Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
194/17.6YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: DECISÃO ARBITRAL
ACÇÃO DE ANULAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
ANÁLISE CRÍTICA DA PROVA
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA - TRIBUNAL DA RELAÇÃO - SECÇÃO CENTRAL
Texto Integral: S
Meio Processual: ACÇÃO ANULAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTS.205, 154, 607 CPC, LEI Nº 63/2011 DE 14/12
Sumário: 1. Em face do disposto nos art.ºs 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 154º do Código de Processo Civil, deve entender-se que falta a fundamentação se não forem inteligíveis as concretas razões de facto e de direito da decisão - a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório.

2. Especificados os fundamentos de facto e indicados os meios de prova que foram decisivos para a convicção do Juiz-árbitro, não é imprescindível para a validade da decisão arbitral que nesta se mostre efectuada a análise crítica das provas.

3. Está suficientemente fundamentada a decisão arbitral que enuncia, de forma perfeitamente inteligível e apreensível pelos respectivos destinatários, os fundamentos factuais e normativos da decisão, tornando perceptível o iter lógico jurídico seguido na resolução do litígio.

Decisão Texto Integral:











            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:        
           
            I. E (…), S. A., intentou a presente acção contra M (…), pedindo a anulação da sentença arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Distrito de Coimbra proferida, em 07.6.2017, na Reclamação n.º 386/17, que julgou parcialmente procedente essa reclamação e condenou a aí reclamada e ora requerente EDP a pagar à ali reclamante e ora requerida a indemnização[1] de € 1088,37.
            Alegou, em síntese (no que aqui releva): a sentença arbitral é completamente omissa quanto à motivação da decisão de facto e à discriminação dos factos não provados alegados pela autora, o que, salvo melhor opinião, configura uma clara violação do dever de fundamentação, nomeadamente porque não foram elencados os concretos meios de prova que foram decisivos para a convicção do Juiz Árbitro; este limitou-se a indicar, na sentença em apreço, os factos provados de acordo com a sua convicção, formada em audiência de julgamento, in casu 14[2] factos provados, não elencando no entanto os factos não provados e não fazendo qualquer análise crítica da prova produzida em julgamento; deve proceder a presente acção de anulação de sentença arbitral, por violação do dever de fundamentação previsto na LAV (art.º 42º da Lei n.º 63/2011, de 14.12).
            Citada, a requerida não se opôs ao pedido.
            Após, foi solicitada e junta aos autos cópia da acta da audiência de julgamento da dita reclamação (fls. 31 e 34 a 36).
            Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão, sendo que a questão que se coloca é apenas a de saber se a sentença arbitral deve ser anulada por falta de fundamentação.
*
            II. 1. Decorre da aludida acta:
            a) Aberta a audiência realizada em 17.5.2017, inviabilizada a conciliação das partes, a demandante (aqui requerida) pediu a condenação da demandada (aqui requerente) a pagar-lhe a indemnização de € 1088,37 referente a danos nos seus electrodomésticos.
            b) Foram ouvidas seis testemunhas com conhecimento dos factos: a 1ª (electricista), por lhe terem pedido a opinião e haver trabalhado durante muitos anos na reactivação de serviços de energia; a 2ª (empregada doméstica, cunhada doutro reclamante integrado na mesma situação em apreço), residente na zona onde ocorreu o corte de energia; a 3ª (electricista) estava em casa no momento em que a energia foi reposta; a 4ª (engenheiro) era responsável pela manutenção da reclamada tendo recebido relatório desta ocorrência; as duas últimas (electricistas), no desenvolvimento da sua actividade profissional ao serviço de empresa prestadora de serviços à demandada, participaram na operação de restabelecimento de energia na situação em apreço.
            c) Finda a produção da prova o Senhor Juiz-árbitro deu como provados treze factos e fez consignar em acta a seguinte “FUNDAMENTAÇÃO”: “A factualidade dada provada alicerçou-se nos documentos juntos aos autos bem como nos depoimentos da demandante e das testemunhas inquiridas”.
            2. Foram estes os factos atendidos na sentença proferida a 27.6.2017, na qual se expendeu e concluiu: «I. A actividade de distribuição e fornecimento de energia eléctrica, só por si reveste uma natureza perigosa, chamando desde logo à colação o disposto no art.º 493º, n.º 2 do Código Civil, ou seja, quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua natureza, é obrigado a repará-los. II. Tal disposição tem ínsita uma presunção de culpa, invertendo o ónus da prova previsto no art.º 487º do mesmo diploma legal, incumbindo à entidade responsável pela actividade perigosa, neste caso a demandada, ilidir tal presunção, de forma a afastar a culpa presumida.»
            3. Da acta aludida em II. 1., supra, não consta a indicação dos factos dados como não provados.
            Contudo, na fundamentação da sentença arbitral, refere-se que “ficou demonstrado” que “a queda da árvore determinou a falta de energia” (factos 8º e 9º), que “só após 1 h 30 m é que esta foi reposta” (facto 11º), que “foi neste momento que aconteceu uma sobretensão que provocou os danos (facto 12º)” e que “não ficou demonstrado[3], e essa prova incumbia à demandada, que a sobretensão estava latente desde o momento da queda do pinheiro, e que só se terá manifestado quando a energia é reposta”.
            4. Nos termos da Lei da Arbitragem Voluntária/LAV (Lei n.º 63/2011, de 14.12), a sentença deve ser reduzida a escrito e assinada pelo árbitro ou árbitros (art.º 42º, n.º 1, 1ª parte); a sentença deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do art.º 41º (n.º 3 do mesmo art.º).
            A sentença arbitral pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se a parte que faz o pedido demonstrar que a sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.ºs 1 e 3 do artigo 42º (art.º 46º, n.º 3, alínea a) - vi da LAV).
            O tribunal estadual que anule a sentença arbitral não pode conhecer do mérito da questão ou questões por aquela decididas, devendo tais questões, se alguma das partes o pretender, ser submetidas a outro tribunal arbitral para serem por este decididas (art.º 46º, n.º 9 da LAV).
            5. A LAV apenas permite a impugnação da sentença arbitral pela via do pedido de anulação dirigido ao competente tribunal estadual - só prevendo, como forma de reacção à dita sentença, a via do recurso nos casos em que as partes tiverem acordado na recorribilidade da decisão dos árbitros para os tribunais estaduais; o pedido de anulação - que origina uma forma procedimental autónoma, moldada pelas regras da apelação no que se não mostre especialmente previsto no n.º 2 do art.º 46º da LAV - pressupõe a verificação de algum ou alguns dos fundamentos taxativamente previstos na lei, cumprindo, em regra, à parte que faz o pedido o ónus de demonstrar a respectiva verificação; e tal pretensão não envolve um amplo conhecimento do mérito da decisão que se pretende anular, estando a competência do tribunal estadual circunscrita à matéria da verificação do específico fundamento da pretendida anulação (em apurar da verificação dos específicos fundamentos de anulação da decisão arbitral, invocados pela A. na acção), cabendo, mesmo nos casos em que proceda a pretensão anulatória, a reapreciação do mérito a outro tribunal arbitral, nos termos do n.º 9 do citado art.º 46º.[4]
            6. A acção de anulação não comporta reapreciação da prova produzida, nem a apreciação de eventual erro de julgamento ou na aplicação do direito - não permite a pronúncia/reapreciação sobre o mérito da decisão, mas apenas sobre as eventuais nulidades da sentença, contempladas no n.º 3 do citado art.º 46º da LAV.
            7. A sentença arbitral pode ser anulada se foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.ºs 1 e 3 do art.º 42º da LAV.
            Como vimos, um desses requisitos é, precisamente, a fundamentação da sentença (cit. art.º 42º, n.º 3).
            8. Tradicionalmente, invocando-se os ensinamentos do Prof. Alberto Reis, é recorrente a afirmação de que a nulidade da decisão por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que a justificam (cf. o art.º 615º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil/CPC) apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito.[5]
            Porém, no actual quadro constitucional (art.º 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, para que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das correspondentes razões de facto e de direito, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório[6].
            9. Perante o descrito quadro normativo e atenta a fundamentação de facto e de direito mencionada em II. 1., 2. e 3., supra, apenas se poderá concluir pela suficiência da fundamentação da sentença sob censura e, assim, pela improcedência da presente acção de anulação nos termos do art.º 46, n.º 3, vi) da LAV.
            Acabando o Senhor Juiz-árbitro por indicar a factualidade não provada (cf. II. 3., 2ª parte, supra), subsistiria eventualmente, e apenas, a falta da análise crítica das provas (art.º 607º, n.º 4 do CPC), o que - e ainda que, em simultâneo, pudéssemos concluir por falta ou insuficiência de indicação dos factos não provados - nunca seria suficiente para anular a sentença.
               É que, por um lado, a LAV não exige uma fundamentação idêntica à do art.º 607º do CPC - não se exige qualquer tipo específico de fundamentação nem se impõe que sejam expressamente considerados todos os argumentos jurídicos invocados pelas partes. A tendência jurisprudencial claramente dominante é no sentido de que o grau de fundamentação exigido seja menor do que é a prática corrente nas sentenças judiciais... É prudente inserir alguma fundamentação para evitar riscos de anulação ou de recusa de exequatur.[7]
            Depois, se a fundamentação de facto abrange a discriminação dos factos provados e não provados e o exame crítico das provas/motivação (art.º 607, n.º 4 do CPC), a eventual insuficiência na discriminação dos factos não provados e na motivação da decisão de facto nunca poderá conduzir à pretendida anulação.[8]
            Especificados os fundamentos de facto e indicados os meios de prova que foram decisivos para a convicção do Juiz-árbitro, não é imprescindível para a validade da decisão arbitral que nesta se mostre efectuada a análise crítica das provas.
            Tudo isto como corolário do entendimento, maioritário, de que a falta ou insuficiência da fundamentação/motivação da decisão sobre a matéria de facto não constitui vício susceptível de ser qualificado como falta de fundamentação do acórdão (ou sentença) arbitral, não determinando a sua nulidade; nulidade que já se verificará se, v. g., faltar a descrição dos factos tidos por provados.[9]
            10. In casu, resulta da acta da audiência de julgamento que foram então indicados todos os factos dados como provados e a respectiva fundamentação, ainda que sumária, com a indicação dos correspondentes meios de prova; tais factos integraram a sentença, que se encontra fundamentada de direito e contém os demais elementos ditos em II. 2. e 3., supra.
            Analisada a dita sentença, não parece que se possa considerar verificada a invocada nulidade - a decisão proferida (e cujo mérito não cabe sindicar nos presentes autos) é perfeitamente clara e inteligível e encontra-se suficientemente fundamentada, nos planos factual e jurídico, sendo integralmente perceptível o iter lógico jurídico que nela se seguiu para a dirimição do litígio, cumprindo consequentemente, em termos satisfatórios, as exigências legais e constitucionais do dever de fundamentação das decisões judiciais.[10]
            Do mesmo modo, a operada indicação dos factos provados e dos meios de prova que lhes serviram de sustentáculo, satisfaz o imperativo constitucional e processual da fundamentação da decisão (art.ºs 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 154º do CPC).[11]
            E, por isso, não se mostrando violadas as normas da LAV, especificadas pela recorrente como fundamento da pretensão anulatória, nem a exigência constitucional (e da lei ordinária) de fundamentação das decisões judiciais, tem de improceder a peticionada anulação da decisão arbitral.
*
            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a presente acção de anulação de sentença arbitral.
            Custas pela requerente.

      *

21.02.2018

Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Alberto Ruço



[1] Por danos em electrodomésticos da requerida (cf., v. g., fls. 20 verso/40).
[2] Existe lapso, pois são 13 os factos provados - cf. fls. 19/39 e 36 verso.
[3] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[4] Cf., entre outros, o acórdão do STJ de 16.3.2017-processo n.º 1052/14.1TBBCL.P1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[5] Veja-se o Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1984, reimpressão, Vol. V, pág. 140.
[6] Neste sentido, o acórdão do STJ de 02.3.2011-processo 161/05.2TBPRD.P1.S1, publicado no “site” da dgsi.
  No domínio da arbitragem, e em idêntico sentido, vide Dário Moura Vicente, Armindo Ribeiro Mendes, e Outros, in Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, 2º edição, 2015, Almedina, pág. 125: «A jurisprudência dos tribunais estaduais (…) considera que só a falta absoluta de fundamentação - e não a mera insuficiência da mesma - conduz à anulação de decisão arbitral. No entanto, em face do disposto no art.º 205º, n.º 1 do Constituição, deve entender-se que falta a fundamentação se não forem inteligíveis as concretas razões de facto e de direito da decisão...».
[7] Vide Dário Moura Vicente, Armindo Ribeiro Mendes, e Outros, ob. cit., pág. 111.
[8] No sentido de que só a falta absoluta de motivação implicará a nulidade da sentença arbitral invocável através de acção de anulação, cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 17.5.2001, 15.5.2007-processo 07A924, da RP de 09.11.2000, da RL de 02.10.2006-processo 1465/2006-2 e da RC de 09.01.2018-processo 191/17.1YRCBR, o primeiro e o terceiro publicados na CJ-STJ, IX, 2, 89 e CJ, XXV, 5, 87, respectivamente, e, os restantes, no “site” da dgsi.
   Em sentido diverso cf., designadamente, os acórdãos da RP de 11.11.2003-processo 0324038 [concluindo que “numa decisão arbitral é obrigatória a análise crítica dos meios de prova, não bastando a indicação dos meios de prova e da matéria provada” e que “tal omissão provoca a anulação de arbitragem”] e 03.12.2012-processo 227/12.2YRPRT [assim sumariado: I.A sentença arbitral, sob pena de anulabilidade carece de fundamentação de facto ainda que sumária que evidencie de molde concretizado a ponderação dos meios probatórios e o modo como, com base neles o julgador formou a sua convicção. II. E, também à semelhança do prescrito no art.º 659º do Código de Processo Civil, o art.º 23º e 27º da L. 31/86, de 29/8 impõe que seja feito um juízo apreciativo, motivado e justificado, quer dos factos quer do direito que, em termos interpretativos vai aplicar àqueles.], publicados no “site” da dgsi.

[9] Cf., nomeadamente, o citado acórdão do STJ de 15.5.2007-processo 07A924.
[10] Cf. os supra mencionados acórdãos do STJ de 15.5.2007-processo 07A924 e 16.3.2017-processo n.º 1052/14.1TBBCL.P1.S1 [refere-se no ponto III do respectivo sumário: “III. Está suficientemente fundamentada a decisão arbitral que enuncia, de forma perfeitamente inteligível e apreensível pelos respectivos destinatários, os fundamentos factuais e normativos da decisão, tornando perceptível o iter lógico jurídico seguido na resolução do litígio”.] e ainda, entre outros, os acórdãos da RP de 25.11.2014-processo 245/14.6YRPRT, publicado no “site” da dgsi  [assim sumariado: “Procede a acção de anulação da sentença arbitral, por falta de fundamentação, sempre que seja completamente omissa quanto à motivação da decisão de facto e à discriminação dos factos não provados alegados pelo requerente como fundamento da reclamação e as partes não tenham acordado em sentido diverso.”] e o já citado acórdão da RC de 09.01.2018-processo 191/17.1YRCBR.
[11] Cf. o dito acórdão do STJ de 15.5.2007-processo 07A924.