Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
81/14.0TBTBU-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
INSOLVÊNCIA
PESSOA SINGULAR
PLANO DE INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 02/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – SEC. DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 249º E 250º DO CIRE; 620º E 625º DO NCPC .
Sumário: I – De harmonia com o que, sob a epígrafe “Caso julgado formal”, se prevê no artº 620º do NCPC - excluídos os que versam as decisões previstas no artº 630º do NCPC, de que não é admissível recorrer - os despachos (e as sentenças) que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.

II - Supondo, porém, que havendo já sido proferida decisão sobre determinada questão processual, que transitou em julgado, vem a ser proferida posteriormente, no mesmo processo, uma nova decisão sobre a mesma questão concreta da relação processual que foi objecto dessa 1ª decisão e que também transita, diz-nos o artº 625º do NCPC que se cumprirá a decisão que passou em julgado em primeiro lugar.

III - A insolvência de não empresários e de titulares de pequenas empresas encontra a sua regulação específica no capítulo II do CIRE, determinando o n.º 1, alínea a), do artigo 249.º do aludido diploma que: «o disposto neste capítulo é aplicável se o devedor for uma pessoa singular e (...) não tiver sido titular da exploração de qualquer empresa nos três anos anteriores”.

IV - Tratando-se de pessoas singulares declaradas insolventes, que não sejam empresários, é-lhes vedado pelo artigo 250º do CIRE apresentar plano de insolvência.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I - A) - 1) – P… e mulher, S…, residentes …, apresentaram-se à insolvência, por petição entrada no Tribunal Judicial de Tábua em 24/03/2014, requerendo, além do mais, ao abrigo dos artºs 249.º e ss. do CIRE[1], que fosse aprovado e homologado o plano de pagamentos que apresentaram em anexo à petição inicial.
2) - Entre o mais, declararam na p.i.:
- Encontram-se impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas e vincendas, obrigações essas que presentemente ultrapassam os € 107.666,00;
- O Requerente marido aufere um salário mensal líquido de cerca de € 780,00, bem como a Requerente mulher, sendo que ambos auferem, ainda, € 250,00 por mês, a título de renda;
- Em Setembro de 2011 assumiram um pequeno negócio, sendo que tiveram de recorrer novamente ao crédito para pagar o respectivo trespasse.
3) - Em anexo à petição, apresentaram, designadamente:
- Como ANEXO I - DO PLANO DE PAGAMENTOS, documento assinado por ambos, em que declaram, além do mais, serem pessoas singulares e não serem titulares da exploração de qualquer empresa nos três anos anteriores à apresentação da petição inicial do processo de insolvência;
- Documento assinado pelo Requerente onde que este declara ter tido, nos últimos 3 anos, a actividade profissional de vigilante da …, em Viseu;
- Documento assinado pela Requerente onde esta declara ter tido, nos últimos 3 anos, a actividade profissional de Assistente Operacional do Instituto ...
B) - Tendo a aprovação do plano de pagamentos sido recusada pelos credores ..., veio, por despacho 02/06/2014, a ser recursado o pedido de suprimento de aprovação pelos credores (artigo 258.º, n.º 1, als. a) e b), do CIRE), pelo que foi tal pedido indeferido;
C) -1) - Nesse mesmo dia 02/06/2014 foi declarada a insolvência dos Requerentes, tendo sido designada a realização da ASSEMBLEIA DE CREDORES, para apreciação do Relatório a apresentar pelo Administrador de Insolvência, nos termos do art. 156.º do CIRE.
2) - No dito Relatório, o Sr. Administrador de Insolvência, consignou, entre o mais, que os insolventes não eram titulares de qualquer estabelecimento, nem tinham trabalhadores ao seu serviço e propôs que Assembleia de Credores aprovasse “a elaboração de um PLANO DE INSOLVÊNCIA (a ser elaborado pelos devedores) com vista a recuperação da empresa, a apresentar nos termos da alínea a) do n.º 4 do art.º 156º do CIRE, num prazo nunca inferior a 60 dias”.
3) - Na Assembleia de Credores, que teve lugar no dia 12/08/2014, o relatório apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência foi votado favoravelmente por todos os credores presentes, tendo sido requerido por tais credores que “se aguardasse, antes de mais, pela junção aos autos do plano de insolvência previsto no relatório, e posteriormente, se procedesse à designação de data para a realização da Assembleia de Credores, com vista à aprovação, ou não, do plano de insolvência.”;
4) - Na sequência desse requerimento foi proferido para a acta o despacho com o seguinte teor:
“Aguardem os autos o prazo de 60 dias, pela junção do plano de insolvência.
Oportunamente será designada data para a realização da Assembleia de Credores.”.
5) - Tendo sido apresentado pelos Requerentes, em Outubro de 2014, o referido plano de insolvência, o Mmo. Juiz da Secção de Comércio (J2) da Instância Central da Comarca de Coimbra, por despacho de 17/11/2014, decidiu, ao abrigo do disposto no artº 207º, nº 1, a), do CIRE, não admitir a proposta de plano de insolvência em causa, por entender, “ex vi” do artº 250º do mesmo Código, não ser admissível aos insolventes - devedores singulares não empresários - a apresentação de um tal plano.
II - A) - Os Requentes, inconformados, recorreram desse despacho de 17/11/2014, recurso esse que veio a ser admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo;
Na alegação de recurso defenderam que o despacho recorrido enfermava da nulidade prevista no artº 615, nº 1, d), do Código de Processo Civil (Aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho e doravante referido como “NCPC”).
B) - O Mmo. Juiz do Tribunal “a quo”, por despacho de 08 de Janeiro de 2015, decidiu não se verificar tal nulidade.
C) - A terminar a sua alegação de recurso foram oferecidas as seguintes conclusões:
“1. O despacho recorrido, ao ter versado sobre uma matéria anteriormente decidida por despacho transitado em julgado, designadamente, sobre a legitimidade dos recorrentes para apresentarem um plano de insolvência, enferma de nulidade, por violação de caso julgado, nos termos do disposto no artigo 668.º, número 1, alínea d) do CPC;
Sem conceder,
2. O douto despacho recorrido não admite a proposta de plano de insolvência com base num fundamento errado, porquanto ao contrário do que é alegado na petição inicial, e provado pelos documentos n.ºs 22 a 24 que a acompanharam, não reconhece aos recorrentes a qualidade de titulares da exploração de uma empresa nos últimos três anos.”.
Terminaram assim: ”…deverá ser anulado o e alterado o douto despacho recorrido, nos termos expostos, e consequentemente, ser declarada a nulidade de todo o processado subsequente ao mesmo,
Ou, subsidiariamente,
Deverá o douto despacho recorrido ser revogado, reconhecendo-se consequentemente aos recorrentes a qualidade de titulares da exploração de uma empresa nos últimos três anos, e admitindo-se a sua proposta de plano de insolvência”.
III - As questões:

Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do NCPC, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, no âmbito das normas correspondentes do direito processual pretérito, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B35863)[2].
Assim, o que importa verificar aqui, é se o despacho recorrido violou caso julgado formal que se tenha formado sobre o despacho de 12/08/2014, e, em caso negativo, se foi acertada a decisão de não admitir a proposta de plano de insolvência.
IV - A) - A factualidade a ter em conta e os termos processuais a considerar são os que se consignaram em I e II supra.
B) - Se uma decisão se pronuncia sobre uma questão processual de determinada forma e, podendo ser impugnada, não é objecto de reclamação ou de recurso ordinário, forma-se sobre essa questão caso julgado formal que obsta a que, mais tarde, se emita nova decisão sobre ela.
Na verdade, de harmonia com o que, sob a epígrafe “Caso julgado formal”, se prevê no artº 620º do NCPC - excluídos os que versam as decisões previstas no artº 630º do NCPC, de que não é admissível recorrer - os despachos (e as sentenças), que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
Supondo, porém, que havendo já sido proferida decisão sobre determinada questão processual, que transitou em julgado, vem a ser proferida posteriormente, no mesmo processo, uma nova decisão sobre a mesma questão concreta da relação processual que foi objecto dessa 1ª decisão e que também transita, diz-nos o artº 625º do NCPC, que se cumprirá a decisão que passou em julgado em primeiro lugar.
Esta disposição legal reforça a ideia de que o caso julgado formal previsto no 620º do NCPC se refere à vinculação do Tribunal ao julgamento que fez sobre uma questão concreta da relação processual.
Ora, no caso “sub judice”, o despacho recorrido, ao não admitir a proposta de plano de insolvência, por considerar não ser admissível aos insolventes - devedores singulares, não empresários - a apresentação de um tal plano, em nada contrariou o caso julgado (formal) que se considere ter formado o despacho de 12/08/2014, onde se decidiu apenas uma mera questão processual - a de determinar, a requerimento dos credores, que os autos aguardassem o prazo de 60 dias, pela junção do referido plano.
Nessa decisão de 12/08/2014 o que vinculou o Tribunal foi apenas a concessão do dito prazo para a junção do mencionado plano, não tendo o Tribunal feito qualquer apreciação sobre a verificação de qualquer das situações previstas no nº 1 do artº 207º do CIRE, que obstam à admissão da proposta de plano de insolvência.[3]
Inexiste, pois, a invocada violação do caso julgado.
Também não se verifica a nulidade prevista no artº 668º, nº 1, alínea d) do NCPC, pois que uma decisão proferida com violação do caso julgado - que, como se viu, não ocorreu - consubstancia erro de julgamento e não o excesso de pronúncia previsto naquela disposição legal[4], que tem a ver com o conhecimento de questões que as partes não hajam suscitado e que não sejam do conhecimento oficioso, sendo que a não admissão da proposta de plano de insolvência é do conhecimento oficioso do Tribunal.
Sobre a decisão de não admitir a proposta de plano de insolvência, escreveu-se no despacho recorrido, entre o mais:
“No caso em análise, onde se verifica que o insolvente marido há mais de 3 anos que desempenha funções de vigilante numa empresa de segurança privada, e que a esposa há mais de 3 anos trabalha como assistente operacional no Instituto Português …, a questão que imediatamente se suscita é a da admissibilidade, ou não, da apresentação de plano de insolvência por pessoas singulares não titulares de qualquer empresa nos três anos anteriores à instauração do processo de insolvência.
Ora, a resposta a tal questão é dada, de forma direta, pelo artigo 250.º do CIRE.
A insolvência de não empresários e de titulares de pequenas empresas encontra a sua regulação específica no capítulo II do CIRE, determinando o n.º 1, alínea a), do artigo 249.º do aludido diploma que: «o disposto neste capítulo é aplicável se o devedor for uma pessoa singular e (...) não tiver sido titular da exploração de qualquer empresa nos três anos anteriores…”.
(…) em vez do plano de insolvência regulamentado no citado Capítulo IX, o CIRE prevê para os devedores singulares não empresários ou titulares de pequenas empresas a providência específica do plano de pagamento, cujo processamento se encontra plasmado nos artigos 251º.2 a 263º.2 do citado diploma, e que, sendo o pedido de insolvência formulado pelo próprio devedor, deve ser apresentado conjuntamente com esse pedido na petição inicial, o que, aliás, sucedeu no presente caso (1). Os devedores, no caso dos autos, apresentaram um plano de pagamentos aos credores que não veio, contudo, a ser aprovado.
Desta feita, entende-se que o artigo 250.° do CIRE exclui a admissibilidade de apresentação de um plano de insolvência por parte dos ora insolventes, não devendo o concreto plano apresentado por estes, a fls. 111 e ss., ser submetido à apreciação da assembleia de credores.”.
Ora, também esta Relação já decidiu, com argumentação idêntica, no Acórdão de 07/09/2010 (Apelação nº 570/10.5TBMGR-A.C1)[5], que “Tratando-se de pessoas singulares declaradas insolventes, que não sejam empresários, é-lhes vedado pelo artigo 250º do CIRE apresentar plano de insolvência.”
É claro que os Apelantes agora, para contrariar a decisão recorrida, assumem-se como empresários. Mas o facto de terem afirmado na petição inicial que “Em Setembro de 2011 assumiram um pequeno negócio” (artº 13 da p.i.), não faz deles empresários ou titulares da exploração de uma empresa, sendo que roça a má fé a defesa, em recurso, desta qualificação, quando, como mais acima se afirmou (I-A -3)):
Em anexo à petição, apresentaram, designadamente:
- Como ANEXO I - DO PLANO DE PAGAMENTOS, documento assinado por ambos, em que declaram, além do mais, serem pessoas singulares e não serem titulares da exploração de qualquer empresa nos três anos anteriores à apresentação da petição inicial do processo de insolvência;
- Documento assinado pelo Requerente onde que este declara ter tido, nos últimos 3 anos, a actividade profissional de vigilante da …, em Viseu;
- Documento assinado pela Requerente onde esta declara ter tido, nos últimos 3 anos, a actividade profissional de Assistente Operacional do Instituto ...
Enfim, não só a singela alegação feita no artº 13 da pi. não permite ao Tribunal considerar os insolventes como titulares da exploração de uma empresa, como foram eles próprios que negaram essa qualidade.
V - Decisão:
Em face do que ficou exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em, julgando a Apelação improcedente e manter a decisão recorrida.
Custas pela massa insolvente.
Coimbra, 10/02/2015

(Luís José Falcão de Magalhães - Relator)

(Sílvia Maria Pereira Pires)
(Henrique Ataíde Rosa Antunes)


[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
[2] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ que adiante se citarem sem referência de publicação.
[3] Reportando-se ao pretérito CPC, entendeu o STJ que “O despacho em que o julgador recebe os embargos e ordena a notificação da embargada, sem se pronunciar sobre a respectiva tempestividade não constitui caso julgado formal sobre esta, pois o Juiz não a apreciou (art. 672.º do CPC).” (extracto do sumário do Acórdão de 10-01-2008, Revista n.º 4399/07 - 6.ª Secção, consultável em “http://www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios”. 
[4] Cfr o Acórdão do STJ, de 25-11-2008, Revista n.º 3501/08 - 1.ª Secção, com sumário consultável no endereço indicado na nota anterior.
[5] Relatado pelo Exmo. Desembargador Virgílio Mateus.