Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
109/07.0GBMIR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: SEGURO AUTOMÓVEL
CRIME DOLOSO
Data do Acordão: 02/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE MIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 8º, N.º 2, DO DECRETO-LEI N.º 522/85, DE 31 DE DEZEMBRO E 15º, N.º 2, DO DECRETO-LEI N.º 291/2007, DE 21 DE AGOSTO
Sumário: A interpretação do artigo 8º, n.º 2, 2ª parte, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro (“O seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de … acidentes dolosamente provocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte”) - em tudo paralelo à norma actual do artigo 15º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 291/2007 -, em conformidade com o direito comunitário, alcançar-se-á considerando que «as directivas têm como objecto o seguro de responsabilidade civil que resulta da “circulação” de veículos automóveis, a qual pode dar origem a acidentes, bem como ser utilizada intencionalmente para a prática de crimes, e nenhuma prevê a exclusão da cobertura de danos causados dolosamente a qual deve, assim, ser garantida».
Parece evidente nestas normas o intuito de protecção de terceiros, como resulta das delimitações previstas nos n.ºs 3 dos citados artigos.
Seria, aliás, dificilmente compreensível que a lei deixasse as vítimas de actos dolosos, posto que praticados com recurso a veículos de circulação terrestre abrangidos pelo seguro obrigatório, numa situação de maior desprotecção do que deixa as vítimas de actos meramente negligentes.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

           

1. No processo comum colectivo n.º 109/07.0GBMIR do Tribunal Judicial de Mira, foi decidido, em termos de acórdão final, datado de 3 de Maio de 2011:

«Por tudo o exposto, julgando a acusação pública procedente, por provada, este Tribunal decide:

SEGMENTO A
· Condenar o arguido A..., como autor material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143º, número 1, e 145º, número 1, alínea a), ambos do Código Penal, por referência ao artigo 132º, número 2, alínea h), do mesmo diploma, perpetrado sobre a pessoa de B..., na pena de 9 [nove] meses de prisão.
· Condenar o arguido A..., como autor material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143º, número 1, e 145º, número 1, alínea a), ambos do Código Penal, por referência ao artigo 132º, número 2, alínea h), do mesmo diploma, perpetrado sobre a pessoa de C..., na pena de 1 [um] anos e 6 [seis] meses de prisão.
· Condenar o arguido A..., como autor material de um crime de omissão de auxílio agravada, previsto e punido pelo artigo 200º, números 1 e 2, do Código Penal, perpetrado sobre a pessoa de B..., na pena de 4 [quatro] meses de prisão.
· Condenar o arguido A..., como autor material de um crime de omissão de auxílio agravada, previsto e punido pelo artigo 200º, números 1 e 2, do Código Penal, perpetrado sobre a pessoa de C..., na pena de 8 [oito] meses de prisão.
· Verificada a relação de concurso efectivo entre os referidos crimes e operando o cúmulo jurídico das referidas penas, nos termos do artigo 77º, números 1 e 2, do Código Penal, este Tribunal decide condenar o arguido A... na pena única de 2 [dois] anos e 8 [oito] meses de prisão.
· Ao abrigo do disposto nos artigos 50º, números 1 e 5, do Código Penal, decide-se suspender a referida pena de prisão pelo período de 2 [dois] anos e 8 [oito] meses, impondo-se ao arguido, a coberto do disposto no artigo 51º, número 1, alínea c), do Código Penal, a obrigação de entregar, durante o período da suspensão, à Instituição dos Bombeiros Voluntários de Mira a quantia de €:500,00 [quinhentos euros].

SEGMENTO B
· Julgando parcialmente procedente, por provado em igual medida o pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes B... e C..., condena-se a demandada W... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. a pagar:
o Ao demandante B..., a quantia de €: 2.500,00 [dois mil e quinhentos euros], acrescida de juros, à taxa legal, desde a presente decisão, até efectivo e integral pagamento.
o Ao demandante C..., a quantia de €: 10.000,00 [dez mil euros], acrescida de juros, à taxa legal, desde a presente decisão, até efectivo e integral pagamento.
o No mais, julga-se tal pedido improcedente, por não provado, absolvendo-se a referida demandada das demais quantias peticionadas e o demandado A...da totalidade do pedido.

SEGMENTO C
· Julgando parcialmente procedente, por provado em igual medida, o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante HOSPITAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, E.P.E., condena-se a demandada W... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. a pagar-lhes o montante de €: 4.027,25 [quatro mil e vinte e sete euros e vinte e cinco cêntimos], acrescido de juros contados, à taxa legal, desde trinta dias após a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.
· No mais, julga-se tal pedido improcedente, por não provado, absolvendo-se a referida demandada das demais quantias peticionadas (juros vencidos nos trinta dias imediatos à notificação) e o demandado A...da totalidade do pedido».

2. Inconformada, recorreu a W..., COMPANHIA DE SEGUROS, SA, impugnando a decisão proferida sobre a matéria civil, com os seguintes argumentos (em tom de CONCLUSÕES):

«1ª-

Face aos factos provados, o Colectivo de Juízes não teve dúvidas em afirmar que o Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente com o propósito de molestar fisicamente o corpo dos ofendidos e conhecedor da capacidade de agressão ao corpo humano do veículo que conduzia.

2ª-

Com a sua conduta cometeu não só os crimes de ofensa à integridade física qualificado como também os crimes de omissão de auxilio.

3ª-

A ora Recorrente W... celebrou com o proprietário do veículo de matrícula 91-18-QV, o aqui Arguido, um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice número 004510257350, válido e eficaz à data dos factos aqui em discussão.

4ª-

Na ausência de uma definição de contrato de seguro no âmbito do D.L. 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), a doutrina tem adiantado alguns conceitos, entre os quais os que assim se transcrevem

- “o seguro de responsabilidade civil automóvel tem por finalidade cobrir o risco que consiste na ameaça do património do segurado em razão de acontecimento futuro, incerto e danoso, independente da sua vontade – um acidente de trânsito que causará prejuízos nos bens materiais ou morais de terceiros ou pessoas transportadas no veículo”.

- “um acordo de vontades entre o tomador do seguro e o segurador, mediante o qual o primeiro se obriga a pagar uma quantia em dinheiro, designada por prémio, e o último se obriga a manter indemne o segurado dos prejuízos eventualmente decorrentes de sinistros por si causados no exercício da condução de veículos terrestres a motor, isto é, obriga-se a suportar o risco de circulação daqueles veículos”.

- “um negócio jurídico através do qual uma das partes, a seguradora, assume perante a outra, o segurado, a obrigação de indemnizar os danos causados a terceiros por força de um acidente de viação, mediante o pagamento pelo segurado de uma prestação certa e periódica (o prémio), sendo predominantemente a sua qualificação como contrato a favor de terceiro”.

5ª-

Ponto comum a todas as definições é a remissão das mesmas para outro conceito: o de acidente de viação/ acidente de trânsito/ sinistro, também este sem resposta no âmbito da legislação relativa ao Seguro Obrigatório.

6ª-

O Dicionário da Língua Português define “acidente” como acontecimento fortuito; percalço; desastre; infelicidade; revés; acesso repentino; síncope.

7ª-

A doutrina refere-se ao conceito de acidente de viação como:

- “evento futuro, involuntário, incerto e potencialmente gerador de danos para terceiros.”

- “acontecimento futuro, incerto e danoso, independente da sua vontade”.

8ª-

A realidade factual em apreciação nestes autos não tem este carácter casual e fortuito indissociável do conceito de acidente de viação.

9ª-

Não estamos perante um acidente de viação mas sim perante a prática de um crime perpetrado com recurso ao uso de um veículo automóvel, assim como o poderia ter sido por meio de qualquer outro objecto de natureza contundente.

10ª-

O veículo QV embate directamente nos corpos dos Demandantes cíveis C... e B... porque foi para isso direccionado pelo Arguido num acto voluntário e totalmente consciente.

11ª-

Os próprios Demandantes cíveis nunca configuraram a situação de que foram vítimas como um acidente de viação e, como tal, nunca participaram/reclamaram o mesmo junto da Seguradora do veículo automóvel em causa, ora Recorrente.

12ª-

Ao longo de todo o inquérito não há qualquer referência à existência de um acidente de viação. O Digníssimo Ministério Público, quando deduz a Acusação Pública, não enquadra os factos praticados pelo Arguido como um acidente de viação.

13ª-

Os factos que se apuraram, e que constituem a matéria em apreciação nestes autos, não consubstanciam a existência ou verificação de um risco – elemento essencial do contrato de seguro.

14ª-

Assim, não pode considerar-se como válida e operante a garantia contratada pelo seguro por força do qual a Demandada, ora Recorrente, é condenada e que cobria os riscos da circulação do veículo automóvel de matricula 91-18-QV.

15ª-

Fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objectiva ficam os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo; os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre, como tais; os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel.” (Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no processo 07A197 (in www.dgsi.pt):

16ª-

Por via do contrato de seguro, a Seguradora está obrigada a indemnizar os danos causados por via da utilização do veículo garantido. As lesões dos Demandantes foram provocadas não pela normal circulação da viatura mas sim “pela sua utilização desviada do fim a que se destinava, como utensílio ou arma, idónea a desferir lesões corporais, encontram-se fora dos riscos que a recorrente considerou quando da celebração do contrato de seguro.”

17ª-

Resulta inequívoco de todos os factos supra transcritos, devidamente provados, que todas as lesões/danos sofridas pelos Demandantes C..., B...e HUC, ficam a dever-se a uma conduta dolosa do condutor do veículo automóvel … , ora Arguido, que o utilizou para ofender corporalmente as vitimas como poderiam ter utilizado qualquer outro instrumento de natureza contundente.

18ª-

Além do mais, aceitarmos que os seguros obrigatórios de responsabilidade civil automóvel cobrem os danos resultantes de todos e quaisquer actos criminosos, por mais torpes e dolosos que o sejam, desde que na sua prática sejam utilizados veículos automóveis é aceitar a celebração de negócios ostensivamente contrários à ordem pública e aos bons costumes.

19ª-

O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou as disposições conjugadas dos artigos 4º; 11º; 15º; 64º; todos do D.L. 291/2007 de 21 de Agosto e ainda os artºs. 9º; 280º e 562º todos do Código Civil.

                                                                       *

TERMOS EM QUE

Devem as presentes conclusões proceder e, em consequência revogar-se a decisão recorrida absolvendo-se a recorrente dos pedidos de indemnização deduzidos pelos demandantes C...; B… e Hospitais da Universidade de Coimbra».

3. Não houve respostas.

            4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs o seu VISTO.

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

 Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, incidente exclusivamente sobre a decisão cível, a questão a resolver consiste no seguinte:

· Estamos perante um «acidente de viação» que possa justificar a legitimidade passiva da recorrente seguradora neste pedido cível?

            2. DO ACÓRDÃO RECORRIDO

2.1. No acórdão recorrido, é este o rol de FACTOS PROVADOS (em transcrição):


«1. No dia  … de 2007, pelas … , o arguido A... encontrava-se no parque de estacionamento paralelo à EN … , área desta comarca, apeado junto ao veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca … , de cor cinzento, com a matrícula … , de sua pertença, que ali tinha estacionado.
2. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas, C... e B... seguiam a pé pelo passeio paralelo à EN, no sentido de marcha norte/sul.
3. Ao passarem em frente ao parque de estacionamento onde o arguido tinha o seu veículo estacionado, os ofendidos, sem que nada o fizesse prever, foram interpelados por este último, tendo este lhes dirigido as seguintes palavras: “estão a ver este jeep, não o quero ver riscado senão estão lixados”, ao que o ofendido B...retorquiu “porque razão haveríamos de riscar o teu jeep”, prosseguindo os ofendidos a sua marcha.
4. Na sequência da troca de palavras supra descrita e desagradado com o teor da mesma, após os ofendidos terem caminhado cerca de 20 metros, o arguido entrou para o interior do seu veículo, colocou-o em andamento e entrou na EN 109 onde tomou o mesmo sentido de marcha seguido pelos ofendidos, ou seja, norte/sul.
5. Ao chegar ao entroncamento que a EN 109 descreve com a Rua da Fonte, no preciso momento em que os ofendidos iniciavam a travessia dessa mesma rua, o arguido imprimiu maior velocidade ao veículo que conduzia, mudou de direcção à direita e entrando com o mesmo na Rua da Fonte, direccionou o sobredito veículo contra o corpo dos ofendidos, tendo-os atingido com a parte da frente do lado direito do dito veículo.
6. Na consequência do supra descrito embate, o ofendido B...foi projectado para cima do capot do veículo do arguido, tendo esbarrado no pára-brisas e depois caído para o chão.
7. Por sua vez, o ofendido C... foi de imediato projectado para o chão, onde ficou prostrado.
8. Em consequência da queda supra descrita, os ofendidos ficaram atordoados e apresentavam ainda, exuberante e visivelmente, sinais exteriores de ferimentos uma vez que se encontravam fortemente escoriados, nomeadamente, o ofendido C... ao nível da perna direita e o ofendido B...ao nível do rosto, bem como traumatizados ao nível do aparelho músculo-esquelético, carecendo urgentemente e de forma manifesta de cuidados médicos.
9. Não obstante se ter apercebido do estado em que se encontravam os ofendidos, o arguido não parou o veículo por si conduzido, antes lhe tendo imprimido maior velocidade, assim tendo abandonado o local sem nada fazer e omitindo toda e qualquer conduta tendente a socorrer os ofendidos, seja por acção pessoal e própria, seja promovendo o respectivo socorro por terceiros.
10. Colocou-se, assim, o arguido em fuga, deixando os ofendidos prostrados no chão na sua desgraça, não obstante saber que tinha sido o único responsável por tal situação.
11. Como consequência directa da actuação do arguido, o ofendido B...sofreu dores e ferimentos, designadamente, traumatismo da face, com múltiplas escoriações sangrentas na região supraciliar direita, hematoma periorbitário e equimose pálpebral esquerda, lesões essas melhor examinadas e descritas nos relatórios da perícia de avaliação do dano corporal realizada pelo Gabinete Médico-Legal de Aveiro (cf. fls. 54 a 55, 181 a 182 e 278 a 279) e nas fichas clínicas do Hospital Infante D. Pedro de Aveiro de fls. 83 a 87, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos para todos os efeitos legais, e que determinaram, directa e necessariamente no ofendido B...um período de doença de oito dias, com igual período de afectação da capacidade para o trabalho geral e seis dias de afectação da capacidade para o trabalho profissional.
12. Como consequência directa da actuação do arguido, o ofendido C... sofreu dores e ferimentos, designadamente, fractura supracondiliana do fémur direito, tendo sido submetido a intervenção cirúrgica nos HUC onde ficou internado até ao dia 23 de Outubro de 2007, lesão essa melhor examinada e descrita nos relatórios da perícia de avaliação do dano corporal realizada pelo Gabinete Médico-Legal de Aveiro (cf. fls. 49 a 52, 143 a 144, 151 a 153, 245 a 246 e 261 a 263) bem como nas fichas clínicas do Hospital Infante D. Pedro de Aveiro de fls. 58 a 82 e dos HUC de fls. 241, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos para todos os efeitos legais, e que determinou, directa e necessariamente no ofendido C... um período de doença de duzentos e dois dias, com igual período de afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
13. Como consequência directa da actuação do arguido, resultaram ainda para o ofendido C... as seguintes sequelas: Edema residual do joelho direito; Limitação dos últimos cinco graus de flexão do joelho direito.
14. Com a actuação acima descrita o arguido agiu, com o propósito concretizado de molestar fisicamente o corpo dos ofendidos, bem sabendo que o veículo por si utilizado, atenta as suas dimensões, potência e força de impacto, era possuidor de grande capacidade de agressão ao corpo humano e apto a produzir lesões graves ou profundas, e ao direccioná-lo ao corpo daqueles representou o carácter altamente perigoso do mesmo quando assim utilizado e que de tal conduta podiam resultar graves lesões para os ofendidos e ainda assim não se absteve de praticar os factos supra descritos.
15. Mais agiu motivado pela troca de palavras acima descrita no ponto 3 dos factos provados, e por ter ficado desagrado com o teor da mesma, bem sabendo que tal troca de palavras era irrelevante e desprovida de qualquer importância e ainda assim não se coibiu de levar a cabo os seus intentos.
16. Agiu também deliberadamente, com intenção de fugir e de abandonar os ofendidos à sua desventura e infortúnio, não obstante saber que estes se encontravam feridos e necessitavam de ajuda.
17. Sabia igualmente o arguido que tinha sido o exclusivo causador daquela situação de necessidade ou desastre, que punha em perigo a integridade física dos ofendidos e que por via disso impendia sobre si o dever acrescido de os socorrer, quer por si quer promovendo o auxilio e que a acção de terceiros não o desonerava de tal obrigação.
18. Mais, agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida pela lei penal.
19. Como consequência dos factos acima descritos, no dia 18 de Outubro de 2007, o ofendido C... deu entrada no Serviço de Urgência dos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde recebeu assistência médica, a que se seguiu o seu internamento, no período compreendido entre o dia 18 de Outubro de 2007 e o dia 23 de Outubro de 2007, bem como o acompanhamento em consulta externa nos dias 26 de Novembro de 2007, 7 de Janeiro de 2008 e 7 de Abril de 2008.
20. Os encargos com a assistência médica prestada a C... ascenderam à quantia de €: 4.027,25 [quatro mil e vinte e sete euros e vinte e cinco cêntimos].
21. À data dos factos, B... dependia economicamente dos pais, a quem ajudava, designadamente, na realização de tarefas agrícolas.
22. Como consequência directa da actuação do arguido, o ofendido B... temeu pela sua vida e continuou a sofrer dores na face e no corpo, tendo ficado receoso de andar na rua, por temer que algo de pior lhe pudesse acontecer, e perturbado e incomodado a nível psicológico, da mesma forma que viveu momentos de tristeza e aflição e teve insónias e pesadelos, revelando ter dificuldade em esquecer o sucedido.
23. À data dos factos, C... dependia economicamente dos pais, a quem ajudava, designadamente, na realização de tarefas agrícolas e de serviços de serralharia e mecânica.
24. Como consequência directa da actuação do arguido, o ofendido C... temeu pela sua vida e continuou a sofrer dores na face e no corpo, tendo ficado receoso de andar na rua, por temer que algo de pior lhe pudesse acontecer, e perturbado e incomodado a nível psicológico, a mesma forma que viveu momentos de tristeza e aflição e teve insónias e pesadelos, revelando ter dificuldade em esquecer o sucedido.
25. Ficou com dificuldade e limitação da marcha, o que o faz sentir-se diminuído.
26. A sua recuperação exigiu que permanecesse em casa durante o período de doença acima referido, o que agravou o seu sofrimento.
27. Antes do episódio supra descrito, os demandantes eram pessoas alegres e extrovertidas.
28. À data dos factos acima descritos, a responsabilidade pelos danos causados a terceiros pelo veículo de matrícula … , propriedade do arguido, encontrava-se transferida para a demandada W... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. através de acordo denominado de “contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”, titulado pela apólice número … .
29. O arguido A... tem antecedentes criminais: por sentença de 22 de Novembro de 2006 foi julgado e condenado pela prática, a 23 de Agosto de 2006, de um crime de condenação de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, número 1, do Código Penal, na pena de sessenta dias de multa à tW... diária de quatro euros, e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de cinco meses.
30. O arguido A... pertence a uma família bem integrada, reside com os pais na localidade de Mira, de quem depende economicamente fruto da sua actual situação de desemprego. Começou a trabalhar aos 18 anos, após concluir o Curso de Hotelaria e Restauração, tendo trabalhado nesse ramo de actividade quer por conta de outrem que por conta própria até final de 2008. Em 2009 trabalhou como promotor comercial. Está socialmente bem integrado, não lhe sendo apontados quaisquer problemas de relacionamento ou comportamentos menos ajustados, sendo considerado um jovem pacato, bem integrado, respeitador, cordato e bem comportado».
 

2.2. São estes os FACTOS NÃO PROVADOS:

«Não se provaram quaisquer outros para além ou em contradição com a factualidade que foi considerada assente, designadamente, NÃO SE PROVOU:

i. Que à data dos factos supra descritos B... fizesse da agricultura o seu modo de vida e sustento.

ii. Que à data dos factos supra descritos C... fizesse da agricultura e dos trabalhos de serralharia e mecânica o seu modo de vida e sustento.

iii. Que as sequelas que sobrevieram aos actos acima descritos para C... (Edema residual do joelho direito; Limitação dos últimos cinco graus de flexão do joelho direito) o impossibilitem de exercer com a mesma aptidão as tarefas pessoais, profissionais e lúdicas».

2.3. Não se vê necessidade de aqui colocar a motivação de facto pois o recurso não incide sobre este segmento.

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. O recurso incide exclusivamente sobre a decisão civil e apenas sobre MATÉRIA DE DIREITO.

Recorre a W... das 3 condenações de que foi alvo.

No que diz respeito aos princípios gerais atinentes à tramitação dos recursos ordinários, adianta o artigo 400°, n.° 2 do CPP  que «o recurso da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada», sendo tais requisitos cumulativos.
Ora, a alçada dos tribunais da 1ª instância era (e mantém-se), à data da formulação dos pedidos cíveis (PEDIDO de C... e B... - 7/10/2010; PEDIDO dos HUC - 1/10/2010, respectivamente[2]), de € 5.000,00[3] (artigo 24.°, n.° 1, da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro, e redacção decorrente do Decreto-Lei n.° 303/07, de 24 de Agosto).
Aos pedidos cíveis deduzidos nos autos foi atribuído o valor de:
- € 7.660,30 (demandante B...)
- € 20.061,10 (demandante C...)
- € 4.027,25 (demandante HOSPITAIS)
A demandada W... foi condenada nos seguintes valores:
· Foi ela condenada a pagar:
o Ao demandante B..., a quantia de €: 2.500,00 [dois mil e quinhentos euros], acrescida de juros, à taxa legal, desde a presente decisão, até efectivo e integral pagamento.
o Ao demandante C..., a quantia de €: 10.000,00 [dez mil euros], acrescida de juros, à taxa legal, desde a presente decisão, até efectivo e integral pagamento.
o Ao demandante HOSPITAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, E.P.E., o montante de €: 4.027,25 [quatro mil e vinte e sete euros e vinte e cinco cêntimos], acrescido de juros contados, à taxa legal, desde trinta dias após a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.
Ou seja, conjugando-se tais disposições legais, o acórdão proferido mostra-se insindicável, no que tange à condenação no pedido cível intentado pelos HUC, por intermédio de recurso ordinário.
De facto, o valor desse pedido específico (cfr. fls 318-319) não chega aos € 5000, apesar da condenação atingir os € 2.500, um dos 2 requisitos em causa.
Em conclusão, e sem necessidade de mais considerações, há que concluir que tal parte do acórdão é irrecorrível.

3.2. Quanto a tal decisão civil, rezou assim o texto da 1ª instância:

«c) Do Pedido Cível

Com base nos factos descritos na acusação, C... e B... deduziram um pedido de indemnização civil, com vista à condenação do arguido A... e de W... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., enquanto seguradora para a qual havia sido transferida a responsabilidade pelos danos causados a terceiros pelo veículo referido na acusação, no pagamento da quantia global de €: 27.720,40, sendo €: 7.660,30 devidos ao primeiro demandante e €: 20.061,10 ao segundo, acrescida de juros desde a notificação até efectivo e integral pagamento.

Alegaram, para tanto, que por força da actuação do arguido, descria na acusação, sofreram danos de natureza patrimonial e não patrimonial, cujo ressarcimento pretendem através do pagamento da indemnização peticionada.

Vieram, também, com base nos mesmos factos, os HOSPITAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, E.P.E. deduzir um pedido de indemnização civil, com vista à condenação do arguido e da referida companhia seguradora no pagamento da quantia de €: 4.027,25, acrescida de juros desde a notificação até efectivo e integral pagamento.

Alegaram, para tanto, que por força da actuação do arguido, C... deu entrada nos serviços de urgência daquela unidade hospitalar, ali tendo recebido assistência médica, cujas despesas ascenderam à quantia peticionada.

Cumpre apreciar.

Nos artigos 71º e 72º, do Código de Processo Penal encontra-se consagrado o princípio da adesão obrigatória da acção civil ao processo penal, segundo o qual, o direito à indemnização por perdas e danos sofridos com o ilícito criminal deve ser exercido no próprio processo penal, enxertando-se o procedimento civil a tal destinado na estrutura do procedimento criminal em curso.

Ora, de acordo com o artigo 129º, do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime será regulada pela lei civil, encontrando-se o regime da responsabilidade civil extracontratual decorrente da prática de actos ilícitos estabelecido no artigo 483º, número 1, do Código Civil, nos termos do qual, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Como é sabido, consagra-se nesta disposição legal o princípio básico da responsabilidade civil por factos ilícitos, à luz do qual a imposição ao lesante da obrigação de indemnizar depende da verificação dos seguintes pressupostos: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante - culpa; d) o dano; e) nexo de causalidade entre o facto e o dano [vd. ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, 4a edição, p. 364; ANTUNES VARELA, “Das Obrigações em geral”, 8a edição, vol. I, p. 533; PIRES DE LIMA, ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, anotação ao artigo 483º, p. 416].

Nestes termos, o nascimento da obrigação de indemnizar assenta, antes de mais, sobre um facto do lesante, dominável ou controlável pela vontade, quer esse facto se traduza numa acção (violação de um dever geral de abstenção), quer consista numa omissão ou abstenção (violação de um dever jurídico especial de praticar o acto que teria impedido a consumação do dano).

Do segundo elemento constitutivo da obrigação de indemnizar – ilicitude – decorre que só será gerador de responsabilidade o facto que seja ilícito ou antijurídico, ou seja, que esteja em oposição com a ordem jurídica, podendo esta ilicitude consistir na lesão de direitos de outrem ou na violação de norma destinada a proteger interesses alheios [RUI DE ALARCÃO, “Direito das Obrigações”, polic., 1983, p. 240].

Pressuposto ou condição da obrigação de indemnizar é ainda a imputação desse facto ao lesante a título de culpa (“dolo ou mera culpa”), entendendo-se por comportamento culposo aquele que merece a censura ou reprovação do direito. A culpa exprime, assim, um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente que, dadas as suas capacidades pessoais e em face das circunstâncias concretas do caso, podia e devia ter agido de outro modo, sendo justamente neste juízo de censura que reside a causa ou fundamento da deslocação do dano da esfera jurídica do prejudicado para a do lesante [RUI DE ALARCÃO, op. cit., p. 224].

Ao nascimento desta obrigação de indemnizar é ainda essencial a existência de um dano, ou seja, que o facto ilícito praticado tenha causado um prejuízo a alguém, sendo certo que a obrigação de indemnização que emerge da responsabilidade civil tem precisamente em vista tornar indemne (sem dano) o lesado, colocando-o na situação em que estaria sem a ocorrência do facto danoso [vd. MOTA PINTO, “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra, 1992, p. 114].

Como acima se deixou dito, o último elemento constitutivo da responsabilidade civil por facto ilícitos consiste no nexo de causalidade entre o facto e o dano, que se traduz no juízo de imputação objectiva do dano ao facto que lhe deu causa, ou seja, no estabelecimento de um elo de ligação entre a conduta do agente e o embate que se lhe seguiu e os danos nesse seguimento provocados, uma vez que, nos termos do artigo 563º, do Código Civil, “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.

Relativamente à obrigação de indemnizar, dispõe o artigo 562º, do Código Civil, que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização, adiantando o artigo 563º, do mesmo diploma, que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. Englobam-se nesses danos quer o concreto prejuízo causado como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.

Estabelece, ainda, o artigo 566º, do Código Civil, que a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, tendo a indemnização em dinheiro como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.

No que respeita aos danos não patrimoniais, o artigo 496º, número 1, do Código Civil, prescreve que só serão atendidos aqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos, reparando-se apenas os danos que afectem profundamente os valores ou interesses da personalidade moral [ANTUNES VARELA, op. cit., p. 628].

Na avaliação de tais danos, não pode o Tribunal deixar de ter presente que, como acima se deixou dito, a obrigação de indemnização tem aqui uma natureza mais compensatória do que indemnizatória, não se podendo deixar de ter presente a sua vertente sancionatória [ANTUNES VARELA, op. cit., p. 630].     

Neste particular, impõe-se referir que não é fácil o cálculo de um montante indemnizatório sempre que se trata de compensar dores e prejuízos de ordem moral, seguindo-se, normalmente, o critério pelo qual a quantia em dinheiro há-de permitir alcançar situações ou momentos de prazer ou alegria bastantes para neutralizar, na medida do possível, a intensidade da dor.

Com efeito, é sabido que os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podendo ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro. Não se trata, pois, de atribuir ao lesado um “preço de dor” ou um “preço de sangue”, mas de lhe proporcionar uma satisfação, em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses [MOTA PINTO, “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra, 1992, p. 115].

Com vista à quantificação de tais danos remete a lei para juízos de equidade, haja culpa ou dolo [cf. artigo 496º, número 3, do Código Civil], tendo em atenção os factores referidos no artigo 494º, do Código Civil (grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e quaisquer outras circunstâncias, podendo aqui referir-se a idade e sexo da vítima, a natureza das suas actividades, as incidências financeiras reais daqueles danos, possibilidades de melhoramento, reeducação e de reclassificação).

Nestes termos, deverá o Tribunal ter em consideração todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, sem esquecer a natureza mista da reparação, pois que se visa não só reparar o dano mas igualmente punir a conduta que o causou [SOUSA DINIS, Avaliação e Reparação do Dano Patrimonial e Não Patrimonial, Revista Julgar, 9, p. 32-33].

Feito este excurso pelos pressupostos da obrigação de indemnizar e analisado, nos seus rasgos principais, o conteúdo da obrigação de indemnizar, importa agora analisar a concreta pretensão indemnizatória dos demandantes.

Ora, nessa sede, importa começar por referir que se mostram integralmente verificados os indicados pressupostos da responsabilidade civil, uma vez que o facto praticado pelo arguido A... é ilícito (integrando, do ponto de vista penal, a prática do crime de ofenda à integridade física qualificada), culposo (praticado a título doloso), tendo sido causa directa e necessária de danos, designadamente, das lesões provocadas nos demandantes B... e C... e das despesas originadas pela assistência médica que reclamaram as lesões infligidas a este último.

Verificados os pressupostos da responsabilidade civil relativamente ao arguido A..., dada a circunstância de o facto constitutivo de tal responsabilidade ter sido produzido ao volante do veículo de matrícula  … e uma vez que, à data de tal facto, a responsabilidade pelos danos causados a terceiros pela referida viatura, se encontrava transferida para a demandada W... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. através de acordo denominado de “contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”, titulado pela apólice número 004510257350, urge perguntar quem responderá pelo pagamento da indemnização adequada ao ressarcimento dos danos desencadeados pelo facto gerador daquela responsabilidade.

Ora, o contrato de seguro é, no âmbito do seguro automóvel, um negócio jurídico através do qual uma das partes, a seguradora, assume perante a outra, o segurado, a obrigação de indemnizar os danos causados a terceiros por força de um acidente de viação, mediante o pagamento pelo segurado de uma prestação certa e periódica (o prémio), sendo predominante a sua qualificação como contrato a favor de terceiro [vd., respectivamente, GUERRA DA MOTA, “O contrato de seguro terrestre”, 1o, p. 271; MOTA PINTO, “Cessão da Posição Contratual”, 1970, p. 33, e LEITE DE CAMPOS, “Seguro de responsabilidade civil fundada em acidente de viação”, 1971, p. 152 e sgts.].

Por outro lado, importa ainda referir que, nos termos do artigo 4º, número 1, do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, aplicável ao caso destes autos, toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que cubra tal responsabilidade.

Importa, ainda, referir que o seguro de responsabilidade previsto no citado artigo 4º, número 1, do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, abrange, relativamente aos acidentes ocorridos no território de Portugal a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil [cf. artigo 11º, número 1, alínea a), do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto].

Finalmente, importa ter presente que, nos termos do artigo 64º, número 1, alínea a), do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, as acções destinadas à efectivação de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório.

A este respeito, pugnou a ré pela sua irresponsabilidade no que tange ao pagamento das indemnizações reclamadas nestes autos, invocando a circunstância de não se ter tratado de um acidente de viação mas antes de um facto dolosamente provocado pelo arguido, em que o veículo segurado foi utilizado apenas como instrumento da agressão.

Afigura-se, todavia, com o respeito devido, que tal entendimento não será de sufragar.

Na verdade, e antes de mais, o citado artigo 4º, número 1, do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, impõe a obrigação de segurar a toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre, não estabelecendo qualquer diferenciação consoante tais danos sejam causados a título doloso ou negligente.

Por outro lado, o citado artigo 11º, número 1, alínea a), do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, ao definir a abrangência do seguro de responsabilidade previsto no citado artigo 4º, número 1, do mesmo diploma, limitou-se a remeter para a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil, não tendo especificado se se tratava apenas da obrigação de indemnizar baseada em negligência ou se incluía também a baseada em dolo, de onde será de concluir, por apego ao princípio do legislador razoável [cf. artigo 11º, do Código Civil] que se teve ali em vista toda a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil, independentemente de estar fundada na culpa (negligente ou dolosa) ou no risco.

Ademais, também se impõe referir que seria dificilmente compreensível que a lei deixasse as vítimas de actos dolosos, posto que praticados com recurso a veículos de circulação terrestre abrangidos pelo seguro obrigatório, numa situação de maior desprotecção do que deixa as vítimas de actos meramente negligentes.

Finalmente, prevendo-se no artigo 27º, número 1, alínea a), do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto, que satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente, forçoso é de concluir que também caem no âmbito da responsabilidade das seguradoras o pagamento das indemnizações devidas por acidentes provocados dolosamente, que foi justamente o que sucedeu no caso em apreço.

Assim, contendo-se as indemnizações peticionadas nos limites do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório [cf. artigo 12º, do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto], pelo seu pagamento apenas responderá a demandada W... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A..

Concluindo-se pela verificação dos pressupostos da responsabilidade civil e definida a responsabilidade da ré pelo pagamento da consequente obrigação de indemnizar, resta apenas proceder á quantificação desta indemnização.

Entrando especificamente no pedido formulado pelos demandantes B... e C..., afastada a existência de danos patrimoniais, por não ter sido provada qualquer perda de rendimento ou de ganho em consequência das lesões provocadas pelo arguido (dado que, como naquela se disse em sede de decisão sobre a matéria de factos, aqueles não provaram que tivessem qualquer actividade remunerada ao tempo do acidente), a obrigação de indemnizar abrange aqui exclusivamente os danos não patrimoniais causados pela conduta geradora de responsabilidade, designadamente, as dores, inquietações, perturbações e sequelas.

A situação dos demandantes apresenta aqui diferenças consideráveis por ter sido diferente a gravidade das lesões causadas, pelo que as indemnizações a atribuir deverão espelhar a diferente situação de um e outro.

Assim, tendo presentes os factos acima elencados (designadamente os que se prendem com a descrição das lesões, suas consequências médico-legais e seu impacto sobre a vida dos demandantes), vertendo aqui as considerações tecidas a propósito do fundamento da indemnização por danos não patrimoniais, atendendo a que os danos cujo ressarcimento se pretende merecem a tutela do direito [cf. artigo 496º, número 1, do Código Civil] e apelando à natureza (moral) destes danos e a esta ideia de compensação supre sucintamente delineada, afigura-se justo e equitativo atribuir: ao demandante B..., a indemnização de €:2.500,00 [dois mil e quinhentos euros]; ao demandante C..., a indemnização de €:10.000,00 [dez mil euros].

Pediram os demandantes a condenação da demandada no pagamento de juros desde a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.
Neste particular, importa ter presente que no Acórdão (de uniformização de jurisprudência) do Supremo Tribunal de Justiça 4/2002, de 9 de Maio de 2002 [publicado no Diário da República, I Série A, de 27 de Junho de 2002], se decidiu que sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do artigo 566º, do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, número 3 (interpretado restritivamente), e 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.
Ora, o juízo de equidade, formulado nos termos do artigo 496º, número 3, do Código Civil, de que resulta o montante da indemnização, é um juízo actualista, pois esse valor é aquele que se considera como correcto no momento em que a questão se decide.
Para se formular esse juízo não se recua no tempo, procurando encontrar o montante que na data do acidente, na data da propositura da acção ou na data da citação do réu seria o adequado.
Como se salienta no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Outubro de 2007 [acessível, via internet, no sítio www.dsg.pt], se no momento da prolação da decisão, o juiz actualiza o montante do dano liquidado para reparar o prejuízo que o lesado efectivamente sofreu, os juros moratórios, a serem concedidos desde a citação para a acção, representarão uma duplicação de parte do ressarcimento, e este excederá o prejuízo efectivamente verificado.-----

Assim, os juros de mora da indemnização relativa aos danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes devem ser contados desde a data da presente sentença e não desde a data da notificação do pedido aos demandados.
Quanto ao pedido formulado pelos Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E., importa ter presente que ficou provado que, como consequência dos factos acima descritos, no dia 18 de Outubro de 2007, o ofendido C... deu entrada no Serviço de Urgência dos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde recebeu assistência médica, a que se seguiu o seu internamento, no período compreendido entre o dia 18 de Outubro de 2007 e o dia 23 de Outubro de 2007, bem como o acompanhamento em consulta externa nos dias 26 de Novembro de 2007, 7 de Janeiro de 2008 e 7 de Abril de 2008, sendo que os encargos com a assistência médica prestada a C... Alexandre Silva Nunes ascenderam à quantia de €: 4.027,25 [quatro mil e vinte e sete euros e vinte e cinco cêntimos].

Ora, nos termos do disposto no artigo 23º, número 1, alínea c), do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (aprovado pelo Decreto-lei número 11/93, de 15 de Janeiro), a demandada responderá pelos encargos resultantes da prestação os cuidados de saúde no quadro do Serviço Nacional de Saúde, ocasionados por força do dito acidente em que interveio o seu segurado e cuja falta de culpa na produção de tal facto não logrou demonstrar.

Assim, estando provada a culpa do segurado da demandada na produção do evento que gera a obrigação de indemnizar e porque, nos termos do artigo 4º, número 1, do Decreto-lei 218/99, de 15 de Junho, as entidades referidas nas alíneas b), c) e d) do número 1 do artigo 23º, do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, podem ser directamente demandadas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde pelos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde, deverá o pedido formulado por aquele demandante ser julgado procedente.

Sobre a quantia pedida, vencer-se-ão juros contados 30 dias após a interpelação, nos termos do artigo 2º, do Decreto-lei 218/99, de 15 de Junho, conjugado com o artigo 805º, número 1, do Código Civil.

Assim, no caso destes autos, uma vez que a demandada apenas foi interpelada para proceder ao pagamento da quantia peticionada com a notificação do pedido de indemnização, sobre tal quantia deverão ser calculados os juros vencidos trinta dias após essa notificação e vincendos até efectivo e integral pagamento».



3.3. No fundo, o recurso incide sobre a parte assinalada em rectângulo e sob sombreado, ou seja:

- tem razão a recorrente em pugnar pela sua irresponsabilidade no que tange ao pagamento das indemnizações reclamadas nestes autos, invocando a circunstância de não se ter tratado de um acidente de viação mas antes de um facto dolosamente provocado pelo arguido, em que o veículo segurado foi utilizado apenas como instrumento da agressão?

3.4. A questão não é nova.

E tem sido decidida de várias formas, dissonantes algumas entre si, ao longo dos anos.

A jurisprudência do STJ tem evoluído neste particular.

O Acórdão citado nas alegações de recurso data de 13/3/2007 e pugnou o seguinte:

«Tendo as lesões sofridas pelo recorrido ficado a dever-se não a um acidente de viação, em que se funda o seguro obrigatório de responsabilidade civil, mas a uma conduta dolosa do seu condutor que utilizou a viatura para ofender corporalmente a vítima como poderia ter utilizado qualquer outro tipo de instrumento adequado a provocar lesões de contornos contundentes, encontram-se as mesmas fora dos riscos que a recorrente considerou quando da celebração do contrato de seguro».

Contudo, posteriormente a esse aresto, surgiram outros oriundos do STJ e que dão conta de posição contrária.

Falamos dos Acórdãos de 18/12/2008 (Pº 08P3852), de 7/5/2009 (Pº 09A0512) e o muito recente de 6/7/2011 (Pº 3126/07.6TVPRT.P1.S1).

Vejamos as posições assumidas em cada um deles:

1º- «I - A referência à não exclusão do âmbito da garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel dos danos resultantes de «acidentes de viação dolosamente provocados» está inscrita desde o diploma que primeiramente instituiu o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (DL 408/79, de 25-09) – e já também em diploma de 1975 (DL 165/75, de 28-03) que, por circunstâncias do seu tempo histórico, nunca chegou a entrar em vigor.

II - E mantém-se, sempre em formulação verbal constante, no regime actualmente vigente, aprovado pelo DL 291/2007, de 21-08, justificado pela transposição da Directiva 2005/14/CE, do Parlamento e do Conselho, de 11-05 – 5.ª Directiva sobre o Seguro Automóvel, que procedeu à «actualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de protecção dos lesados por acidentes e viação» baseado no seguro obrigatório, «seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis», como se refere no art. 1.º («Objecto») do diploma.

III - No que respeita à definição das garantias, o art. 15.º, n.º 2, retomando ipsis verbis a redacção do art. 8.º, n.º 2, do DL 522/85, de 31-12, dispõe que «o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados (…)».

IV - Em tais casos, e como nos anteriores diplomas, «satisfeita a indemnização», a «empresa de seguros» tem direito de regresso «contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente» (art. 27.º, n.º 1, al. a)).

V - A interpretação do art. 8.º, n.º 2, 2.ª parte, do DL 522/85, de 31-12, tem obtido no Supremo Tribunal decisões (na aparência) não coincidentes, embora construídas metodologicamente através de uma diferente perspectiva sobre a interpretação e a qualificação da base factual sobre que recaíram.

VI - Com efeito, enquanto que nos Acs. de 01-04-1993 e de 18-12-1996 (in BMJ 426.º/132 e 462.º/223, respectivamente) foi decidido que os factos sobre que incidiram, dolosamente provocados, constituíam «acidente de viação», como «fenómeno ou acontecimento anormal decorrente da circulação de um veículo», e como tal abrangidos pelo âmbito e garantias da obrigação de indemnização através do seguro obrigatório, o acórdão de 13-03-2007 (in CJSTJ, tomo 1, pág. 108) decidiu, perante os factos que estavam em causa, que «não se encontra[va] caracterizado um acidente de viação», consequentemente, por isso, fora do âmbito da garantia do seguro obrigatório.

VII - Na proposição teleológica do regime do seguro obrigatório a perspectiva está centrada na garantia dos lesados, terceiros estranhos à utilização ou condução do veículo causador de danos, ou, em sucessivos afinamentos do conteúdo da garantia, mesmo qualquer ocupante do veículo que não seja o condutor (cf., v.g., várias implicações do direito comunitário no âmbito da garantia analisadas nos Acs. de 16-01-2007, Proc. n.º 2892/06, e de 22-04-2008, Proc. n.º 742/08), e por isso, quando utilizadas as expressões «sinistro» ou «acidente», o plano de apreensão tem de ser considerado primeiramente do ponto de vista do lesado, e não tanto facto-centrado, no plano puro, e de certo modo neutro, do acontecimento.

VIII - Para o lesado, todo o acontecimento resultante da circulação de um veículo com motor que lhe cause danos pessoais ou materiais, e a cuja génese ou domínio foi estranho, constitui um acidente («acidente de viação»), no sentido de ocorrência exógena e não esperada (inesperada), ou, do seu plano e perspectiva, fortuita.

IX - Deste ponto de vista, de que parte o regime da garantia de seguro obrigatório (protecção e centralidade do lesado), a ocorrência voluntariamente provocada pelo condutor de um veículo, em circulação ou em condições de circulação, na via pública, em movimento, em circunstâncias aparentemente típicas de circulação, constitui, neste sentido, um «acidente», na expressão da lei, «dolosamente provocado».

X - Não pode, por outro lado, nesta matéria, ser desconsiderado o saliente argumento de ordem sistemática já referido no aludido Ac. do STJ de 01-04-1993, retirado do regime jurídico de protecção de vítimas de crimes violentos, constante do DL 423/91, de 30-10: a exclusão pelo art. 5.º, n.º 1, da aplicabilidade do regime aos «danos causados por um veículo terrestre a motor», só pode ter sentido se o dano «dolosamente» causado por um veículo terrestre a motor estiver contemplado em outra previsão.

XI - Pode referir-se também, em perspectiva idêntica, o Ac. do STJ de 17-10-2007, Proc. n.º 3395/07, sobre o direito do lesado por acidente provocado com dolo a demandar o Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do art. 24.º, n.º 2, do DL 522/85, de 31-12.

XII - A interpretação do art. 8.º, n.º 2, 2.ª parte, do DL 522/85, de 31-12, em conformidade com o direito comunitário, alcançar-se-á considerando que «as directivas têm como objecto o seguro de responsabilidade civil que resulta da “circulação” de veículos automóveis, a qual pode dar origem a acidentes bem como ser utilizada intencionalmente para a prática de crimes, e nenhuma prevê a exclusão da cobertura de danos causados dolosamente a qual deve, assim, ser garantida» (cf. Moitinho de Almeida, Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, pág. 14, disponível em www.stj.pt).

XIII - Há, nesta matéria, que ter presentes os direitos e as garantias da pessoa lesada, e o princípio de que a garantia do seguro obrigatório não significa, em certos casos, sempre transferência de responsabilidade, nem exonera a pessoa responsável pelo acidente.

XIV - No caso de «acidentes dolosamente provocados» existe o direito de regresso da seguradora contra o causador do acidente, como dispunha, ao tempo dos factos, o art. 19.º, al. a), do DL 522/85, de 31-12, e actualmente o art. 27.º, n.º 1, al. a), do DL 291/2007, de 21-08».

2º- I- O segmento do art. 8.º, nº 2, do DL 522/85, de 31/12, na parte em que dispõe que “o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de...acidentes de viação dolosamente praticados...”, deve ser objecto duma interpretação decla­ra­tiva (não restritiva, nem extensiva), pois o sentido que dele imediatamente resulta traduz na per­feição o pensamento legislativo (art. 9.º, nºs 1 e 2, do CC); há coincidência entre a letra e o espírito da lei.

II - Sendo o objectivo central do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel garantir a protecção das vítimas de acidentes de viação, assegurando da forma mais alargada possível o ressarcimento dos danos por elas sofridos, esse desiderato subsiste mesmo naqueles casos em que os danos resultam de acidente dolosamente provocado, porquanto o conceito de acidente tem de ser perspectivado a partir da vítima.

III - Esta interpretação da norma em causa é a que se coaduna com o direito comunitário e a jurisprudência do Tribunal de Justiça.

IV - Ademais, esta interpretação não viola o disposto no art. 280.º, n.º 2, do CC, que diz ser nulo o negócio contrário à ordem pública; desde logo porque no seguro obrigatório de responsabilidade civil a componente negocial, enquanto expressão da autonomia privada, está fortemente esbatida sendo nula a possibilidade que as partes têm de conformar o conteúdo do seguro obrigatório; depois porque o art. 19.º do DL referido em I prevê, tW...tivamente, as únicas situações em que a seguradora, satisfeita a indemnização, tem direito de regresso.

V - Este direito de regresso é mais propriamente um direito de reembolso do que a seguradora teve que pagar em circunstâncias que tornam o risco assumido legalmente inaceitável; é um direito que, deixando incólume o objectivo social do seguro obrigatório, de algum modo repõe o equilíbrio contratual rompido pela obrigatoriedade deste e evidencia que, contrariamente ao alegado pela ré, o legislador não “pactua” com contratos de seguro “que dão cobertura a actos criminosos».

3º- I - A expressão “acidente de viação” não é utilizada, no ordenamento jurídico nacional, no sentido tradicional, mas antes na acepção mais geral de fenómeno ou acontecimento estradal, anormal, fortuito e casual, decorrente da circulação de um veículo, que, manifestamente, comporta o acidente, dolosamente, provocado, porquanto, em ambos os casos, é idêntico o interesse que a lei quer tutelar, isto é, o interesse do lesado na indemnização pelos danos sofridos.

II- O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, face ao condicionamento imposto pela lei do seguro obrigatório, reveste a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado que assume o papel de parte para poder exigir, directamente, da seguradora a concretização do seu direito à reparação ou à indemnização.

III - A exclusão da previsão dos acidentes que, envolvendo a circulação de veículos, constituam a prática de crimes, esvaziaria o conteúdo da norma do art. 8.º, n.º 2, do DL n.º 522/85, de 31-12, ou, actualmente, do art. 27º, n.º 1, al. a), do DL n.º 291/2007, de 21-08, reduzindo-a às situações factuais em que ocorresse o dano meramente culposo.

IV- A exclusão da cobertura legal, no âmbito do contrato de seguro obrigatório, quanto ao dano, dolosamente, causado, por um veículo terrestre a motor, só se compreende se o mesmo já se encontrar acautelado, por outra disposição legal.

V- Sendo o dolo directo a expressão mais grave da culpa, lato sensu, quando o resultado danoso querido acaba por coincidir com aquele que resulta do próprio acidente, como seu processo causal, esse nexo de imputação do facto danoso à condução do agente excluiria, necessariamente, a mera culpa, idealmente, imputável à condução do lesado».

3.5. Lendo os respectivos argumentos e olhando para a letra da lei (e note-se que, ao nosso caso, ao contrário do que sustenta a decisão recorrida, ainda é aplicável o regime do DL 522/85 de 31/12, na medida em que o novo diploma de 2007 – DL 291/2007 de 21/8 - só entrou em vigor em 21/10/2007, tendo o nosso «acidente» ocorrido em 18/10/2007 – cfr. artigo 95º do DL 291), não temos qualquer dúvida em adoptar como mais correcta a doutrina dos 3 arestos posteriores ao invocado no recurso.

3.6. Não vêm discutidos os pressupostos da responsabilidade civil do autor dos factos provados: facto ilícito; dano; nexo de causalidade entre o facto e o dano (artigo 483º do Código Civil), estando os danos demonstrados, não constituindo, pois, objecto do recurso.

O objecto do recurso está, assim, restrito à determinação da relação entre o facto gerador da responsabilidade e da obrigação de indemnizar e os limites e o âmbito do contrato de seguro celebrado com a Companhia de Seguros recorrente.

O contrato de seguro titulado pela apólice n.º 004510257350, válida à data da ocorrência, transferia para a Companhia recorrente a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo tripulado pelo arguido, com a matrícula 91-18-QV.

O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e o respectivo regime constava, ao tempo dos factos, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro.

A chave da solução está na interpretação do segmento da norma do artigo 8º, nº 2, 2ª parte, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, que determina que «o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas» a terceiros por «acidentes de viação dolosamente provocados».

Na noção de “acidente de viação”, quando visto como acontecimento por si, como facto da dinâmica ou na interpretação do sentido comum, como acontecimento casual, fortuito, do qual resulta prejuízo para as pessoas ou para as coisas, o centro de referência está no facto em si, independentemente dos pólos genético e consequencial.

Mas esta noção de “acidente”, que se encontra por vezes reflectida na consideração dinâmica das ocorrências na circulação automóvel, só valeria, no rigor das coisas, para as ocorrência fortuitas ou de força maior, às quais seja estranha um factor humano desencadeante qualificável como uma qualquer forma de culpa – mesmo a simples negligência.

Nestas, diversamente, a noção de “acidente” já participa de elementos centrados na qualificação de acções humanas, alargando-se, consequentemente, o sentido de acontecimento casual e fortuito.

Há, assim, diversas possibilidades de enquadramento da noção de “acidente”, conforme o plano de apreciação que esteja em causa ou do qual se deva partir.

Pela parte do lesado, um facto exterior do qual resultem consequências lesivas constitui um acidente, no sentido de acontecimento que involuntariamente suporta, que lhe é estranho, que não prevê, que não condiciona e que escapa à sua capacidade de influência ou domínio.

Logo, uma devida conclusão - a noção de “acidente” ou “sinistro”, no sentido pressuposto pelo regime do seguro obrigatório do direito comunitário – e do direito nacional que assume o regime – tem, pois, de ser considerada e integrada pelo ponto de vista e pela posição do lesado: a «protecção», na expressão da intencionalidade legislativa, «dos legítimos interesses dos lesados».

Como bem acentua o exemplar aresto, assinado por Henriques Gaspar, «para o lesado, todo o acontecimento resultante da circulação de um veículo com motor que lhe cause danos pessoais ou materiais, e a cuja génese ou domínio foi estranho, constitui um acidente («acidente de viação»), no sentido de ocorrência exógena e não esperada (inesperada), ou, do seu plano e perspectiva, fortuita.

Deste ponto de vista, que é a perspectiva de que parte o regime da garantia de seguro obrigatório (protecção e centralidade do lesado), a ocorrência voluntariamente provocada pelo condutor de um veículo, em circulação ou em condições de circulação, na via pública, em movimento, em condições aparentemente típicas de circulação, constitui, neste sentido, um «acidente», na expressão da lei, «dolosamente provocado».

Não pode, por outro lado, nesta matéria, ser desconsiderado o saliente argumento de ordem sistemática já referido no acórdão do STJ, cit., de 1/4/93, retirado do regime jurídico de protecção de vítimas de crimes violentos, constante do Decreto-Lei nº 423/91, de 30 de Outubro. A exclusão pelo artigo 5º, nº 1 da aplicabilidade do regime aos «danos causados por um veículo terrestre a motor», só pode ter sentido se o dano «dolosamente» causado por um veículo terrestre a motor estiver contemplado em outra previsão.

Pode referir-se, também, em perspectiva idêntica, o acórdão do STJ, de 17/10/2007, proc. 3395/07, sobre o direito do lesado por acidente provocado com dolo a demandar o Fundo de garantia Automóvel, nos termos do artigo 24º, nº 2 do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro».

Diremos mais:

Esta interpretação permite a congruência, sem soluções de continuidade, entre o regime europeu e a disciplina normativa nacional.

A interpretação do artigo 8º, nº 2, 2ª parte, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro – em tudo paralelo à norma actual do artigo 15º/2 do diploma de 2007 -, em conformidade com o direito comunitário, alcançar-se-á considerando que «as directivas têm como objecto o seguro de responsabilidade civil que resulta da “circulação” de veículos automóveis, a qual pode dar origem a acidentes, bem como ser utilizada intencionalmente para a prática de crimes, e nenhuma prevê a exclusão da cobertura de danos causados dolosamente a qual deve, assim, ser garantida» (cfr. Moitinho de Almeida, “Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias”, p. 14, disponível em www.stj.pt).

Parece evidente nessas normas o intuito de protecção de terceiros, como resulta das delimitações previstas nos nºs 3 dos citados artigos.

Veja-se ainda que seria dificilmente compreensível que a lei deixasse as vítimas de actos dolosos, posto que praticados com recurso a veículos de circulação terrestre abrangidos pelo seguro obrigatório, numa situação de maior desprotecção do que deixa as vítimas de actos meramente negligentes.

E que não se venha defender a desconformidade desta solução com o artigo 46º da Lei do Contrato de Seguro (decreto-lei nº 72/2008, de 16 de Abril.

Como forma de mitigação do risco moral inerente ao contrato de seguro e por razões de ordem pública, estipula-se, de forma expressa, nesse normativo, que os actos ou omissões dolosos do beneficiário que tenham dado causa ao sinistro determinam a exclusão de qualquer direito à prestação resultante do contrato, arvorando em princípio geral aplicável a todos os seguros a regra constante do art. 458.º do CCom, nos termos do qual: «O segurador não é obrigado a pagar a quantia segura: (...) 2.º Se aquele que reclama a indemnização for autor ou cúmplice do crime da morte da pessoa, cuja vida se segurou».

O mesmo princípio é aplicável no caso de sinistro causado dolosamente pelo tomador do seguro ou pelo segurado, não se encontrando o segurador obrigado a efectuar a prestação acordada.

Admite, no entanto, o n.º 1 do art. 46.º que este regime possa ser afastado por disposição legal ou regulamentar ou por convenção entre as partes não ofensiva da ordem pública (respeitando, designadamente, os limites fixados no art. 14.º) e se a natureza da cobertura o permitir (por designadamente não implicar uma coincidência entre o tomador do seguro ou o segurado e o beneficiário, caso do NOSSO seguro de responsabilidade civil).

Como tal, temos lei expressa em diploma específico, não havendo que invocar a norma geral, assente ainda que não estamos perante qualquer caso de exclusão de garantia do seguro.

 

3.7. Improcedem, pois e assim, as conclusões deste recurso, tendo razão o tribunal recorrido em considerar a recorrente como responsável civil pelo pagamentos dos danos causados pelo arguido segurado aos demandantes em causa.

III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5 ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em:

· negar provimento ao recurso interposto pela demandante W... – COMPANHIA DE SEGUROS, SA, mantendo o teor do acórdão recorrido, também em termos civis.

            Condena-se a recorrente em custas, com a tW... de justiça fixada em 6 UCs [artigos 520º/a) e 523º do CPP e 87º, n.º 1, alínea b) do CCJ, ainda aplicável aos autos].

Paulo Guerra (Relator)

Alberto Mira


[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt.

[2] Correspondente ao momento em que os direitos do demandante ficaram definidos, atendendo ao seu estatuto de lesado civil.
[3] Esta revisão do valor da alçada dos tribunais de 1ª instância é aplicável já aos autos, sendo certo que o processo inicia-se após o dia 1/1/2008 (em 15/9/2008 – cfr. fls 1), não estando, pois, pendente à data da entrada em vigor dessa revisão operada em 2007 (em 1/1/2008) - cfr. artigo 12º do DL 303/2007.
Note-se que o valor anterior de tal alçada era de € 3.740,98 (artigo 24º/1 da Lei 3/99 de 13/1 e DL 323/01 de 17/12).