Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2510/09.5TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: CRIMES DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO E BURLA
CONCURSO
Data do Acordão: 09/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - VARA MISTA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 256º, 217º, 30º E 77º, DO C. PENAL
Sumário: A alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, no corpo do nº 1, do art. 256º, do Código Penal, aponta para a punição autónoma do crime de falsificação quando cometido como instrumental de outro crime.
Com efeito, onde anteriormente a lei dispunha apenas e tão-só que “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo (…)”, enunciando depois as condutas constitutivas do elemento material do crime, passou a dispor que “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: (…)”, comprometendo definitivamente o argumento da instrumentalidade como justificativo do concurso aparente, num claro reforço da tutela do bem jurídico tutelado pelo crime de falsificação, dando assim letra de lei àquele que era já o entendimento uniformizado da jurisprudência.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum que correram termos pela Vara Mista de Coimbra, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferido acórdão em que se decidiu nos seguintes termos:
(…)
Nos termos expostos, os Juízes que compõem este Tribunal colectivo deliberam o seguinte:
Decidem julgar totalmente procedente por totalmente provada a acusação e, nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, decidem:
a) Condenar o Arguido A... pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, al. a) do Código Penal na pena de três anos e seis meses de prisão;
b) Condenar o Arguido A... pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.ºs 1, als. a) e c) e 3 por referência ao art. 255.º, al. a) e art. 30º, nº 2, do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão;
c) Efectuar o Cúmulo Jurídico das penas referidas em a) e b), condenando o Arguido A... na pena única de quatro anos e três meses de prisão;
d) Suspender a execução da pena referida em c) pelo período de quatro anos e três meses, sujeita ao regime de prova, a estabelecer através de plano de reinserção social adequado, conforme o art. 54º do CP e 494º do CPP;
e) Condenar o Arguido nas custas do processo que se fixam em três UC, conforme art. 513.º do CPP e art. 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais com referência à tabela III anexa ao mesmo.
(…)

Inconformado, o arguido interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
B1. O recorrente pretende que seja realizada audiência, sobre os pontos A 1. e A3. da Motivação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 411°, n.° 5 do CPP.
B2. Foi o recorrente condenado, em cúmulo jurídico, na pena de prisão de 4 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, sujeita ao regime de prova, pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de falsificação na forma continuada, p. p. pelos artigos 30°, n. ° 2, 256°, n, ° 1, alíneas a) e c) e n. ° 3, por referência ao disposto no artigo 255°, alínea a) todos do Código Penal (doravante CP) e de um crime de burla qualificada, p. p. pelos artigos 217°, n.º 1 e 218°, nº 2, alínea a) ambos do CP.
B3. Entende o recorrente que mal andou o Tribunal recorrido ao condená-lo pela prática, em concurso real, de um crime de falsificação de documentos, ainda que sob a forma continuada, e de um crime de burla qualificada, incorrendo em manifesto erro de direito, com os inexoráveis reflexos em sede de determinação da pena. Com efeito,
B4. Sobre esta problemática, o Tribunal recorrido inicia o seu raciocínio, salvo o devido respeito, com base num pressuposto errado, pois que não considera a alteração legislativa operada pela Lei n. ° 59/2007, de 04 de Setembro ao artigo 256° do CP, relativo ao crime de falsificação de documentos. Assim,
B5. Do normativo vigente, nomeadamente, da parte final do seu n.º 1, extrai-se a clara conclusão que o legislador pretendeu, de forma inequívoca, consagrar a existência de concurso aparente ou consumpção do crime de falsificação de documentos pelo crime de burla, quando aquele seja instrumental deste. Ora,
B6. Nos termos do disposto no artigo 2°, n. e 1 do CP, as penas são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto; por outro lado, o artigo 2°, n. o 4 do CP consagra o principio da retroactividade in mitius da lei penal, com assento constitucional no artigo 29°, n. o 4 da CRP, ordenando que seja sempre aplicada aquela que for mais favorável ao arguido.
B7. Do supra exposto, resulta manifesto que a redacção conferida ao artigo 256° pela Lei n. o 59/2007 é mais favorável, pelo que mal andou o Tribunal recorrido ao não aplicar tal preceito e ao não considerar a prática, em concurso aparente, dos crimes de falsificação de documentos e de burla, resultando, assim, violados os artigos 2°, n.º 1 e 2 e 256°, n.º 1 do CP e o artigo 290, n.º 4 da CRP. Ademais e caso soçobre o argumento ora invocado,
B8. Atenta a factualidade dada como provada nos pontos 6, 7, 11, 12, 13, 14 e 18 da Fundamentação, emerge perspícuo que, através de uma única resolução criminosa, o recorrente forjou os documentos em apreço nos autos a fim de proceder ao registo da propriedade do imóvel a seu favor e, desta feita, na qualidade de dono e legitimo proprietário, poder vender o imóvel, obtendo, assim, prejuízo patrimonial ao qual bem sabia não ter direito, prejudicando, nessa medida, os reais donos do prédio em causa. Destarte,
B9. Não pode o recorrente concordar com a Fundamentação de direito constante do Acórdão recorrido e onde se diz: "No caso dos autos, entendemos que existiram duas resoluções criminosas pois que a resolução de falsificar o documento é diferente da de burlar, já que o arguido, atenta a relação de confiança que tinha com todos e a actividade profissional do arguido, poderia não se ter servido de documentos falsificados para efectivar a burla, mas antes de procurações com poderes abrangentes, sendo pois de condenar o arguido pelos dois crimes de que vinho acusado",
B10. É que, não se entende, salvo o devido respeito, a menção a procurações com poderes abrangentes, porquanto não foi com recurso a tais meios que o recorrente praticou os ilícitos, nem estes estão aqui em causa.
B11. A construção intelectual produzida pelo Tribunal a quo para defender a falta de unicidade da resolução criminosa não tem, salvo o devido respeito, âncora em qualquer facto constante dos autos mas apenas em meras conjecturas.
B12. Quod non est in actis, non est in mundo.
B13. Por conseguinte, tendo em consideração os factos dados como provados e supra referidos, deve concluir-se que entre os crimes de burla e de falsificação de documentos praticados pelo recorrente, verifica-se um concurso aparente de normas, pelo facto da falsificação constituir o meio, instrumento necessário para a prática do crime de burla.
B14. O crime de falsificação cometido pelo recorrente consiste num acto preparatório e executório do crime de burla: o recorrente praticou tal crime para que, desta forma, os terceiros em causa - Conservadores, Notários e adquirentes - acreditassem na veracidade dos documentos forjados. Tal actividade consubstancia o conceito de astúcia em provocar engano sobre factos, elemento essencial e ti pico do crime de burla.
B15. Nesta confluência, punir o recorrente, também, pelo crime de falsificação de documentos será puni-lo duplamente pela mesma actuação, violando-se assim o princípio ne bis in idem, com assento constitucional no artigo 29°, n. ° 5 da Constituição da República Portuguesa.
B16. Ao decidir como decidiu, isto é, ao condenar o recorrente em concurso real e efectivo pela prática do crime de falsificação e do crime de burla qualificada, violou o tribunal recorrido o disposto nos artigos 30°, 77°, 217º, 218° e 256° do CP.
B17. A interpretação conferida pelo Tribunal a quo às normas contidas nos artigos 30°, 77°, 217°, 218° e 256° do CP, no sentido de entre o crime de burla e de falsificação de documentos existir pluralidade de resolução criminosa, incorrendo o agente e aqui recorrente, na prática de ambos os ilícitos em concurso real, é manifestamente inconstitucional por violadora do disposto no artigo 29°, n. ° 5 da CRP.
B18. Em consequência, deverá o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que condene o recorrente pela prática de um crime de burla qualificada, em concurso aparente com a prática de um crime de falsificação de documentos.
B19. Na procedência do esforço recursivo supra ensaiado, deverão ser extraídas as corolárias consequências em sede de determinação da pena.
B20. Nesta confluência, conclui-se que o recorrente deve ser punido pelo concurso aparente dos crimes de burla qualificada e de falsificação, dentro da moldura penal correspondente, no caso dos autos, ao crime com a moldura penal mais grave, tomando o outro crime como factor agravante da medida da pena. Contudo,
B21. Pugna-se aqui pela manutenção da opção tomada no Acórdão recorrido na escolha de pena de prisão em medida inferior a cinco anos, suspensa na sua execução por idêntico período, atentas as doutas considerações nesta sede aí expendidas, relativamente ao cabal preenchimento das finalidades de prevenção geral e especial.
Termos em que, na procedência do presente recurso, deverá ser revogada a decisão recorrida, condenando-se o arguido recorrente pela prática, em concurso aparente, de um crime de falsificação, p. p. pelos artigos 256°, nº 1, alíneas a) e c) e nº 3, por referência ao disposto no artigo 255°, alínea a) todos do Código Penal (doravante CP) e de um crime de burla qualificada, p. p. pelos artigos 217°, n.º 1 e 218°, n.º 2, alínea a) ambos do CP, com as corolárias consequências em sede de medida da pena, assim se fazendo a Costumada Justiça!!!!!

O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, a Exmº Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se audiência, por assim ter sido validamente requerido pelo recorrente.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
- A relação que intercede entre os crimes de falsificação e de burla imputados ao arguido traduzir-se-á num concurso real de crimes ou num concurso meramente aparente?
- Decidindo-se pelo concurso real haverá, ainda assim, que considerar a verificação de uma unidade de resolução criminosa?
- Procedendo qualquer das questões suscitadas, haverá que ponderar o respectivo reflexo na medida da pena.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

No acórdão recorrido tiveram-se como provados os seguintes factos:
1) O arguido exerce a profissão de advogado desde …, data da sua inscrição na Ordem dos Advogados;
2) No exercício dessa sua actividade profissional o arguido prestou serviços jurídicos a BB..., e à sua falecida mulher, CC..., em virtude de correr termos pela Câmara Municipal de Coimbra um processo de expropriação que abrangia parte de um prédio a estes pertencente situado em …, freguesia de Santo António dos Olivais, nesta Cidade de Coimbra, identificado com o artigo matricial …e descrito na 1ª Conservatória de Registo Predial de Coimbra sob o nº …;
3) Por força dessa sua intervenção em representação dos proprietários do mencionado prédio o arguido ficou na posse de cópia todos os documentos relativos a essa propriedade bem como dos documentos de identificação dos respectivos proprietários e seus herdeiros, ou seja das quatro filhas daqueles: D... ., E... ., F... . e G...;
4) Na sequência da resolução daquele processo de expropriação, veio o arguido, por sua iniciativa mas ainda em representação dos proprietários desse prédio, a unificar essa propriedade num único artigo matricial de natureza urbana e a solicitar informação à Câmara de Coimbra sobre a capacidade construtiva do dito prédio, disponibilizando-se ainda para arranjar comprador para o mesmo no caso daqueles virem a ter interesse na sua venda, o que não foi concretizado por desinteresse dos proprietários nessa hipotética venda;
5) Nessa propriedade existia também uma casa de arrecadação de alfaias agrícolas na qual o BB... tinha um tractor agrícola, uma charrua, um atrelado agrícola, algumas ferramentas de trabalho, e uma roulotte;
6) Em data não apurada mas situada no primeiro semestre de 2008, o arguido teve conhecimento que um seu cliente pretendia investir uma avultada quantia monetária no mercado imobiliário e, como na altura o arguido estava com alguns problemas financeiros, decidiu forjar documentos e abusar de assinaturas para assim transmitir onerosamente o supra mencionado imóvel com vista a ficar na posse da importância monetária pela qual o conseguisse vender;
7) Para tal, o arguido muniu-se de cópias de uma escritura de habilitação efectuada no Cartório Notarial de … (cfr. fls. 37 a 39) e de uma escritura de doação efectuada no Cartório Notarial … (cfr. fls. 21 a 23), tudo documentos que o arguido tinha em seu poder por ter prestado serviços jurídicos aos intervenientes nesses actos públicos, servindo-lhe agora como “modelos” para construir os documentos que sustentariam a transmissão daquele imóvel a seu favor;
8) Efectivamente, em dia não determinado do mês de Junho de 2008, veio o arguido a fabricar o documento junto a fls. 59 a 61 que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, que intitulou de “Habilitação” e no qual fez constar que, no dia 8 de Abril de 2006, BB... compareceu no 4º Cartório Notarial de Coimbra e, perante o Notário … declarou que intervém nesse acto como cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC... que consigo foi casada e à qual sucederam como únicos herdeiros BB..., D... ., E... ., F... . e G.... Na última página de tal documento apôs o arguido pelo seu próprio punho as assinaturas de BB... e do Notário …, para o que nenhum destes lhe havia dado autorização, tendo ainda o arguido aposto nas três folhas desse documento o carimbo da Advogada …, ao qual teve acesso por esta ser sua mulher e partilhar consigo o mesmo escritório de advocacia, obtendo assim uma cópia certificada, nos termos do art. 38º do Dec.-Lei nº 76-A/2006, de 29/03 e Portaria nº 657-B/2006, de 29/06, da escritura de habilitação de herdeiros que fabricou que dessa forma passou a possuir força de documento autêntico;
9) Aproveitando a circunstância de a certidão assim obtida ter a aparência de um documento autêntico válido e certamente aceite como tal pelas entidades públicas a quem fosse exibido, renovando sucessivamente a resolução de construir documentos inverídicos, veio o arguido a fabricar também o documento junto a fls. 237 a 239 que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, que intitulou de “Doação” e no qual fez constar que, no dia 20 de Maio de 2006, BB... compareceu no Cartório Notarial … e, perante o Notário …, declarou que por si e na qualidade de procurador das suas filhas D... ., E... ., F... . e G..., doam ao segundo outorgante, ou seja, ao aqui arguido, o prédio àqueles pertencente situado em …, freguesia de Santo António dos Olivais, nesta Cidade de Coimbra, identificado com o artigo matricial … e descrito na 1ª Conservatória de Registo Predial de Coimbra sob o nº …, tendo o arguido declarado que aceita esta doação nos termos exarados. Na última página de tal documento apôs o arguido pelo seu próprio punho a sua assinatura bem como as assinaturas de BB... e do Notário …, para o que nenhum destes lhe havia dado autorização, tendo ainda o arguido aposto nas três folhas desse documento o carimbo da Advogada …, ao qual teve acesso por esta ser sua mulher e partilhar consigo o mesmo escritório de advocacia, obtendo assim uma cópia certificada, nos termos do art. 38º do Dec.-Lei nº 76-A/2006, de 29/03 e Portaria nº 657-B/2006, de 29/06, da escritura de doação que fabricou que dessa forma passou a possuir força de documento autêntico;
10) Por fim, no dia 9 de Junho de 2008, no desenvolvimento daquela sua intenção de forjar documentos, o arguido preencheu pelo seu próprio punho a requisição de registo cuja cópia consta de fls. 18 a 19 e que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais, na qual discriminou os actos que pretendia ver registados relativamente ao prédio descrito na 1ª Conservatória de Registo Predial de Coimbra sob o nº …, ou seja: 1) a aquisição de tal prédio a favor de BB..., D... ., E... ., F... . e G..., instruída com a cópia certificada da escritura de habilitação de herdeiros que o arguido forjara; 2) a aquisição desse mesmo prédio a favor do arguido, instruída com cópia certificada da escritura de doação que ele também tinha forjado; e, na última página de tal documento, o arguido apôs pelo seu próprio punho a assinatura de BB... para o que este também nunca lhe havia dado autorização, tendo de seguida o arguido apresentado e entregue esse documento na 1ª Conservatória de Registo Predial de Coimbra, sita nesta Cidade e comarca de Coimbra, acompanhado de cópia do bilhete de identidade e do cartão de contribuinte do dito BB...;
11) Dessa forma, e não obstante estar consciente que aqueles documentos que intitulou de escrituras públicas não foram lavrados nos cartórios notariais neles referidos e muito menos perante os respectivos Notários, o arguido serviu-se dos mesmos, como se de documentos válidos se tratasse, e garantiu ao Conservador da 1ª Conservatória de Registo Predial de Coimbra onde o mencionado prédio urbano se encontrava descrito, que aqueles documentos eram escrituras públicas verdadeiras lavradas nos cartórios notarias nelas indicados e com a intervenção das pessoas nelas identificadas, razão pela qual, e só por isso, o Conservador aceitou tais documentos como autênticos, convencido, por aquele, que as declarações nos mesmos apostas correspondiam à verdadeira vontade dos indivíduos alegadamente intervenientes em tais escrituras;
12) Foi, pois, com base nesses documentos que o arguido entregou na aludida conservatória que o respectivo Conservador do Registo Predial veio a inscrever no livro próprio a aquisição a favor do arguido do prédio aí descrito sob o nº …, tal como resulta da cópia da certidão junta a fls. 110 a 111 aqui dada por reproduzida, passando o arguido a constar como titular desse prédio por força da alegada doação de que tinha beneficiado;
13) Arrogando-se proprietário do dito prédio, na manhã do dia 29 de Agosto de 2008, o arguido compareceu como outorgante no Cartório Notarial …., sito no Edifício …, nesta Cidade e comarca de Coimbra, onde, perante aquela Notária, interveio numa escritura pública de compra e venda como primeiro outorgante e vendedor, figurando como segundo outorgante e comprador H..., na qualidade de administrador único da sociedade “…, S. A.”;
14) Por força dessa escritura pública de compra e venda o arguido vendeu àquela sociedade, pelo preço já recebido de € 62.350,00, o prédio urbano composto por casa de arrecadação de alfaias agrícolas, de rés do chão e logradouro, sito na Rua de …, freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra, inscrito na matriz sob o artigo …, com o valor patrimonial de € 33.660,00, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº …, e registado definitivamente a favor do arguido pela inscrição …, de 09/06/2008, tendo nesse acto o arguido exibido certidão dessa descrição e inscrição bem como uma certidão alegadamente passada em 10/11/1981 pelo … Cartório Notarial de Coimbra, referente a escritura de compra e venda outorgada em 09/11/1981 donde consta ter sido exibida a licença de utilização número … passada pela Câmara Municipal de Coimbra em 28/03/1980;
15) Logo na tarde desse mesmo dia 29 de Agosto de 2008, H..., na qualidade de administrador único da sociedade “ …, S. A.”, compareceu novamente naquele Cartório Notarial, onde, perante a respectiva Notária, interveio numa escritura pública de compra e venda como primeiro outorgante e vendedor, figurando como segundo outorgante e comprador J... na qualidade de procurador da sociedade “W…, S. A.”, e, por força dessa escritura pública de compra e venda, H… vendeu a esta sociedade, pelo preço já recebido de € 150.000,00, aquele mesmo prédio urbano que o arguido lhe tinha acabado de vender;
16) Por sua vez, em 10 de Março de 2009, a sociedade “W…, S. A.”, representada pela sua Presidente do Concelho de Administração, K..., vendeu a L... e esposa, pelo preço já recebido de € 165.000,00, o aludido prédio urbano que havia comprado à sociedade “…, S. A.”;
17) O prédio referido em 14) tem um valor de comercialização de € 207.500,00;
18) Ao elaborar as mencionadas escrituras de habilitação e de doação onde apôs as assinaturas de BB... e dos Notários …e …, bem sabendo que não eram as assinaturas de tais pessoas, bem como ao apor sem autorização a assinatura de BB... na requisição de registo que redigiu e entregou na … Conservatória de Registo Predial de Coimbra, agiu o arguido, prevendo a possibilidade desses documentos aparentemente autênticos contendo assinaturas inválidas serem aceites pelo Conservador da … Conservatória de Registo Predial de Coimbra para inscrever no livro próprio a aquisição a favor do arguido do prédio descrito sob o nº …, o que conseguiu, passando então a constar como titular desse prédio de que se arrogou proprietário por força daqueles documentos acerca dos quais criou a aparência de documentos autênticos, o que lhe permitiu vender o dito imóvel a terceiros contra a vontade dos seus legítimos proprietários, conformando-se com tal possibilidade, com o propósito concretizado de se vir a apropriar em seu exclusivo benefício do valor monetário que o comprador do imóvel lhe pagou, consciente de que, dessa forma, causaria, como causou, uma diminuição patrimonial ao BB... e suas filhas, legítimos proprietários do prédio em questão, assim obtendo o arguido uma vantagem patrimonial que lhe não era devida e que, de outra forma, não lograria alcançar;
19) Agiu livre e conscientemente, bem sabendo que praticava actos proibidos e punidos por lei penal;
20) O prédio foi restituído aos originários proprietários pelos últimos adquirentes;
Das condições pessoais e sociais do arguido:
21) O arguido é casado e tem filhos;
22) O arguido solicitou o cancelamento da sua inscrição na Ordem dos Advogados;
23) O arguido sofreu pena disciplinar de suspensão da actividade de advocacia por decisão já transitada em julgado;
24) O arguido exerce actualmente actividade profissional em Angola;
25) O arguido goza de boa consideração no meio social em que vive;
26) O arguido propôs por sia prestação de garantia bancária no montante do valor recebido;
27) O arguido não tem antecedentes criminais.

Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, nomeadamente, não se provou:
a) Que nos bens referidos em 5) constasse uma serra eléctrica;
b) Que os bens referidos em 5) tivessem o valor global de € 5.000,00.

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
Os factos dados como provados assentaram na conjugação da prova produzida em audiência e nos documentos juntos aos autos a fls. 9 a 11 (cópia da escritura de habilitação de herdeiros), 12-13 (documentos matriciais), 14-19 (cópia da descrição predial), 21-23 (cópia da escritura de doação), 35-36 (cópia da escritura de doação), 37-39 (cópia de escritura de habilitação), 59-61 (cópia de escritura de habilitação), 68-88 (documentação das compras e vendas subsequentes à venda efectuada pelo arguido, e pagamentos de preços), 93-106 (documentação municipal quanto ao prédio), 107-109 (contrato-promessa outorgado entre o arguido e a …,SA, a propósito do prédio vendido), 110-111 (documentação predial), 112-115 (cópia da escritura de compra e venda), 116-124 (documentação predial, fiscal e da aquisição), 129-133 (correspondência relativa ao arguido e assistente), 136-139 (cópias das escrituras de doação e habilitação), 141 (informação da Ordem dos Advogados quanto à suspensão do arguido desde 12.8.2009), 147-169 (documentação relativa a acção cível proposta contra o arguido), 187-217, 229-232, 236-243, 276-280, 391-400, 416-477 (documentação relativa ao prédio e venda, com documentos de doações e habilitações, sendo diversa já repetida nos autos), 408-410 (assento de óbito de BB...), 411-415 (escritura de habilitação do falecido BB...) e bem assim no relatório de avaliação de fls. 247-253 e nos documentos juntos em audiência.
O Tribunal atendeu ainda às declarações prestadas pelo arguido em sede de inquérito tendo o arguido requerido que fossem lidas em audiência, as quais tiveram relevância para a descoberta da verdade, onde referiu as circunstâncias em que tinha em seu poder a documentação relativa ao prédio objecto dos factos ilícitos praticados, asa suas dificuldades económicas que motivaram a prática dos mesmos e os meios que adoptou para o efeito de forma completa e precisa.
As condições pessoais do arguido foram relatadas pelas testemunhas arroladas pela defesa, e a inexistência de antecedentes criminais mostra-se documentada nos autos através do Certificado de Registo Criminal de fls. 597.
A testemunha E… ., filha do falecido BB..., relatou as circunstâncias em que o arguido obteve a documentação do prédio e a confiança de que gozava na sua família, tanto mais que os tinha representado em mais que um assunto, sendo certo ainda que eram vizinhos e que a mulher do arguido era administradora do condomínio do prédio que todos habitam. Em determinado momento, soube, por vizinhos do terreno, que constava no local que o mesmo teria sido vendido, tendo estranhado e indagado o que se passava. Depois de abordarem o arguido, e tendo ele dado explicações incongruentes para o facto, reportando-se a um erro informático da conservatória, resolveram averiguar por conta própria, tendo então descoberto os actos praticados pelo arguido. Mais relatou que confrontaram o arguido com a descoberta, tendo ele dito estar aliviado por terem descoberto, ficando transtornados com toda a situação, decidindo apresentar queixa. Explicou ainda os bens existentes no terreno vendido mas não se referiu ao valor dos mesmos.
A testemunha H..., adquirente do prédio ao arguido, explicou as circunstâncias em que decorreu a negociação, e o preço pago, mais explicando que nunca desconfiou de qualquer ilicitude na medida em que o arguido era também o seu advogado e das suas empresas, tendo plena confiança nele. Explicitou ainda em que termos efectuou diligências camarárias para obter informações acerca do prédio e a venda subsequente do mesmo. Explicou ainda que soube do problema através do penúltimo adquirente, tendo no mesmo dia confrontado o arguido com esses factos, confessando ele o que se tinha passado e dizendo que tinha intenções de resolver a questão amigavelmente.
As testemunhas relataram a idoneidade do arguido e suas condições familiares.
Importa ainda realçar que o tribunal levou em conta a conjugação de todos estes meios de prova e factos entre si e com a apreensão directa pelo tribunal das atitudes dos intervenientes e depoentes e com as regras da experiência comum.
Quanto aos factos dados como não provados, tal resulta de nenhuma prova ter sido feita acerca dos mesmos, ou a prova feita ter estado em contradição com a matéria dada como provada, como já explicitado.
Quanto aos factos alegados não especificamente dados como provados ou não provados, tal resulta de, ou serem factos instrumentais, de outros fundamentais dados como provados ou não provados, ou estarem, em particular ou em geral, em contradição lógica com a matéria fáctica supra referida ou de não terem interesse para a decisão da causa bem como todos os conclusivos constantes quer da acusação quer da acusação do assistente, não se tendo também levado à matéria provada ou não provada todos os factos alegados que constituem meios de prova e não factos propriamente ditos e ainda as alegações de direito.
A prova é apreciada livremente pelos julgadores segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (art. 127º do CPP). Dispõe o artigo 127º do CPP que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, princípio da livre apreciação da prova que sofre limitações, nomeadamente no que respeita às provas documental e pericial.
Especificamente não se provou o valor dos bens existentes no terreno já que a testemunha … não o referiu, nem assim qualquer das outras, inexistindo igualmente prova documental quanto a esses factos.
Em síntese, o tribunal ficou convencido da prática dos crimes imputados ao arguido, que o mesmo assumiu nas declarações prestadas e facultando a sua leitura em audiência, pese embora não tenha comparecido na mesma de forma a beneficiar da posição confessória pessoalmente.
Relativamente à fundamentação de facto, entendemos que o que se deixa dito basta para dar cumprimento integral ao disposto no art. 374º, nº 2 do CPP. Há assim que realizar uma exposição tanto quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo ilógica, arbitrária contraditória ou violadora das regras da experiência comum (neste sentido, Acórdão do STJ de 17/11/1999, in CJSTJ, III, pp. 200 e segs.).

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O presente recurso visa exclusivamente a apreciação de questões de direito. A primeira delas, de acordo com a ordem por que foram suscitadas – de resto, a adequada, em função da sua relação subsidiária – consiste em saber se os crimes de falsificação e de burla imputados ao arguido estão em um concurso real, como sustentou a decisão recorrida, ou se, pelo contrário, traduzem um concurso meramente aparente, dito concurso ideal, como defende o recorrente.
A questão, ciclicamente suscitada ao longo de décadas, renasce a cada alteração legislativa incidente sobre os tipos legais em questão, porventura, consequência da clivagem verificada na dogmática, já que a jurisprudência vem assumindo de forma inflexível o concurso real de crimes.
A regra do concurso de crimes, consagrada no art. 30º, nº 1, do Código Penal, é a de que o número de crimes se determina “ (…) pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”. Se é certo que esta disposição legal não consagra expressamente as categorias do concurso real e do concurso aparente, constitui, no entanto, entendimento pacífico que dela resulta que a distinção entre unidade e pluralidade de crimes há-de assentar num critério racional ou teleológico, reportado ao fim ou objectivo visado pelas normas que tipificam os crimes em concurso. Desde há muito que se vem reconhecendo a existência de situações que, fruto de um específico condicionalismo da acção, impõem um tratamento uniformizado da violação plúrima do mesmo ou de diversos bens jurídicos, com punição conjunta por um só crime, em regra, o crime dominante. Contudo, a problemática envolvida nesta questão está longe de ser simples, ao ponto de Eduardo Correia, referindo-se-lhe, ter afirmado que “se a distinção entre unidade e pluralidade de delitos parece, à primeira vista, fácil e clara, logo a um mais íntimo contacto revela ter um tão vasto objecto e ligar-se a um tão largo número de questões, que se transforma num dos mais torturantes problemas de toda a ciência do direito criminal” - in “A Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Reimpressão, 1983, pág. 13..
É comummente aceite a existência de concurso aparente quando uma só conduta ou acção do agente preenche uma pluralidade de infracções penais, sejam elas do mesmo tipo (concurso homogéneo) ou de tipos diversos (concurso heterogéneo). O concurso aparente verificar-se-á, em princípio, nas situações de consumpção.
A doutrina vem distinguindo entre consumpção por especialidade e consumpção por subsidiariedade. A primeira, verifica-se quando entre duas normas intercede uma relação de especialização, decorrente da circunstância de uma dessas normas conter todos os elementos da outra, acrescendo-lhe ainda um elemento adicional, reservando o respectivo funcionamento para situações específicas em que esse elemento complementar se verifica. É, nomeadamente, o caso da relação que intercede entre o tipo geral de crime e o correspondente tipo agravado, qualificado ou privilegiado. A segunda, tem lugar quando um tipo legal de crime deva funcionar apenas a título subsidiário, quando não existir outro tipo legal abstractamente aplicável que comine pena mais grave (é, verdadeiramente, uma relação de sobreposição).
De um modo mais abrangente, poderá afirmar-se que o concurso aparente ocorre quando a conduta do agente apenas formalmente preenche vários tipos de crime, na medida em que é totalmente abrangida por um dos tipos violados, devendo ser excluída a aplicação dos demais. Em contraponto, no concurso efectivo, as diversas normas aplicáveis oferecem-se como concorrentes na sua aplicação concreta, por não interceder qualquer circunstância que obste à aplicação de todas elas.
A complexidade da questão posta não se basta, no entanto, com os enunciados formais apontados, pelo que em último caso será sempre através do critério teleológico a que nos referimos inicialmente e por recurso ao bem jurídico efectivamente tutelado por cada uma das normas em presença, que se aferirá a relação de concurso.
O vector em que porventura a determinação da natureza do concurso envolve maiores dificuldades é o do cometimento sequencial de crimes, em que um ou mais delitos são cometidos tendo como finalidade permitir a concretização de um outro ilícito, aquele que verdadeiramente traduz o desígnio último do agente e a cuja obtenção foi ou foram preordenados os demais. Assim, quando um determinado crime seja praticado não como finalidade em si mesma pretendida, mas como meio para permitir a concretização de um outro crime, o crime fim, discute-se se o agente deverá ser punido apenas por este último crime ou, pelo menos, apenas pelo mais grave dos dois, já que o crime fim poderá não ser o mais grave dos dois ilícitos.
Contudo, o critério da instrumentalidade do crime meio não resolve em definitivo o problema da natureza do concurso. Não tem a virtualidade de abranger todas as situações em que há que equacionar a verificação do concurso meramente aparente, nem a jurisprudência o vem admitindo com uma amplitude total, já que por razões facilmente intuíveis, se levado ao extremo, poderia conduzir a situações verdadeiramente aberrantes, o que nos remete para a consideração inicial de que a verificação do concurso aparente há-de assentar, ainda aqui, num critério teleológico, reportado ao fim ou objectivo visado pelas normas que tipificam os crimes em concurso, que se socorra de todos os elementos que possam racionalmente justificar uma ou outra das soluções em confronto.

Revertendo agora ao caso concreto, estamos em presença de factos que tipificam um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, als. a) e c) e n.º 3, por referência aos arts. 255.º, al. a) e 30º, nº 2 e um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, al. a), todos do Código Penal, como, de resto, é pacificamente aceite pelo recorrente.
Não será, seguramente, por recurso exclusivo ao critério do bem jurídico tutelado por cada uma das normas em confronto, que se poderá determinar um concurso aparente. São normas com previsões totalmente distintas, não ocorrendo sobreposição no preenchimento dos elementos do tipo legal de crime que cada uma delas consagra. Entre elas não se verifica qualquer relação de subsidiariedade ou de especialidade.
Restaria o critério da preordenação do crime de falsificação de documento ao cometimento do crime de burla. Aquele, diz o recorrente, foi cometido exclusivamente para permitir a realização deste último. Mas será essa constatação suficiente para se concluir pela verificação do concurso ideal? Estamos em crer que não, já que o critério do bem jurídico tutelado pelas normas violadas, a par do desfasamento temporal das condutas integradoras dos vários ilícitos, permite afastar a relação de concurso, como sucederá sempre que o agente vai praticando vários ilícitos numa sucessão de etapas com vista à obtenção de um resultado criminoso não contemplado nas acções já realizadas. Numa tal situação, o concurso aparente só deverá ser equacionado no caso da indispensabilidade dos crimes instrumentais para o cometimento do crime fim. Sem a verificação dessa indispensabilidade instrumental, os crimes que antecedem o crime fundamentalmente visado pelo agente conservam a sua autonomia, devendo ser punidos no âmbito do concurso real de infracções. Mas mesmo que verificada essa indispensabilidade, ainda assim não poderá ser arredado o argumento de ordem teleológica subjacente ao espírito da norma, de tal ordem que quando se oferecer como evidente que o legislador quis a autónoma punição do crime meio, não poderá o argumento da instrumentalidade justificar o concurso aparente. E tal é, aliás, o caso em presença, já que a alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, no corpo do nº 1 do art. 256º do Código Penal, aponta para a punição autónoma do crime de falsificação quando cometido como instrumental de outro crime. Com efeito, onde anteriormente a lei dispunha apenas e tão-só que “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo (…)”, enunciando depois as condutas constitutivas do elemento material do crime, passou a dispor que “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: (…)”(sublinhado nosso), comprometendo definitivamente o argumento da instrumentalidade como justificativo do concurso aparente, num claro reforço da tutela do bem jurídico tutelado pelo crime de falsificação, dando assim letra de lei àquele que era já o entendimento uniformizado da jurisprudência.

Vejamos agora se há que considerar a verificação de uma só resolução criminosa, já que a problemática subsidiariamente suscitada se reconduz à questão de saber se, mau grado a verificação de uma pluralidade de condutas naturalísticas desenvolvidas pelo agente, estas podem e devem ser considerados como fruto de uma só intenção estruturada ou se, pelo contrário, traduzem uma renovação da intenção e vontade de agir.

Claro que a questão da unidade ou pluralidade de resoluções criminosas transporta consigo toda a subjectividade decorrente da circunstância de ser fenómeno do foro psicológico, a resolver por recurso à consideração global dos factos objectivamente demonstrados, pressupondo a análise da materialidade do crime, da acção ou omissão tal como esta é percepcionada pelo comum dos cidadãos. Trata-se, não obstante, de um juízo que não pode prescindir da consideração de factores como a personalidade do delinquente, a sua vivência, ou o seu grau de cultura, sob pena de não passar de uma mera abstracção sem um mínimo de correspondência na realidade analisada.
Ora, excluída já a opção do concurso aparente, nos termos que deixámos consignados, a multiplicidade de factos criminalmente relevantes permite equacionar três hipóteses:
- Crime único, decorrente de uma só resolução criminosa;
- Realização plúrima (concurso real de crimes);
- Crime continuado.

A primeira das vertentes assinaladas – um só crime decorrente de um só desígnio criminoso – nem sempre se afirma com a simplicidade que parece sugerir, como se evidencia particularmente se se considerarem os delitos de execução continuada, perspectiva que no entanto não importa desenvolver, por se situar totalmente à margem da questão que agora nos ocupa. O que importa reter é que, nas palavras de Figueiredo Dias, tal como “… a unidade de resolução é em absoluto compatível com a pluralidade de sentidos autónomos de ilícito dentro do comportamento global, mesmo que não exista descontinuidade temporal entre os diversos actos praticados. E isto é assim, trate-se de bens jurídicos lesados eminentemente pessoais (…) ou não (v. g., a propriedade, o património, o meio ambiente, a ordem e a tranquilidade públicas) - in “Direito Penal - Parte Geral”, tomo I, 2ª Ed. pag. 1008., também “…a pluralidade de resoluções é ainda compatível com a unidade de sentido de ilícito do comportamento total” - idem, pág. 1006., constatação que resulta do critério perfilhado pelo mesmo autor relativamente à determinação da unidade ou pluralidade de crimes, assente na “unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes” - idem, pag. 989..

No concurso de crimes, tal como no crime único, o critério da sua determinação é o do art. 30º, nº 1, do Código Penal: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi preenchido pela conduta do agente. E no caso vertente, inexistindo coincidência das condutas naturalísticas que preenchem os tipos em confronto, o critério da norma citada, se não houvesse outros factores a considerar, apontaria desde já para a pluralidade de ilícitos. Seguindo uma vez mais as palavras de Figueiredo Dias, “… da pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global é legítimo concluir, prima facie, que aquele comportamento revela uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude que, segundo o mandamento da esgotante apreciação contido na proibição jurídico-constitucional de dupla valoração, devem ser integralmente valorados para efeito de punição. A esta luz – e só a ela – fica justificada a aplicação do disposto no art. 77º-2 e o sistema aí contido de soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes para efeito de determinação do limite máximo da pena (conjunta) do concurso de crimes” - idem, pág. 1006..

Por fim, o crime continuado determina-se pelo critério consagrado no nº 2 do art. 30º, estatuindo que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

Excluída esta última hipótese sem necessidade de detalhada explicação, no caso vertente a unidade da resolução criminosa só poderia sustentar-se numa conduta de tal modo linear e consequente, que quase no limiar da inconsciência relativamente à multiplicidade de sentidos criminosos das acções concretamente desenvolvidas, permitisse afirmar, por referência à personalidade do arguido, ou à sua falta de sentido crítico, ou mesmo a invulgares limitações de natureza intelectual, a tremenda injustiça resultante da consideração da pluralidade de resoluções criminosas. Manifestamente, não é esse o caso. O arguido exercia a profissão de advogado, não havendo como desmentir a multiplicidade de sentidos criminosos decorrentes da violação plúrima de normas jurídicas tutelando bens jurídicos diversos, em concurso heterogéneo. A sua consciência relativamente ao significado das acções que desenvolveu excede necessariamente em muito a consciência que dos mesmos actos e das suas implicações jurídicas teria o cidadão comum, sem especial formação na área do direito, mas do qual a lei espera – e ao qual exige – ainda assim, a percepção do carácter ilícito das condutas criminalmente tipificadas e um comportamento conforme ao direito. Afirmar, no caso vertente, a pertinência da consideração da unidade de resolução criminosa, equivaleria a negar à aplicação prática do direito o sentido crítico que aquela necessariamente pressupõe, melhor dizendo, equivaleria a negar aquilo que se oferece como evidente.

Posto isto, fica prejudicada a questão suscitada em último lugar, visando a reapreciação da pena à luz de uma punição determinada exclusivamente dentro da moldura penal prevista para o crime mais grave. De resto, as penas encontradas – as parcelares, como a pena única – foram determinadas em obediência ao critério legal e não merecem censura.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, nega-se provimento ao recurso.
Por ter decaído integralmente no recurso interposto, condena-se o recorrente na taxa de justiça de 4 UC.

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Coimbra, ____________
(texto processado e revisto pelo relator)




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(Jorge Miranda Jacob)




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