Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
123/12.3TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: DESCAMINHO DE OBJECTOS COLOCADOS SOB O PODER PÚBLICO
Data do Acordão: 11/13/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CRIMINAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 355º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: 1. - No crime de descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público, protege­-se a autonomia intencional do Estado, através da ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública;

2.- A ação típica neste crime pode revestir várias modalidades de conduta: destruir, danificar, inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair;

3.- A subtração ao poder público implica, de igual modo, a impossibilidade de à coisa vir a ser dado o destino que justificava a sua custódia oficial mas já não pressupõe qualquer conduta que ofenda a substância ou a integridade física da coisa. Integram-se, aqui, todas as condutas que sonegam a coisa ao poder público, sem que seja requerida uma intenção de apropriação;

4.- Não exigindo o tipo a intenção apropriativa, basta para que se cometa o crime, que se queira dispor da coisa em contravenção às obrigações de depositário e com o propósito de o subtrair ao domínio estatal e ao poder público inerente. Nesta perspetiva se antolha por isso que, por exemplo, o mero abandono de bens não constitui elemento bastante para concluir pela prática do crime.

Decisão Texto Integral: Precedendo conferência, acordam na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

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I. O arguido A... , entretanto já melhor identificado, submetido a julgamento junto do Tribunal a quo, sob a aludida forma de processo comum singular, isto porquanto alegadamente incurso, segundo oportuna acusação deduzida pelo Ministério Público, na prática de factos que o instituiriam na autoria material, de um crime descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, previsto e punido pelo art.º 355.º do Código Penal, findo o contraditório, acabou condenado como agente do assacado crime, na pena de 4 (quatro) meses de prisão que, nos termos do disposto nos art.ºs 43.º, n.º 1, 47.º e 71.º todos do mesmo Código Penal, se substituiu por idêntico número de dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros).

1.2. Porque irresignado com tal veredicto, recorre para este Tribunal, extraindo da motivação através da qual minutou o dissídio, a seguinte ordem de conclusões:

1. Os únicos elementos de prova existentes nos autos (certidão de fls. 2/4 e documento de fls. 73/4) mostravam-se insuficientes para a comprovação do elemento objectivo do ilícito apontado ao recorrente.

2. À míngua do preenchimento do tipo objectivo do ilícito, é evidente que não se pode afirmar o dolo ou, se afirmado, como parece resultar dos pontos 6 e 7 da matéria provada, o mesmo é irrelevante.

3. É indiferente, que, “na caracterização do tipo subjectivo”, o tribunal tivesse considerado provado que o arguido sabia que estava a subtrair ao poder público o veículo penhorado de que era fiel depositário, pois que o dolo afirmado nos pontos 6.º e 7.º dos factos provados não decorre dos factos objectivos provados pelo que, desconhecendo-se o destino dado ao veículo não se pode afirmar que o arguido tivesse agido com intenção de o subtrair ao poder público.

4. A convicção do tribunal recorrido não se encontra sustentada em nenhum tipo de prova de carácter testemunhal nem tão pouco a documental carreada para o processo e produzida em audiência de julgamento é suficiente para dar como assentes os factos constantes de 1.º a 7.º do elenco dos factos provados.

5. O tribunal a quo cometeu os erros de julgamento previstos não só no art.º 127.º, do Código de Processo Penal, como também nas als. a) e c) do n.º 2 do art.º 410.º, do mesmo diploma adjectivo, normas que assim resultam violadas pela peça sob censura.

6. É elemento típico do crime de descaminho, p.p.p. art.º 355.º, do Código Penal, a destruição, o dano, a inutilização do bem confiado à guarda do agente, sendo que dos autos nada disto resultou, mas apenas (apesar de o arguido entender que nem isso pode ser dado como provado) que o mesmo não procedeu à entrega do bem penhorado, nem informou da sua localização.

7. A conduta do arguido em levar o veículo para parte incerta, não significa, nem equivale, a afirmar-se que “houve destruição, danificação, inutilização ou subtracção” daquele bem, sendo a prova de qualquer dessas modalidades da acção indispensável para se considerar preenchido o tipo objectivo do crime aqui em análise pois que da constatação da simples não entrega ou da falta de apresentação não se pode deduzir que tenha havido descaminho.

8. Em todo o caso, verifica-se manifesto erro de julgamento, quanto aos factos dados como provados nos pontos 6 e 7 uma vez que o dolo não se podia inferir nem deduzir dos demais factos concretos dados como provados.

9. Entre outros, a decisão recorrida violou o disposto seguintes art.ºs: 32.º, da Constituição da Republica Portuguesa; 127.º e 410.º, n.º 2, als. a) e c), ambos do Código de Processo Penal, e 355.º, este do Código Penal.

Terminou pedindo que no provimento do recurso se revogue a decisão recorrida, absolvendo-se o arguido da prática do crime imputado.

1.3. Notificado nos termos e para os efeitos do art.º 413.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, contra-alegou o Ministério Público, sufragando o improvimento do recurso.

1.4. Proferido despacho admitindo o recurso, e cumpridas as formalidades devidas, foram os autos remetidos para esta 2.ª instância.

1.5. Aqui, no momento processual a que alude o art.º 416.º, do mesmo diploma adjectivo, a Ex.ma Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer concordante com a posição já assumida na 1.ª instância pelo Ministério Público, ou seja, tendente à manutenção do sentenciado.

1.6. O arguido, acatado o estatuído pelo art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não respondeu.

1.7. Aquando do exame preliminar a que se reporta o n.º 6 do mesmo inciso, além de se consignar que nenhuma circunstância determinava a apreciação sumária da impugnação, exarou-se que também nenhuma outra obstava ao seu conhecimento de meritis, donde que a dever prosseguir com a recolha de vistos – o que se verificou – e submissão dos autos a conferência.

Cabe, então, ponderar e decidir.


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II. Fundamentação de facto.

2.1. A sentença recorrida considerou como provada a seguinte factualidade:

1. No dia 16 de Fevereiro de 2006, na Rua (...), Viseu, no âmbito do processo n.º 820-A/2002, do 3.º Juízo do Tribunal de Águeda, em que era executado o arguido, foi penhorado o veículo automóvel de matrícula XO-98-57;

2. Na data da referida penhora o dito automóvel foi entregue ao arguido, na qualidade de fiel depositário, o qual foi devidamente notificado e ficou ciente de que devia proceder à sua entrega quando tal lhe fosse exigido, não podendo utilizar ou alienar tal bem (fosse por venda ou doação ou qualquer outro título), sob pena de incorrer em procedimento criminal;

3. Acresce que, pelo menos desde 19 de Maio de 2011, foi o arguido contactado para efectuar a entrega do bem penhorado ou colocá-lo à disposição do encarregado de venda, não tendo o mesmo entregue ou mesmo fornecido a localização do aludido automóvel;

4. Aquando da penhora foi o arguido notificado de que deveria conservar e apresentar os bens quando para tal fosse notificado, sob pena de não o fazendo, incorrer na prática de um crime;

5. Não obstante, o arguido não procedeu à entrega do bem penhorado ou informou da sua localização, sendo certo que o levou para parte incerta impedindo assim que o estado o possa vender;

6. O arguido estava ciente de que, ao retirar (ou ao permitir que retirassem) do local onde se encontrava à data da penhora, o referido bem, este ficava subtraído ao poder que o Estado exercia sobre o mesmo. Sabia ainda que o bem supra referido se encontrava legalmente penhorado, e que, deste modo, frustrava as finalidades da penhora realizada;

7. O arguido sabia ainda que, actuando da forma descrita praticava actos proibidos por lei, agindo livre, voluntária e conscientemente;

8. O arguido encontra-se desempregado desde há cerca de um ano;

9. Não aufere quaisquer rendimentos;

10. Vive em casa própria com a esposa e dois filhos;

11. A esposa trabalha numa empresa de limpezas e aufere a quantia mensal de € 430,00;

12. O arguido tem o 11.º ano de escolaridade;

13. O arguido não tem antecedentes criminais.

2.2. Por seu turno e relativamente a factos não provados, consignou que:

Nada mais se provou com relevância para a decisão da causa.

2.3. Por fim, é como segue o teor da motivação probatória inserta na mesma decisão:

A convicção do Tribunal no que respeita à factualidade provada formou-se com base na análise crítica e ponderada de toda a prova produzida, nomeadamente, no teor da certidão de fls. 2-14 e documento de fls. 73/74 quanto aos factos vertidos em 2.1.1. a 2.1.7., de onde resulta que o arguido foi pessoalmente notificado das obrigações inerentes à nomeação como fiel depositário do veículo e, ainda assim, não procedeu à sua entrega ao encarregado de venda, impedindo, consequentemente, as finalidades da penhora, mormente a venda do veículo e satisfação do credor.

Quanto aos factos atinentes à situação social e económica do arguido, teve-se em consideração as declarações do arguido.

No que concerne aos antecedentes criminais do arguido relevou o C.R.C. junto aos autos a fls. 68.


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III. Fundamentação de Direito.

3.1. O objecto de um recurso penal define-se através das conclusões que o
recorrente extrai da respectiva motivação, mas isto sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso [art.ºs 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal].

Na realidade, de harmonia com o disposto neste n.º 1, e conforme jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ – Acs de 13.05.1998; de 25.06.1998 e de 03.02.1999, in, respectivamente, BMJ’s 477/263; 478/242 e 477/271], o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios e as nulidades da sentença previstos/as no art.º 410.º, n.ºs 2 e 3, do mesmo diploma, inclusive quando o recurso se encontre cingido à matéria de direito [Acórdão do Plenário das Secções do STJ, de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995].

No mesmo sentido expende Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Volume III, 2.ª edição, 2000, escrevendo a fls. 335: “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.”

Nesta perspectiva, no caso vertente, porque não intercede fundamento para qualquer intervenção oficiosa, vistas as conclusões do recorrente, decorre que a sua irresignação se consubstancia em duas vertentes: de facto e de direito. Na primeira, quando controverte o acervo acolhido pela decisão recorrida conducente (na versão do tribunal a quo) à sua decretada condenação e, na segunda (concedendo a procedência daquela), no justo ponto em que se rebela contra a verificação dos pressupostos exigíveis ao emergir do ilícito por cuja prática vem sentenciado, mormente de que o facto de se ter dado por adquirido que o arguido não procedeu à entrega do bem penhorado nem informou da sua localização e que levou o veículo para parte incerta, impedindo assim que o Estado o possa vender, não preenche o descaminho.

Vejamos.

3.2. Na primeira vertente indicada, o arguido impugna a matéria de facto considerada nos pontos 1 a 7 dos factos provados, nomeadamente quando propala que a prova produzida em audiência não era suficiente para se concluir no sentido do preenchimento dos elementos típicos objectivo e subjectivo do crime de descaminho, e quando aponta à sentença recorrida os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto e de erro notório na apreciação da prova.

Na resposta que apresentou na 1.ª instância, o Ministério Público esgrime por forma assaz impressiva e em termos que colhem o nosso aplauso, donde que sigamos nas considerações seguintes o que bem (e muito) então adiantou.

Como decorre da acta respectiva (fls. 70), o recorrente, no uso de prerrogativa que a lei lhe confere, não prestou declarações em audiência,
e daí que, no seu
terminus, prova que à M.ma Juiz a quo restasse ajuizar fosse unicamente a prova documental já junta aos autos no decurso do inquérito e elencada na acusação, acrescida daquela entretanto junta no decurso do julgamento, ao abrigo do disposto no art.º 340.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [cfr. despacho de fls. 71 e documentos de fls. 73/4].

A impugnação ampla da matéria de facto faz recair sobre o recorrente o cumprimento de determinados ónus, sob pena de se impor a sua rejeição.

Na verdade, se dispõe o art.º 411.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que O requerimento de interposição do recurso é sempre motivado, sob pena de não admissão do recurso, postula logo depois o art.º 412.º, que:

3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

Ora, in casu, a motivação do recurso interposto pelo arguido não observa tais parâmetros, uma vez que, pese embora impugne a matéria de facto dada como provada, não indica em qualquer ponto da motivação ou das conclusões os pontos de facto que considera incorrectamente julgados ou o sentido em que deveriam ter sido julgados, nem tão pouco as provas que devem ser renovadas.

Com efeito, lendo-se a motivação do recurso ofertada pelo arguido/recorrente, em ponto algum (bem como das conclusões), se constata o acatamento dos elencados requisitos das diversas als. do n.º 3 do art.º 412.º citado, antes o que daí resulta é que o recorrente se insurgir apenas, em bloco, contra (quase) toda a factualidade dada como provada pelo Tribunal, somente concedendo a prova dos pontos 8 a 13 referentes à sua própria situação económica e pessoal, bem como respectivos antecedentes criminais.

Acresce que, e muito embora impugne os pontos provados 1 a 7, em bloco, igualmente não indica o concreto elemento documental (pois só prova documental foi produzida), onde funda a sua discordância relativamente à forma como foi julgada a matéria de facto. Ou seja, não esclarece em concreto e de forma minimamente perceptível de que forma é que tais documentos impunham ao Tribunal que desse como provados factos diversos dos assim mencionados, e em que medida a prova produzida contraria a versão dos factos dada como assente na sentença.

Esta forma de impugnação mostra-se votada ao malogro conforme entendimento jurisprudencial e doutrinal unânimes, de que nos dão nota o aresto e obra referidas na peça a que nos vimos reportando, e que citaremos.

Assim, escreveu-se em aresto deste TRC, de 22 de Outubro de 2008, acedido em www.dgsi.jtrc.pt, que “a especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença”, já que “pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, há-de cumprir o ónus de impugnação especificada imposto no art.º 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de factos que reputa incorrectamente provados e de alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida e às provas que devem ser renovadas.”

Por outro lado, exara no mesmo sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, 2.ª edição Actualizada, pág. 1131, que “A especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado”, sendo que “A especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida”, constituindo o “cerne do dever de especificação”, o dever que o recorrente tem de “explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa da recorrida”. Autor que prossegue referindo que “o grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, visa, precisamente, impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado.”

Os ónus que o recorrente se encontra adstrito a acatar e que o recorrente neste caso não observou, como dito, não têm carácter meramente formal ou secundário, pois como se anota no aresto deste TRC já citado, antes se conexionam “com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limita, como no caso sub judice, a generalizações que não permitem alcançar, com a certeza exigível, os concretos pontos de facto questionados e as passagens da prova com que o impugnante alicerça a sua discordância para com a matéria de facto provada”, e tudo porquanto “para submeter uma questão a recurso, não basta uma vaga impugnação da mesma, aguardando-se que o tribunal de recurso se substitua aos recorrentes na identificação e abordagem dos vícios da decisão carecidos de reparação.” [Ac. do STJ de 18 de Fevereiro de 2004, processo 4411/03, 3.ª secção, disponível na base de dados do itij, in www.dgsi.pt].

Asserções estas que, não se diga, limitam de forma inadmissível o direito de recurso do arguido, pois, e como se escreveu no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 171/94, de 17 de Fevereiro de 1994, in BMJ 434, 184, o direito ao recurso, fazendo parte da tutela judicial efectiva e inserido no âmbito do direito a um processo criminal com todas as garantias de defesa, não é incondicional, sendo indispensável conciliar a exigência de dupla instância com a liberdade do legislador para estabelecer os meios de impugnação que considere oportunos e de os condicionar a determinadas exigências, que não impliquem a criação de obstáculos injustificados e arbitrários.

Em conclusão, porque o recorrente não deu cumprimento às especificações impostas, não deve, nem pode, esta Relação sindicar a decisão de facto com fundamento na sua alegada e pretendida impugnação ampla.

Mas, a decisão recorrida padece do vício prevenido pelo citado art.º 410.º, n.º 2, al. a), isto é, de insuficiência para a decisão da matéria
de facto dada como provada, pois, como sustenta o recorrente, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não é suficiente para dar como provados os factos constantes dos pontos 1 a 7 provados?

Tal vício, como aliás os demais insertos no n.º 2 desse art.º 410.º, tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e, conforme diversa jurisprudência acolhida na resposta falada:

- “consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis, e que impede que sobre a matéria da causa seja proferida uma decisão segura; a “insuficiência” relevante não pode ser considerada apenas em relação a uma concreta decisão que esteja em causa” [Ac. do STJ de 23.04.2008, processo n.º 1127/08-3.ª Secção, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Henriques Gaspar, disponível no site da PGD de Lisboa];

- “Ocorre… quando a matéria de facto provado não constitui suporte bastante para a concreta decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime ou contra-ordenação, quer porque deixa espaços não preenchidos relativamente a dados fundamentais para a determinação da ilicitude, da culpa ou para a fixação da medida da pena, e possa ser completada pela devida investigação do tribunal que tenha ficado aquém do que podia e devia ter apurado” [Ac. da RE de 13 de Junho de 2006, processo 242/06-1, disponível em www.dgsi.jtre.pt];

- “… só existe quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo deixa de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que a matéria de facto apurada não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à sua apreciação” [Ac. STJ de 29 de Fevereiro de 1996, além citado];

- “… não pode ser assimilada à não suficiência dos factos provados para a decisão que esteja em causa, mas, diversamente, impossibilidade de permitir uma qualquer decisão segundo as várias soluções plausíveis para a questão. Se os factos provados permitem uma decisão, embora diversa da que foi tomada, não existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, mas eventualmente, se for o caso, erro de julgamento e de integração dos factos provados…” [Ac. do STJ de 27 de Maio de 2009, processo 58/07.1 PRLSB, 3.ª secção, disponível na base de dados do itij]

Os pontos provados 1 a 7 mostram-se, relembramos, com o teor seguinte:

1. No dia 16 de Fevereiro de 2006, na Rua (...), Viseu, no âmbito do processo n.º 820-A/2002, do 3.º Juízo do Tribunal de Águeda, em que era executado o arguido, foi penhorado o veículo automóvel de matrícula XO-98-57;

2. Na data da referida penhora o dito automóvel foi entregue ao arguido, na qualidade de fiel depositário, o qual foi devidamente notificado e ficou ciente de que devia proceder à sua entrega quando tal lhe fosse exigido, não podendo utilizar ou alienar tal bem (fosse por venda ou doação ou qualquer outro título), sob pena de incorrer em procedimento criminal;

3. Acresce que, pelo menos desde 19 de Maio de 2011, foi o arguido contactado para efectuar a entrega do bem penhorado ou colocá-lo à disposição do encarregado de venda, não tendo o mesmo entregue ou mesmo fornecido a localização do aludido automóvel;

4. Aquando da penhora foi o arguido notificado de que deveria conservar e apresentar os bens quando para tal fosse notificado, sob pena de não o fazendo, incorrer na prática de um crime;

5. Não obstante, o arguido não procedeu à entrega do bem penhorado ou informou da sua localização, sendo certo que o levou para parte incerta impedindo assim que o estado o possa vender;

6. O arguido estava ciente de que, ao retirar (ou ao permitir que retirassem) do local onde se encontrava à data da penhora, o referido bem, este ficava subtraído ao poder que o Estado exercia sobre o mesmo. Sabia ainda que o bem supra referido se encontrava legalmente penhorado, e que, deste modo, frustrava as finalidades da penhora realizada;

7. O arguido sabia ainda que, actuando da forma descrita praticava actos proibidos por lei, agindo livre, voluntária e conscientemente.

Infra precisaremos, mais desenvolvidamente, dos elementos típicos objectivos e subjectivos do crime em análise. Em todo o caso, diremos que mister era a prova de que o arguido não apenas não entregou o veículo, nem forneceu a sua localização (depois deste lhe ter sido entregue na qualidade de fiel depositário; de ter sido expressamente advertido dos deveres inerentes a tal cargo, e que deveria apresentar e conservar tal veículo, bem como das consequências da omissão de tais deveres, incluindo o procedimento criminal), mas também que o levou para parte incerta impedindo assim o Estado de o poder vender (coisa diversa de se desconhecer o destino dado, como pretexta o arguido).

Ora, no caso vertente, como se colhe do texto da decisão recorrida (e apenas dele, sem apelo a quaisquer elementos externos), não foi cometido este vício, pois que os factos relatados comprovam aqueles que era necessário indagar e, por outro lado, foram aí apreciados e apurados todos os aspectos e factos relevantes para a causa, designadamente os definidos pela acusação (que delimitou o objecto do processo), tanto mais que o arguido não contestou a acusação pública, nem indicou provas a produzir.

Ademais, não decorrem do texto da decisão ainda que conjugada com as regras da experiência comum, quaisquer lacunas que cumprisse ao Tribunal a quo sanar em ordem à (no caso concreto) condenação do arguido pelo referido ilícito (ou à sua absolvição, como clama), sendo certo que a insuficiência no apuramento da matéria de facto apenas se verificaria se houvesse “lacuna ao não se apurar o que é evidente que se podia apurar.” [Ac. da RC de 14 de Setembro de 1999, processo 1060/98, disponível em www.dgsi,jtrc.pt]

Prosseguindo, indaguemos se é possível descortinar na sentença em crise o vício de erro notório na apreciação da prova, já que, refere o recorrente, a propósito, a convicção do Tribunal não se encontra sustentada em nenhum tipo de prova de carácter testemunhal, nem tão pouco documental carreada para o processo e produzida em audiência de julgamento que seja suficiente para dar como provados os factos constantes de 1 a 7.

O erro notório na apreciação da prova existirá quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum (art.º 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal), resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal [Ac. do STJ de 27 de Janeiro de 1999, in BMJ 483, 140], não se verificando tal vício se a discordância do recorrente resulta da forma como o Tribunal recorrido deveria ter apreciado a prova produzida. [Ac. da RC de 12 de Fevereiro de 1998, CJ, I, 53 e BMJ 483, 140; Ac. RC de 18 de Junho de 1998, CJ, III, 60; Ac. STJ de 13 de Março de 1991, AJ n.º 17, processo n.º 41437; BMJ 399, 260]

Sucede que a argumentação avançada pelo recorrente mais não traduz do que a sua discordância relativamente à avaliação que o tribunal a quo fez da prova produzida, valoração esta porém devidamente fundamentada, e olvidando que a convicção do tribunal é a do julgador e não a das partes.

Por outro lado, e ao invés do referido pelo arguido, o tribunal a quo valorou toda a prova produzida, não se bastando como uma leitura parcial e descartada das regras da experiência e do teor dos documentos juntos.

De facto, a M.ma Juiz a quo analisou os documentos em causa, criticamente e de forma concertada, com recurso às regras da experiência comum, de tal modo que é possível percepcionar a linha de raciocínio conducente à convicção que formou e que por forma alguma cabe questionar.

Da mera leitura da sentença recorrida não resulta efectivamente por demais evidente a “conclusão contrária” àquela a que chegou o Tribunal; pelo contrário é assertiva a fundamentação que dela se surpreende, permitindo compreender o raciocínio lógico que presidiu à sua prolação, não resultando do seu texto que tivesse que ser outra a decisão do Tribunal a quo, mesmo quando os factos ali assentes são conjugados com as regras da experiência.
Na realidade, como se referiu no Ac. desta RC de 16 de Novembro de 2005, processo n.º 1793/05,
in www.dgsi.jtrc.pt, “A convicção de quem julga não pode ser confundida nem substituída pela convicção dos que esperam a decisão.”

Antecedendo a conclusão da manutenção do acervo fáctico acolhido na 1.ª instância, uma nota final.

No âmbito da apreciação da prova vigora como princípio nuclear o da sua livre apreciação, estritamente conexionado com o princípio da imediação e da oralidade que presidem à produção de prova em audiência.

Na verdade, dispõe o art.º 127.º, do Código de Processo Penal que, Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

Inexistindo critérios (determinados) de valoração da prova no sentido da atribuição de certo valor a determinado meio de prova, daqui resulta pois que a valoração da prova produzida assenta, embora de forma vinculada, no convencimento pessoal resultante da assunção dos meios de prova e dos elementos dela emergentes, desde a razão de ciência de cada um dos intervenientes processuais, aos aspectos circunstanciais ou essenciais dos factos que constituem o objecto do processo.

No caso concreto, a convicção que a M.ma julgadora logrou alcançar não é contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos, antes se atém a uma valoração adequada da prova produzida em audiência.
Ao invés, e citamos mais uma vez a resposta do recorrido Ministério Público, a “conjugação de todos os elementos probatórios, permitem inferências suficientemente seguras na sentido da matéria de facto dada como provada e não provada, sendo que não vislumbramos, com o muito devido respeito pela posição da recorrente, qualquer contra-argumento suficientemente seguro que justificasse solução diferente daquela a que chegou o Tribunal.” [parecer do Ministério Público, PGA João Rodrigues do Nascimento Vieira, no processo 2533/081 TAOER.L1, disponível em
www.pgdlisboa.pt]

Não despiciendo, ainda, mostrar-se a jurisprudência pacífica no sentido de que a prova documental (indicada na acusação) se considera produzida ou examinada em audiência independentemente de ser ou não feita a sua leitura durante o julgamento.

Com efeito, tendo os sujeitos processuais livre acesso aos autos na fase de julgamento, nada obsta a que relativamente aos documentos juntos aos autos seja exercido o contraditório, não havendo, pois, violação de qualquer princípio [vd. anotação ao art.º 355.º do CPP, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Vinício Ribeiro, e a jurisprudência aí citada (Ac. TC 87/99; Ac. do STJ, de 31/05/2006, processo 06P1412; Acs. RP, de 20/10/2004, processo 0442822, e de 11/04/2007, processo 06432779].

A título meramente exemplificativo, e embora incidente sobre escutas telefónicas, vejamos o consignado no indicado Ac. do STJ, de 31 de Maio de 2006: “Os documentos juntos aos autos não são de leitura obrigatória na audiência, considerando-se nesta produzidos e examinados, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida.

As escutas telefónicas, desde que efectuadas de acordo com as exigências legais, são meio legítimo de obtenção de prova.

A transcrição das escutas assim realizadas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art.º 127.º do CPP, mesmo que não lida nem examinada em audiência, porquanto se trata de prova contida em acto processual cuja leitura em audiência é permitida – art.º 355.º do CPP.

E mesmo que as escutas constituam o único meio de prova, o tribunal não está impedido de nelas apoiar a sua convicção.

Por outro lado, a não leitura das transcrições das escutas telefónicas em audiência, constando estas dos autos, não impossibilita o realização do contraditório; o arguido sempre pode contraditar, no decurso da audiência, o seu conteúdo e conformidade com os respectivos suportes, se não o faz, sibi imputet.”

Este entendimento vale, com as devidas adaptações e por maioria de razão, para a prova documental dos presentes autos a qual tem por base a certidão extraída do processo/carta precatória n.º 1982/11.2 TBVIS do 2.º Juízo Cível do Tribunal de Viseu e a informação prestada a fls. 73/74 extraída do processo para execução comum 1423/09.5 T2AGD da comarca do Baixo Vouga – Águeda Juízo de execução.

Tudo a suportar, consequentemente, o improvimento do recurso incidente sobre a matéria de facto.

3.3. Obtempera o recorrente da inverificação dos elementos objectivo e subjectivo do tipo de ilícito do art.º 355.º, do Código Penal.

Como dele sobressai, pratica o crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder publico Quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer outra forma, subtrair ao poder público a que esta sujeito, documento ou outro objecto móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objecto de providencia cautelar.

O bem jurídico protegido com a incriminação deste tipo legal de crime é a autonomia intencional do Estado, através da ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública [cfr. Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo III, Coimbra Editora, pág. 419], sendo que [idem, pág. 420], uma coisa passa a pertencer ao poder público “no preciso instante em que perde a sua “liberdade”, em que um acto de império (judicial ou administrativo) lhe fixa um destino e se reserva o poder de o garantir guardando-a, real ou simbolicamente. Num tempo futuro, cumprido o desígnio estadual, esses bens virão a ser reentregues aos seus proprietários, expropriados, declarados perdidos a favor do Estado, vendidos para satisfação dos créditos a que serviam de garantia, etc.”

Mais adianta esta autora [ob. cit.] que “o delito em causa configurará um crime de lesão do bem jurídico (de dano), consumando-se tão-só quando o agente frustra total ou parcialmente – finalidade da custódia, através de uma acção directa sobre a coisa: inutilizando-a ou descaminhando-a. Neste a caso, o “dano” coincide com o resultado material previsto no tipo: a “modificação” ou a deslocação definitiva da coisa para fora da custódia.”

A acção típica pode assim revestir várias modalidades de conduta: destruir, danificar, inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair.

A destruição, a danificação ou a inutilização, total ou parcial, abrangem todas ofensas à substância ou à integridade física da coisa (como no dano) que a tornam inútil do ponto de vista que justificava a sua custódia oficial.

Por isso, como acentua mais uma vez Cristina Líbano Monteiro, deve considerar-se a inutilização como o conceito chave dos outros tipos de acção sobre a coisa.

A subtracção ao poder público implica, de igual modo, a impossibilidade de à coisa vir a ser dado o destino que justificava a sua custódia oficial mas já não pressupõe qualquer conduta que ofenda a substância ou a integridade física da coisa. Integram-se, aqui, todas as condutas que sonegam a coisa ao poder público, sem que seja requerida uma intenção de apropriação. Terá de tratar-se de uma conduta de apossamento da coisa, com o reverso de o poder público dela ficar desapossada, extraviar ou a ocultar a coisa, por exemplo. [idem, pág. 423]

É, como refere Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, págs. 203/204, citado num aresto do TRP [de 14 de Junho de 2006, e que sob o n.º 0641179 se mostra disponível na BDJUR], citado por sua vez pela Ex.ma Magistrada do Ministério Público, “um dos casos excepcionais em que a subtracção da
coisa sem intenção de apropriação é punida.”. No entanto, “deve entender-se por subtrair o mesmo que no crime de furto, embora com a precisão de
que, caso a “subtracção” seja levada a cabo pela pessoa oficialmente encarregada da guarda da coisa móvel, o verbo mais apropriado não será este (subtrair), na medida em que não se verifica a quebra do domínio do facto de outrem para constituir um domínio próprio. Melhor se falaria nestes casos de descaminho, a que, aliás, a epígrafe do artigo se refere.” [neste sentido, Cristina Líbano Monteiro, ob. cit., pág. 423]

Vale por dizer pois que o acto da subtracção coincide também com a conduta típica do crime de furto, à excepção da intenção apropriativa (não exigida pelo tipo e que, por isso é irrelevante), consistindo assim no acto de criar sobre a coisa um poder de facto de disposição (física corporal ou simbólica) em simultaneidade com a cessação desse poder por parte de terceiro legítimo possuidor ou detentor. Por outras palavras, é o acto de transferência física ou meramente simbólica da coisa de um domínio de facto de terceiro para o domínio de facto do agente.

O tipo legal não exige a advertência para a possibilidade da prática do crime no momento da constituição como fiel depositário, sendo embora certo que se provou tal facto, como vem fixado pela 1.ª instância.

Igualmente, o tipo legal não pressupõe a prévia notificação do depositário para proceder à entrega dos bens, pese embora em termos processuais civis seja a falta de entrega, quando solicitada, que pode despoletar o procedimento criminal.

Por outro lado, não exigindo o tipo a intenção apropriativa, basta para que se cometa o crime, que se queira dispor da coisa em contravenção às obrigações de depositário e com o propósito de o subtrair ao domínio estatal e ao poder público inerente, que é o caso dos autos. Nesta perspectiva se antolha por isso que, por exemplo, o mero abandono de bens não constitui elemento bastante para concluir pela prática do crime [Ac. TRP de 11 de Outubro de 2006].

A situação vertente.

Não se logrou provar (nem está em causa), a existência de qualquer conduta que ofenda a substância ou integridade física da coisa, ou a sua inutilização (nesta parte não se provou, nem vinha imputado, desconhecendo-se de facto o que se foi afectada/inutilizada a coisa, ou se a mesma apenas se mantém incólume, mas fora/subtraída ao poder do Estado). A única modalidade típica aqui em causa e que motivou a imputação e posterior condenação do arguido é o facto de o mesmo, por qualquer outra forma, ter subtraído ao poder público o bem penhorado (o veículo).
A utilização na lei da expressão “por qualquer outra forma”, significa, manifestamente, por qualquer outra forma além das indicadas na primeira parte deste normativo. Ou seja, não se mostra necessário comprovar, nesta modalidade típica da acção, que o arguido destruiu, danificou ou inutilizou, total ou parcialmente o bem penhorado. Basta provar que,
por qualquer outra forma, o colocou, o subtraiu ao poder público a que estava sujeito.

Esta modalidade típica (subtracção) pode pois ter-se por preenchida com o mero ocultar ou extraviar da coisa, mas também com a sua venda, troca, cedência, sendo evidenciador de tal desapossamento do Estado relativamente à coisa, o facto de a mesma não ser entregue/apresentada quando solicitado, nem tão pouco ser indicado o local onde a mesma se encontra, permanecendo o bem penhorado em local desconhecido (para onde foi levado pelo arguido ou que este permitiu que o levassem).

No caso, ao dar-se como provado que o arguido (depois de notificado para tal e advertido das obrigações de fiel depositário em relação à coisa penhorada, bem assim como depois de advertido de que incorria em procedimento criminal), pelo menos desde 19 de Maio de 2011, e não obstante contactado para fazer a entrega do bem penhorado ou colocá-lo à disposição do encarregado da venda, não o fez, nem informou da sua localização, sendo certo que o levou para parte incerta impedindo que o Estado o possa vender, deram-se como provados factos suficientes para que se conclua pelo preenchimento dos elementos típicos do crime de descaminho. Com tal conduta, o arguido claramente desapossou o Estado do poder público que detinha sobre tal bem, transferindo-se a coisa do domínio de facto de terceiro para o domínio de facto do agente.

Manifesta então a asserção de que o arguido ao actuar desta forma demonstrou inequivocamente que queria dispor da coisa penhorada em violação das obrigações decorrentes das funções de fiel depositário e de as subtrair ao poder público inerente.

Certo que “a simples não entrega dos bens penhorados ao encarregado da venda não integra o crime de descaminho previsto e punido no artigo 355.º do Código Penal” e que “tal crime exige uma acção directa sobre a coisa, isto é, uma actuação que a destrua, inutilize ou impeça a sua entrega.” [Ac. do TRP de 26 de Novembro de 2003, n.º de documento RP200311260315082, processo 0315082 disponível em www.dgsi.jtrp.pt]

A descrita actuação do arguido foi todavia muito além da mera não entrega do bem quando notificado para o efeito: não indicou a sua localização e levou-o para parte incerta impedindo o Estado de o vender.

Não colhe também a afirmação do recorrente no sentido em que da sentença recorrida não emergem factos que permitam concluir que o arguido tivesse agido com intenção de as subtrair ao poder público, dado que se desconhece o destino dado ao veículo.

Desde logo porque de facto, e como vimos, não se desconhece o destino dado ao veículo: o arguido não o entregou, não indicou ao encarregado da venda onde o mesmo se encontrava, fê-lo desde pelo menos 19.05.2011 e mesmo depois de advertido das consequências penais da sua conduta e de ter sido informado dos deveres inerentes à função de fiel depositário.

Por outro lado, porque, como se escreveu no Ac. do TRE de 29 de Janeiro de 2013, in processo 599/99.6 TAABL.E1, disponível em www.dgsi.jtre.pt:

“I. A demonstração dos factos de natureza subjectiva atinentes à pessoa do agente do crime efectua-se, o mais das vezes, por via indirecta, através da prova de outros factos dos quais aqueles possam ser racionalmente inferidos, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

II. A acção levada a efeito pelo agente de ter retirado os bens, que lhe haviam sido confiados, como fiel depositário em processo de execução, do local onde foram penhorados e para os levar para parte incerta, preenche a prática do crime de descaminho p. e p. pelo art.º 355.º do Código Penal, já que frustrou a providência que sobre esses objectos tinha recaído, não se exigindo, para tanto, qualquer intenção de apropriação, de enriquecimento ou de prejuízo económico.

III. É suficiente para tanto a quebra do domínio sobre a coisa pertencente à autoridade pública.”

Como fundamentou a M.ma Juiz a quo, sem reparo que caiba fazer-se-lhe, os elementos típicos subjectivos exigíveis decorrem da conjugação de todos os demais factos dados como provados, designadamente, e como disse, porque “o arguido foi pessoalmente notificado das obrigações inerentes à nomeação como fiel depositário do veículo e, ainda assim, não procedeu à sua entrega ao encarregado de venda, impedindo, assim, as finalidades da penhora, mormente a venda do veículo e satisfação do credor.”

Tudo a confluir com uma análise atenta dos autos, conjugada com as regras da experiência comum e da lógica dos documentos de fls. 2 a 14 e 73 a 74 dos quais sobressai, exemplificativamente, o facto de constar do ofício da GNR de fls. 13 que o arguido (em 19.05.2011) informou que tinha o veículo na sua posse, embora o mesmo estivesse avariado e não circulasse, e que, notificado nos termos que constam de fls. 10 a 13 de tal certidão (em 21.11.2011), não entrega o veículo (que tinha na sua posse...) e informa o encarregado da venda que estava a “tentar localizar o bem, dado que o mesmo tinha sido entregue a um amigo...” (cfr. fls. 14 de tal certidão).

Não colhe a pretensão do recorrente em se dar por provado em casos como estes (de deslocação do bem penhorado para local incerto), de outros factos relativos ao “destino do veículo”, dado que essa seria a forma de mais facilmente se lograr atingir o objectivo de desapossar o Estado do seu poder sobre o bem e quando é certo que o arguido nem dá explicações para este “desaparecimento” do bem, nem indica prova (v.g. em sede de contestação, no julgamento...) que comprovem que, afinal, o veículo está neste ou naquele local, ou esta ou aquela razão.

Nada mais assim que, acobertados fundamentalmente na criteriosa resposta apresentada, igualmente considerarmos como improcedente o segundo segmento do recurso.


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IV. Dispositivo.

Termos em que atento todo o exposto, negamos provimento ao recurso interposto e mantemos a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 UCs – art.ºs 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na actual versão, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, e art.º 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo citado Decreto-Lei 34/2008, conjugado com a tabela III a que se refere este último preceito.

Notifique.


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Coimbra, 13 de Novembro de 2013 

Brizida Martins (Relator)

Orlando Gonçalves