma em questão.

Quanto aos factos dados como provados de 3.1.9 a 3.1.13 foram-no com base no depoimento imparcial, direto, objetivo e circunstanciado da testemunha (…), TOC da sociedade requerida desde a sua constituição e até meados de Novembro de 2012, altura em que renunciou àquelas funções, conhecido do AA e 2.ª RR. Na verdade relatou de forma concatenada com os elementos documentais de fls.26 a 29, cuja autoria atestou em audiência, o que reforçou a sua credibilidade, que a 2.ª RR no decorrido ano de 2012, meados de Abril, enquanto gerente da 1.ª RR, deixou de lhe fornecer os elementos documentais necessários à elaboração da escritura e eventual liquidação de quantias a entidades terceiras, o que veio a motivar a sua decisão de renunciar às suas funções, perante a reiteração daquele comportamento omissivo e a quebra de confiança gerada no decurso da falta de resposta às suas missivas e apelos.

Não obstante, confirmou que as obrigações contabilísticas e fiscais foram sendo por si tempestivamente lançadas (IES e IRC) até à sua saída (Segurança Social e processamento de salário), mas que as obrigações escriturais que dali decorriam e também do giro comercial da sociedade (v.g. documentos relativos à liquidação de seguros, imposto de circulação das viaturas afetas à gerência e inerentes despesas de manutenção, bem como a liquidação do IMI relativo aos imóveis detidos pela sociedade) não eram por si elaborados…

Por fim, a testemunha esclareceu a forma como se processou a passagem da pasta ao novo TOC, a testemunha (…), ainda hoje TOC da 1.ª RR, e cujas declarações a respeito da transição foram também convergentes com as daquela testemunha.

(…)

*

Quanto aos factos dados como não provados os mesmos decorrem da ausência de prova concludente a seu respeito e da operacionalização do ónus da prova …

(…)

O facto dado como não provado em 3.2.6 já foi fundamentado supra.

(…)”

Ouvimos os aludidos depoimentos gravados em CD. E quanto à matéria em análise resulta o seguinte.

(…)

Desta sorte, ponderando todos os elementos probatórios indicados e analisados criticamente não se descortina motivo para alterar a decisão da matéria de facto proferida pelo julgador a quo, já que agindo ele e agindo nós sob o princípio da livre apreciação da prova (art. 607º, nº 5, 1ª parte e 663º, nº 2, do NCPC) é esse o melhor resultado decisório de facto a que se chegou (salvaguardando 2 pequenas ressalvas que infra serão explicitadas), sem violação das regras da lógica e da experiência.

Efectivamente estando no campo de aplicação do princípio da livre apreciação da prova, plasmado no normativo citado, o juiz decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.

Sendo certo que, como em qualquer actividade humana, existirá sempre na actuação jurisdicional uma margem de incerteza e aleatoriedade, no que concerne à decisão sobre a matéria de facto, o que importa, pois, é que se minimize o mais possível tal margem de erro, tendo, porém, o sistema válvulas de segurança. Na verdade, nesta apreciação livre há que ressalvar que o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, dos princípios da lógica, ou das regras científicas (vide Anselmo de Castro, D. P. Civil, Vol. 3º, pág. 173, e L. Freitas, Introdução ao Processo Civil, 1ª Ed., pág. 157).

Ou dito de outro modo, “I - A criação da convicção do julgador que leva à decisão da matéria de facto tem de assentar em dados concretos, alguns dos quais elementos não repetíveis ou tão fiáveis na 2.ª instância como na 1.ª, em situação de reapreciação da prova. Na verdade, escapam à 2.ª instância, por princípio, a imediação e a oralidade que o juiz da 1.ª instância possui.

II - Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela” vide Ac. do STJ de 20.5.2010 (relator Mário Cruz), Proc.73/2002.S1, em www.dgsi.pt.

Do depoimento das testemunhas, acima apontado, e da prova documental e pericial referida resulta que a convicção do julgador, expressa na decisão da matéria de facto, tem sustentabilidade, sendo razoável, aceitável, compreensível o modo como fixou tal matéria de facto. Ora, considerando que o direito não é uma ciência exacta, nem se pode aspirar humanamente a que do depoimento testemunhal possam resultar certezas absolutas, no caso dos autos podemos extrair duas conclusões.

Uma, é que compulsando o que resulta do teor dos depoimentos testemunhais, acima indicados, e da prova documental e pericial referida, resulta para nós que nenhuma máxima da experiência, advinda da observação das coisas da vida, princípios da lógica, ou regra científica, foi violada. Outra, é que, tendo sustentabilidade e sendo compreensível a convicção do julgador de facto, é razoável, é de aceitar a decisão da matéria de facto que o julgador expressou (salvaguardando 2 pequenas ressalvas que infra serão explicitadas), pois também não mostra desconformidade à luz dos meios de prova indicados e produzidos nos autos.    

Decisão da matéria de facto que nós aceitamos, repetimo-lo, por, igualmente, podermos formular semelhante convicção.

Desta maneira, não se vê razão para julgar procedente a impugnação da matéria de facto, relativamente aos ditos factos provados 8. a 10., 11. a 14, e não provado 6., como pretende a recorrente, com as duas ressalvas seguintes. No facto 13., existe um lapso na referência a Dezembro de 2013, devendo indicar-se, antes, Janeiro de 2013, pois é esta a data que foi alegada pelo A. no art. 15º da p.i., é a referida no email do TOC (doc. nº 4 a fls. 26) e foi confirmada directamente pela testemunha (…) e indirectamente, atendendo ao início das suas funções, pela testemunha (…). E no facto 14., deve alterar-se a palavra “renunciado” para “cessado”, visto que o próprio A. (…) acabou por precisar que queria ser substituído por outro TOC, o que veio a acontecer.

Desta maneira, os aludidos factos 13. e 14. passarão a ter a seguinte redacção (a negrito, ficando a redacção anterior em minúsculas):

13. Em Novembro de 2012, o TOC da 1ª RR comunicou à 2ª RR, na qualidade de gerente, que dadas as sobreditas omissões e falta de resposta às suas interpelações deixaria de prestar os seus serviços àquela a partir de Janeiro de 2013, disponibilizando-se, apesar de tudo, para encerrar a contabilidade da mesma relativa a 2012, caso lhe fossem entretanto fornecidos os documentos em falta.

14. O que não aconteceu, tendo cessado o exercício das suas funções sem que a escrita desta se mostrasse devidamente concluída.

2.2. Defende a recorrente que o facto provado 8. é contraditório com o facto provado 21.

Respostas contraditórias são aquelas que derivam da oposição entre diversas respostas dadas aos pontos de facto controvertidos ou entre tais respostas e os factos já tidos por assentes previamente, ou seja, quando as respostas à matéria de facto tenham um conteúdo logicamente incompatível, quando não possam subsistir utilmente (vide neste sentido Abrantes Geraldes, Recursos em P. Civil, 2ª Ed., 2008, nota 10. ao artigo 712º, pág. 294/295). Ora, no nosso caso tais factos não estão em contradição entre si.

Na verdade, o facto 8. incide sobre a inexistência de convocação ou constituição válida de qualquer assembleia geral da sociedade para apreciar e votar as contas do exercício de 2012. Enquanto o facto 21. incide sobre o registo comercial do depósito de contas. Duas realidades não contraditórias entre si, por se reportarem a momentos diferentes: primeiro aprovam-se as contas; depois leva-se a registo, mediante depósito das mesmas.

O que se passa no caso são realidades divergentes, mas não opostas. Na verdade o facto 21. derivou da junção aos autos de certidão de registo comercial ( a fls. 88) que atesta terem sido depositadas as contas. Mais nada. O depósito das contas prestadas deve ser levado a registo (art. 3º, nº 1, n), e 15º, nº 1, do C. Reg. Comercial), a efectuar no prazo de 6 meses a contar do termo do exercício económico (art. 15º, nº 4, do mesmo código), por transmissão electrónica de dados e de acordo com os modelos oficiais, instruído com os documentos referidos no art. 42º, nº 1, do mesmo diploma, designadamente a acta de aprovação das contas do exercício, além do balanço, demonstração de resultados e cerificação legal de contas. Ora, nós não temos esses documentos originais, designadamente a referida acta para avaliarmos a sua genuinidade. Mas não deixa de ser estranho que se tendo provado que não tendo a recorrente convocado ou constituído validamente a assembleia geral da sociedade para apreciação e votação do relatório de gestão e contas do exercício de 2012, até não tendo a recorrente logrado provar que a sociedade aprovou as contas, nos termos documentados na sua acta nº 45 (facto não provado 6.), como é que aparecem prestadas as contas a título de registo comercial….. Estranho deveras.

Assim, temos simplesmente a efectivação de um registo que vale o que vale nos limites do que atesta. Mas que não contraria o teor do constante do facto 8.

Pelo que inexiste a invocada contraditoriedade.      

De resto, diga-se se a mesma existisse e se tornasse necessário superá-la o facto provado a eliminar seria o 21., por a primeira realidade substancial ser pressuposto da segunda realidade formal, pelo que se aquela não existe logicamente esta também não poderá existir ou subsistir.  

2.3. Finalmente concluiu a recorrente que foi violado o art. 607º, nº 4, do NCPC. Baseia esta conclusão na circunstância no facto de a sentença recorrida enfermar de erro de julgamento, por considerar provado que as contas da sociedade requerida foram prestadas e depositadas na Conservatória do Registo Comercial e simultaneamente considerar provado que a R./recorrente não convocou ou constituiu validamente a assembleia geral para apreciação e votação do relatório de gestão e contas do exercício de 2012. Já apreciámos, no ponto anterior, essa hipotética contradição, que a existir importaria erro de julgamento da matéria de facto e eventual necessidade de superação dessa contradição.   

No demais trata-se de uma alegação infundamentada, por incorrecta interpretação de tal normativo legal.

Desde logo o nº 4 contém duas partes, mas os recorrentes, sem rigor, limitam-se a falar no nº 4 por inteiro.

Dispõe tal normativo, no seu nº 4, 1ª parte, início, que na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os não provados. E na mesma 1ª parte, in fine, dispõe-se que o juiz deve, ainda, analisar criticamente as provas, indicar as ilações tiradas dos factos instrumentais, e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção. Na 2ª parte, estatui que o juiz tomará, ainda, em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as inerentes presunções legais ou por regras de experiência.

Como a recorrente não argui a sentença de nula por não ter especificado em concreto os fundamentos de facto e de direito, nulidade do art. 615º, 1, b), não se compreende como possa ter sido desrespeitado o citado art. 607º, nº 4, início da 1ª parte.

Por outro lado, também não se mostra desrespeitado o citado art. 607º, nº 4, 1ª parte, in fine, designadamente por falta de análise crítica das provas ou falta ou indevida fundamentação, pois como acima vimos e transcrevemos na decisão recorrida fundamentou-se adequadamente a decisão da matéria de facto. Aliás, a haver falta de fundamentação da decisão da matéria de facto poderia haver lugar à necessária fundamentação, nos termos do art. 662º, nº 2, d), do NCPC, o que a recorrente nem sequer pediu ou sugeriu.

Por último, não se percebe como podia estar violado tal preceito nº 4, quanto à referida 2ª parte, se a recorrente não invoca que facto ou factos estariam admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.

Assim, inexiste a violação de tal norma como apontado pela recorrente.

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Substantivamente prevê o nº 4 do art.257.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) que «Existindo justa causa, pode qualquer sócio requerer a suspensão e a destituição do gerente, em acção intentada contra a sociedade.»

O nº 6 do preceito citado exemplifica como justa causa de destituição, a violação grave dos deveres de gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respetivas funções.

Este normativo não define o conceito de justa causa para os efeitos aqui pretendidos – no entanto, encontramos ao longo do Código das Sociedades Comerciais vários casos aqui integráveis, quer expressamente – desde logo a violação do disposto no art.254.º nº 1, proibição de concorrência, nos termos do seu nº 5 – quer ainda por integração no conceito indeterminado “justa causa”.

O conceito indeterminado de justa causa, comum a vários ramos do direito, não faculta uma ideia precisa do seu conteúdo. Como escreve Menezes Cordeiro in Manual de Direito de Trabalho, pág.819, a propósito do conceito de justa causa de despedimento: “os conceitos indeterminados põem em crise o método da subsunção: a sua aplicação nunca pode ser automática, antes requerendo decisões dinâmicas e criativas que facultem o seu preenchimento com valorações. A concretização de um conceito indeterminado como o de justa causa obriga a uma ponderação dos valores vocacionados para intervir, perante o caso concreto.”

Continuando a citar o mesmo autor, este tipo de regulamentação remete o intérprete-aplicador para casuísmos os quais, devidamente ordenados, permitem repensar a fórmula indeterminada inicial. E conclui que “os conceitos indeterminados viabilizam fórmulas concretizadoras que, depois, devem ser confrontadas com o próprio conceito básico.”

E seguindo Raul Ventura (in Comentário ao Código das Sociedades Comerciais - Sociedades por Quotas, Vol. III, pg. 93), diremos que apurada a prática, pelos gerentes de factos integradores da prática de crimes ou contraordenações descritos no Título VII do Código das Sociedades Comerciais, tais factos, nos termos em que forem puníveis constituem violações graves dos deveres dos gerentes e justificam a destituição.

No mais, deve seguir-se o método sugerido por Menezes Cordeiro – o caso concreto e os factos apurados dar-nos-ão um complexo fáctico que, em fórmula concretizadora, deve ser confrontado com o conceito indeterminado de justa causa e desse confronto resultará a solução – sendo que o caso em apreço nos permite desde já, e seguindo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, generalizar o seguinte passo intermédio: existirá justa causa de destituição de gerente quando se apure a prática de actos que impossibilitem a continuação da relação de confiança que o exercício do cargo supõe ou, e por outras palavras, quando dos factos apurados resulte uma situação em face da qual, segundo a boa-fé, não seja exigível à sociedade a continuação da relação contratual com o gerente – cfr. Acs. STJ de 14/02/95, 13/11/99 e de 20/01/99 respectivamente in BMJ 444º-650, RLJ, Ano 132, pg. 41 e CJ-STJ-1999-I-37.

Há ainda que não esquecer que a justa causa representará, por via da regra, uma violação dos deveres contratuais. De entre estes deveres sobressaiam os que decorrem do disposto no artigo 64.º do CSC, segundo o qual os gerentes, administradores ou diretores de uma sociedade devem atuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores.

E a apreciação da violação dos deveres deve ser feita de forma objetiva.

Há ainda que precisar não ser necessário que se apure que os factos assinalados tenham sido praticados com intencionalidade de prejudicar a sociedade ou os demais sócios ou de obter para si um benefício – o que há que avaliar é a conduta e seus efeitos em termos do governo de uma pessoa coletiva, independentemente da intenção, ou caso assim se prefira, do dolo. O elemento subjetivo não é necessário, uma vez que a perspetiva tomada é a da sociedade e das consequências para esta da manutenção de uma determinada relação jurídica – não se trata de punir o gerente destituendo, mas antes de fazer cessar tal cargo quando tal não seja exigível à sociedade.

Munidos destes conceitos, passemos à análise do caso concreto.

Alegou o AA que (i) a 2.ª RR não convocou qualquer Assembleia Geral para apreciação e votação do relatório de gestão e das constas do exercício do ano de 2012, da 1.ª RR; (ii) a 2.ª RR não entregou ao TOC da 1.ª RR, entre Abril e o mês de Novembro de 2012 os documentos contabilísticos desta última, não obstante as insistências daquele junto da 2.ª RR, que vieram a motivar a renúncia ao exercício de funções por parte daquele em Novembro daquele ano; (iii) a não prestação de contas ao sócio da 1.ª RR; …

Estas matérias podem ser agrupadas nos seguintes grupos de questões:

- Convocação e apresentação de relatório e contas em sede de Assembleia Geral;

- Não prestação de contas da gestão de 2012;

(…)

*

4.3. Quanto à questão da não convocação e apresentação de relatório de gestão e contas em sede de Assembleia Geral, com a consequente não prestação de contas atempada da gestão de 2012 (até 31 de março).

A este propósito há que reconhecer que a alegação do AA continua a ser irrefutável e obter ganho de causa com respaldo probatório em sede de julgamento, porquanto, mais uma vez, evola com mediana clareza da prova produzida que desde meados de Abril de 2012 a 2ª RR deixou de entregar ao então TOC da 1ª RR os documentos contabilísticos desta – apesar das insistências desenvolvidas por este último nesse sentido, o qual acabou por cessar a prestação dos seus serviços à 1.ª ré em Dezembro de 2012, com esse mesmo fundamento, deixando a escrita desta por fazer desde Abril de 2012, apenas concluído pelo TOC que o sucedeu em meados de Dezembro e inícios de Janeiro do ano seguinte, segundo este informou, e o tribunal não tem razões para duvidar – nomeadamente os atinentes à compra e venda que teve lugar em Agosto de 2012.

Esta conduta da 2ª RR, nos termos descritos, é objetivamente suscetível de revelar a aparência de uma quebra de confiança com a sociedade, ao ponto de não lhe ser exigível a continuação da relação contratual com aquela, enquanto sua gerente, porquanto evidencia da sua parte a violação do dever de empregar a diligência de um gestor criterioso e ordenado, como imposto pelo artigo 64º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais.

Isto porque das duas uma. Ou confiava no TOC da 1.ª RR e neste caso não apresentou razão alguma para o sucedido, ou não confiando nele, como parece resultar da junção de alguns documentos ao processo e/ou da linha de inquirição assumida em julgamento, então sempre ficaria por explicar, a título de mera hipótese, o seu comportamento omissivo e a não destituição do mencionado TOC.

Por outro lado o artigo 65º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais preceitua que os membros da administração devem elaborar e submeter aos órgãos competentes da sociedade o relatório de gestão, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos a cada exercício anual; sendo certo que, nos termos do subsequente n.º 3, o relatório de gestão e as contas do exercício devem ser assinados por todos os membros da administração, sendo elaborados e assinados pelos gerentes ou administradores que estiverem em funções ao tempo da apresentação (cfr. subsequente n.º 4).

Isto reportado ao nosso caso quer significar que competia à 2.ª RR, enquanto gerente em exercício de funções da primeira, o dever de elaborar e assinar o relatório de gestão e as contas do exercício e, bem assim, apresentá-los ao órgão competente para apreciação no prazo de três meses a contar da data do encerramento de cada exercício anual, ou seja, até ao dia 31 do mês de Março do ano de 2013 – cfr. n.º 5, do citado artigo 65º, do Código das Sociedades Comerciais – por força, neste caso, do disposto nos artigos 246º, n.º 1, alínea e), 263.º n.º 1 e 214.º n.º 4 do Código das Sociedades Comerciais.

Da factualidade apurada resulta demonstrado que a 2ª RR não convocou a assembleia geral da 1ª RR para apreciação e votação do relatório de gestão e das contas do exercício desta de 2012. E esta conduta omissiva importa uma violação do dever enunciado no artigo 65º do Código das Sociedades Comerciais, a demandar uma presunção de culpa da 2ª RR, nos termos do disposto no artigo 799º, n.º 1, do Código Civil, que por si não foi ilidida.

Em linha com o que se acaba de dizer, o artigo 515º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, estatui que o órgão da administração que não convoque, ou convoque fora do prazo legal, a assembleia dos sócios para deliberarem sobre os documentos de prestação de contas, pode-se comprometer com a prática de um ilícito criminal, sem prejuízo da eventual responsabilidade contraordenacional a que possa ter lugar, cfr. decorre do disposto no artigo 528º, n.º 1, do mesmo diploma legal.

(…)

É incontornável que a 2.ª RR apresentou com a sua contestação uma suposta acta da 1.ª RR, datada de 09.03.2013, onde as contas de exercício da 1.ª RR haviam sido prestados e devidamente aprovados pelos dois sócios, quando, no âmbito deste processo, se concluiu que a assinatura que ali se mostrava aposta e se atribuía ao AA não havia sido feita pelo seu punho.

Também a falta de apresentação de contas no tempo e forma legais constitui um dos exemplos regularmente enunciados pela doutrina quando pretende especificar circunstâncias justificativas de destituição (in Comentário ao Código das Sociedades Comerciais - Sociedades por Quotas, Vol. III, pg. 93 e ss.).

E como vimos, as contas da 1.ª RR acabaram por ser depositadas na Conservatória do Registo Comercial no dia 21.06.2013 (3.2.21).

Conclui-se, pois, que a conduta omissiva e culposa da 2.ª RR, pela sua gravidade e consequências, nos termos acima expostos, torna inexigível à sociedade manter a relação de gerência.”.

Concorda-se na generalidade e no essencial com o discurso jurídico apresentado na decisão recorrida.

Ex abundanti importa relembrar que o que está em jogo no presente recurso é o facto, alegado como causa de pedir pelo recorrido, de a recorrente, como gerente da sociedade, não ter elaborado e submetido à assembleia geral da sociedade o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos ao exercício anual de 2012, nem sequer fora do tempo próprio, em violação dos seu dever legal específico previsto no art. 65º, nº 1 e 5, do CSC. Facto que se provou sob 8. Não estando em questão, ao invés do que a recorrente parece supor, a comunicação meramente administrativa do registo de prestação de contas previsto nos arts. 2º, nº 1, c), 5º, nº 1, e 9º, nº 1, do DL 8/2007, de 17.1 (reportado à informação empresarial simplificada - IES).

Recorde-se, também, que é motivo de justa causa designadamente a violação dos deveres de gerente, e que a mesma seja grave (citado art. 257º, nº 6). Sendo que os deveres de gerente tanto são os seus deveres legais específicos, como os estatutários, como os gerais de cuidado ou diligência de um gestor criterioso e ordenado (art. 64º, nº 1, a), do CSC).

Como standard da interpretação jurídica do aludido conceito de justa causa tem sido primacialmente indicada a protecção da confiança, no sentido de que não é exigível perante determinado circunstancialismo fáctico que a sociedade continue a relacionar-se com tal gerente, que continue a acreditar ou confiar nele. Haverá essa perda de confiança e verificar-se-á essa inexigibilidade quando o gerente pratica actos nocivos para a sociedade (vide neste sentido os acórdãos do nosso mais alto tribunal citados na decisão recorrida e ainda Acds. do STJ de 10.2.2000, BMJ 494, pág. 353, de 11.7.2006, Procs. 06B988 e 06A1884, do T. da Rel. Porto de 4.5.1998, Proc.9850268, de 2.11.1998, Proc.9851013, de 25.11.1999, Proc.9931280, todos disponíveis em www.dgsi. e de 9.4.2002, Proc.0121253, no aludido sítio e CJ, T. II, pág. 216).

Também a doutrina segue pelo mesmo diapasão. Menezes Cordeiro, Manual de D. das Sociedades, Vol. II, 2ª Ed., págs. 433/439, com exemplificação de vários casos tirados da jurisprudência nacional, defende que a consequência natural da quebra relevante da confiança, vista por um sócio comum, é a inexigibilidade da continuação da situação de gerência, inexigibilidade essa que advêm de uma ponderação global expressa pela tradicional fórmula “boa fé” (pág. 438). Por sua vez, Coutinho de Abreu, Comentário ao CSC, Vol. IV, nota 2.1. ao artigo 257º, pág. 119, professa que é justa causa a situação que, atendendo aos interesses da sociedade e do gerente, torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o gerente violou gravemente os seus deveres.  

Busquemos, então, se em concreto e objectivamente a conduta da recorrente-gerente constitui motivo de destituição com justa causa.    

Recorrendo mais uma vez aos ensinamentos doutrinais, vemos que M. Cordeiro, ibidem, dá como exemplo de ilicitude da conduta do gerente, que pode gerar justa causa de destituição, a violação dos deveres específicos legais, tal como o dever de relatar a gestão. Também Coutinho de Abreu, ibidem, refere como causa justa de destituição a violação desses deveres legais específicos, tal como a apresentação injustificadamente tardia dos relatórios de gestão e das contas do exercício, mencionando jurisprudência nesse sentido (os Acds. do STJ de 26.1.2012, no aludido sítio, e o da Rel. Porto de 24.3.2003, CJ, T. II, pág. 180, além do da mesma Relação de 9.4.2002 que mais atrás indicámos). Já Raul Ventura, Sociedades por Quotas, Vol. III, nota 2. ao artigo 257º, pág. 93, fornece como exemplos de comportamentos graves que podem reconduzir-se ao conceito de justa causa, para efeitos de destituição, a prática de factos integradores da prática de crimes ou contra-ordenações descritos no Título VII do CSC.

Ora, o que o caso concreto em análise nos comprova é isso mesmo. A recorrente, como gerente da sociedade, não elaborou e submeteu à assembleia geral da sociedade, o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos ao exercício anual de 2012, em violação do seu dever legal específico previsto no art. 65º, nº 1, do CSC. Não tendo convocado a respectiva assembleia geral, ou constituído a mesma, o que devia ter acontecido até Março de 2013, ou o mais tardar até Maio, para os sócios deliberarem e aprovarem ou não o dito relatório de gestão e contas do exercício, em violação dos arts. 65º, nº 5, 67º, nº 1, 246º, nº 1, e), e 248º, nº 3, do CSC. Condutas que são também tipificadas nos arts. 515º, nº 1 (omissão de convocação nos prazos legais de assembleia geral), e 528º do CSC (omissão do gerente de submissão no prazo legal aos órgãos competentes o relatório da gestão, contas do exercício e demais documentos), respectivamente como crime e contra-ordenação.

Trata-se, por isso, de conduta violadoramente grave dos seus deveres legais específicos como gerente, a justificar a destituição da recorrente.

Tanto mais que no caso concreto a sociedade é composta por apenas dois sócios, sendo a recorrente a única gerente, pelo que a omissão da apelante acaba por privar o recorrido de toda e qualquer informação sobre a situação de gestão da sociedade e suas contas, sua situação patrimonial e financeira, eventual atribuição de lucros e tratamento de prejuízos, etc., referentes ao exercício de 2012.     

Por fim dir-se-á que no próprio DL 250/12, de 23.11, que alterou o C.Reg. Comercial, e teve por fim reforçar a obrigação legal de registo das contas, se inscreveu no preâmbulo desse diploma que “A aprovação de contas é um ato societário fundamental e o seu registo essencial à segurança do comércio jurídico. A situação financeira das sociedades é basilar para a economia, dela dependendo também, em grande parte, a saúde financeira do País.

Não obstante, muitas são as entidades que, apesar de apresentarem a IES e cumprirem, assim, a obrigação fiscal, não declaram a aprovação de contas nem procedem ao pagamento da taxa de registo respetiva, ficando por cumprir a obrigação de registo da prestação de contas.

Ora, o incumprimento dessa obrigação legal origina um prejuízo com relevância nacional, já que a informação apresentada na IES não fica disponível para publicitação e eventual tratamento estatístico, impossibilitando a sua utilização em todo o seu potencial.

Esta situação, nalguns casos, será propositadamente gerada pelas entidades que não pretendem ver as suas contas expostas para consulta de terceiros, impedindo assim que credores e outros interessados tenham acesso à informação relativa à situação financeira da empresa. Tal comporta, entre outras coisas, uma séria desvantagem para as empresas cumpridoras, que publicitam a sua informação financeira, contribuindo para a transparência da actividade económica sem garantias de reciprocidade dos seus parceiros económicos. Isto é prejudicial para a segurança do comércio jurídico e para o desenvolvimento da economia, sendo prioritário colmatar esta omissão e permitir que a informação seja utilizada e publicitada, independentemente da feitura do registo da prestação de contas.

O presente diploma visa, pois, criar nos representantes das sociedades a consciência da gravidade da omissão do registo da prestação de contas, sendo atualmente pouco eficaz a instauração do processo de contraordenação por incumprimento do prazo do registo, previsto no artigo 17.º do Código do Registo Comercial.”.  Isto é, embora o objectivo primário seja compulsar as sociedades a lavrarem registo da sua prestação de contas, o legislador declara categoricamente que a aprovação das contas é um acto societário fundamental, pois o seu posterior depósito e registo é basilar para se conhecer a situação financeira das sociedades, com reflexos para a própria sociedade, para os sócios, para os credores e própria economia nacional. Daí decorre, também, a importância e relevo de relatar a gestão e apresentar contas do exercício, e convocar assembleia geral para deliberar sobre a sua aprovação. O que realça a necessidade imperiosa de praticar tais actos societários, e a gravidade da sua não inobservância.

O que a recorrente, como dissemos, não observou. Importa, pois, confirmar a sentença recorrida.    

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) No ordenamento jurídico nacional vigora o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz, plasmado no art. 607º, nº 5, 1ª parte, do NCPC, decidindo o Juiz segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto;

ii) Nesta apreciação livre há que ressalvar que o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, os princípios da lógica, ou as regras científicas;

iii) É contraditória a decisão sob pontos determinados da matéria de facto quando exista oposição entre diversas respostas, ou seja, quando têm um conteúdo logicamente incompatível;

iv) O conceito de justa causa, para efeitos de destituição de gerente, previsto no art. 257º, nº 6, do CSC, deve ser interpretado com o fim primacial de protecção da confiança; no sentido de que perante determinada situação fáctica, e atendendo aos interesses da sociedade e do gerente, se torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o gerente violou gravemente os seus deveres, praticando actos nocivos para a sociedade;     

v) Deve ser destituído, por justa causa, o único gerente de uma sociedade por quotas com apenas dois sócios, que não elaborou e submeteu à assembleia geral da sociedade, o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos ao exercício anual, em violação do seu dever legal específico previsto no art. 65º, nº 1, do CSC, nem convoca a respectiva assembleia geral, ou constitui a mesma, para os sócios deliberarem sobre o dito relatório de gestão e contas do exercício (em violação, igualmente, dos arts. 65º, nº 5, 67º, nº 1, 246º, nº 1, e), e 248º, nº 3, do CSC), condutas que são também tipificadas nos arts. 515º e 528º do CSC como crime e contra-ordenação;

vi) E assim, também, privando o outro sócio de toda e qualquer informação sobre a situação de gestão da sociedade e suas contas, sua situação patrimonial e financeira, eventual atribuição de lucros e tratamento de prejuízos, etc., referentes ao exercício anual.     

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas pela R./recorrente.

* Coimbra, 6.7.2016

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias