Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1602/89. 0TBCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: APREENSÕES
RESTITUIÇÃO
PRESCRIÇÃO A FAVOR DA FAZENDA NACIONAL
Data do Acordão: 10/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 186º,2,3, 374º, 3 CPP,14º DO DEC. N.º 12487, DE 14-10-1926
Sumário: Bens que não foram declarados perdidos a favor do Estado não podem ser declarados prescritos a favor da Fazenda Nacional.
Decisão Texto Integral:
I - RELATÓRIO

M..., arguida e requerente nos autos, veio interpor recurso do despacho judicial, de 2-4-2009 que, declarando prescritos a favor da Fazenda Nacional as quantias e os bens apreendidos nos autos (e que não haviam sido já declarados perdidos a favor do Estado), indeferiu a requerida entrega de uma pasta de documentos e de parte do dinheiro depositado em nome de J... (o seu falecido companheiro) no BES e no Millennium BCP.

São as seguintes as conclusões da motivação de recurso:
1- Os bens em causa não foram declarados perdidos pelo que deverão ser restituídos.
2- Tendo falecido o arguido na pendência do processo deveriam ter sido notificados os herdeiros com a advertência de que não os reclamando prescreveriam a favor do Estado e, isto caso se entendesse que tais importâncias estavam depositadas à ordem do Juiz - o que nem é o caso.
3- As importâncias não estavam depositadas a favor dos autos, mas apenas congeladas as contas.
4- À data do Acórdão, "a parte" não podia pedir tais valores por ter falecido.
5- Com a morte do arguido os bens passaram a ser da herança e da comunhão resultante da união de facto.
6- A inércia do Tribunal ao não notificar os bancos e, ou, os herdeiros não pode prejudicar a recorrente e outros,
7- Pois seria "venire contra factum proprium" nítido abuso de direito.
8- Artigo 334º do C.C. violado.
9- Aplicou o Tribunal "a quo" o D.L. 12487 já revogado e, mesmo que não estivesse, inaplicável em processo crime.
10- Também não é aplicável o D.L. 187/70.
11- Violou ou mal interpretou o Tribunal "a quo" o artigo 374º-3-c) do CPP.
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A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso, por considerar que “a decisão em recurso fez uma correcta interpretação e aplicação da lei, pelo que deverá ser mantida”.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, concordando com a resposta à motivação do recurso (apresentada na 1ª instância), emitiu parecer também no sentido da improcedência do recurso.
Os autos tiveram os vistos legais.
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II – FUNDAMENTAÇÃO

Consta do despacho recorrido (por transcrição):
Requerimento de fls. 2400:
Conforme referido na douta promoção que antecede, foi ordenado, no âmbito dos presentes autos, o congelamento das contas bancárias existentes em nome de cada um dos arguidos pelo M.mo Juiz de Instrução Criminal.
Em cumprimento de tal despacho o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa e o Banco Português do Atlântico procederam ao arrolamento do saldo destas contas bancárias, concretamente, o primeiro, ao arrolamento do saldo da conta n.º 07/410/80056/000.3 e o segundo dos saldos das contas n.º 2348306/011 e 2348314/011, em nome do arguido J....
Foram também apreendidos, no âmbitos dos presentes autos, e na sequência de buscas efectuadas às residências de J... e de M... (ora requerente), vários objectos e documentos - cfr. fls. 46, 48 e 52.
Este arguido, J..., veio a falecer no dia 11/8/1991, tendo em consequência sido declarado extinto o procedimento criminal relativamente a este arguido, por despacho de 8/7/1992.
Por Acórdão proferido a 14/7/92 e transitado em julgado foram os demais co-arguidos F...o, P…, C..., A…, M… condenados e foram declarados perdidos a favor do Estado "os objectos e quantias apreendidos no auto de busca de fls". Ou seja, julgaram-se perdidos a favor do Estado os objectos e quantias apreendidos na sequência das buscas efectuadas no processo.
Ora, pretende agora a arguida M… que lhe sejam entregues parte das quantias que constam das contas bancárias apreendidas e os objectos pessoais que não foram declarados perdidos a favor do Estado, designadamente uma pasta com documentos.
Contudo, julga-se, acompanhando o doutamente promovido, carece de fundamento legal esta sua pretensão.
Efectivamente, relativamente aos objectos apreendidos no processo que não foram declarados perdidos a favor do Estado, rege o disposto no art. 140 do DL 12487, de 14/10, de 1926, nos termos do qual "as quantias em dinheiro apreendidas no processo penal são depositadas à ordem da C.G.D. à ordem do juiz, a fim de serem entregues a final e gratuitamente a quem a elas tiver direito" - n.º 1; no caso de tais objectos não serem reclamados pelas partes no prazo de 3 meses após o trânsito em julgado das decisões finais proferidas nos respectivos processos, eles prescrevem a favor do Estado.
Daqui que se conclua que as quantias e os bens apreendidos nos autos e que não foram já declarados perdidos a Favor do Estado, não tendo sido objecto de qualquer reclamação, prescreveram a favor da Fazenda Nacional, devendo por conseguinte ser indeferido o requerido.

Termos em que se decide:
a) ao abrigo do disposto no art. 14° n.º 2 do DL 12487, de 14/10, de 1926, declarar prescrito a favor da Fazenda Nacional as quantias e os bens apreendidos nos autos e que não foram já declarados perdidos a Favor do Estado.
b) indeferir o requerido.

Notifique.
Oficie à C.G.D. e ao B.E.S.C.L. (actual B.E.S.) e ao B.P.A. (actual Millenium BCP) nos termos doutamente promovidos.

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APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, a questão colocada à apreciação deste Tribunal consiste em saber se, bens que não foram declarados perdidos a favor do Estado (designadamente as quantias apreendidas e depositadas em nome de J... no BES e no Millennium BCP e, bem assim, uma pasta com documentos, esta um bem da recorrente), podem ser declarados prescritos a favor da Fazenda Nacional, sem que o tribunal tivesse diligenciado pela sua entrega.
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Com interesse para a decisão importa considerar:
Nos presentes autos eram vários os arguidos, entre eles o falecido J..., companheiro da arguida M…, ora recorrente.
A título cautelar, foi ordenado o congelamento das contas bancárias dos arguidos (fls. 16), logo com o mesmo efeito prático da apreensão das quantias depositadas, já que as contas não podiam ser movimentadas.
No que respeita ao então arguido J..., a conta domiciliada no BESCL (actual BES), em 9-5-89, apresentava um saldo de Esc. 994.607$00 (fls. 23) e, das três contas domiciliadas no BPA (actual Millennim BCP), em 14-6-1989, uma delas apresentava o saldo de Esc. 3.416.114$60 (fls. 25).
Este arguido J… veio a falecer a 11-8-1991 (fls. 73) e, por despacho proferido em 8-7-1992 (fls. 27) foi declarado extinto o procedimento criminal relativamente ao mesmo. Neste despacho nada foi determinado quanto às contas congeladas do arguido.
Por acórdão proferido em 14-7-1992 (fls. 28/69), transitado em julgado, foram os restantes arguidos condenados, ficando ainda consignado no “dispositivo” que:
«Nos termos do artigo 30º do DL 430/83 declara-se perdido a favor do Estado o veículo de matrícula …. de marca Audi e propriedade de J… e ainda os objectos e quantias apreendidas no auto de busca de fls…».

Como estabelece o artigo 374º, n.º 3 do CPP, o dispositivo da sentença contém a indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime - al. c).
E, nos termos do que dispõe o artigo 186º, n.ºs 2 e 3 do mesmo Código, logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado, sendo as pessoas notificadas para procederem ao seu levantamento em determinado prazo.
Ora, se relativamente à viatura do falecido J... e ainda a objectos e quantias apreendidas na residência daquele (conforme autos de busca para apreensão) o tribunal se pronunciou sobre a sua perda a favor do Estado, nada referiu quanto às contas bancárias que se encontravam congelas no BESCL e no BPA.
Mas, se os bens apreendidos, não sendo declarados perdidos a favor do Estado, têm de ser devolvidos; na situação presente, não tendo o acórdão dado destino aos depósitos bancários congelados, deveria ter sido ordenado o levantamento da apreensão desses depósitos, dando-se conhecimento dessa decisão às respectivas entidades bancárias e notificando-se os herdeiros do falecido J… .
Daqui resulta a nossa discordância com o decidido pelo tribunal a quo quando refere que “as quantias e os bens apreendidos nos autos e que não foram já declarados perdidos a Favor do Estado, não tendo sido objecto de qualquer reclamação, prescreveram a favor da Fazenda Nacional”.
Com efeito, entendemos que a cominação prevista no artigo 14º do Dec. n.º 12487, de 14-10-1926 – a prescrição a favor da Fazenda Nacional – só é aplicável a partir da notificação aos interessados de que devem reclamar os seus bens e de que dispõem do prazo de 3 meses para tal.
No caso vertente, acresce ainda a circunstância do titular daquelas contas congeladas já ter falecido, pelo que incumbia ao tribunal diligenciar pela notificação dos interessados.
Como se salienta no Acórdão da Rel. Évora, de 16-12-2003, in www.dgsi.pt, “a lei presume que a não reclamação de bens apreendidos em processo criminal, no prazo de 3 meses subsequente ao trânsito em julgado da decisão final, evidencia o desinteresse do seu proprietário em reavê-los, sendo esse desinteresse que fundamenta a prescrição prevista no normativo em apreço (cfr. o Parecer da PGR, de 3-6-1964, BMJ 160º, 123), mas tal desinteresse há-de resultar, não de mera ficção da lei, mas de elementos seguros de onde o mesmo se pode extrair, ou seja, os interessados hão-de ser expressamente notificados”.
Deste modo, não tendo o tribunal notificado os sucessores (devidamente habilitados) do id. J…, não é admissível declarar prescrito a favor da Fazenda Nacional as quantias e os bens apreendidos nos autos, e que não foram declarados perdidos a favor do Estado, nos termos em que o fez o despacho recorrido.
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Alega a recorrente que o Tribunal a quo aplicou um diploma já revogado.
Efectivamente o Decreto n.º 12487, de 14-10-1926, foi revogado pelo artigo 5º, al. a) do DL n.º 48/2007, de 28 Agosto.
Todavia, verificando-se uma situação de sucessão de leis processuais no tempo, e tendo o acórdão proferido no autos transitado em julgado há cerca de 17 anos e, considerando-se ainda que um despacho que declare determinado bem prescrito a favor da Fazenda Nacional é meramente declarativo e não constitutivo de direitos, nada obsta a que se aplique o primitivo diploma, ou seja, o Decreto n.º 12487, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 5º do CPP.
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Faz a recorrente uma singela referência na conclusão n.º 10 a que “Também não é aplicável o D.L. 187/70.
Nos termos do que dispõe o DL n.º 187/70, de 30 de Abril (alterado pelos DL n.º 524/79, de 31 Dez. e DL n.º 366/87, de 27 Nov.), consideram-se abandonados a favor do Estado os bens ou valores depositados se, durante o prazo de 15 anos, os titulares não tiverem manifestado por qualquer modo legítimo e inequívoco o seu direito sobre aqueles valores, por exemplo, não os movimentando, não pagando taxas ou não cobrando os eventuais juros – artigos 1º, al. c) e 2º, al. b).
No caso vertente, pese embora o decurso do prazo, não pode o mesmo ser considerado para os aludidos efeitos, por impossibilidade do titular dos valores depositados manifestar o seu direito sobre os mesmos (por ter falecido).
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Alega a recorrente que tendo vivido em união de facto com o falecido J…, durante 20 anos, interpôs acção contra a herança, mulher e filhos do “de cujus”, pedindo que fosse declarado que os valores depositados eram e são compropriedade da Autora, na proporção de metade (proc. 49/08.5TBALD do Tribunal Judicial de Almeida).
A aludida acção terminou por transacção homologada por sentença (fls. 91/94), nos termos da qual Autora e Réus reconheceram que as contas bancárias referidas na petição inicial - BESCL hoje BES e BPA hoje Millennium BCP -, ou quaisquer outras que possam existir em qualquer banco, pertencem à Autora (ora recorrente) na percentagem de 45% e aos Réus na percentagem ali indicada.
Como mencionámos, os valores depositados e os bens apreendidos (que não foram declarados perdidos a favor do Estado), porque não lhes foi dado destino no acórdão proferido nos autos, têm de ser devolvidos aos seus proprietários e, não podem ser declarados prescritos a favor da Fazenda Nacional por falta de notificação para a sua reclamação.
Em consequência, deverá ser revogado o despacho recorrido, e substituído por outro que se pronuncie sobre a pretensão da requerente/recorrente formulada no seu requerimento de fls. 2400 (ou fls. 70 destes autos de recurso, onde requer seja solicitado ao BES e ao Millennium BCP o levantamento da apreensão dos valores ali depositados em nome do falecido J..., informando-se ainda aquelas entidades bancárias sobre a repartição do dinheiro nas proporções estabelecidas na sentença homologatória proferida no proc. 49/08.5TBALD do Tribunal Judicial de Almeida e, bem assim, lhe seja entregue uma pasta de documentos).



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III - DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:
- Conceder provimento ao recurso e, em consequência revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que se pronuncie sobre a pretensão da requerente/recorrente formulada no seu requerimento de fls. 2400
Sem Custas.
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ELISA SALES (RELATORA)
PAULO VALÉRIO