Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
28/13.0GAAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
MEDIDA DA PENA
CÚMULO JURÍDICO
Data do Acordão: 02/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA (JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE ÁGUEDA) - ENTRETANTO EXTINTA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 410 N.º 2, AL. C), E 412.º, DO CPP; ARTS. 40.º E 77.º DO CP
Sumário: I - O erro notório na apreciação da prova e a impugnação ampla da matéria de facto são dois distintos mecanismos de sindicar a decisão de facto, tendo a impugnação ampla da matéria de facto por objecto a justeza da valoração da prova produzida na audiência de julgamento – e daí que, quando nela se incluam meios de prova por declarações, estas tenham que ser ouvidas pelo tribunal de recurso, dentro das limitações assinaladas na lei – enquanto o regime dos vícios da decisão e agora, especificamente, o do erro notório na apreciação da prova atende exclusivamente ao texto da decisão conjugado com as regras da experiência comum – sendo, para o respectivo conhecimento, interdita a análise da valoração prova produzida em audiência feita pela 1ª instância.

II - O princípio in dubio pro reo, decorrência do princípio da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao julgador que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido. Produzida a prova, se no espírito do juiz subsiste um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.

III - Na fase de recurso, a detecção da violação do princípio in dubio pro reo passa pela sua notoriedade, face aos termos da decisão. Tem que resultar clara e inequivocamente do texto da decisão que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.

IV - Em todo o caso, a dúvida relevante de que cuidamos, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas a dúvida que este não logrou ultrapassar.

V - A medida da pena resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – [prevenção geral positiva ou de integração] – temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.

VI - O elemento aglutinador dos vários crimes em concurso que vai determinar a pena única é a personalidade do agente. Impõe-se, por isso, a relacionação de todos os factos entre si, de forma a obter-se a gravidade do ilícito global, e depois, relacionar cada um deles, e todos, com a personalidade do agente, a fim de determinar se estamos perante uma tendência criminosa, caso em que a acumulação de crimes deve constitui uma agravante dentro da moldura proposta ou se, pelo contrário, tal cumulação é uma mera ocasionalidade que não radica na personalidade do agente.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

No [já extinto] Juízo de Instância Criminal – Águeda, da comarca do Baixo Vouga o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, do arguido A..., com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso real, de sete crimes de homicídio na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º e 131º do C. Penal, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, c), com referência aos arts. 2º, nº 1, p) e 3º, nº 4, a), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (com as alterações da Lei nº 12/2011, de 27 de Abril).

Por acórdão de 11 de Abril de 2014 foi o arguido absolvido da prática de três crimes de homicídio na forma tentada e foi condenado, pela prática de quatro crimes de homicídio na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, nº 2, 72º, nº 1, 73º, nº 1 a) e b) e 131º do C. Penal, na pena de três anos de prisão por cada um deles, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, c) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de nove meses de prisão e em cúmulo, na pena única de cinco anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, com regime de prova e condicionada à entrega pelo arguido da quantia de € 3.000 aos Bombeiros Voluntários de Águeda, no prazo de um ano.    


*

            Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1 – Dos diversos depoimentos prestados em Audiência de Discussão e Julgamento impunham decisão diferente quanto as respostas dadas a matéria de facto.

2 – A prova testemunhal produzida impunha decisão diversa.

3 – Face às regras de experiência comum, não é verosímil que num degrau com uma largura de 1,30 metros de largura se pudessem sentar quatro adultos, porquanto um adulto necessita de compleição física de 0,50 metros para se poder sentar, pelo que, não poderia ser dado como provado que o arguido tivesse praticado quatro crimes de homicídio na forma tentada;

4 – O arguido não teve intenção atentar contra a vida de B ... , C ... , D ... , E ... , F ... , G ... e J ... , porquanto a sua conduta não foi intencional, foi antes acidental, sendo que,

5 – O veículo se terá despistado por via de uma avaria mecânica – correia de acessórios partida – que implicou que o mesmo perdesse a direcção e ficasse sem travões.

6 – Terá ainda de se concluir conduzido pelo arguido, imediatamente antes da colisão teria de circular a uma velocidade inferior a 10 Km/h porquanto as testemunhas foram unânimes em afirmar que só avistaram o veículo acerca de 5,6 metros do local onde se encontravam, o que,

7 – Circulando o veículo a 10 Km/h percorria aqueles 6 metros em cerca de 2 segundos, o que inviabilizava qualquer tentativa por parte das testemunhas se desviarem do mesmo.

8 – Resulta do depoimento das testemunhas, mais concretamente do cruzamento deste que o arguido não empunhou a pistola,

9 – resultando, das regras de experiência, que a tivesse empunhado e se tivesse intenção de atentar contra a vida das testemunhas, não colocaria a pistola no bolso, mormente a testemunha C ... o atirasse contra o chão, o imobilizasse e com a ajuda de J ... lhe retirassem a pistola.

10 – Do exposto relativamente à prova produzida em julgamento, concretamente, à falta dela, somos a concluir que perante tal cenário, isto é, a ausência de provas, forçoso seria absolver o arguido em obediência ao princípio "in dubio pro reo", corolário do princípio da presunção de inocência ex vi Art.º 32.º n.º 2 da C.R.P., sendo certo que o "princípio da livre apreciação da prova" consagrado no Art.º 127.º do C.P.P. está limitado por aquele, por força do disposto no Art.º 112.º da Lei Fundamental.

11 – Quer o principio da presunção de inocência, quer os corolários que dele decorrem, maxime o principio "in dubio pro reo" encontram assento, quer na declaração Universal dos Direitos do Homem de 10-12-1948, quer no pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos de 1976 e, ainda, na Convenção Europeia Dos Direitos do Homem de 1950, sendo que o denominador comum de todos estes instrumentos é o mesmo, seja, qualquer pessoa acusada de uma infracção, presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.

12 – Na decorrência daquele princípio concluir, sem contestação possível, que à sua luz o arguido está isento do ónus de provar a sua inocência, a qual aparece imposta pela lei.

13 – O acórdão recorrido ao fazer depender a suspensão da pena do pagamento por parte do arguido de uma indemnização aos bombeiros impõe aquele um dever cujo cumprimento este não poderá razoavelmente assegurar, pois,

14 – conforme se deu como provado que o arguido aufere uma reforma de 258,00 euros e o seu cônjuge aufere o salário mínimo nacional.

15 – Impõe-se pois que esse Venerando Tribunal reduza a pena a que foi condenado o arguido, assim se dando cabal cumprimento às normas plasmadas nos Art.º 50.º, 70.º e 71.º do C.P. e assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA.


*

            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1. O douto acórdão recorrido está bem fundamentado e faz um exaustivo exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal a quo;

2. A pena única fixada ao arguido só poderá ser (eventualmente) censurada por ser demasiado benevolente, atendendo à extrema gravidade da actuação do arguido, ao instrumento utilizado e à forte determinação da sua conduta;

3. Não merece qualquer reparo a suspensão da execução da pena de prisão, nos condicionados termos em que a mesma foi decretada;

4. O recorrente manifesta alguma discordância relativamente à matéria de facto provada, mas não cumpre as prescrições previstas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do art.º 412.º do CPP;

5. Da fundamentação da matéria de facto do douto acórdão em recurso não se vislumbra que o tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pelo arguido dos factos dados como provados, mas antes a um estado de certeza, pelo que não faz sentido invocar o princípio in dubio pro reo com vista à absolvição do arguido; e

6. O douto acórdão recorrido deverá ser mantido nos seus precisos termos.

Assim decidindo Vossas Excelências farão, como sempre, JUSTIÇA!


*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, subscrevendo a contramotivação do Ministério Público, afirmando a inexistência de vícios da decisão, o correcto exame crítico das provas produzidas, todas legalmente válidas e por isso, insusceptíveis de causarem dúvida fundamentadora da aplicação do pro reo, e conclui pelo não provimento do recurso.

*

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


*

*


II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- O erro notório na apreciação da prova;

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e a violação do princípio in dubio pro reo;

- A excessiva medida da pena fixada e a impossibilidade de cumprimento da condição imposta.


*

            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta do acórdão recorrido. Assim:

A) Nele foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

            1. No dia 9 de julho de 2013, cerca das 16 horas, o arguido, A ... , conduzindo o veículo de marca Mercedes, modelo Benz, cor branca, de matrícula HX..., do tipo furgão, provindo da Estrada Nacional n.º 333, mudou de direção, seguindo pela Rua Vila Carioca, no lugar da Cadaveira, em Valongo do Vouga, Águeda.

2. Esta rua forma uma reta com inclinação ascendente, atento o sentido de marcha do arguido, culminando num largo, onde se encontra, em frente à mesma, uma habitação.

3. Encostado à parte inferior da soleira da porta de entrada dessa casa, existe um degrau em granito, com cerca de 1,30 m de largura e 70 cm de profundidade.

4. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, encontravam-se B ... , C ... , D ... , E ... , F ... , G ... e J ... .

5. Os quatro primeiros estavam sentados no referido degrau.

6. Os dois seguintes encontravam-se sentados numa tábua, situada a, pelo menos, dois metros desse degrau e à esquerda do mesmo, atento o sentido em que seguia o arguido.

7. O último estava em pé, do lado direito do dito degrau, atento o mesmo sentido, a cerca de um metro do mesmo e atrás do espigão, em metal, de um reboque de trator, pelo qual aquele se atrela a este.

8. Ao aperceber-se da presença daquelas pessoas, o arguido decidiu avançar com o veículo na direção das mesmas, com o objetivo de atingir e atentar contra as vidas, pelo menos, dos referidos B ... , C ... , D ... e E ... .       

 9. Fê-lo, por se aperceber que naquele local se encontrava o referido B ... , com quem, dias antes, se desentendera por questões relacionadas com a disputa de um terreno, bem como familiares do mesmo.

10. Assim determinado, o arguido prosseguiu a marcha e, ao aproximar-se das pessoas que ali se encontravam, ao mesmo tempo que dizia em voz alta, “ladrões, mato-vos a todos”, foi imprimindo maior velocidade ao veículo.

11. Ao chegar junto das referidas pessoas, estas, apercebendo-se da intenção do arguido, logo se desviaram do ponto onde se encontravam, para não serem colhidos pela viatura.

12. O arguido acabou por embater com a parte inferior da frente do veículo automóvel no dito degrau, acionando o airbag daquele.

13. De imediato, o arguido saiu da viatura, trazendo no bolso uma pistola, marca Tafoglio Giuseppe, modelo GT27, com o n.º D42971, de calibre .25, que se encontrava municiada com sete munições de calibre 6,35mm, trazendo ainda consigo, no bolso das calças, oito munições do mesmo calibre.

14. Porém, nesse momento, em face do declive da rua e por o arguido não ter travado a viatura, esta começou a descair em sentido contrário, tendo percorrido uma distância de cerca de 30 metros, vindo a despistar-se para a berma, aí se imobilizando, tendo o arguido ido atrás dela, tentando entrar na mesma, a fim de, em vão, a imobilizar.

15. Entretanto, o referido C ... , porque sabia que arguido, em momento anterior, tinha puxado de uma arma de fogo para o seu pai ( B ... ), foi atrás dele, aguardando junto de um arbusto.

16. Após o veículo se ter imobilizado, o arguido dirigiu-se a pé em direção às restantes pessoas, levando na mão a dita pistola.

17. Porém, ao chegar junto de C ... e ao aperceber-se da presença deste, o arguido colocou novamente a pistola no bolso.

18. Nesse momento, C ... , temendo que o arguido concretizasse a ameaça que proferira e porque lhe vira a pistola na mão, dirigiu-se a ele e agarrou-o.

19. De seguida, aproximou-se o mencionado J ... , que retirou do bolso do arguido a referida pistola.

20. Após, aqueles dois mantiveram o arguido imobilizado, até à chegada dos militares da GNR ao local, que ocorreu algum tempo depois, os quais procederam à apreensão da pistola, que se encontrava em poder de J ... .

21. O arguido não é titular de qualquer licença de uso e porte de arma e munições ou autorização para a sua detenção.

22. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, querendo dirigir o veículo automóvel que conduzia contra, pelo menos, os referidos B ... , C ... , D ... e E ... , que se encontravam sentados no degrau onde a viatura veio a embater, para os atingir e, dessa forma, tirar-lhes a vida, o que só não sucedeu porque eles, apercebendo-se da intenção do arguido, se desviaram a tempo de evitar serem colhidos, assim como pela circunstância de a viatura ter começado a descer, fazendo com que o mesmo fosse no seu encalço, permitindo que C ... e J ... lhe retirassem, a tempo, a arma que ele detinha.

23. O arguido agiu dessa forma devido ao conflito anterior em que se viu envolvido com B ... .

24. O arguido quis igualmente trazer consigo a arma e munições, bem sabendo que tal não lhe era permitido, por não ser titular de licença ou autorização para o efeito.

25. Mais sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

26. Ao almoço desde mesmo dia, o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas, apresentando a taxa de 0,50g/l pelas 19 horas, momento em que foi feita a colheita de sangue para o efeito no Hospital de Aveiro, para onde foi conduzido imediatamente após os factos.


*

27. O arguido nasceu a 15 de novembro de 1951, sendo filho de mãe solteira, não tendo sido estabelecida a paternidade em virtude de o pai ser casado.

28. Com o progenitor e com os irmãos nunca o arguido manteve qualquer relacionamento.

29. O seu processo de crescimento e de desenvolvimento decorreu num seio familiar de baixo estrato socioeconómico e cultural, marcado por fortes carências materiais, afetivas e relacionais.

30. Até aos 9 anos, residiu com a mãe e o avô materno, num contexto familiar disfuncional, com a adoção de posturas agressivas por parte dos adultos, em termos verbais e físicos, para com ele, e com privações económicas.

31. A economia doméstica do agregado de origem assentava na atividade profissional que a mãe e o avô exerciam no âmbito da agricultura, por conta própria.

32. O arguido concluiu a 4ª classe aos 9 anos de idade, tendo o seu percurso escolar sido

marcado por investimento e sucesso, demonstrando competências e vontade de dar continuidade aos estudos.

33. Esteve inscrito na Escola Industrial e Comercial de Águeda, sendo obrigado a abandonar os estudos pela mãe e avô, para que se iniciasse profissionalmente, apesar de ter quem lhos custeasse.

34. Aos 9 anos, iniciou funções como ajudante de padeiro, experiência igualmente marcada por agressões por parte dos patrões, sendo o vencimento auferido entregue à mãe.

35. Face a essa situação, a pedido de uma pessoa sua amiga, integrou outra padaria, onde se manteve em funções até aos 13 anos, a residir em casa dos patrões, gozando de bom ambiente laboral, apesar de a mãe continuar a exigir o seu salário.

36. Face à necessidade de se autonomizar economicamente, passou a exercer idênticas funções noutra padaria, onde permaneceu até aos 20 anos, idade em que ingressou no Serviço Militar.

37. Nessa altura contraiu matrimónio, passando o casal a integrar o agregado da mãe do cônjuge do arguido.

38. Deste casamento nasceram dois descendentes: uma filha, atualmente com 38 anos, casada, licenciada em Românicas e atualmente a exercer funções no âmbito da panificação; e um filho, presentemente com 27 anos, autonomizado e a trabalhar no âmbito da informática e eletrónica.

39. O casal dispôs de uma situação económica estável para criar os filhos, que advinha da atividade profissional que ambos exerciam, por conta própria, numa padaria de sua propriedade.

40. O ambiente familiar era caracterizado por uma dinâmica funcional e pela valorização de práticas educativas consistentes, assentes na supervisão parental, na proximidade afetiva, partilha de rotinas e funções parentais.

41. Nos seus tempos livres, o arguido efetuou serviços de voluntariado, nos Bombeiros Voluntários de Águeda, durante cerca de 30 anos.

42. Presentemente, o arguido reside com o cônjuge, que tem 60 anos e possui a 4ª classe, trabalhando como ajudante de padaria, e a sua mãe, com 87 anos, solteira.

43. Habitam numa vivenda isolada, propriedade do casal, onde no r/c se situa a padaria e o 1º andar é reservado à habitação, com infraestruturas básicas e condições de habitabilidade.

44. O arguido recebe uma reforma no valor mensal de € 258, auferindo o cônjuge o salário mínimo nacional.

45. Praticam ainda uma agricultura e uma criação de animais para consumo próprio.

46. O arguido apresenta estabilidade familiar, num quadro afetivo harmonioso, coeso e de partilha de rotinas quotidianas, havendo níveis de coesão e afetividade com os filhos, com os quais mantém contactos regulares, beneficiando de todo o seu apoio.

47. O arguido privilegia o convívio familiar, existindo espírito de entreajuda, sendo o seu quotidiano ocupado na prática de agricultura de subsistência e também na padaria, propriedade da filha, onde apoia e efetua a distribuição de pão.

48. O arguido beneficia de uma imagem social de integração muito positiva, sendo considerado no meio em que se insere como uma pessoa modesta, pacata, muito correta e trabalhadora, não registando problemas ou conflitos junto dos elementos da comunidade, estabelecendo uma relação cordial e de respeito com os demais.

49. Após os acontecimentos em apreço, não há notícia do seu envolvimento na prática de factos ilícitos.

50. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.

(…)”.

B) Nele foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

- Na semana anterior aos factos o arguido envolveu-se numa zaragata com B ... , culminando em agressões físicas mútuas.

- O arguido considerou que as restantes pessoas estavam a apoiar B ... .

- Com o embate, partiu-se o para-choques do veículo.

- O arguido sofreu ferimentos em consequência da colisão.

- B ... também seguiu no encalço do arguido.

(…)”.

C) Dele consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

1. Quanto aos factos provados, o tribunal coletivo formou a sua convicção com base na análise e valoração crítica dos meios de prova produzidos e examinados em audiência, na medida em que permitiram formar um conjunto factual lógico, coerente e compatível entre si, em conjugação com as regras da experiência comum. Assim:

a) - Atendeu-se, desde logo, às declarações prestadas pelo arguido, na medida em que confirmou as circunstâncias de tempo e lugar em que os factos ocorreram, bem como encontrar-se a conduzir o veículo automóvel, ter embatido com ele na soleira da porta e, subsequentemente, ter o mesmo descaído durante cerca de 30 m, vindo a despistar-se para um silvado, apesar das suas tentativas para o imobilizar.

O arguido admitiu ainda trazer no bolso a pistola e as munições, bem como não ser titular de licença de uso e porte de arma e ter ingerido bebidas alcoólicas ao almoço.

Por fim, confirmou o desentendimento que teve com o referido B ... dias antes, motivado pelo facto de este ter ocupado terreno seu, queixando-se de que “eles lhe roubaram terreno” (sic).

Já no que concerne ao núcleo essencial dos factos em apreço nos autos, concretamente o arguido ter direcionado o veículo para as referidas pessoas, só não as tendo atingido porque elas se conseguiram desviar a tempo, ter proferido a expressão ameaçadora de morte e empunhado a pistola, o mesmo negou frontalmente tal factualidade.

Com efeito, sustentou que, ao fazer a curva que antecede o início da referida reta, o veículo que conduzia fugiu para a berma, ficou com a direção presa e bateu por baixo no solo, tendo ele perdido o seu domínio, seguindo, depois, desgovernado ao longo de toda a reta até embater na casa situada ao fundo da mesma, sendo que não se apercebeu da presença das referidas pessoas, por não conseguir ver nada para a frente, tendo ficado “às escuras dentro da carrinha” (sic), não podendo precisar se o airbag disparou na curva ou aquando do embate na habitação.

Ora, como facilmente se alcança, esta versão apresentado pelo arguido é completamente inverosímil.

Na verdade, considerando que a dita curva é acentuada, formando um ângulo com cerca de 45º de amplitude, conforme referido pela testemunha M..., e que a estrada é relativamente estreita, tal como resulta das fotografias juntas a fls. 18 a 20, pode-se inferir que o veículo não seguiria a uma velocidade particularmente elevada. Por outro lado, a reta tem um comprimento de cerca de 80 a100 metros (conforme referido pela testemunha N..., militar da GNR que se deslocou ao local), e apresenta uma inclinação ascendente, atento o sentido de marcha do veículo, inclinaçãoessa considerável, como se constata das fotografias juntas a fls. 18 e 19. Assim sendo, não se consegue perceber porque razão, a ter perdido o controlo da viatura, o arguido não a logrou imobilizar ao longo daquele percurso, antes de embater no degrau. Não colhe aqui, a alegação do arguido, no sentido de que, dada a aflição em que se encontrava, “não lhe deu para travar” (sic), como seria a reação natural. Aliás, considerando a extensão do percurso, a inclinação ascendente da estrada e a velocidade a que seguiria (depois de desfazer uma curva acentuada e de ter ido à berma), bastaria certamente deixar de acelerar, caso tivesse, por exemplo, ocorrido uma eventual falha de travões, para conseguir imobilizar a viatura antes de chegar junto da casa. E também não se percebe por que razão, ao chegar aí, o arguido não descreveu a curva com que deparou, em vez de ir em frente até embater no degrau.

b) – Mas, para além desta evidente inverosimilhança da versão do arguido, os depoimentos das testemunhas B ... , C ... , F ... , G ... , J ... e D ... , que presenciaram e vivenciaram os acontecimentos, permitiram inequivocamente formar a convicção de que aquele teve o propósito de dirigir o veículo contra o degrau da casa, para atingir quem aí se encontrava sentado.

Com efeito, todos eles, sem contradições ou discrepâncias de relevo, afirmaram, em suma, que o arguido, quando se aproximou do local onde se encontravam, estando apenas a cerca de 5 ou 6 metros, ergueu-se dentro do furgão e, agarrado ao volante, disse que os matava a todos, indo em frente e embatendo no referido degrau, onde estavam sentados quatro deles, os quais seriam indubitavelmente atingidos caso não se tivessem conseguido desviar.

Em relação aos referidos F ... e G ... , todas as testemunhas foram unânimes em afirmar que, atenta a distância a que se encontravam do degrau, não poderiam ser atingidos pelo embate em causa. Já em relação ao J ... , embora ele e as testemunhas B ... e C ... tenham afirmado que também poderia ser atingido pelo veículo, já a testemunha D ... declarou que era natural que não o fosse, por estar um pouco recuado relativamente ao degrau e protegido pelo espigão do reboque do trator. De todo o modo, o certo é que, considerando o concreto ponto onde estava, designadamente, a distância que o separava do degrau e a largura aproximada da frente do veículo, pouco maior que a daquele, subsistiram algumas dúvidas sobre tal facto, as quais tiveram de ser valoradas a favor do arguido.

As testemunhas C ... e G ... aludiram ainda ao facto de o arguido ter aumentado a velocidade à medida que se aproximava.

Estas testemunhas descreveram também, com mais ou menos pormenores, consoante a perceção que tiveram dos factos, o comportamento assumido pelo arguido posteriormente ao dito embate, a abordagem que lhe foi feita, a retirada da pistola e a chegada da GNR, tudo nos termos que essencialmente constam da matéria provada.

É certo que a testemunha E ... , que também se encontrava sentada no degrau, num depoimento que destoou dos demais, afirmou que o arguido circulava com muita velocidade, aos ziguezagues e que a certa altura já não segurou a viatura, bem como que não chegou a sair da mesma e que não o ouviu proferir qualquer expressão.

Todavia, o seu depoimento não nos pareceu credível, não só no confronto com os demais, perfeitamente isentos, mas também pela forma algo comprometida como foi prestado, sendo certo que é prima direita do arguido. Note-se que, ao ser questionada se encontrava alguma razão para não ter ouvido o que as restantes seis pessoas presentes ouviram, a testemunha acabou por afirmar que tal possa ter sucedido por estar nervosa com o incêndio que lavrava nas proximidades.

Todas as mencionadas testemunhas foram unânimes ao indicar o posicionamento de cada uma delas no local, aludindo ainda à relação de parentesco que as demais mantêm com B ... , de quem são filho ( C ... ), tios ( F ... e G ... ), primo afastado ( J ... ), tia ( D ... ) e prima direita ( E ... ).

Não subsistiram, pois, dúvidas, quanto à intencionalidade do arguido, ficando inelutavelmente infirmada a sua versão de que se tratou de um mero acidente de viação.

Aliás, se assim tivesse sido, natural seria que ele o relatasse ao agente da GNR que se deslocou ao local – a testemunha L... , o que não fez, encontrando-se antes exaltado, conforme este referiu.

Como já referimos atrás, esta última testemunha aludiu ainda à extensão da reta, apontando para um comprimento de 80 a100 metros, o que vai ao encontro ao que resulta do croqui junto a fls. 42, donde consta que a viatura ficou imobilizada a 51,5m do ponto do embate, tendo sido afirmado pelo próprio arguido que entre o início da reta e o local onde a carrinha se imobilizou distam cerca de 25 metros.

Para corroborar a sua versão de que tudo não passou de um acidente de viação, o arguido arrolou a testemunha L... , mecânico que procedeu à reparação da viatura e que, em suma, afirmou que a mesma apresentava a correia de acessórios partida, o que provoca, de imediato, a perda da direção assistida, sendo necessário mais força para a manobrar, e, algum tempo depois, a perda dos travões. Porém, a testemunha esclareceu que essa avaria pode ter ocorrido já depois do embate da viatura no degrau, designadamente quando ela se despistou para o silvado, conforme resulta das fotografias juntas a fls. 18 e 19.

Também a testemunha M..., amigo de longa data do arguido, tendo-se deslocado ao local dos factos no final do dia, ao observar a posição em que se encontrava a viatura e as marcas de pneus no alcatrão, pressupôs que o arguido terá entrado na curva com velocidade, perdido o controlo e ido à berma, não mais conseguindo segurar o veículo, indo embater na soleira da porta. Porém, isso não passa de uma mera conjetura e que, pelas razões supra apontadas, vai contra os vários elementos objetivos que, em nosso entender, demonstram que o arguido teve a intenção de dirigir o veículo contra o referido degrau.

c) – Atendeu-se ainda ao depoimento das testemunhas O..., P..., Q... e M..., todos eles amigos do arguido e que, nessa qualidade, descreveram as suas condições pessoais e, particularmente, a forma como é muito bem considerado no meio social em que se insere.

d) – Para além da documentação já mencionada, atendeu-se ainda ao teor dos seguintes documentos, juntos a fls.:

- 13 e 14 (autos de apreensão e de exame direto da pistola, designadamente para as características da mesma);

- 18 a 22 e 43 a 45 (reportagem fotográfica sobre a arma e o local dos factos, atendida também para a perceção da inclinação ascendente da rua);

- 95 (relatório do exame ao sangue efetuado ao arguido, valorado para a taxa de álcool apresentado pelo mesmo);

- 170 (certificado de registo criminal do arguido, donde consta a ausência de antecedentes criminais);

- 207 a 210 (relatório social, atendido para as condições pessoais do arguido, designadamente culturais, sociais, familiares e económicas);

- 215 a 218 (fotografias relativas ao degrau, das quais se pode inferir, nomeadamente, as dimensões aproximadas do mesmo, tendo a testemunha D ... aludido ao seu comprimento).

e) - Especificamente no que concerne ao elemento subjetivo da atuação do arguido, cumpre referir o seguinte:

O tipo subjetivo do crime de homicídio exige o dolo, em qualquer das suas formas, traduzindo-se na intenção de matar (dolo direto) ou, pelo menos, na admissão dessa possibilidade e na conformação com a mesma (dolo eventual). Esse elemento subjetivo constitui o elemento diferenciador entre os crimes de homicídio e de ofensa à integridade física, razão pela qual a sua análise se reveste de particular relevo.

Ora, o dolo, como processo psíquico que é, pertence ao foro interno do agente, sendo insuscetível de apreensão direta. Por isso, tem de ser inferido dos factos materiais que, apreciados com a livre convicção do julgador e conjugados com as regras da experiência comum, apontam para a sua existência.

Sendo assim, a intenção de matar ou, pelo menos, a representação desse resultado como possível e a conformação com o mesmo, há de extrair-se, de modo indireto, de um conjunto de factos do mundo exterior, nomeadamente do tipo de instrumento utilizado, da localização e gravidade das lesões, do modo como o agente atuou, dos motivos subjacentes à sua conduta, do seu comportamento anterior e posterior aos factos, da sua própria personalidade, enfim, de todo o circunstancialismo de ordem pessoal e local que rodeou a prática dos factos. A mera localização e extensão das lesões e o tipo de instrumento utilizado podem não ser suficientes para determinar a existência ou não da intenção de matar, embora possam fazê-la presumir.

Segundo o disposto no art. 127º do Cód. Proc. Penal, na apreciação da prova e partindo das regras da experiência, o tribunal é livre de formar a sua convicção. Todavia, esta regra geral, para além de estar vinculada às regras da experiência comum, comporta as exceções integradas no princípio da prova legal (art.s 84º, 163º, 169º e 344º do mesmo diploma) e está sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, nomeadamente ao princípio da legalidade da prova (art.s 125º e 126º) e ao princípio ”in dubio pro reo”.

Todavia, o princípio da livre convicção na apreciação da prova não se confunde de modo algum com a apreciação arbitrária nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. Antes tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica [Cfr. MAIA GONÇALVES, in Código de Processo Penal Anotado, 12ª ed., pág. 339].

Consequentemente, a apreciação da prova há de ser reconduzível a critérios objetivos e suscetível de controlo, o que pressupõe o dever de fundamentação, que constitui uma das garantias constitucionais de defesa do arguido (art.s 32º e 205º da Constituição da República Portuguesa) e decorre da própria lei ordinária (art.s 97º, n.º 5, e 374º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal). No que concerne à sentença, deve a mesma conter, sob pena de nulidade, a especificação dos factos provados e não provados, bem como a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do julgador, sendo ainda necessário proceder a um exame crítico desses meios, que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral da correta aplicação da justiça no caso concreto.

Se em alguns casos a tarefa de aferir qual a intenção que presidiu à conduta do agente é facilitada pela concludência dos factos, outros há em que coloca várias dificuldades que nem sempre é possível ultrapassar.

No caso em apreço, atenta a concreta forma de agressão, o elevadíssimo potencial perigoso do instrumento utilizado (veículo automóvel), a gravidade das lesões que, previsivelmente, seriam causadas caso as vítimas não se tivessem desviado, a ameaça de morte proferida instantes antes pelo arguido, a circunstância de o mesmo ser portador de uma pistola, municiada com sete munições e trazendo mais oito no bolso, que chegou a empunhar, e a existência de um conflito por questões de propriedade com o ofendido B ... , sendo todos os demais familiares deste, afigura-se-nos seguro afirmar que o arguido teve intenção de atentar contra a vida dos mesmos.

2. Quanto aos factos não provados, e para além do que já resulta diretamente excluído pela matéria provada e da respetiva motivação, a decisão do tribunal derivou da ausência de prova suficiente.

Assim, em relação à alegada zaragata e agressões físicas mútuas entre o arguido e o ofendido B ... na semana anterior, a prova produzida não permitiu ir além da existência de desentendimentos. Com efeito, apesar de o arguido ter afirmado que aquele ofendido o agrediu com um pau, tal facto não foi minimamente corroborado por outro elemento probatório.

Nenhuma referência consistente foi feita sobre o facto de o para-choques do veículo ter ficado partido.

Não obstante o arguido apresentar ferimentos, a ponto de ter sido conduzido ao hospital, o certo é que não se provou que tal sucedeu em consequência da colisão do veículo no degrau ou se devido à sua tentativa de imobilizar a viatura, quando ela seguia desgovernada pela rua abaixo, tendo algumas testemunhas afirmado que o arguido chegou a ir de zorro, perdendo inclusivamente um sapato.

Nenhuma referência foi feita quanto ao facto de também o ofendido B ... ter ido no encalço do arguido.

Também não ficou cabalmente demonstrado que o arguido considerasse que os restantes ofendidos estavam a apoiar aquele, mas apenas que eram seus familiares.

(…)”.

D) E a seguinte fundamentação quanto à escolha e medida das penas:

“ (…).

b) - DA MEDIDA CONCRETA DA PENA

Cumpre agora determinar a pena a aplicar ao arguido, tendo presente que os crimes por ele cometidos são puníveis, em abstrato, com as penas de:

- cada um dos quatro crimes de homicídio, na forma tentada: prisão de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses (art.s 131º, 23º, n.º 2, e 73º, n.º 1, al.s a) e b), do Código Penal);

- o crime de detenção de arma proibida, na forma consumada: prisão de 1 a 5 anos ou pena de multa de 10 a 600 dias (art.s 86º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23-02, e 47º, n.º 1, do Código Penal).

1. Em casos como o presente quanto ao crime de detenção de arma proibida, que é punível com pena de prisão em alternativa com a pena de multa, o disposto no artigo 70º do Código Penal manda dar preferência à pena pecuniária, sempre que ela realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (prevenção geral e prevenção especial).

Não obstante, tal preferência deverá ser arredada no caso concreto, porquanto ao arguido irá ser aplicada também, pelos quatro crimes de homicídio tentado, pena de prisão, prefigurando-se assim, ao menos na prática, os conhecidos inconvenientes das chamadas penas mistas de prisão e multa.

Na verdade, como se refere no acórdão do STJ de 05-02-2004 [2 Publicado no sítio da internet www.dgsi.pt.], desde longa data a voz autorizada do Prof. Figueiredo Dias, entre outros, se manifestou contra o uso "liberal" da multa complementar já que, em seu entendimento, "por mais que esta espécie de pena possua sólida tradição no nosso direito, trata-se nela de uma solução político-criminalmente indefensável e contraditória com os pressupostos de que partiu o legislador de 1982". E mais adiante: "Uma tal pena «mista» é, numa palavra profundamente dessocializadora, além de contraditória com o sistema dos dias de multa: este quer colocar o condenado próximo do mínimo existencial adequado à sua situação económico-financeira e pessoal, retirando-lhe as possibilidades de consumo restantes, quando com a pena «mista» aquele já as perde na prisão! O desaparecimento da pena complementar de multa (e portanto da pena mista de prisão e multa) impõe-se, pois, numa futura revisão do CP, como forma de restituir à pena pecuniária o seu sentido político-criminal mais profundo e de aumentar a sua eficácia penal."

Acresce a gravidade da situação e a reprovabilidade da conduta do arguido, traduzida no facto de ir munido de uma pistola, municiada com sete munições e levando no bolso mais oito, ao que tudo indica já com intenção de atentar contra a vida dos ofendidos, tendo chegado a empunhar tal arma, a qual acabou por lhe ser retirada por dois deles.

Assim, quanto ao crime de detenção de arma proibida cometido pelo arguido, opta-se pela pena de prisão.


*

2. O art. 40º, n.º 1, do Código Penal, na redação introduzida pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março, prevê como finalidade da aplicação de penas e de medidas de segurança “a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. A proteção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto que a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, se reporta à denominada prevenção especial.

O legislador quis, desta forma, oferecer ao julgador critérios seguros e objetivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa. Em conformidade, dispõe o n.º 2 do art. 40º que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Em consonância com estes princípios dispõe o artigo 71º, n.º 1, do mesmo código que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

De acordo com os ensinamentos de Anabela Miranda Rodrigues [O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss.], a medida da pena há de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Mais adianta que “é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – proteção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada – que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exata, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (ótima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a proteção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral”.

A mesma autora apresenta então três proposições em jeito de conclusões e de forma sintética: “Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.

E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, diretamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.

Em suma, o limite mínimo da pena deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral que no caso se façam sentir, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva, ao passo que o limite máximo não deve exceder a medida da culpa do agente revelada no facto, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do mesmo; e, dentro desses limites mínimo e máximo, a pena deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível, sendo, pois, as razões de prevenção especial que servem para encontrar o quantum de pena a aplicar [4 Cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e ss.].

Por seu lado, as várias alíneas do n.º 2 do mesmo artigo elencam, a título exemplificativo, as seguintes circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, devendo o tribunal abster-se de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido:

- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (al. a);

- A intensidade do dolo ou da negligência (al. b);

- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (al. c);

- As condições pessoais do agente e a sua situação económica (d);

- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (al. e);

- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f).

Assim, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente [Vd. acórdão do STJ de 28-09-2005, in Coletânea de Jurisprudência-STJ, 2005, tomo 3, pág. 173.].


*

3. Importa, agora, retirar da matéria de facto provada os fatores relevantes para a determinação das penas concretas, procedendo à sua valoração à luz dos vetores da culpa e da prevenção.

O grau de ilicitude é elevado, atenta a forma bastante violenta de execução do facto, traduzida em direcionar a parte da frente de uma viatura automóvel (furgão), contra um degrau em pedra, onde se encontravam sentados os quatro ofendidos, reduzindo-lhes as hipóteses de reação. O meio ou instrumento utilizado é, pois, dotado de um forte poder agressivo.

O dolo revestiu a forma mais intensa (direto), com reflexos no grau de culpa. No sentido de alguma atenuação desta última, destacam-se os desentendimentos entre o arguido e o ofendido B ... , por questões de propriedade, bem como o facto de o arguido se encontrar sob o efeito do álcool, uma vez que os factos ocorreram pelas 16 horas e tendo ele ingerido bebidas alcoólicas ao almoço, pelas 19h apresentava uma taxa de álcool no sangue de 0,50 g/l.

Sem prejuízo disso, quanto à agressão o arguido revelou forte determinação na sua conduta, uma vez que, depois de ter embatido com o veículo no dito degrau, não conseguindo atingir qualquer dos visados, saiu do mesmo, munido de uma pistola devidamente municiada, que, momentos depois, chegou a empunhar.

Quanto ao crime de detenção de arma proibida, agrava o grau de ilicitude a circunstância de o arguido ter chegado a empunhar a pistola e o número de munições que trazia no bolso, para além daquelas com as quais a arma estava municiada.

Em termos de condições pessoais, são modestas, uma vez que o arguido apenas possui 4ª classe, tendo começado a trabalhar muito jovem, por dificuldades económicas, revelando, ao longo da sua vida, hábitos de trabalho.

Atenta a forma de atuação do arguido, mormente a violência empregue, existem algumas exigências de prevenção geral, aferidas pela necessidade sentida pela comunidade em ver restabelecida a confiança na validade da norma violada.

Também em relação ao crime de detenção de arma proibida se fazem sentir algumas exigências de prevenção geral, pela frequência com que são detidas armas em condições ilegais, potenciando situações de perigo.

Por seu lado, apesar de o processo de crescimento do arguido ter sido marcado por carências materiais e afetivas, ele regista uma trajetória vivencial estruturada, regida por padrões normativos e níveis adequados de estabilidade familiar, profissional e social, não tendo antecedentes criminais. Assim, não se evidenciam particulares exigências de prevenção especial.

Posto isto, afiguram-se-nos adequadas as seguintes penas:

- Por cada um dos quatro crime de homicídio tentado: 3 anos de prisão;

- Pelo crime de detenção de arma proibida: 9 meses de prisão.


*

4. Há agora que efetuar o cúmulo jurídico dessas cinco penas parcelares, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a personalidade do respetivo agente, ou seja, avaliando a gravidade global do seu comportamento delituoso (art. 77º do Código Penal).

4.1 - Para tal, importa obter uma visão conjunta dos factos, a relação existente entre eles e o seu contexto, a sua maior ou menor autonomia, a frequência e a forma de comissão dos delitos, bem como a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos violados e a natureza e gravidade dos crimes cometidos. Por seu lado, na avaliação (unitária) da personalidade do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos, particularmente o número de infrações cometidas, a sua perduração no tempo e a dependência de vida em relação à atividade desenvolvida é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo uma carreira criminosa), ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, sendo que só no primeiro caso e já não no segundo se poderá atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante. Importante será também atender aos motivos e objetivos do agente no denominador comum dos ilícitos praticados e a eventuais estados de dependência.

4.2 – Estão em causa cinco crimes, sendo, porém, quatro deles do mesmo tipo (homicídio) e de idêntica gravidade, perpetrados através no mesmo circunstancialismo e da mesma conduta, mas visando quatro vítimas. O crime restante é de diferente natureza (detenção de arma proibida) e de gravidade substancialmente menor.

Todos os crimes foram praticados no mesmo contexto, estando intimamente conexionados entre si.

Os factos apurados não permitam de modo algum afirmar a existência de uma tendência ou carreira criminosa, tanto mais que ocorreram todos no mesmo circunstancialismo, sendo o arguido primário.

Assim, numa moldura abstrata de 3 anos a 12 anos e 9 meses de prisão, afigura-se-nos adequada a pena única de 5 anos de prisão.


*

5. Uma vez que essa pena única não excede esse limite, cumpre equacionar a possibilidade de a suspender na sua execução.

5.1 - Como é sabido, só se deve optar pela suspensão da pena quando existir um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro. A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, norteado pelo desiderato de afastar o delinquente da senda do crime, tendo em conta as concretas condições do caso. É necessário que o tribunal se convença, face à personalidade do arguido, ao seu comportamento global (anterior e posterior aos factos), à natureza do crime e à sua adequação àquela personalidade, que o facto cometido não está de acordo com a mesma e foi simples acidente de percurso, esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de comportamentos delituosos.

É certo que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, mas antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se pois de uma convicção subjetiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso [Cfr. FIGUEIREDO DIAS, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 344.].

Há que assegurar que a suspensão da execução da pena de prisão não colide com as finalidades da punição. Por um lado, numa perspetiva de prevenção especial, deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado. E por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal. Ou seja, é necessário que a suspensão da pena não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafática das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade. Como escreve Figueiredo Dias [In Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 344.], “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime. Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por essas exigências se limita – mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise”.

5.2 - Vejamos, então, a situação concreta:

Objetivamente, a situação reveste extrema gravidade, atenta a forma de atuação do arguido, o instrumento ou meio utilizado e a forte determinação na sua conduta.

Em termos de comportamento posterior à prática dos crimes, nomeadamente em audiência de julgamento, o arguido não assumiu a sua conduta, antes sustentando que tudo não passou de um acidente de viação, baseando-se numa argumentação completamente inverosímil. Deste modo, o arguido não demonstrou arrependimento nem interiorização do mal do crime, o que é da maior importância para reforçar um juízo de prognose positivo sobre o seu comportamento futuro.

Não obstante esses elementos não militarem a favor da decisão de suspender a execução da pena, o certo é que o arguido, presentemente com 62 anos de idade, é delinquente primário, não havendo, também, notícia do seu envolvimento na prática de outros factos ilícitos posteriormente aos acontecimentos.

Por outro lado, o arguido mostra-se perfeitamente inserido do ponto de vista social, familiar e profissional, num quadro estável, afetivo, coeso e harmonioso, beneficiando de uma imagem social muito positiva, sendo considerado no meio em que se insere como uma pessoa modesta, pacata, muito correta e trabalhadora, não registando problemas ou conflitos junto dos elementos da comunidade, estabelecendo uma relação cordial e de respeito com os demais.

Perante tudo isto, parece-nos admissível a formulação de um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do arguido, sendo prudente concluir que a simples censura do facto e a ameaça da execução da pena serão suficientes para evitar a repetição de comportamentos delituosos.

E pese embora as acentuadas exigências de prevenção geral em relação a crimes com esta gravidade, no caso vertente afigura-se-nos que não se opõem à suspensão da pena, atendendo às referidas circunstâncias sobre as condições pessoais do arguido.

Assim, ao abrigo do disposto nos art.s 50º, 52º, n.ºs 2, al. b), 3, 53º e 54º, n.º 3, todos do Código Penal, será de suspender a execução da pena por período igual ao da sua duração, acompanhada de regime de prova (obrigatório atenta a medida da pena concreta), por tal poder favorecer a ressocialização do arguido, assente num plano individual de readaptação social, a definir e a executar com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social.

Por seu lado, atenta a elevada gravidade dos factos, afigura-se-nos que, para aperfeiçoar o sentimento de responsabilidade do arguido, ao abrigo do disposto no art. 51º, n.º 1, al. c), do mesmo diploma, será de condicionar a suspensão da pena à entrega a uma instituição (neste caso aos Bombeiros Voluntários de Águeda) de uma contribuição monetária que, em função da remediada situação económica do arguido, deverá ser fixada em € 3.000, a ser entregue parcelarmente ao longo do período de um ano.

            (…)”.


*

*


            Do erro notório na apreciação da prova

            1. Afirmando a existência de erro notório na apreciação da prova gravada, com expressa invocação do art, 410º, nº 2, c) do C. Processo Penal, resulta da conjugação da alegação do arguido que consta do corpo da motivação, conjugada com as conclusões formuladas que o que, preferencialmente visa é impugnar os pontos 3 a 5, 8, 11 e 15 a 19 dos factos provados, por entender, além do mais, que diversos depoimentos prestados na audiência de julgamento conjugados com as regras da experiência comum, imporiam decisão diversa.

            Significa isto que o recorrente invoca um vício da decisão e, simultaneamente, deduz impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do art. 412º do C. Processo Penal, esquecendo, como, aliás, se vem tornando indesejavelmente frequente, que se trata de dois distintos mecanismos de sindicar a decisão de facto, tendo a impugnação ampla da matéria de facto por objecto a justeza da valoração da prova produzida na audiência de julgamento – e daí que, quando nela se incluam meios de prova por declarações, estas tenham que ser ouvidas pelo tribunal de recurso, dentro das limitações assinaladas na lei – enquanto o regime dos vícios da decisão e agora, especificamente, o do erro notório na apreciação da prova atende exclusivamente ao texto da decisão conjugado com as regras da experiência comum – sendo, para o respectivo conhecimento, interdita a análise da valoração prova produzida em audiência feita pela 1ª instância.

            Em todo o caso, o conhecimento dos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal é oficioso – Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995 – pelo que se impõe verificar se o acórdão recorrido deles padece ou não.

            Existe erro notório na apreciação da prova quando esta é valorada contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª, Edição, pág. 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 6ª Edição, pág., pág. 74).

Balizado, com a brevidade que se impõe, o vício invocado, cumpre agora comprovar a sua existência.

2. Tendo em conta o que supra se deixou dito, o arguido alegou que o degrau mencionado no ponto 3 dos factos provados, ao ter, como se considerou provado, a largura de cerca de 1,30m, não podia aí alojar, sentados, quatro adultos de estrutura física para o forte, já que cada um necessitava, para se sentar, de 50 cm, impondo-se, por isso, que se considerasse apenas como provado, relativamente ao ponto 5 dos factos provados, que no degrau se encontravam sentadas duas ou três pessoas.

É certo que no ponto 3 dos factos provados se considerou como tal, que encostado à parte inferior da soleira da porta de entrada da casa referida no ponto 2 dos mesmos factos, existe um degrau em granito, com cerca de 1,30m de largura e 70 cm [e não, 30 cm, como, certamente por lapso,consta da transcrição efectuada no corpo da motivação] de profundidade, e é também certo que no ponto 5 dos mesmos factos se considerou provado estarem sentados no degrau B ... , C ... , D ... e E ... .

Sucede que não vemos que exista qualquer impossibilidade física de quatro adultos se sentarem no dito degrau, tanto mais que o poderiam fazer ocupando as laterais [a profundidade, como é dito no ponto 3 dos factos provados], sem esquecer que a tanto não obstaria a estrutura física forte invocada que, contudo, é apenas afirmação do arguido, sem demonstração nos factos provados.

Não ocorre aqui, portanto, qualquer violação de regra da experiência, da lógica ou da física, pelo que indemonstrado fica o invocado vício.

Numa outra perspectiva, o arguido, visando agora os pontos 8 e 11 dos factos provados, alegou que na motivação de facto do acórdão se escreveu que as testemunhas foram unânimes em afirmar que só avistaram o arguido quando o veículo que ele se encontrava a cerca de 5/6 m do local onde estavam, o que significa que, se o arguido tivesse acelerado o veículo na aproximação, como se diz no ponto 10 dos mesmos factos, não teriam as testemunhas tido tempo para fugirem pois, se o veículo seguisse a 40 km/h demoraria 0,54 s a atingi-las, sendo certo que se seguisse a 10 km/h demoraria 2,16 s, tempo este também insuficiente para se desviarem, pelo que, haveria que concluir, pelas suas declarações e depoimentos das testemunhas E ... L... , que o veículo vinha aos ziguezagues, pela perda de direcção e travões.

Na motivação de facto do acórdão escreveu-se que o arguido afirmou que na curva antecedente havia ficado com a direcção presa que bateu por baixo, e que perdeu o domínio do veículo, que a testemunha E ... afirmou que o arguido circulava com velocidade, aos ziguezagues e que deixou de segurar a viatura, e que a testemunha L... afirmou que a carrinha a correia de acessórios partida, o que causa a perda da direcção assistida e, algum tempo depois, dos travões, e que a avaria podia ter ocorrido depois do embate no degrau, designadamente, com o despiste para o silvado.

Sucede que na mesma motivação de facto se explicam, com meridiana clareza, as razões que determinaram o tribunal colectivo a afastar a possibilidade de na origem do ‘incidente’ estar uma avaria mecânica do veículo, começando pela descrição física da via – curva seguida de recta com cerca de 80/100m, no topo da qual se situa a casa com o degrau onde se sentavam as testemunhas – com considerável inclinação ascendente, o que tornaria inverosímil a existência de uma avaria ao realizar aquela curva – na versão apresentada pelo arguido – pois, a ter existido, nem seria preciso travar, bastaria não acelerar o veículo, para ele se imobilizar muito antes de atingir a casa, e acabando nos depoimentos das testemunhas B ... , C ... , F ... , G ... , J ... e D ... , todos concordantes em afirmarem que o arguido, quando se encontrava a cerca de 5/6 m deles, se ergueu dentro da viatura, agarrado ao volante, dizendo que os ia matar a todos [e não, que afirmaram que só avistaram o arguido quando o veículo que ele se encontrava a cerca de 5/6 m sendo certo, aliás, que, pelo menos as testemunhas F ... e J ... afirmaram terem percepcionado o embate quando a viatura estaria a cerca de 10 m] e foi embater no degrau, sem deixar de mencionar as razões que conduziram à desconsideração do depoimento da testemunha E ... [a contradição do seu depoimento com os demais depoimentos e a forma comprometida como o prestou].    

Também aqui não descortinamos a existência de erro e muito menos, de erro com as características exigíveis para que pudesse ser qualificado como erro notório na apreciação da prova. Com efeito, não só não se vê que regra da experiência comum possa ter sido violada [o exercício ensaiado pelo arguido quanto ao tempo necessário para as testemunhas não serem colhidas pelo veículo falha na primeira premissa, a de que as testemunhas se aperceberam da viatura quando esta se encontra a cerca de 5/6 m, pois, para além do esclarecimento supra feito, tal não consta como provado no ponto 11 dos factos provados, nem é afirmado na motivação de facto da sentença] como na motivação de facto se mostra explicada de forma lógica, racional e sustentada na prova produzida, a versão do acidente dada como provada pelo tribunal a quo.

Por outro lado, também se não evidencia no acórdão a existência de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada nem de contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão

Em suma, o acórdão recorrido não padece de qualquer dos vícios previstos no art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal.


*

            Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e a violação do princípio in dubio pro reo

            3. Como se disse já, o arguido impugnou a decisão da matéria de facto relativamente aos pontos 3 a 5, 8, 11 e 15 a 19 dos factos provados.

            Relativamente aos pontos 3 a 5, 8 e 11, face aos termos em que a impugnação foi deduzida, para além do que se deixou dito no ponto 2 que antecede, para onde se remete, cumpre apenas dizer que os concretos meios de prova indicados pelo arguido – as suas próprias declarações e os depoimentos das testemunhas E ... e L... – como impondo decisão diversa são, em si mesmos, e pelas razões supra apontadas – com significativo peso na imediação da prova efectuada pelo tribunal colectivo – insusceptíveis de produzirem tal efeito processual.

            Relativamente aos pontos 15 a 19, diz o arguido que as testemunhas D ... , E ... , F ... e G ... afirmaram não o terem visto a empunhar a pistola, apenas tendo dito que, ou o C ... ou o J ... lhe tiraram a pistola do bolso, e que não merece credibilidade o depoimento da testemunha C ... pois, se fosse seu propósito [do arguido] atentar contra a vida das testemunhas e, designadamente, contra a do C ... , ao aperceber-se da presença desta, se tivesse a arma empunhada, não a iria colocar no bolso, de modo a que a testemunha o agarrasse, imobilizasse e lha retirasse, daqui resultando igualmente que não tinha intenção de atentar contra a vida de quem se encontrava sentado no degrau.   

            Começaremos por dizer que só com alguma benevolência se pode considerar que o arguido deu cumprimento ao ónus previsto no art. 412º, nº 4 do C. Processo Penal. Quanto ao mais, o tribunal da Relação ouviu os depoimentos das testemunhas mencionadas e na parte relativa ao episódio da detenção e uso da pistola feitos pelo arguido, a que se referem os pontos de facto sindicados, deles resultando, com relevo, as seguintes afirmações:

            - D ... : o C ... tentou tirar a arma ao arguido; eles tiraram-lhe a arma; estavam a dezenas de metros, não viu a pistola;

            - E ... : disseram que o arguido era capaz de trazer uma arma, disseram que ele pôs a mão no bolso, não o viu por a mão no bolso nem viu que ele tivesse a arma;

            - F ... : após o embate da carrinha na soleira da porta ficou de tal maneira desnorteado que foi logo para casa;

            - G ... : depois do embate da carrinha ficou atemorizada, foi para casa e não assistiu a mais nada;

            - C ... : depois do embate da carrinha na soleira da porta a viatura começou a deslizar pela estrada e o arguido agarrou-se a ela e foi com ele para baixo; sabendo que o arguido já havia puxado de arma para o seu pai, o depoente colocou-se à entrada da casa deste, atrás de um azevinho e viu o arguido vir já estrada acima com a pistola na mão; o arguido viu o depoente e guardou a pistola no bolso, o depoente atirou-se a ele e imobilizou-o e foi então que o seu tio tirou a pistola do bolso do arguido;

            - J ... : depois do embate o arguido saiu da carrinha, esta começou a deslizar e ele foi agarrado ao volante até ela parar; depois o arguido veio para cima e junto à casa do C ... este deu-lhe um abanão e pagaram-se os dois, ficando o arguido deitado no chão; o depoente, entretanto, aproximara-se de ambos e viu o arguido meter a mão no bolso, como sabiam que ele tinha uma pistola por uma questão corrida na véspera, tirou-lha do bolso.    

            Tal como é afirmado pelo recorrente, as testemunhas D ... , E ... , F ... e G ... nunca afirmaram terem visto uma arma de fogo na sua mão mas, em bom rigor, coisa diferente não é afirmada na motivação de facto.

            Porém, a testemunha C ... – de todos, o que, então, se encontrava mais perto do arguido, uma vez que estava colocado à entrada da casa da família, sensivelmente a meio caminho entre o lugar onde se imobilizou a carrinha e a casa a que pertence o degrau atingido [cfr. fls. 18 e 19, igualmente mencionadas na motivação de facto] – afirmou ter visto o arguido com pistola na mão, tendo-a guardado no bolso quando se apercebeu da sua presença. E não se vê que exista na credibilização desta versão uma valoração bizarra da prova, na medida em que, não só o arguido não questiona que lhe foi retirada e apreendida a pistola mencionada no ponto 13 dos factos provados, municiada com sete projécteis, como o cometimento da tentativa de homicídio que lhe foi imputada não passava pela utilização da referida arma. Variadas podem ter sido as razões que determinaram o arguido a, ao deixar a carrinha, trazer na mão a pistola, mas não foi seu propósito utilizá-la e daí que, ao ver a testemunha, tenha guardado a arma. Mas, contrariamente ao pretendido pelo arguido, o que daqui não pode inferir-se é que, quando dirigiu a carrinha contra quem estava sentado no degrau, gritando o que gritou, não teve intenção de atentar contra as respectivas vidas pois que se trata de momentos bem distintos e com dinâmicas bem diferentes.

            Em conclusão do que antecede, os meios de prova indicados pelo arguido como impondo decisão diferente tendo por objecto os sindicados pontos 3 a 5, 8, 11 e 15 a 19 dos factos provados são insusceptíveis de imporem a pretendida modificação da matéria de facto, sendo certo que se encontram outrossim suportados pelos meios de prova produzidos na audiência de julgamento, valorados à luz do disposto no art. 127º do C. Processo Penal.

            4. Entende, por último, o arguido que, face à incerteza como ocorreu o embate e as circunstâncias que o envolveram, a dúvida insanável sobre a prática dos factos e a inexistência de ónus que sobre si recaia que imponha a demonstração da sua inocência, se impõe a sua absolvição por força do princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência. Vejamos.

O pro reo, decorrência do princípio da presunção de inocência (art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa), dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao julgador que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido. Produzida a prova, se no espírito do juiz subsiste um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.
Na fase de recurso, a detecção da violação do pro reo passa pela sua notoriedade, face aos termos da decisão. Tem que resultar clara e inequivocamente do texto da decisão que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.
Em todo o caso, a dúvida relevante de que cuidamos, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas a dúvida que este não logrou ultrapassar.
Lido o acórdão recorrido, particularmente, a sua motivação de facto, dele não resulta que os Mmos. Juízes que integraram o tribunal colectivo tenham permanecido na dúvida quanto a qualquer dos factos que consideraram na decisão, sendo certo que na motivação de facto foi exposto de forma clara e facilmente apreensível todo o processo lógico que conduziu à certeza alcançada sobre os factos integradores do objecto do processo, plasmados na decisão de facto proferida.

Conclui-se pois não se mostrar violado o in dubio pro reo nem, por via dele, violada a presunção de inocência constitucionalmente consagrada.

Deste modo, considera-se definitivamente fixada a matéria de facto, nos exactos termos em que o foi pela 1ª instância.

*

Da excessiva medida da pena e da impossibilidade de cumprimento da condição imposta
            5. Alega o arguido ter o acórdão recorrido violado o disposto nos arts. 50º, 51º, 70º e 71º do C. Penal por, em seu entender, a pena que lhe foi aplicada, de cinco anos de prisão suspensa pelo mesmo período sob condição de entrega de € 3.000, no prazo de um ano, aos Bombeiros Voluntários de Águeda, ser manifestamente excessiva, tendo em conta a forma como os factos ocorreram, a sua imagem social, o montante da sua reforma e o salário mínimo auferido pelo seu cônjuge.
            Apesar de sindicar a medida da pena única que lhe foi aplicada, o arguido não indicou como norma violada a do art. 77º do C. Penal mas apenas as que, no mesmo código, consagram os critérios de escolha e determinação da medida da pena, parcelar, bem entendido. Posto isto.

Dispõe o art. 40º, nº 1 do C. Penal que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. E dispõe o nº 2 do mesmo artigo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Prevenção e culpa são, assim, os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena (art. 40º, nºs 1 e 2, do C. Penal), reflectindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena.

A medida da pena resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – [prevenção geral positiva ou de integração] – temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.

Muito frequentemente a determinação da pena, em sentido amplo, passa pela operação de escolha da pena, o que sucede, designadamente, quando o crime é punido, em alternativa, com pena privativa e com pena não privativa da liberdade. Nestes casos, o critério de escolha da pena encontra-se fixado no art. 70º do C. Penal segundo o qual, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.  

Escolhida a pena, há que determinar a sua medida concreta. Para tanto, o tribunal deve atendera todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal). Entre outras, haverá então que ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).

6. In casu, o arguido foi condenado, pela prática de quatro crimes de homicídio tentado na pena de 3 anos de prisão por cada um, pela prática de um crime de detenção de arma proibida na pena de 9 meses de prisão e, em cúmulo, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na respectiva execução por idêntico período.

Só ao crime de detenção de arma proibida é aplicável, em alternativa, pena privativa ou pena não privativa da liberdade. O tribunal colectivo optou, quanto a este crime, pela aplicação de pena de prisão, opção que o recorrente não contesta e que, em nosso entender, não merece censura, atenta a anterior utilização de arma de fogo pelo arguido – cfr. ponto 15 dos factos provados – e o concreto circunstancialismo dos autos, que sublinha de forma particular as exigências de prevenção geral.

Quanto ao mais.

No acórdão recorrido, relativamente aos crimes de homicídio, ponderou-se a considerável ilicitude do facto, atento o seu modo de execução, a elevada intensidade do dolo, que foi directo, ainda que temperada pela TAS de que era portador e pelos desentendimentos que tinha com o ofendido B ... por questões de propriedade. Relativamente ao crime de detenção de arma proibida, considerou-se agravada a ilicitude, em função da quantidade de munições que o arguido trazia no bolso.

Foram consideradas significativas as exigências de prevenção geral relativamente a todos os crimes praticados, mas não foram consideradas particularmente relevantes as exigências de prevenção especial, dada a estabilidade profissional, familiar e social do arguido e a inexistência de antecedentes criminais ainda que, cumpre acrescentar, o arguido não tenha assumido comportamento revelador de ter interiorizado o desvalor da sua conduta e a necessidade da sua censura penal.

Tendo por base estas circunstâncias, o tribunal colectivo decretou para cada um dos homicídios tentados – numa moldura abstracta de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão – uma pena concreta situada abaixo do primeiro oitavo da respectiva moldura abstracta, e para o crime de detenção de arma proibida – numa moldura abstracta de 1 ano a 5 anos de prisão – uma pena concreta fixada, certamente por lapso, abaixo do mínimo legal.

Sendo manifesto que as circunstâncias agravantes se sobrepõem às atenuantes, e sendo significativas as exigências de prevenção geral, as penas parcelares não merecem a censura que, implicitamente, lhes faz o recorrente.

7. Relativamente à pena única decorrente do concurso de crimes, cumpre dizer que a punição do concurso é feita pela aplicação de uma pena única, a extrair de uma nova moldura penal que tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa – (art. 77º, nº 2 do C. Penal), ponderando-se na determinação respectiva medida concreta, conjuntamente, os factos e a personalidade do agente (art. 77º, nº 1 do C. Penal).

O elemento aglutinador dos vários crimes em concurso que vai determinar a pena única é a personalidade do agente. Impõe-se, por isso, a relacionação de todos os factos entre si, de forma a obter-se a gravidade do ilícito global, e depois, relacionar cada um deles, e todos, com a personalidade do agente, a fim de determinar se estamos perante uma tendência criminosa, caso em que a acumulação de crimes deve constitui uma agravante dentro da moldura proposta ou se, pelo contrário, tal cumulação é uma mera ocasionalidade que não radica na personalidade do agente. E aqui, nota Figueiredo Dias, cuja lição vimos seguindo (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 291 e seguintes), de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

Todos os crimes que integram o concurso foram cometidos nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, sem esquecer que os de homicídio foram executados pela mesma acção do arguido, o que permite afirmar que estamos muito longe de uma tendência criminosa, tudo levando a crer que se tratou de um mero episódio, grave, embora, na vida do arguido.

Deste modo, porque o concurso não deve funcionar como agravante, atenta a moldura penal proposta – 3 anos a 12 anos e 9 meses de prisão – entendemos que a pena única decretada, porque situada ainda em ponto inferior ao primeiro quarto daquela moldura, para além de estar plenamente suportada pela culpa do arguido, não merece o reparo que lhe é feito no recurso, face à sua manifesta benevolência.

Em conclusão, deve manter-se a pena de 5 anos de prisão fixada ao arguido no acórdão recorrido.

8. Finalmente, pretende o arguido que a condição imposta à suspensão da execução da pena de prisão representa um dever cujo cumprimento não está em condições de assegurar, atentos os seus rendimentos e a quantia que está obrigado a entregar, sendo, nessa medida, violadora do disposto no art. 51º, nº 2 do C. Penal. Vejamos.

Resulta dos pontos 42 a 47 dos factos provados que o arguido vive com a mulher e com a mãe em vivenda própria, que o arguido aufere a reforma mensal de € 258 e a mulher o salário mínimo nacional como ajudante de padaria, que o arguido e a mulher praticam agricultura e criação de animais para consumo próprio, e que o arguido trabalha ainda na padaria da filha, estabelecimento que funciona no rés-do-chão da vivenda do casal.

Por outro lado, nos termos do acórdão recorrido, a suspensão da execução da pena única de prisão foi condicionada à entrega da quantia de € 3.000 pelo arguido aos Bombeiros Voluntários de Águeda, no prazo de um ano.

Dispõe o nº 2 do art. 51º do C. Penal que os deveres impostos como condição da substituição da pena de prisão, não podem representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir. A exigibilidade do cumprimento no caso concreto prende-se com a adequação e proporcionalidade do dever fixado aos fins preventivos visados com a sua fixação (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 351).

Ora, se é verdade que a quantia fixada corresponde a pouco menos do total anual das pensões de reforma auferidas pelo arguido, é também verdade que o arguido tem outras fontes de rendimento que, não sendo ostensivas, lhe tem proporcionado razoáveis meios de subsistência.

Assim, não podendo esquecer-se que o dever fixado visa reparar o mal do crime (art. 51º, nº 1 do C. Penal), reconhecendo-se embora que a sua satisfação significará sempre um sacrifício importante para o arguido, ele não se revela, in casu, incomportável, excessivo, nem desrazoável.

Mantém-se pois, o dever condicionante da suspensão da execução da pena de prisão, nos exactos termos em que foi fixado na decisão recorrida.


*

*


            Com a improcedência das conclusões do recurso, impõe-se a manutenção do acórdão em crise.

*

*


            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o acórdão recorrido.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs. (arts. 513º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9 e tabela III do R. das Custas Processuais).


*


Coimbra, 25 de Fevereiro de 2015


 (Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves – adjunto)