Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2715/11.9TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: CRÉDITO AO CONSUMO
CUMPRIMENTO
OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
CONTRATO
Data do Acordão: 05/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL 133/09, DE 2/6 E DL 269/98, DE 1/9
Sumário: I – Apesar de o DL n.º 133/09, de 2.6 ter revogado o DL n.º 359/91, de 21.9, vigente à data em que foi proferido o Acórdão Unificador de Jurisprudência n.º 7/09, de 25.3, sobre a exclusão dos juros remuneratórios das prestações antecipadamente vencidas no mútuo oneroso, no âmbito dos contratos de crédito ao consumo, as alterações operadas não são de molde a desactualizar e desaplicar a sua doutrina;

II - Na acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, a que respeita o DL n.º 269/98 de 1.9, em que o réu não contestou, pode ser recusada força executiva à parte do pedido com fundamento na doutrina desse Acórdão Unificador.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

            1. Relatório

            O “A..., SA” propos contra B... acção com forma de processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, nos termos do DL n.º 269/98 de 1.9, pedindo a sua condenação no pagamento da importância de capital, por três contratos não integralmente cumpridos, de € 18.572,06 (€, 1.596,92+16.885,34+189,80), acrescida de € 1.803,44 de juros vencidos até 16.12.11 e de € 72.14 de imposto de selo sobre os juros vencidos e ainda os juros que sobre a quantia de € 1.596,92 se vencerem, à taxa anual de 15,934%, desde 17.12.11 até integral pagamento, bem como o imposto de selo à taxa de 4%, os juros que sobre a importância de € 16.885,34 se vencerem, à taxa anual de 15,93% desde 17.12.11 até integral pagamento, bem como no imposto de selo à taxa de 4% e os juros sobre a quantia de € 189,80, à taxa anual de 19,034%, desde 17.12.11 até integral pagamento e imposto de selo à taxa de 4%.

            Alegou para tanto, em síntese, que no exercício da sua actividade comercial firmou com o R. 3 contratos de crédito ao consumo, um em 6.7.10, no qual lhe emprestou a quantia de € 1.339,65, de que ficou por pagar, em razão do vencimento antecipado de todas as prestações, a importância de € 1.596,92, outro em 3.11.06, no qual emprestou a quantia de € 22.300,00 e de que ficou por pagar, pelas mesmas circunstâncias, a importância de € 16.885,34 e o 3.º, em 1.4.08, no qual emprestou a importância de € 2.500,00 e ficou também por pagar a quantia de € 189,80, na sequência de igual vencimento antecipado das prestações, por falta de pagamento de algumas delas, quantias essas acrescidas de juros (moratórios e cláusula penal e remuneratórios) e imposto de selo, como melhor se discrimina na petição inicial, para onde se remete.

            O R., regularmente citado, não contestou.

            Foi proferida sentença que, considerando improcedente o pedido relativamente aos juros remuneratórios incorporados nas prestações não pagas, em consonância com o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 7/2009 de 25.3.09[1], conferiu, parcialmente, força executiva à petição, ou seja, com excepção da parte relativa aos juros remuneratórios, condenando o R. somente a pagar ao A. a quantia que ulteriormente se vier a liquidar, correspondente às prestações vencidas e não pagas, relativas apenas ao capital mutuado, acrescidas dos respectivos juros de mora à taxa convencionada, bem como do correspondente imposto de selo, do demais peticionado absolvendo o R.

     Inconformado com o assim decidido recorreu o A., em cujas alegações apresentou as seguintes úteis conclusões:

a) - A sentença recorrida violou, atenta a matéria de facto provada, o disposto no art.º 20.º do DL n.º 133/09, de 2.6, com referência ao 1.º contrato;

b) – O Acórdão do STJ n.º 7/09 não é lei no País e é inaplicável a sua orientação aos contratos celebrados após a entrada em vigor desse diploma legal, cujo art.º 33.º, n.º 1, ali. a), revogou o DL n.º 359/91, de 21.9;

c) – Atenta a natureza especial do processo em causa e o facto de o R., regularmente citado, não ter contestado, deveria o juiz a quo ter de imediato conferido força executiva à petição inicial, não havendo nem podendo pronunciar-se sobre quaisquer outras questões, face ao disposto no art.º 2.º do regime aprovado pelo DL n.º 259/98, de 1.9, preceito que a sentença recorrida violou, pelo que deve ser revogada e substituída por acórdão que condene o R. na totalidade do pedido.

Não houve lugar a resposta por parte dos R.

Cumpre apreciar, sendo questões a decidir:

a) – Se deveria ter sido aplicada a doutrina do AUJ n.º 7/09, de 25.3.09 ao contrato de mútuo de 6.7.10 subscrito no âmbito de vigência do DL n.º 133/09, de 2.7, que revogou o DL n .º 351/91, de 21.9, à luz do qual foi tirado;

b) - Se, face à ausência de contestação do R., na acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, a sentença deveria ter-se limitado a conferir força executiva à totalidade da petição inicial, ou poderia ter em conta a doutrina desse Acórdão Unificador para recusar a executoriedade a parte do pedido.


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2. Fundamentação

            2.1. De facto

A factualidade relevante é a constante do ponto 1 do antecedente relatório e que, brevitatis causa, aqui se dá por reproduzida.


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2. 2. De direito

            Quanto à 1.ª questão, da não aplicação, por desactualização, a um dos contratos de mútuo (6.7.10), da doutrina do AUJ n.º 7/09 vejamos:

            - Dispõe esse acórdão que “no contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao art.º 781.º do CC não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados”.

            O quadro legal em que o aresto foi tirado assentou no art.º 781.º do CC que dispunha, como continua a dispor, que ”se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas” e no DL n.º 359/91, de 25.10 que, regulando o contrato de crédito ao consumo, veio, entretanto, a ser revogado perlo DL n.º 133/09, de 2.6, entrado em vigou, no que aqui importa, em 1.7.09 (art.ºs 33.º n.º 1, alín. a) e 37.º).

            Este diploma destinou-se a proceder à transposição para a ordem jurídica interna das Directivas n.ºs 2008/48/CE do PE e do Conselho, de 23.4, na sequência da alteração das Directivas então transpostas pelo ora revogado DL n.º 359/91.

            Mantendo a mesma definição de “contrato de crédito” (art.º 2.º, alín. a) e 4.º, alín. a), da lei revogada e da actual, respectivamente) o ponto que distingue ambos os diplomas vai no sentido do reforço dos direitos dos consumidores, v. g., no que aqui interessa, instituiu um regime mais favorável que o definido no art.º 781.º do CC no caso de não cumprimento do contrato de crédito pelo consumidor.

            Ao invés de se vencerem todas as prestações com a falta de pagamento de qualquer uma delas, agora (art.º 20.º, n.º 1), o credor, só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se, cumulativamente, ocorrerem as seguintes circunstâncias:

            a) – Falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito;

            b) – Ter o credor, sem sucesso, concedido ao consumidor um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato.

            O n.º 2 dispõe, por seu turno, que “a resolução do contrato de crédito pelo credor não obsta a que este possa exigir o pagamento de eventual sanção contratual ou a indemnização, nos termos gerais”.

            Dos 3 contratos que cumulativamente constituem a causa de pedir, aquele a que é aplicável a nova lei, o celebrado em 6.7.10 (mútuo de € 1.339,65), conferiu ao consumidor, recorrido, regime ainda mais favorável, ao elevar para 3 o número de prestações em atraso para todas se vencerem ou para o devedor perder o benefício do prazo e o prazo suplementar que lhe foi comunicado foi de 20 dias.

            A possibilidade de as partes poderem no âmbito da sua liberdade contratual convencionar regime diverso do definido pelo art.º 781.º já havia sido ressalvado no texto do AUJ em causa (ponto n.º 10).

            Ressalva que foi só nesse sentido e não que as partes poderiam incluir no valor das prestações os juros de financiamento, entendendo-se, para lá dos moratórios, os remuneratórios quanto às prestações vencidas não pagas, como nas alegações o recorrente parece aventar.

            Ora bem.

            Servem estas breves considerações para se poder concluir que o quadro legal em que foi gizado o AUJ continua, no fundamental, idêntico, sendo precipitado concluir-se pela desactualização da sua doutrina.

            Porque com base nela e pelas conhecidas razões em que se fundamenta e que já seria ocioso repetir, mas que podem sintetizar-se em que, vencida a obrigação de capital deixa de haver lugar a remuneração pela indisponibilidade do mesmo capital, não merece censura a sentença recorrida que, embora não distinguindo o regime legal temporalmente aplicável aos 3 contratos, trata, claramente, com acerto a questão da improcedência da acção quanto aos juros remuneratórios, rectificando, contudo, que o R. entrou em incumprimento não só quanto à 9.ª e 54.ª prestações (como refere), mas também à 35.ª, respectivamente dos contratos de 6.7.10, 3.11.06 e 1.4.08.

            Soçobra, assim, a 1.ª conclusão recursiva, infundada sendo a invocada violação do art.º 20.º do referido DL n.º 133/09.

            Como fenecem as demais conclusões.


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            2. Com efeito, quanto à outra questão, da atribuição de força executiva apenas a parte da petição inicial (por exclusão das quantias atinentes aos juros remuneratórios) não obstante a falta de contestação do R., dela já nos ocupámos em acórdão de 29.6.10[2] que relatámos nesta Relação pelo que nos permitimos reproduzir o que então escrevemos.

A questão enunciada tem vindo a ser diversamente tratada pelas várias Relações, apontando uns que a jurisprudência uniformizadora não releva para concluir pela manifesta improcedência da pretensão (como o demonstram os Acs. citados pelo recorrente) e concluindo outros em sentido contrário.[3]        

            Cremos ser esta a posição a sufragar.

            O art.º 2.º do anexo ao DL n.º 269/96 de 1.9 ao dispor que, “se o réu, citado pessoalmente, não contestar, o juiz, com valor de decisão condenatória, limitar-se-á a conferir força executiva à petição, a não ser que ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente”, configura uma situação sui generis de cominatório semi-pleno, uma vez que, não obstante a falta de contestação, não há lugar à confissão dos factos alegados pelo autor, sempre ao tribunal cabendo a análise da factualidade alegada com vista a concluir por qualquer das situações obstativas à conferência de força executiva à petição, ou seja, de matéria de excepção dilatória ou de onde possa concluir-se pela manifesta improcedência do pedido.[4]

            No dizer de Salvador da Costa[5] a pretensão formulada pelo autor é manifestamente improcedente ou inviável quando a lei a não comporta ou quando os factos a não justificam, face ao direito vigente.

            Após a instauração da acção o STJ fixou jurisprudência[6] no sentido já acima assinalado de “no contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao art.º 781.º do Cód. Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados”.

            É sabido que os AUJ não têm carácter geral e abstracto e limitam a sua força vinculativa aos processos onde forma proferidos.

            Todavia, constituem precedentes judiciais qualificados e o facto de o seu não acatamento poder suscitar sempre (independentemente do valor da causa ou da sucumbência) a possibilidade de recurso (n.º 2, alín. c) do art.º 678.º do CPC), no dizer de Abrantes Geraldes[7], “constitui um fortíssimo factor de redução da margem de incerteza e de insegurança quanto à resposta a determinadas questões jurídicas, ante a mais que provável revogação da decisão se acaso for interposto recurso. Assinalando a posição assumida pelo órgão de cúpula da ordem jurisdicional relativamente a determinada questão, o acórdão de uniformização implica uma natural adesão dos demais órgãos jurisdicionais (efeito persuasivo) e do próprio Supremo se e enquanto a respectiva doutrina não caducar por via da modificação legislativa ou por elaboração de outro acórdão da mesma natureza”.

            A interpretação uniforme do direito constitui um dos vectores por que se tutela a certeza e a segurança jurídica, bem como a igualdade de tratamento postulada no princípio da confiança.[8]

            Ora, não estando, é certo, no plano dos princípios, desde logo constitucionais (art.º 203.º da CRP), qualquer tribunal obrigado a decidir no sentido indicado por um AUJ, podendo o STJ alterar, ele mesmo, essa jurisprudência, não poderá, contudo, deixar de a ela se atender dada a sua novidade e inalterabilidade dos pressupostos em que foi gizada.

            Quer dizer, o juiz ao decidir situação igual à que a determinou, não pode pura e simplesmente ignorá-la. Nem o juiz nem a parte, se desde logo quiser obter ganho de causa, em última instância com recurso ao órgão com poder para a ditar.

            A não ser assim, qual a utilidade visada pelo legislador com os AUJ?

            A decisão recorrida, ao não reconhecer força executiva à petição e consequentemente ao absolver o R. da parte do pedido correspondente aos juros remuneratórios incorporados nas prestações vencidas por antecipação, com base no Ac. Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2009 concluiu com acerto pela manifesta improcedência dessa parte do pedido, dando cabal cumprimento ao art.º 2.º do citado DL n.º 269/98 de 1.9.


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            3. Sumariando:

            I – Apesar de o DL n.º 133/09, de 2.6 ter revogado o DL n.º 359/91, de 21.9, vigente à data em que foi proferido o Acórdão Unificador de Jurisprudência n.º 7/09, de 25.3, sobre a exclusão dos juros remuneratórios das prestações antecipadamente vencidas no mútuo oneroso, no âmbito dos contratos de crédito ao consumo, as alterações operadas não são de molde a desactualizar e desaplicar a sua doutrina;

            II - Na acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, a que respeita o DL n.º 269/98 de 1.9, em que o réu não contestou, pode ser recusada força executiva à parte do pedido com fundamento na doutrina desse Acórdão Unificador.


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4. Decisão

Face a todo o exposto acordam em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença recorrida.

            Custas pelo apelante.


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Francisco M. Caetano (Relator)
António Magalhães
Ferreira Lopes


[1] Pub. no DR n.º 86, I, de 5.5.09.
[2] Proc. 6342/08.0TBLRA.C1, in www.dgsi.pt.
[3] V. g., Ac. RC de 11.5.10/ITIJ e RL de 22.4.10/ITIJ.
[4] V. Salvador da Costa, “A Injunção e as Conexas Acção e Execução”, 6.ª ed., pág. 101.
[5] Idem, pág. 105.
[6] Ac. n.º 7/2009 de 25.3.09, DR I-A , de 5.5.09.
[7] “Recursos em Processo Civil”, 2.ª ed., pág. 366.
[8] Karl Larenz, “Metodologia da Ciência do Direito”, Gulbenkian, pág. 502 e 504, sustenta que “por detrás do critério da uniformidade está o postulado de justiça, que consiste em decidir o que é idêntico de modo idêntico” e que “por princípio da confiança entendo o princípio seguindo o qual os tribunais não podem iludir a confiança que o público deposita na continuação de uma jurisprudência que tenha por fundamento uma convicção jurídica geral”.