Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
375/07.0TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTO-ESTRADA
CONCESSIONÁRIO
ÓNUS DA PROVA
LEI INTERPRETATIVA
Data do Acordão: 11/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA AVEIRO JGIC J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.13, 342, 493 CC, LEI Nº 24/2007 DE 18/7
Sumário: I. A norma constante do n.º 1, do artigo 12.º, da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, tem natureza interpretativa e aplica-se aos acidentes de viação ocorridos antes da sua entrada em vigor.

II. Como esta norma coloca o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança a cargo da concessionária, então, encontrando-se um cão na faixa de rodagem da auto-estrada, a concessionária, para cumprir este ónus, tem de provar que na altura do acidente as vedações não permitiam a entrada daquele cão.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

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Recorrentes/Rés A (…)S. A., (…)

..............................Companhia de Seguros (…) S. A., (…)

Recorrido/Autor    AM (…),


*

I. Relatório.

a) O presente recurso tem origem na sentença que condenou as Rés a pagar ao Autor uma indemnização €15.860,00 euros, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal desde a citação até integral pagamento (à qual se subtrai o valor da franquia de €4.987,00 a favor da Ré seguradora), por danos que alegou ter sofrido num acidente de viação, ocorrido no dia 17 de Dezembro de 2005, na Auto-Estrada n.º 25, ao quilómetro 11,075, quando seguia como passageiro, em direcção a Viseu, no veículo ligeiro de passageiros matrícula (...)PI, conduzido pelo seu filho, local onde este foi forçado a travar bruscamente, devido ao aparecimento súbito de um cão à frente do automóvel, que perdeu o controlo do veículo e embateu no separador central.

Considerou-se na sentença que a Ré concessionária era responsável pelos danos e também a Ré seguradora, por força do contrato de seguro celebrado com a primeira, devido ao facto de recair sobre ela uma presunção de culpa e de ilicitude quando ocorrem situações como a dos autos, cabendo-lhe o ónus de provar que cumpriu as regras de segurança, o que não ocorreu no caso dos autos, devido ao facto de existir no local do acidente uma vedação que permitia a entrada de animais com volume corporal semelhante ao cão que surgiu na via.

b) As Rés recorrem, quer das respostas dadas à matéria de facto, quer da solução de direito encontrada para o caso.

Em síntese, porque entendem que o ónus da prova recai sobre o Autor e porque provaram ter cumprido os deveres de vigilância que a situação de facto impunha.

Concluíram assim:

(…)

c) O Autor contra-alegou pugnando pela manutenção da sentença.

Concluiu desta forma:

(…)

d) Objecto do recurso.

Em primeiro lugar, cumpre apreciar se as respostas positivas aos quesitos dos artigos 17.º, 18.º, 22.º, 27.º, 33.º e negativa ao quesito 43.º da base instrutória, devem ser alteradas como preconizam as Rés.

Em segundo lugar, coloca-se a questão de saber se a norma do n.º 1, do artigo 12.º, da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, é aplicável ao caso dos autos, considerando que o acidente é anterior à sua vigência, o que passa por averiguar se esta lei é interpretativa ou inovadora relativamente ao regime legal em vigor à data do evento.

Em terceiro lugar, surge a questão de saber, face aos factos provados e ao regime legal aplicável, se as Rés devem ser responsabilizadas pelos danos resultantes do acidente.

Esta questão está ligada à anterior e passa por definir se cabe ao Autor o ónus de provar a culpa da concessionária quanto à presença do cão na faixa de rodagem da auto-estrada, ou, então, se é a Ré concessionária quem tem de provar que cumpriu as obrigações de segurança colocadas pela lei a seu cargo.

Por fim, se a questão ainda tiver interesse, será analisada a diminuição da indemnização, questão que está dependente, em parte, da alteração da matéria de facto preconizada pelas recorrentes, salvo quanto à quantificação dos danos não patrimoniais que entendem não serem devidos ou, então, se o forem, deverão ser reduzidos a metade da verba atribuída, por não serem mais que simples incómodos.

II. Fundamentação.

A – Vejamos então a impugnação da matéria de facto.

(…)

B – Factos provados.

1 - O Autor em 17 de Dezembro de 2005 era proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca BMW, modelo 320 D, matrícula (...)PI [A].

2 - No dia 17 de Dezembro de 2005, pela 01:45 horas, ocorreu um acidente de trânsito, na Auto-Estrada A25, ao km 11,075, área do concelho e comarca de Aveiro, no qual foi interveniente o referido veículo automóvel (...)PI, conduzido por (…) [B].

3 - No local do sinistro, a A25 apresentava um traçado rectilíneo [C].

4 - A faixa de rodagem encontra-se dividida em duas pistas de tráfego, através de um separador central, em terra batida relvada e arborizada, com 4 metros de largura [D].

5 - Uma dessas pistas de tráfego destina-se ao trânsito de veículos automóveis que desenvolviam a sua marcha no sentido Barra – Viseu e a outra destina-se ao trânsito de veículos automóveis que desenvolvem a sua marcha no sentido Viseu – Barra [E].

6 - A faixa de rodagem da pista de tráfego destinada ao trânsito de veículos de automóveis que desenvolvem a sua marcha no sentido Barra – Viseu, tem uma largura útil de 7 metros [F].

7 - Ao km 11,075 encontrava-se e encontra-se dividida ao meio, em dois corredores de trânsito, com uma largura de 3,50 metros cada um, através de uma linha descontínua, pintada a cor branca [G].

8 - Na altura em que ocorreu o acidente o tempo estava bom e seco [H].

9 - O piso da faixa de rodagem da A25 era pavimentado a asfalto [I].

10 - E o pavimento asfáltico encontrava-se limpo e em bom estado de conservação [J].

11 - Pela sua margem direita, atento o sentido Barra – Viseu, a faixa de rodagem asfáltica da A25 apresentava uma berma, também pavimentada a asfalto, com uma largura de 2,30 metros [K].

12 - A dividir a faixa de rodagem da berma asfáltica situada do seu lado direito existia uma linha contínua pintada a cor branca [L].

13 - A faixa de rodagem da A25 está protegida, pelos seus dois lados, por rails de protecção metálicos [M].

14 - Pela face exterior do rail de protecção metálico, que está a marginar a berma do lado direito da A25, tendo em conta o sentido Barra – Viseu, existiam e existem os terrenos marginais [N].

15 - Junto ao separador central, a faixa de rodagem da pista de tráfego destinada ao trânsito de veículos automóveis que desenvolvem a sua marcha no sentido Barra – Viseu, apresentava uma outra berma, com uma largura de 0,40 metros, também pavimentada a asfalto [O].

16 - Esta berma está também delimitada, em relação à faixa de rodagem através de uma linha contínua, pintada a cor branca [P].

17 - O pavimento asfáltico das duas referidas bermas situa-se ao mesmo nível do pavimento asfáltico da faixa de rodagem [Q].

18 - No local do sinistro, a faixa de rodagem da A25 apresenta-se em plano horizontal tanto para quem circula no sentido Barra – Viseu como para quem circula em sentido inverso [R].

19 - E existia na margem direita da zona da faixa de rodagem da A25 (sentido Barra - Viseu) uma rede destinada a impedir o acesso de animais e pessoas, provindos dos terrenos adjacentes, à referida zona da faixa de rodagem da auto-estrada [S].

20 - Essa rede tinha uma altura, medida no nível do solo, em que está implantada, de 1 metro e era constituída por malha metálica, tipo «arame», de 2 milímetros de secção [T].

21 - Ambas as Rés foram interpeladas pelo mandatário do Autor para assumirem a responsabilidade decorrente do acidente e para assumirem a responsabilidade pelo pagamento do valor venal do (...)PI [U].

22 - A Ré L (…)t não deu qualquer resposta ao solicitado [V].

23 - A Ré Seguradora respondeu que a Ré L (…), sua segurada não havia participado qualquer ocorrência na data e local a que se referem estes autos [W].

24 - O condutor do veículo do Autor aquando do sinistro participou o mesmo não só aos funcionários da 1.ª Ré que apareceram no local como também à própria força policial, tendo ambos tomado conta do sinistro [X].

25 - A Ré L (…), S. A., é a concessionária da A25 [Y].

26 - A A25 é uma auto-estrada sem portagens [Z].

27 - Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º (...)/414339, a Ré Companhia de Seguros (…), S. A., assumiu, em regime de co-seguro, a responsabilidade que lhe foi transferida pela L (…)S. A., pelo pagamento das indemnizações devidas a terceiros, na sua qualidade de concessionária da exploração da Scut da Costas da Prata, com uma franquia contratual a cargo da segurada, de €4.987,00 euros [AA].

28 - A recta existente no local do acidente apresenta um comprimento não inferior a 500 metros [1].

29 - A zona onde ocorreu o acidente possui alguma iluminação exterior à auto-estrada [2].

30 - Quem circula pela A25, no sentido Barra – Viseu, consegue avistar a faixa de rodagem da sua pista de tráfego e as duas bermas, em toda a sua largura, em direcção ao local do sinistro, numa altura em que se encontra, ainda, a uma distância não inferior a 500 metros do mesmo [3].

31 - Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em B), o (...)PI circulava no sentido Barra – Viseu [4].

32 - Pela hemifaixa mais à direita da pista de tráfego da A25 destinada ao trânsito de veículos automóveis que desenvolvem a sua marcha no sentido Barra – Viseu [5].

33 - Ao chegar ao km 11,075 da referida via surgiu, súbita e inesperadamente, na frente do (...)PI um animal de raça canina – HUSKY [8].

34 - O cão possuía um porte médio [9].

35 - O cão invadiu a faixa de rodagem da auto-estrada, deslocando-se da berma da direita, atento o sentido do veículo, para o separador central [10].

36 - Quando o condutor se apercebeu da presença do cão, este ocupava a faixa de rodagem, cortando a linha de trânsito do veículo [11].

37 - O aparecimento do cão na faixa de rodagem levou o condutor do veículo a tentar evitar colidir com o animal, guinando rapidamente para a esquerda [12] e depois para a direita, tendo no decurso dessas manobras, perdido o controle do veículo, o qual acabou por colidir com as guardas laterais [13].

38 - Aí ficando imobilizado [14].

39 - O referido animal foi recuperado na berma da A25 e entregue ao canil Municipal de Ílhavo [15].

40 - A rede referida em S) encontrava-se em mau estado de conservação [17] apresentando-se, nalguns pontos parcialmente derrubada ou solta [18](suprimido).

41 - Os pontos onde a rede de vedação da A25 se encontra como referido no anterior ponto 40, são muito próximos de um lugar onde existem casas de habitação, estradas e zonas de terra batida [22] (suprimido).

42 - Em consequência do acidente o (...)PI sofreu danos de grande monta [23].

43 - A reparação foi orçamentada em €17.369,48 euros pela firma de Reparações AE(...), com sede na (...), 4470 Maia [24].

44 - Face aos danos que o veículo apresentava, a sua reparação não era economicamente aconselhável [25].

45 - O Autor vendeu o salvado por €3.000,00 [26].

46 - À data do sinistro, o veículo tinha um valor venal na ordem dos €18.000,00 [27].

47 - O Autor ficou definitivamente privado do uso deste veículo que só mais tarde logrou substituir [28].

48 - Sofreu incómodos por ter ficado privado do veículo [30].

49 - E por ter ficado limitado nas suas deslocações de lazer e fim-de-semana [31].

50 - O que também lhe provocou desconforto e insatisfação [32].

51 - O Autor despendeu as seguintes quantias em consequência do acidente: a) aquisição da certidão da participação de acidente de via na GNR-BT de Leiria – €10,00; b) obtenção de fotografias do local do acidente (rede de vedação): €50,00 [33] (suprimido).

52 - Na altura o veículo era conduzido pelo filho do Autor, com autorização deste [34].

53 - Existia à data dos factos, como ainda existe, um nó (denominado nó de Esgueira) situado a cerca de 700 metros do km 11,075 [35].

54 - No dia do acidente os funcionários da 1.ª Ré efectuaram diversos patrulhamentos a toda a extensão da sua concessão, tendo passado diversas vezes no local do sinistro [36].

55 - Não detectaram qualquer animal, designadamente um cão, nas imediações daquele local [37].

56 - Os referidos patrulhamentos são efectuados pelos funcionários da 1.ª Ré em regime de turnos, durante 24 horas por dia e em todos os dias de cada ano [38].

57 - A 1.ª Ré está obrigada a efectuar e efectua passagens de vigilância no mesmo local com o intervalo máximo de três horas [39].

58 - Os patrulhamentos da 1.ª Ré passaram no local do sinistro 1,30 horas antes do acidente [40].

59 - Sempre que os serviços de patrulhamento da 1.ª Ré se apercebem da existência no perímetro da auto-estrada de animais a colocar em risco a segurança da circulação diligenciam pela sua captura ou afastamento da auto-estrada [42].

60 - A vedação é periodicamente vistoriada, a pé e com recurso a veículos, por equipas da obra civil ao serviço da 1.ª Ré, em toda a extensão da sua concessão e em ambos os sentidos de trânsito da mesma [44].

61 - Numa zona próxima do local do sinistro, na parte exterior da vedação da A25, existia uma vegetação, composta parcialmente por silvas altas, que representava um obstáculo à entrada de animais [45].

C- Restantes questões objecto do recurso.

1 - Como o acidente ocorreu em 17 de Dezembro do 2005, à partida não teria aplicação ao caso a norma constante do n.º 1, do artigo 12.º, da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, salvo se se considerar que se trata de lei interpretativa, uma vez que o acidente ocorreu antes desta norma ter entrado em vigor na ordem jurídica, a qual veio estabelecer que «Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:

a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;

b) Atravessamento de animais;

c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais».

A jurisprudência vem entendendo maioritariamente que a Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, tem natureza interpretativa ([1]), sendo imediatamente aplicável por força do disposto no n.º 1, do artigo 13.º, do Código Civil, onde se determina que a lei interpretativa se integra na lei interpretanda, o que significa que a lei em vigor à data do facto deve ser interpretada de acordo com a lei (interpretativa) entretanto publicada.

Como referiu Batista Machado, «…a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da LA com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas. Poderemos consequentemente dizer que são de sua natureza interpretativas aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu sentido controvertido, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado» e, mais adiante acrescenta que «Para que uma LN possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o legislador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. ([2]).

É do conhecimento generalizado dos práticos do direito que lidam com estas matérias, que, anteriormente à publicação desta lei, a jurisprudência e a doutrina sustentavam fundamentalmente duas posições ([3]): uma delas situava a responsabilidade da concessionária no âmbito contratual e, por isso, entendia, face ao disposto no n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil, que, verificado um acidente na auto-estrada, a concessionária tinha de provar não ter tido culpa na sua produção; outra situava a responsabilidade da concessionária no âmbito da responsabilidade extracontratual, uns subsumindo-a ao n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, incumbindo, neste caso, ao lesado a prova da culpa da concessionária na produção do acidente, outros sustentavam que o ónus da prova da ausência de culpa incidia sobre a concessionária, por considerarem que a auto-estrada se enquadrava no conceito de «coisa imóvel perigosa» previsto no artigo 493.º do Código Civil, norma que coloca o ónus da prova da culpa a cargo de quem tem o dever de vigiar a coisa perigosa para que esta não produza danos em terceiros.

A Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, interveio nesta questão e definiu que quando o acidente tiver origem nas causas que ela seleccionou, declarando que o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária.

Afigura-se, por isso, que a esta lei existe porque o legislador quis resolver a controvérsia verificada na doutrina e na jurisprudência, sempre consumidora de recursos necessários à resolução de outras questões judiciais, pelo que se considera esta lei interpretativa e imediatamente aplicável ao caso dos autos, dado que o acidente teve origem numa das causas seleccionadas pela nova lei, isto é, em «objecto existente na faixa de rodagem», no caso, um cão.

Concluindo esta primeira questão, entende-se, por força do disposto no n.º 1 do artigo 12.º da mencionada lei, que, relativamente à presença do cão na faixa de rodagem, recaía sobre a concessionária o ónus de provar que tinha cumprido as obrigações de segurança.

2 – Vejamos agora se as Rés devem ser responsabilizadas pelos danos verificados.

Face à conclusão a que se chegou quanto à primeira questão, cabia à Ré concessionária provar que tinha cumprido as obrigações de segurança.

A este respeito provou-se que o «O cão invadiu a faixa de rodagem da auto-estrada, deslocando-se da berma da direita, atento o sentido do veículo, para o separador central [10]» e que, «Quando o condutor se apercebeu da presença do cão, este ocupava a faixa de rodagem, cortando a linha de trânsito do veículo [11]», o que «levou o condutor do veículo a tentar evitar colidir com o animal, guinando rapidamente para a esquerda [12] e depois para a direita, tendo no decurso dessas manobras, perdido o controle do veículo, o qual acabou por colidir com as guardas laterais [13]».

Perante estes factos, qual o conteúdo prático, no caso, da disposição legal que diz que a concessionária tem ónus de provar que cumpriu as obrigações de segurança, ou seja, o que é que a concessionária tinha de provar neste caso concreto?

É sabido que as obrigações de segurança variarão consoante os casos concretos, mas, em abstracto, dir-se-á que a concessionária tem de provar factos que mostrem que no momento temporal e geográfico considerados na matéria de facto, levou a cabo as acções adequadas a inviabilizar a ocorrência do evento que gerou o acidente.

Em concreto, tendo o acidente como causa um cão que atravessou a faixa de rodagem da auto-estrada n.º 25, ao km 11,075, às 01:45 horas, do dia 17 de Dezembro de 2005, e entrou em rota de colisão com o veículo, o que tinha de ser feito para a concessionária mostrar que tinha cumprido as regras de segurança?

Neste caso, as regras de segurança respeitavam: (a) às vedações que marginavam a área de protecção da plataforma da auto-estrada; (b) aos nós de acesso à auto-estrada e (c) à vigilância visual da via.

Começando pelas vedações, a concessionária tinha de provar que na altura do acidente as vedações não permitiam a entrada daquele cão ([4]).

Embora possa parecer desproporcionada esta afirmação ([5]), o certo é que, se não for assim, não se vislumbra outra forma alternativa no sentido da concessionária mostrar que cumpriu as regras de segurança.

Com efeito, a vigilância feita através do patrulhamento visual e periódico da via levado a cabo pela circulação de veículos e funcionários da concessionária, apenas permite detectar cães que já se encontram no interior do espaço delimitado pelas vedações, mas não evita, nem se destina a evitar, que eles entrem nesse espaço.

Por isso, as acções de vigilância não são suficientes para provar este item de segurança.  

Além disso, um cão pode também entrar por um nó de acesso à auto-estrada.

Neste caso, a concessionária terá de provar que levou a cabo as acções adequadas a prevenir ou a detectar a entrada de cães ou outros animais através dos nós mais próximos, caso se coloque a hipótese do cão poder ter entrado por um desses nós, ou, então, mostrar que é impossível executar qualquer acção específica de vigilância quanto à entrada de cães por esses nós.

No caso dos autos, afigura-se claro, face à matéria de facto provada, que a concessionária não provou que as vedações impediam a entrada do cão, pois não foi levada a cabo qualquer inspecção às vedações a seguir ao acidente e efectuada por alguém ou sob o controlo de alguém independente em relação às partes.

Basta, por isso, a constatação deste facto para concluir que a Ré concessionária não provou ter cumprido as obrigações de segurança, pelo que nada mais se dirá a este respeito.

3 – Vejamos agora a questão da diminuição da indemnização, questão que ficou dependente, em parte, da alteração da matéria de facto preconizada pelas recorrentes, salvo quanto à quantificação dos danos não patrimoniais que entendem não serem devidos ou, então, se houver lugar a indemnização, deverão ser reduzidos a metade da verba atribuída, por não irem além de simples incómodos.

Nesta parte, face à alteração da matéria de facto, o recurso improcede no que respeita à indemnização relativa ao valor comercial do veículo, mas procede quanto às despesas mencionadas no quesito 33.º, no montante de €60,00 euros, cuja resposta passou a ser «não provado».

Passando agora à questão dos danos não patrimoniais relativos à supressão da disponibilidade do veículo.

As Rés alegam que o Autor possuía outro veículo, não sendo devida qualquer indemnização porque os factos não revelam mais que meros incómodos resultantes da privação do automóvel, não indemnizáveis, face ao disposto no n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil.

Vejamos então.

Provaram-se estes factos:

«O Autor ficou definitivamente privado do uso deste veículo que só mais tarde logrou substituir [28]; sofreu incómodos por ter ficado privado do veículo [30], por ter ficado limitado nas suas deslocações de lazer e fim-de-semana [31], o que também lhe provocou desconforto e insatisfação [32]».

Quanto ao direito, o n.º 1, do artigo 496.º, do Código Civil, determina que «Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito».

Na sentença atribuiu-se uma indemnização ao Autor de €800,00 euros.

Não consta dos factos provados que o Autor tivesse outro veículo, muito embora a testemunha Gonçalo tivesse referido que o pai durante a semana se deslocava no carro da «firma».

Esta situação de facto pode também ser descrita desta forma:

(a) No dia 17 de Dezembro de 2005, pelas 01:44 horas, o Autor era proprietário de um veículo ligeiro de passageiros que circulava normalmente pela auto-estrada e que o Autor usava como entendia.

(b) No minuto seguinte, o Autor era proprietário de um veículo incapaz de circular pelos seus próprios meios, o qual teve se ser retirado do local do acidente e levado para uma oficina, apresentando danos que tornaram economicamente inviável a sua reparação.

O Autor teve de negociar a venda dos salvados e viu-se privado de utilizar o automóvel como o vinha fazendo até aí; teve de adquirir outro veículo e gastar tempo e dinheiro nessa compra que não teria gasto.

Coloca-se, pois a questão de saber se esta alteração da vida quotidiana de alguém deve ser suportada pelo próprio ou por outrem a quem esta situação seja imputável, isto é, que danos produzidos por terceiro devem ser suportados pelo próprio?

Certamente aquelas contrariedades, os denominados incómodos, ou situações desvaliosas que é usual serem suportadas pelo próprio, por isso mesmo se entender ser adequado à vivência em sociedade.

Isto é, se tiramos vantagens pelo facto de vivermos em sociedade, então devemos pagar algum tributo à sociedade e suportar algumas desvantagens que possam resultar da actuação ilícita de outrem, o que ocorrerá sempre que socialmente seja desadequado pedir uma indemnização.

Não há critérios mais precisos que permitam determinar quando estamos perante incómodos suportáveis pelo próprio ou por quem lhes deu causa.

No entanto, como referiu R. Capelo de Sousa, não merecem a tutela do direito «...os prejuízos insignificantes ou de diminuto significado, cuja compensação pecuniária não se justifica, que todos devem suportar num contexto de adequação social, cuja ressarcibilidade estimularia uma exagerada mania de processar e que, em parte, são pressupostos pela cada vez mais intensa e interactiva vida social hodierna. Assim não são indemnizáveis os diminutos incómodos, desgostos e contrariedades, embora emergentes de actos ilícitos, imputáveis a outrem e culposos» ([6]).

Não se afigura ser este o caso dos autos, tendo em conta que a vida quotidiana do Autor foi alterada de forma significativa, pois tinha um veículo apto a circular e a satisfazer as suas necessidades de deslocação e passou a ficar na posse de um veículo danificado que teve de substituir por outro.

Trata-se de uma situação de facto que implica a tomada de diversas decisões, com dispêndio de tempo e dinheiro.

Não se afigura, por conseguinte, que seja algo de insignificante em termos sociais e que a generalidade dos cidadãos, na veste de um bonus pater famílias, entendam dever ficar indemne, pelo que se considera acertada a decisão da 1.ª instância.

Aliás, as recorrentes reconhecem que deve haver lugar a indemnização, apenas entendem que deve ser diminuída para metade da concedida.

No que respeita à quantia fixada, afigura-se também que a mesma é adequada à extensão das consequências do acidente, como acima ficou referido, desde a retirada do veículo da auto-estrada até à venda dos seus salvados e aquisição de um novo veículo.

Decide-se, por conseguinte, manter o valor da indemnização fixada.

III. Decisão.

Considerando o exposto:

1 – Julga-se o recurso parcialmente procedente e altera-se a matéria de facto nos termos que ficaram mencionados.

2 – Revoga-se a sentença na parte em que atribuiu ao Autor o montante de €60,00 (sessenta euros) relativos às despesas mencionadas no quesito 33.º.

3 – Julga-se o recurso improcedente quanto ao resto, mantendo-se nessa parte o julgado na sentença.

4 – Custas pelas Recorrentes e Autor, na proporção do vencimento e decaimento.


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Alberto Augusto Vicente Ruço ( Relator )

Fernando de Jesus Fonseca Monteiro

Maria Inês Carvalho Brasil de Moura


[1] Ac. do S.T.J. de 13 de Novembro de 2007 (Sousa Leite), proc. n.º 07A3564, onde se ponderou que «Perante as divergências na doutrina e na jurisprudência relativas à natureza da responsabilidade indemnizatória respeitante aos danos resultantes de acidentes de viação ocorridos nas vias classificadas como auto-estradas, torna-se manifesta a natureza interpretativa da norma constante do art. 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18-07, da iniciativa, aliás, do órgão legislativo nacional próprio (art. 161.º, al. c), da CRP), como meio de pôr termo à patente diversidade de decisões sobre a regra da imputação do ónus da prova em tais circunstâncias» - (Sumário), em www.dgsi. pt.

No mesmo sentido, entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09-09-2008 (Garcia Calejo), proc. n.º 8091/03.6TBVFR.P1.S1, de 01-10-2009 (Santos Bernardino), proc. n.º 1082/04.1TBVFX, de 02-11-2010 (Fonseca Ramos), proc. n.º 7366/03.9TBSTB, de 08-02-2011 (Paulo Sá), proc. n.º 8091/03.6TBVFR, de 15-11-2011 (Nuno Cameira), proc. n.º 1633/05.4TBALQ.L1.S1 (todos em www.dgsi. pt).

Neste sentido Menezes Cordeiro quando escreveu, a propósito do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, «Torna-se ainda patente que este preceito se destina a intervir no debate jurisdicional em curso sobre a natureza e o alcance da responsabilidade da concessionária por acidente na auto-estrada» - em A Lei dos Direitos dos Utentes das Auto-Estradas e a Constituição (Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho), R.O.A., ano 67 (Setembro), Vol. II (ponto 9 do texto, sob o título «A responsabilidade», anotação ao artigo 12.º da lei), consultado na internet em:

«http://www.oa.pt/Publicacoes/revista/default.aspx?idc=30777&idsc=2691&selectedYearID=59030».

[2] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pág. 246/247. Coimbra: Almedina/1989.
[3] Para uma exposição sucinta das teses em confronto ver Menezes Cordeiro, em Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas, pág. 45-53. Coimbra: Almedina, 2004.
[4] Muito embora um cão possa entrar num local e percorrer vários quilómetros até intervir num acidente de viação, a prova não terá de incidir sobre toda a extensão das vedações, mas apenas no troço que se afigurar em cada caso concreto como entrada provável, o que não poderá ser definido em abstracto.
[5] Menezes Cordeiro chamou já à atenção sobre as dificuldades da concessionária conseguir fazer esta prova ao referir «Estamos, pois, perante algo muito próximo da responsabilidade objectiva ou pelo risco. A menos que exibamos um “culpado” relativamente ao qual qualquer prevenção fosse impossível, não vemos como arcar com o “ónus da prova do cumprimento”» -  em A Lei dos Direitos dos Utentes… (citado na nota 1).
[6] O Direito Geral de Personalidade, pág. 555/556, Coimbra: Almedina, 1995.