Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
348/19.0T8PCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
DOAÇÕES
NULIDADE PARCIAL
CANCELAMENTO DOS REGISTOS
Data do Acordão: 03/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PENACOVA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 89.º DO CÓDIGO DO NOTARIADO,
ARTIGOS 28.º, N.º 3 E 116.º DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL
ARTIGOS 292.º, 892.º E 939.º, TODOS DO CÓDIGO CIVIL;
ARTIGO 12.º, N.º 1 DO CIMI
ACÓRDÃOS DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA NÚMEROS 3/2001 (DIÁRIO DA REPÚBLICA 1.ª SÉRIE DE 09-02-2001) E 1/2008 (DR 1.ª SÉRIE DE 31-03-2008.
Sumário: I – Provando-se na acção de impugnação de escritura de justificação notarial que os actos de posse nela mencionados não abrangeram uma dada parcela de terreno, os efeitos jurídicos resultantes de tal escritura são ineficazes apenas em relação a essa parcela.

II – As doações subsequentes do prédio descrito na escritura de justificação são nulas na parte em que integram no seu objecto essa parcela.

III – O cancelamento dos registos que foram efectuados com base nessa escritura de justificação e doações posteriores deve reflectir tal nulidade parcial.

Decisão Texto Integral:



Recorrentes/Autores…………… AA e esposa BB, reformados, com residência na Rua ..., ....
Recorridos/Réus………………… CC e marido DD, reformados, com residência na Rua ..., ...;
……………………………………… EE, divorciada, com residência na Rua ..., ....
Intervenientes Passivos……….. FF;
……………………………………… GG;
………………………………………. HH; e
………………………………………. II; todos melhor identificados nos autos.
*
I. Relatório
a) O presente recurso vem interposto pelos Autores e respeita à sentença que fechou o ciclo processual dos autos na 1.ª instância, a qual julgou a ação improcedente e absolveu os Réus do pedido.
Trata-se de uma ação de simples apreciação negativa, através da qual os Autores pediram a declaração de nulidade de uma escritura pública de justificação e doação lavrada em 16 de setembro de 2005, bem como o cancelamento de todo e qualquer registo feito com base nela, porquanto os factos aí referidos como fundantes da usucapião sobre o imóvel não correspondem historicamente à realidade, padecendo de falsidade, pois é incluída no prédio uma faixa de terreno que é propriedade dos Autores, facto que era do conhecimento dos intervenientes na escritura.
Trata-se do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...17 da freguesia ..., concelho ....
Em consequência desta pretendida anulação da escritura de justificação e doação, os Autores pediram ainda a declaração de nulidade de uma segunda escritura pública de doação, realizada pelos Réus em 1 de abril de 2019, cancelando-se todo e qualquer registo feito com base nela, comunicando-se a decisão à respetiva Conservatória do Registo Predial.
Pediram, por fim, a condenação solidária dos Réus no pagamento de indemnização a favor dos autores, por danos não patrimoniais, decorrentes de tais comportamentos, no montante de €750,00 € (setecentos e quinhentos euros) para cada um, mais juros desde a citação e até pagamento.
Os Réus impugnarem a sua por estarem desacompanhados de outros intervenientes nas relações jurídicas invocadas, impugnaram os factos alegados pelos Autores, reafirmando a veracidade das declarações vertidas na escritura pública de justificação.
Foram admitidos a intervir ao lado dos Réus, FF, GG, HH e II, os quais não deduziram contestação.
Como se referiu inicialmente, no final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo a presente acção totalmente improcedente e em consequência decide-se absolver os Réus CC, DD, EE do pedido contra si formulado por AA e BB.
Custas a cargo dos Autores.
Registe e Notifique.»
b) É desta decisão, como se disse, que vem interposto o recurso por parte dos autores AA e BB, cujas conclusões são as seguintes:
«1. Impugna-se a decisão de dar como provado o facto como constante do ponto 7 dos Factos Provados, estritamente porque, incorrendo em erro de julgamento face à prova constante dos autos e produzida em audiência de discussão e julgamento, ali não é considerado e dado como provado que o “Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2 a 200 esc – 24.650 $”, traduzindo-se num terreno de quintal e de “serventia” com 1 (um) metro de largura, e corresponde, nas respetivas área e dimensão, a 123,25 m2”, cujo direito de propriedade coube ao Autor, integra e faz parte do imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...17 e que não se encontrava descrito na competente Conservatória do Registo Predial.
2. Contrariamente ao que o Tribunal a quo entendeu e decidiu, a narrativa e declarações claramente e comprovadamente falsas sobre como o imóvel teria advindo, e quando, à posse dos justificantes, como vertidas na escritura de justificação e doação à 1ª Ré de 16 de Setembro de 2005, para sustentar o título de propriedade decorrente de uma aquisição por usucapião, e conhecendo os Réus plenamente essa falsidade, não configura um mero lapso desculpável, nem a tanto é equiparável, tão pouco um mero rigor formal, antes tendo sido (e sendo) determinantes, na substância, para a (in)validade do acto jurídico e para a (in)eficácia daquela escritura.
3. Sem nisso conceder, sempre as falsas declarações de relevo maior na substância importariam e importam também para devidamente e com justeza aferir não só da legalidade (e também, diga-se, licitude), como também da própria credibilidade da actuação e da postura adoptadas pelos Réus, o que, nem dessa forma e para boa decisão da causa, foi considerado pelo Tribunal a quo, e, isto, ainda que se consignando na Sentença recorrida que “o que está em causa nos presentes autos é o facto de se saber se as declarações contidas na escritura de justificação e de doação datada de 16 de setembro de 2005 correspondem (ou não) à realidade – isto é, da veracidade ou da sinceridade do teor das declarações constantes da escritura de justificação e de doação.”
4. O que, desde logo, sobressai na Sentença sob recurso, vista a motivação sobre a decisão sobre os factos dados como provados nos pontos 23, 24, 25, 26, 28 e 29 dos Factos Provados, é uma manifesta desatenção para o que seja “a casa”, o “edifício habitacional”, cuja propriedade foi atribuída à 1ª Ré, casada com DD, em 1980, e o que mais abrange e compõe o imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...17.
5. Nesse pressuposto incorrecto de que o imóvel se reconduz ao que se destinasse efectivamente à habitação dos pais do Autor e da 1ª Ré, o Tribunal a quo entendeu e decidiu, à revelia da prova produzida e mesmo quando conjugada com as regras da lógica e da experiência comuns, que só à morte daqueles se efectivaria o que já vinha mesmo sendo praticado tanto por Autores, como pelos próprios 1º e 2º Réus, ou seja, actos de posse por estes inerentes a um direito de propriedade.
6. Atenta a prova produzida nos autos e mesmo o que é das regras da lógica e do senso comuns, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, e também em patente contradição na respectiva fundamentação, ao decidir dar como provados os factos constantes dos pontos 23, 24, 25, 26, 28 e 29 dos Factos Provados, bem como ao dar como não provado o que consta da alínea a) dos Factos não Provados.
7. A decisão do Tribunal recorrido de dar como não provado os factos constantes das alíneas b) e c) dos Factos não Provados decorre não só de erro de julgamento, não tendo atentado correctamente na prova produzida e constante dos autos, conjugada entre si e reforçada pelo que é de lógica e do senso comuns, como também da própria conduta ilegal dos Réus, pautada por falsidade e logro, contrariando deliberadamente e com dolo a realidade que conhecem, no que foi declarado e, assim, se consignou nas escrituras de 16 de Setembro de 2005 (escritura de usucapião e de doação à 1ª Ré) e de 1 de Abril de 2019 (escritura de doação à 3ª Ré).
8. Para além de responsabilidade criminal, sobressai a responsabilidade civil extracontratual dos Réus por factos ilícitos e no que configura conduta claramente dolosa, em que se evidencia o propósito, conseguido, de causar, como causaram (e estão a causar) lesão a legítimos direitos e interesses dos Autores, e, sem prejuízo disso, certo é que a indubitável falsidade e o logro por que se pautou a conduta dos Réus em sede e para efeitos da realização de ambas as escrituras públicas – e até dada como provada pelo Tribunal a quo no que respeita, logo em parte substancial e de maior relevo, à escritura de justificação e doação de 16 de Setembro de 2005 – assumia e assume pertinência em sede de apreciação e decisão sobre a presente causa, e, desde logo, para correcta decisão sobre a matéria de facto).
9. Na decisão do Tribunal a quo de dar como não provados cada um dos concretos factos constantes das alíneas d), e), f) e g) dos Factos não Provados, para mais objecto preciso do litígio e questão controvertida estabelecidos por despacho saneador de 17 de Junho de 2021, incorreu o Tribunal recorrido em violação do que se consagra no artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa enquanto dever/direito elementar, e, bem assim, em violação do que se estabelece nos artigos 154º e 607º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil, sendo essa sua decisão nula ao abrigo do estatuído no artigo 615º, n.º 1, alínea b), daquele mesmo diploma legal.
10. Sempre serão inconstitucionais entendimento e aplicação do previsto nos artigos 154º e 607º, n.º 4, do Código de Processo Civil sem que o Tribunal efectivamente especifique e motive, com clareza, de forma inteligível e concretamente, a sua decisão de dar como provado ou, no caso, como não provado um facto em determinado sentido, por violação do dever (direito) elementar plasmado no artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, bem como da própria equidade processual (incluindo uma plena e efectiva possibilidade de exercício do direito elementar de recurso), com consagração não só no artigo 20º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, como também no artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, no artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, e no artigo 47º § 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
11. Precludida a própria possibilidade de um exercício efectivo do direito de recurso nesta parte, por não se lograr conhecer e compreender, muito menos de forma explícita e mediante exame crítico, o que levou o Tribunal a quo a considerar como não provado o que concretamente consta de cada uma das alíneas d), e), f) e g), dos Factos não Provados, apenas se poderá aqui, ainda assim, aludir ao que é revelado, em contrário do decidido, pelos próprios depoimentos de parte dos Autores (em si), no depoimento de JJ e ao que é também desde logo das próprias regras da experiência comum.
12. As declarações apresentadas e consignadas na escritura de justificação notarial de 16 de Setembro de 2005, sustentando a aquisição do direito de propriedade (e da posse) com uma doação verbal em 1970 por KK, falecido em 1923, e a sua viúva LL, que em 1925 casara com MM, tendo justificantes e Réus pleno conhecimento dessa falsidade, não se reconduz a um mero lapso ou erro desculpável, ou a mero rigor formal, antes se tratando de uma narrativa e de declarações falsas de relevo maior na substância.
13. Não pode subsistir como eficaz escritura de justificação notarial assente em falsidades de relevo maior, determinantes na substância, sobre a própria aquisição ou transmissão do direito de propriedade (e, assim, também da posse) por usucapião, apresentadas com plena consciência dessa falsidade e em deliberado prejuízo de outrem, antes sendo, por isso mesmo, aquele um acto jurídico inválido (nulo), com inerente e consequente nulidade (e ineficácia) dos actos notariais subsequentes.
Pede-se Vossa melhor e justa consideração para com tudo quanto se expôs, apelando a que, julgando o presente recurso procedente, com revogação da Sentença proferida pelo Tribunal a quo, façam V. Ex.ªs verdadeiramente JUSTIÇA.»
c) Não há contra-alegações.
II. Objeto do recurso.
De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.
As questões que este recurso coloca são as seguintes:
1 – A primeira questão colocada no recurso respeita à nulidade de sentença.
Os recorrentes argumentam que a sentença padece de nulidade por não se encontrar convenientemente fundamentada, como exigem os artigos 154º e 607º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil – artigo 615º, n.º 1, alínea b), do mesmo código.
2 – Em segundo lugar, colocam-se as questões relativas à impugnação da matéria de facto.
a) Os Autores começam por impugnar a matéria constante do ponto 7 dos Factos Provados, pretendendo que dele conste que o «Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2 a 200 esc – 24.650 $”, traduzindo-se num terreno de quintal e de “serventia” com 1 (um) metro de largura, e corresponde, nas respetivas área e dimensão, a 123,25 m2”, cujo direito de propriedade coube ao Autor, integra e faz parte do imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...17 e que não se encontrava descrito na competente Conservatória do Registo Predial.»
Ou seja, os Autores pretendem que conste do facto provado que o terreno que os Autores dizem ser seu, os tais 123,25 m2, embora seja propriedade dos Autores, foi incluído pelos Réus na área do prédio que consta da escritura pública de justificação/doação de 2005 e depois na escritura pública de doação de 2019.
b) Erro de julgamento» ao dar como provados os factos constantes dos pontos 23, 24, 25, 26, 28 e 29 dos factos provados, bem como ao dar como não provado o que consta da alínea a) dos factos não provados.
Pretendem que estes factos declarados provados passem a não provados e os não provados a provados.
c) Erro de julgamento ao dar como não provado os factos constantes das alíneas b) e c) dos factos não provados.
Pretendem que os factos declarados não provados passem a provados.
d) Erro de julgamento ao dar como não provados cada um dos concretos factos constantes das alíneas d), e), f) e g) dos factos não provados.
Pretendem que estes factos declarados não provados passem a provados.
3 - Por fim colocam-se as questões de direito, ou seja: «Não pode subsistir como eficaz escritura de justificação notarial assente em falsidades de relevo maior, determinantes na substância, sobre a própria aquisição ou transmissão do direito de propriedade (e, assim, também da posse) por usucapião, apresentadas com plena consciência dessa falsidade e em deliberado prejuízo de outrem, antes sendo, por isso mesmo, aquele um acto jurídico inválido (nulo), com inerente e consequente nulidade (e ineficácia) dos actos notariais subsequentes» - Concl. 13 -, bem como a indemnização pedida por danos não patrimoniais.
III. Fundamentação
A) Nulidade de sentença
Não ocorre a alegada nulidade de sentença, por falta de fundamentação.
Nos termos da al. b), do n.º 1, do artigo 615.º do Código de Processo Civil a sentença é nula quando «Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.»
A falta de fundamentação da sentença é um vício de natureza processual que tem a ver com a forma do acto «sentença» prescrita na lei processual, mas não com a matéria substantiva de que trata o processo.
Como referiram os autores Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio Nora, «A segunda causa de nulidade contemplada na disposição é a falta de fundamentação da sentença. Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito» - Manual de Processo Civil, 2.ª Edição revista e atualizada. Coimbra Editora, 1985, pág. 687.
Na jurisprudência o entendimento é o mesmo como se vê pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2005 (Araújo Barros), em www.dgsi.pt, com referência ao n.º 05B2711:
«Para que uma decisão careça de fundamentação (incorrendo na nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 668º do C.Proc.Civil) não basta que a sua justificação seja deficiente, incompleta ou não convincente: é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito» (sumário).
No mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-1-2014 (Gabriel Catarino), no processo n.º 1032/08.6TBMTA, em www.dgsi.pt:
«III - Só a total falta de fundamentação – e não a fundamentação deficiente, acrática e errática – induz a nulidade da decisão por falta de fundamentação (al. b) do n.º 1 do art. 615.º ex vi dos arts. 666.º e 679.º, todos do CPC)».
Não há qualquer dúvida que a sentença se encontra fundamentada de facto e de direito.
Improcede, por conseguinte, a nulidade invocada.
B) Impugnação da matéria de facto
A impugnação da matéria de facto, apesar da extensão desnecessária e até prejudicial dos respetivos fundamentos, na medida em que a extensão torna mais difícil perceber o que está em causa, prende-se com três questões, respondidas negativamente pela 1.ª instância, que são estas:
Primeira – A inclusão, levada a cabo pelos Réus, da parcela com 123,25 m2, que os Autores dizem ser sua, na área do prédio do artigo matricial 1117 que foi objeto da escritura de justificação/doação de 2005 e da escritura de doação de 1019.
Segunda – Atos de posse dos Autores em relação à parcela com 123,25 m2.
Terceira – Existência de danos não patrimoniais.
Sobre as primeiras duas questões, a convicção aí exposta foi a seguinte:
«Quanto ao demais, sem embargo de não se ter provado que os Autores usavam e fruíam da “serventia” (uma parcela de terreno) nos termos por eles alegados, conforme infra se explicará, dúvidas não restaram a este Tribunal que em meados dos anos 80 ocorreu uma partilha verbal destinada a partilhar em vida os bens de bens pertencentes ao pai do Autor AA e da 1.º Ré CC para composição do “quinhão hereditário" à morte de ambos os pais, tendo sido atribuído ao Autor um terreno de quintal e de “serventia” com 1 (um) metro de largura, e com a 123,25 m2 nas respetivas área e dimensão.
Este Tribunal deu como provados os factos porquanto as declarações dos Autores e dos Réus e, bem assim, da testemunha JJ foram concordantes nesse sentido, sendo certo que os mesmos têm conhecimento direto dos factos, tendo, inclusive, alguns deles participado na referida partilha (factos provados 6 a 8 conjugadamente com o documento de fl.s 21).
Concretizando, a 1.º Ré (CC) referiu nas suas declarações de parte que houve um acordo e que à mesma foi atribuída a casa e que ao AA (referindo-se ao Autor marido) foi atribuída a “serventia” (referindo-se a uma parcela de terreno), sendo que a mesma se estendia a todo o comprimento do terreno e que ficava mesmo ao lado da casa.
Mais, referiu que as partilhas (referindo-se à partilha verbal) ocorreram há mais de 40 anos, tendo nas mesmas participado os irmãos desta e os genros de NN e, que nas mesmas intervieram louvados, sendo certo que a mesma foi um pouco contraditória no relato dos acontecimentos no decurso da presença dos louvados, não deixando, ainda assim, de ser credível na parte em que houve a partilha verbal e de que nelas intervieram os louvados.
Ademais, tanto reconhecia a existência da “serventia” que referiu a colocação de postes a delimitar esta em face do seu terreno. Postes esses que foram colocados pelo 2.º Réu (DD), conforme o mesmo confirmou aquando das suas declarações, referindo que colocou os postes para deixar o seu cunhado “à vontade” e que os colocou por causa da questão do “1 metro”. Mais, o 2.º Réu DD, no decurso da sua inquirição, referiu que as pessoas de ... sabiam do acordo (referindo-se à partilha verbal e em vida para valer à morte de NN e OO), acrescentando que a casa havia ficado para a sua mulher -1.º Ré CC.
A par disso, denota-se, pelo registo fotográfico (antigo) junto pelos Autores (doc. 7 a 9 de fls. 22 a 23), a existência dos referidos postes a dividir o quintal dos Réus do caminho/parcela de terreno dos Autores.
Mas, de bastante relevo, é o documento (n.º 6) junto aos autos pelos Autores no qual se dá conta de um esquema de partilha entre os diversos filhos do falecido NN, válido para após a morte deste e de OO, (entre os quais, o marido Autor (AA) e a 1.º Ré (CC)) e, acima de tudo, o facto do 2.º Réu (DD) ter reconhecido o mencionado documento, mais precisamente, a sua assinatura nele.
Deste modo, saíram corroboradas as declarações dos Autores e bem assim da testemunha PP, os quais referem ter obtido na referida partilha verbal em vida uma parcela de terreno/um caminho, com um metro de largura e 123m2.
Já sobre os fatos não provados, a convicção de natureza negativa pode resultar, em abstrato, de três situações: i) o facto de não ter sido produzida prova sobre o facto, ii) a insuficiência da prova produzida, nomeadamente em credibilidade, para atingir a convicção segura e iii) a circunstância de a prova rebater, com sucesso, a factualidade.
Concretizando, no que importa à economia da decisão.
Quanto aos factos não provados a) a c), ou seja, quanto ao facto dos Autores fazerem uso, à vista do público e sem oposição, da parcela de terreno (“serventia”), usando para, entre outras coisas, passar por ela e a partir de outra propriedade de que os Autores são proprietários aceder à via pública, o Tribunal entendeu não estar provado pela falta de prova “credivel” quanto a essa matéria.
Mais especificamente, a Autora BB, no seu depoimento de parte, começou inicialmente por referir que não passava pela “passagem/serventia” e que nunca lá passaram pois passavam pelo quintal para, num momento posterior, referir que era estreito, mas passava e que usaram a “serventia” desde que esta lhes calhou – o que é revelador de uma patente contradição, conferindo pouca credibilidade. Também o autor AA ora admitia boa parte dos factos descritos na contestação ora deixava de os admitir revelando-se pois altamente parcial.
A par disso, a testemunha JJ, filha dos Autores, referiu que os “mais gordos” não conseguiam passar pelo caminho, mas que a mesma conseguiria, mas que não passava por lá pois havia outro caminho. Mais reiterou, num momento posterior, que passava por um (outro) caminho aberto pelo avô para o efeito.
Não obstante, num momento posterior, referiu que passava pelo caminho e acrescentou que os pais também o faziam. No entanto, em ato continuo, declarou que o seu pai esteve emigrado em ... durante mais de 30 anos e a sua mãe por mais de 20 anos, tendo regressado antes da morte do avô desta. Confrontada com a incongruência decorrente do facto de alegar que estes usavam a “serventia” desde meados dos anos 80 até à atualidade e o facto de nesse período estarem, boa parte dele, em ..., a testemunha referiu que “passavam nas férias”.
Mais, o Tribunal não pode deixar de fazer uso das regras da experiência comum, mormente, do senso comum, e analisando as fotografias juntas aos autos que retratam a dita “serventia”, constatou que, efetivamente, é impossível uma pessoa passar na parte da “serventia” que passa junta à casa, agora, da 3.º Ré (EE) e também daí não havendo prova segura quanto ao facto de a parcela destinada se situar no terreno agora registado sob o artigo ...17, até porque, inusitadamente, sempre implicaria a destruição de parte do imóvel aí erigido, onde os justificantes confirmadamente sempre residiram, para que fosse sequer possível usar tal parte para passagem de pessoas.
Tudo sopesado, levou a que este Tribunal concluísse que os Autores não fizeram uso da referida “serventia” nos termos em que estes alegaram, nem que a mesma se situasse no agora artigo ...17 conduzindo a que esses factos fossem dados como não provados.»
Retira-se do que fica exposto, que em 1.ª instância se formou a convicção no sentido de terem existido de facto partilhas antecipadas ainda durante a vida dos pais do autor AA e da ré CC e que ao autor AA foi atribuída, entre outros bens, uma parcela com 123,25 m2, parte dela com 1 metro de largura e que surge bem delimitada dos terrenos adjacentes nas fotografias de fls. 22 a 23, juntas com a petição.
Esta largura de 1 metro mostra, segundo as regras da experiência, que essa parcela tinha como finalidade dar acesso a algum lado, no caso, à via pública situada a sul, pois 1 metro de largura não proporciona, em regra, outra utilidade que não seja permitir a passagem entre locais quando a mesma fica situada entre dois outros prédios urbanos e seus quintais.
Ou seja, em 1980, os irmãos repartiram os bens dos pais e ao Autor foi atribuída, entre outros bens, essa parcela, cuja finalidade era permitir a passagem de pessoas a pé.
Apesar da 1.ª instância ter formado esta convicção, concluiu que os Autores não provaram os atos de posse que alegaram na petição sobre esta parcela.
Não se adere a este entendimento.
Analisada a prova produzida, como mais abaixo se indicará, afigura-se que os Autores produziram prova suficiente para declarar provados atos de posse sobre a parcela.
Cumpre referir, por um lado, que será de raríssima verificação que alguém receba numa partilha um bem imóvel próximo ou adjacente a outro que já tem e depois o abandone, não exercendo atos de posse sobre ele e, por outro, cumpre observar que nos tempos atuais os atos de posse são mais espaçados no tempo quando comparados com os atos de posse de algumas décadas atrás, o que se deve ao facto das pessoas terem passado a sair das suas terras de origem para trabalhar noutros locais, inclusive fora do próprio país.
Daí que atos de posse que há meio século tinham a periodicidade diária, tenham passado a ter uma periodicidade irregular e reduzida a «meia dúzia» de atos por ano.
Quanto à outra questão, que consiste em verificar se os Réus incluíram essa parcela na área do prédio objeto das mencionadas escrituras, a 1.ª instância acabou por não pormenorizar a sua convicção negativa.
Porém, analisada a prova produzida não se afigura que existam dúvidas sobre essa inclusão, como mais à frente se mostrará.
E quanto aos danos não patrimoniais, a resposta negativa da 1.ª instância acabou por resultar da resposta negativa que deu às duas questões anteriores.
Afigura-se, porém, que tais danos existiram, como também se referirá mais abaixo.
Vejamos então.
1 - Os Autores pretendem que se dê como provado, no facto provado n.º 7, que a parcela com os tais 123,25 m2, foi incluída, pelos Réus, na área do prédio do artigo matricial 1117, prédio objeto da escritura pública de justificação/doação de 2005 e depois na escritura de doação de 2019.
Desde já se declara que lhes assiste razão pelos motivos que a seguir se indicam.
(a) Verifica-se que os Autores, nos artigos 29.º, 30.º 34.º e 40.º da petição, referiram que os Réus se apropriaram do «Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2…» e uma dessas ações apropriativas consistiu em integrar essa porção de terreno no artigo matricial 1117.
Tal atuação dos Réus corresponde à realidade histórica.
Um dos elementos factuais que corrobora essa apropriação consistiu na retificação da área do prédio do artigo matricial 1117 que é feita na escritura pública de doação de 2019.
Declara-se nesta escritura que foi feito um levantamento topográfico e que se verificou que a área real do prédio era superior à área do prédio que constava da escritura de justificação e doação realizada em 2005.
Nesta escritura de 2005 declarou-se que o prédio tinha a área coberta de 149 m2, mais 72 m2 de quintal e pátio (a soma dá 221 m2).
Na escritura de doação de 2019 declarou-se que o levantamento topográfico revelou uma área real de 75 m2 para a área coberta e 275 m2 para a área descoberta, num total de 350 m2.
Verifica-se que somando os 123,25 m2, que os Autores dizem ser seus, à área de 221 m2 atribuída ao prédio do artigo ...17 na escritura de justificação/doação, encontramos a área de 344,25 m2 que é próxima da área de 350 m2 que figura da escritura pública de doação de 2019.
O que mostra que matricialmente o terreno que os Autores dizem ser seu, que é contiguo ao prédio dos Réus, como se vê nas fotografias de fls. 22 e 23 dos autos, foi incorporado pelos Réus na área do seu prédio, que é o prédio do artigo matricial 1117.
Além disso, na escritura pública de doação de 2019 refere-se ainda o seguinte:
«Mais declarou [a declarante é a ré CC) que o referido prédio manteve sempre a mesma configuração e composição e que a diferença de áreas se deve a simples erro de medição, conforme planta topográfica que adiante se arquiva, nunca tendo efectuado qualquer desanexação não titulada.»
Por conseguinte, se a outorgante CC declarou na escritura de doação de 2019, como declarou, que o prédio do artigo ...17 manteve sempre a mesma configuração, isso implica que na escritura pública de justificação/doação de 2005, na qual também interveio como donatária, o mesmo prédio tinha já, segundo ela, a mesma configuração, muito embora isso ainda não tivesse correspondência na área que constava da matriz, que era só, nessa altura, 221 m2.
Conclui-se, por conseguinte, face a estes elementos, que a parcela de terreno que os Autores dizem ser sua propriedade foi de facto incluída pelos Réus na área do prédio do artigo matricial 1117.
(b) Esta conclusão a que se chegou é corroborada pelo depoimentos de parte da Ré CC, quando disse, aos minutos 22:05 a 24:56, que o seu irmão AA, o Autor, exigiu ao pai, aquando das partilhas feitas em vida dos pais, que lhe desse «…aquele bocado que está aí que tem duas laranjeiras que você prometeu quando nascesse a primeira neta» e «… eu quero um metro lá ao fundo, entre a sua casa e a casa do II, se não, se não me der esse metro deserde-me já, que eu já não quero nada.»
A Ré referiu ainda quando perguntada sobre se «essa área dos tais 123 metros quadrados» foi mencionada nessa altura, disse que «Foi, foi nessa altura. Foi logo falado nesse dia», que «A de 1m foi falada, se foi feita não foi entre mim, entre, entre o meu conhecimento e diante de mim. Se foi feito foi em casa dele depois.»
Acrescentou ainda, a ré CC, que depois «…como ele [refere-se ao autor AA] dizia que queria o metro» o seu marido, o réu DD, disse para ele «Eu vou deitar aqui os postes de cimento e eu dou-te o metro, que eu não quero ter problemas nenhuns contigo», tendo a Ré afirmado «O meu marido foi lá por os postes de cimento, ele fez-lhe tirar os postes de cimento, mas antes de o meu marido ter tirado os postes de cimento ele foi lá tirar fotografias aos postes de cimento».
À pergunta sobre quando foram colocados esses postes de cimento a Ré respondeu que «Foi logo, não, esses postes de cimento, isso foi lá posto já depois de eu vir de .... Mas eu também já não ia lá, eu já vim há 35, já vai fazer 36, foi mais ou menos nessa altura.»
O réu DD no seu depoimento de parte também se referiu a esta parcela de terreno que o Autor diz ser sua, tendo assumido a colocação dos postes quando viu as fotografias de fls. 22 e 22 verso: «Até cá estão os tais postes que eu botei» e referindo-se à passagem disse «Depois fizeram para aqui uma autoestrada» - minuto 14:16.
Sobre a razão que o levou a colocar os postes disse que «Era para deixar o meu cunhado à vontade!» - minuto 14:16/42.
E que «Era uma questão de 1 metro, havia uma questão de 1 metro» - minuto 14:48.
Tendo o Réu reconhecido que essa parcela de terreno não era sua: «Ou pagava-lhe 5 contos o metro, ele nunca aceitou» - minuto 16:54.
E à pergunta sobre a razão de ter colocado os postes disse: «porque dali para lá não era meu.»
Verifica-se, face a estes dois depoimentos de parte dos Réus, que a questão da «serventia» com 1 metro de largura foi falada e decidida na altura das partilhas e foi implementada no próprio terreno, sendo do conhecimento de todos que essa parcela era do autor AA.
Por isso, pode concluir-se que tal parcela foi propositadamente incluída pelos outorgantes NN e esposa e CC e marido DD, na área do prédio do artigo ...17, o qual é descrito como não confrontando com a parcela dos Autores.
(c) Esta conclusão é ainda corroborada pelo depoimento da testemunha JJ, filha dos Autores quando disse – minuto 07:10 –, referindo-se à mencionada parcela que «Toda a gente sabia que aquilo era do meu pai por herança, toda a gente concordou e ninguém pôs em causa isso», «Cada um ficou com aquilo que lhes pertencia, nunca houve nada entre os meus pais e os meus tios, e os meus tios com os meus pais, porque cada um ficou com aquilo que é seu.»
(d) Acresce que no facto provado n.º 6 é dito que «…foi atribuída ao Autor pelos seus pais a propriedade de bens, tal como feito também às três irmãs do Autor, na proporção do que seria o seu quinhão hereditário à morte de ambos os pais…».
Ou seja, é consensual entre as partes que existiu a partilha dos bens em vida, isto é, o Autor marido e a sua irmã, a aqui Ré CC, receberam em vida dos pais NN e OO, os bens destes; existiu uma antecipação da partilha das futuras heranças.
Também não há dúvida, face ao facto provado n.º 7 que nesta partilha de bens «Foram estabelecidos lotes e o que se ajustava atribuir, na respetiva propriedade, a cada um dos filhos de NN e OO, tendo cabido ao Autor, além do mais, o direito de propriedade sobre “Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2 a 200 esc – 24.650$”, traduzindo-se num terreno de quintal e de “serventia” com 1 (um) metro de largura, e corresponde, nas respetivas área e dimensão, a 123,25 m2».
Está provado, pois, que o terreno de quintal e serventia com 123,25 m2 foi atribuído nessa altura, por todos, em propriedade ao Autor marido.
Cumpre desde já dissipar uma dúvida que é esta: saber se por «serventia» se deve entender uma «servidão de passagem» ou não.
A resposta é não, não se trata de uma servidão de passagem.
Afirma-se isto com fundamento no teor do documento a que é atribuído o n.º 6 na petição inicial.
Trata-se do documento elaborado pelos louvados e onde consta, entre outros dizeres, os seguintes:
«GG – 343,5 m2 a 200.00», QQ– 353,5 m2 a 200.00», AA – 123,25 m2 a 200.00», e DD– 329 m2 a 200.00».
Verifica-se que a atribuição dos 123,25 m2 ao aqui Autor marido foi atribuída ao preço de 200$00 o m2, tendo sido este o preço do metro quadrado fixado para os terrenos aí mencionados.
Por conseguinte, dada a uniformidade, de valor entre todos os terrenos não se pode considerar que ao Autor foi atribuída uma serventia no sentido de servidão e passagem», pois se assim fosse os louvados tinham atribuído outro valor, neste caso inferior para o metro quadrado da servidão de passagem, pois uma servidão tem menos valor que o direito de propriedade sobre o terreno afeto à servidão.
Acresce que nenhuma testemunha ou parte se referiu a essa faixa como sendo uma servidão de passagem.
A primeira conclusão que se retira destes factos provados sob os n.º 6 e 7 é que aquele terreno com 123,25 metros quadrados foi atribuído em propriedade ao Autor.
Não há qualquer dúvida sobre isto, como de resto é reconhecido na explanação da convicção em 1.ª instância.
(e) Onde se situa esta parcela?
Como já resulta do antes dito, esta parcela situa-se nas traseiras da casa dos Réus, da casa que foi dos pais da ré CC e do autor AA, e ao longo quer do terreno que pertence ao artigo matricial 1117, quer do prédio vizinho, que nas palavras da testemunha JJ pertence à sua tia FF (minuto 06:14), tal como se pode ver, parcialmente, nas fotografias de fls. 22, 22 verso e 23 (nesta fotografia estão, segundo a testemunha JJ, o autor, a avó da testemunha e o filho da testemunha, então com 9 anos de idade e à data do depoimento com 22 anos) e 33.
Na 1.ª instância respondeu-se negativamente à questão da inclusão desta parcela na área do prédio do artigo ...17, mas sem razão.
Aliás, nem se perceberia o conflito dos autos se assim não fosse.
Pelo exposto, acrescenta-se ao facto provado n.º 7 o segmento «terreno este que os outorgantes e ora réus CC e DD incluíram na área do prédio do artigo matricial 1117 aquando da escritura pública de justificação/doação de 2005 e depois na escritura de doação de 2019», e passa a ter a seguinte redação:
«7. Foram estabelecidos lotes e o que se ajustava atribuir, na respetiva propriedade, a cada um dos filhos de NN e OO, tendo cabido ao Autor, além do mais, o direito de propriedade sobre “Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2 a 200 esc – 24.650$”, traduzindo-se num terreno de quintal e de “serventia” com 1 (um) metro de largura, e corresponde, nas respetivas área e dimensão, a 123,25 m2, terreno este que os outorgantes e ora réus CC e DD incluíram na área do prédio do artigo matricial 1117 aquando da escritura pública de justificação/doação de 2005 e depois na escritura de doação de 2019.
2 – Pretensão de obter a declaração de não provados quanto aos factos constantes dos pontos 23, 24, 25, 26, 28 e 29 dos factos provados e de provado relativamente ao facto que consta da alínea a) dos factos não provados.
Os factos provados impugnados são estes:
«23. Deste modo, e tendo por referencia a data da escritura de justificação o referido NN e sua esposa OO, há mais de cinquenta ano que vinham detendo, desfrutando, fruindo e usufruindo do prédio urbano inscrito sob o artigo ...... da freguesia ..., nele habitando, limpando-o, realizando reparações, zelando-o, pernoitando, recebendo visitas e tudo que lhes aprouvera e assim retirando assim todas as utilidades que tal prédio proporcionava, em seu proveito e interesse exclusivo.
24. Tudo isto, à vista de toda a gente, e dos próprios Réus, isto é, publicamente.
25. De forma contínua e ininterrupta.
26. Sem oposição ou violência de ninguém, antes de modo pacífico.
28. Na intenção e convicção de que ao exercerem tal “posse” não lesavam o direito de quem quer que seja, atuando assim de “boa-fé” convencidos de que gozavam coisa própria e de que lhes pertencia como proprietários exclusivos.
29. Agindo plenamente convictos de que estavam a atuar no exercício de um direito de propriedade plena sobre tal imóvel.»
O facto não provado da al. a) é este:
« a) Os Autores possuem a parcela supra identificada, descrita e localizada, de forma ininterrupta desde 1980, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, limpando o terreno, cobrindo de brita a passagem/caminho que também integra essa parcela, tendo plantado flores cuidando das mesmas no terreno de quintal, fazendo uso seu e completamente desimpedido por outrem daquela passagem integrante dessa parcela até à via pública, a sul, a partir do imóvel de que são também proprietários, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...27, e com que essa parcela, enquanto parte do imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...17, confina a norte, planeando fazer passar o saneamento pela sua propriedade.»
Face ao que ficou atrás referido a propósito da alteração do facto provado n.º 7, estes factos provados (23, 24, 25, 26, 28 e 29) não podem manter-se em relação ao «Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2».
Por um lado, porque tal terreno foi atribuído em 1980 (cfr. factos provados 6 e 7) ao Autor, aquando das já mencionadas partilhas, o qual entrou na posse dele, como mais abaixo se verá e como se pode ver pelas fotografias de fls. 22 e 22 verso, e, por outro, porque os Réus o reconheceram nessa altura das partilhas como proprietário desse terreno, como resulta das declarações já transcritas acima, prestadas em audiência pelos Réus.
Repete-se aqui o que foi dito atrás.
Será caso raro verificar que alguém a quem é atribuído um bem imóvel em patilhas o abandona e não pratica atos de posse sobre ele ou que algum dos demais participantes na partilha se apodere desse bem e o novo dono, sabendo dessa apropriação por parte de terceiro, permaneça inativo e não surja qualquer conflito.
E, por outro lado, nos tempos atuais os atos de posse podem ser muito mãos espaçados no tempo quando comparados com os atos de posse de algumas décadas atrás, devido ao facto de existir uma maior mobilidade das pessoas, principalmente devido ao fenómeno da imigração.
Não há qualquer dúvida que os Autores entraram na posse da parcela que lhes foi atribuída.
As fotografias de fls. 22, 22 verso e 23 mostram claramente que a parcela na parte que é aí representada estava pavimentada e perfeitamente diferenciada e delimitada dos prédios vizinhos, ou seja, do prédio do artigo matricial 1117 através dos postes colocados pelo réu DD e do outro prédio pelo muro e rede que aí se vê.
Além disso, as regras da experiência dizem-nos que aquando alguém recebe um terreno próximo do local onde mora usa esse terreno em seu proveito, no caso dos autos, para passar.
Até para mostrar aos outros que «agora é seu».
A este respeito a testemunha JJ, filha dos Autores, referiu que a dita «serventia» servia para aceder à via pública.
Disse ao minuto 03:15: «Certo, o meu avô tinha um prédio, onde tinha a casa e o terreno, e na altura das partilhas foi, ficou estipulado que das minhas tias tinham a casa, a HH e a FF, e ao meu pai calhava-lhe um metro de terreno de serventia até à parte pública.»
«Até à parte pública. De que eu usufrui, quando casei, porque fiquei a morar na casa dos meus pais em 88, eu casei em 88, estive em casa dos meus pais até 2002, depois construi e saí. Era o sítio por onde eu passava, por onde entrava e saía, eu e o meu marido e a minha avó que vivia comigo até à morte, a minha avó materna. Era por lá que nós passávamos, e era por lá que as pessoas passavam quando iam para casa dos meus pais, a pé, claro» - minuto 03:40.
«Eu saía da cancela, porque batia com o meu padrinho, depois, como foi estipulado que esse metro de terreno direito, portanto, para a estrada, só me iria ser disponibilizado totalmente à morte dos meus avós, foi isso que ficou estipulado, porque à morte dos meus avós a casa iria ser deitada abaixo e ia fazer a serventia para o meu pai a direito. Mas até lá, o meu pai ia ficar com um espaço de terreno que era o que nós usávamos, o que o meu avô fez. Nós passávamos, saíamos a cancela, íamos assim ao fundo, onde só tinha um bocadinho e nós não conseguimos passar para o outro lado, quer dizer eu até passava, mas as pessoas mais fortes não passam, eram 40 centímetros. E o meu avô fez um tipo de carreiro, não sei como é que posso chamar aquilo, assim ao lado onde nós passávamos direitinhos ao outro lado, e passávamos entre a casa dele e a casa da minha tia FF» - minuto 04:31.
Resulta deste testemunho, que as pessoas usavam a parcela para aceder à rua.
Aliás, se a parcela não tivesse essa finalidade não existia qualquer outra finalidade que justificasse a sua existência, dada a pequena largura (1 metro) que se vê nas fotografias de fls. 22, 22 veros e 23.
Resulta, pois do exposto, a convicção de que a parcela foi atribuída em propriedade ao Autor marido e foi usada por este e pessoas da sua família.
Por outro lado, as pessoas utilizam as propriedades de acordo com as suas necessidades e fazem-no se não estiverem impedidas de o fazer, seja por estarem ausentes ou por serem impedidas por outrem.
No caso, resulta do depoimento da testemunha JJ que esta continuou a passar na aludida passagem para visitar a sua avó, a qual faleceu em agosto de 2009 (minuto 36:10) e que os seus pais também lá passavam quando vinham de ... passar férias (minuto 36:36/47).
Só tendo deixado de passar quando o réu DD os impediu, já depois da avó ter falecido (minuto 41:21), que em vida desta se ele tivesse feito isso, ela lhe teria feito ver que aquilo não era dele (minuto 41:43).
Não há qualquer razão para duvidar deste depoimento, principalmente quando se vê pelas fotografias de fls. 22 a 23 que a faixa de terreno foi pavimentada com pequenas pedras, estava bem delimitada, sem vegetação, e não tinha outra função senão permitir passar de um lado para o outro.
É certo que algumas testemunhas referiram que nunca viram passar do local da dita «serventia» qualquer pessoa, mas tais depoimentos não convenceram no sentido de resultar provado que os Autores ou outras pessoas ligadas a estes não passavam ali, isto é, muito embora as testemunhas não tivessem memória de ali terem visto passar os Autores ou a filha JJ, tal não significa estes não passassem lá.
Com efeito, a testemunha RR (primo de Autor e da Ré; foi testemunha na escritura de justificação) referiu que nunca viu passagem nenhuma (minuto 05:45), mas não soube dizer como o prédio veio à posse do Sr. NN e esposa OO (minuto 11:51»; a testemunha SS (foi testemunha na escritura de justificação) também referiu que não conheceu ali qualquer serventia (minuto 02:47), mas acrescentou que só foi algumas vezes a casa dos Réus (minuto 03:07/03:30); a testemunha TT (Primo do Autor e da Ré) também disse que não conheceu ali qualquer serventia (minuto 05:39), não teve conhecimento das partilhas (minuto 06:37) e tendo examinado as fotografias de fls. 22/23 referiu que não lhe diziam nada; a testemunha UU (vizinho das partes, primo), nada de concreto referiu em relação à passagem.
Mas, como já acima se referiu, apesar das testemunhas não terem tido conhecimento da existência dessa «passagem», essa parcela de terreno foi reconhecida entre as partes como tendo resultado da partilha feita em vida dos pais do autor AA e da Ré CC e de modo nenhum resulta da prova produzida que depois disso os Autores se desinteressaram dela e a abandonaram.
Acresce que todos eram familiares e sabiam bem o que era de cada um deles o que implica que os Autores não carecessem de afirmar a sua posse sobre o terreno com atos mais significativos, para além de passarem ali de tempos a tempos e reagir contra eventuais intromissões alheias.
Concluindo.
Face ao que fica referido, como já foi dito, estes factos provados (23, 24, 25, 26, 28) não podem manter-se em relação ao «Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2», mencionado no facto provado n.º 7.
Porém, é suficiente alterar o facto provado 23, já que os outros se lhe referem, excecionando neste facto o «Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2».
Essa factualidade passa a ter a seguinte redação:
«23. Deste modo, e tendo por referencia a data da escritura de justificação o referido NN e sua esposa OO, há mais de cinquenta ano que vinham detendo, desfrutando, fruindo e usufruindo do prédio urbano inscrito sob o artigo ...... da freguesia ..., nele habitando, limpando-o, realizando reparações, zelando-o, pernoitando, recebendo visitas e tudo que lhes aprouvera e assim retirando assim todas as utilidades que tal prédio proporcionava, em seu proveito e interesse exclusivo, à exceção da porção de terreno identificada no facto provado n.º 7 como «Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2…».
Quanto ao facto não provado da al. a) dos factos declarados não provados.
A convicção, como resulta do já exposto, forma-se no sentido de que ele corresponde à realidade histórica, isto é, os Autores sempre se consideraram donos e agiram como tal, salvo no que respeita à longevidade da posse sobre a parcela, pois a mesma cessou a partir de determinada altura, por ter sido impedida pelos Réus, depois da morte dos pais do autor AA e da ré CC, como resultou do depoimento da testemunha JJ, acima mencionado, a qual referiu que a sua avó faleceu em Agosto de 2009; bem como, relativamente aos atos concretos de posse como «plantado flores cuidando das mesmas no terreno de quintal…», por ausência de prova.
Assim este facto passa a ser o facto 30 dos factos provados, especificando-se «
até data indeterminada, mas posterior a agosto de 2009», com esta redação:
«30. Os Autores agiram em relação à parcela supra identificada como donos, de forma ininterrupta desde 1980 até data indeterminada, mas posterior a agosto de 2009, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, limpando o terreno, cobrindo de pedra a passagem/caminho que também integra essa parcela, passando através dela até à via pública, a sul, a partir do imóvel de que são também proprietários, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...27, planeando fazer passar o saneamento pela sua propriedade.»
3 – Pretensão de obter a declaração de provados relativamente aos factos não provado constantes das alíneas b) e c) dos factos não provados.
Ou seja, pretende-se que estes factos passem a provados.
Estes factos são os seguintes:
«b) Foi atribuída ao Autor, uma parcela desse terreno composta de terreno de quintal e de serventia com 1 (um) metro de largura e corresponde nas respectivas áreas e dimensão a 123,25 m2, confrontando a norte com AA (Autor) a nascente com NN, a sul com estrada e a poente com VV.
c) A parcela em causa trata-se de passagem/serventia que integra também, a título de composição, a parcela atribuída aos Autores em 1980 e que permite, como tem sucedido ao longo de 39 anos, passar desde o imóvel também da propriedade dos Autores com que a parcela confina a norte até à estrada pública, com que a parcela confina a sul, pelo que não se trata de uma servidão enquanto direito real de gozo sobre coisa alheia.»
Como resulta do exposto acima, forma-se a convicção segura que a tal parcela com 123,25 m2 foi atribuída ao Autor em termos de um direito de propriedade.
Por conseguinte, a matéria destas alíneas tem de passar para os factos provados, resumindo-se ambas no facto provado n.º 31, com esta redação:
«31. A parcela referida no facto provado n.º 7, atribuída ao Autor, confrontava então do norte com AA (Autor), a nascente com NN, a sul com estrada e a poente com VV, a qual permite e permitiu desde 1980, até data incerta após agosto de 2009, passar desde o imóvel também da propriedade dos Autores com que a parcela confina a norte até à estrada pública, com que a parcela confina a sul.»
4 – Pretensão no sentido de obter a declaração de provados quanto aos factos constantes das alíneas d), e), f) e g) dos factos não provados.
Os factos em questão respeitam aos danos não patrimoniais alegados pelos Autores que terão sido causados pela conduta dos Réus, tais como ansiedade, nervosismo e sentimento de revolta.
Assiste-lhes razão, muito embora haja que expurgar o que consta dessas alíneas de tudo o que não é facto histórico.
Assiste-lhes razão porque é sabido através das regras da experiência que são comuns á generalidade dos seres humanos, retiradas do modo de reagir das pessoas perante factos semelhantes, que qualquer pessoa fica desgostosa quando outrem se apropria ou tenta apropriar-se de bens que lhe pertencem e o faz ostensivamente perante o seu dono.
A pessoa a quem lhe é subtraído o bem sente-se desconsiderada, desrespeitada perante si mesma e perante os outros e perde, em regra, a paz e o sossego, pelo menos, nos primeiros tempos, até se habituar a lidar com a situação.
Não é necessário que haja testemunhas a afirmar estes dissabores e estados mentais negativos, para concluir que eles existiram quando se provam os factos que os desencadeiam como reação a eles.
Por conseguinte, resultam provados tais factos das alíneas d) a g) dos factos não provados, que passam a constar do n.º 32, com esta redação:
«Os Autores têm vivenciado e sentido ansiedade, nervosismo, revolta e desgosto devido à conduta adotada pelos Réus, referida nos factos provados 6, 7, 10 e 31.»
D) 1. Matéria de facto – Factos provados
1. Os Autores, AA e BB, contraíram matrimónio em 7 de janeiro de 1967, sem convenção antenupcial.
2. Os 1º e 2ª Réus, CC e DD, são casados sob o regime de comunhão de adquiridos, sendo a 3ª Ré, EE, filha do casal, mantendo contacto regular com os seus pais, tanto que até tem residência, em Portugal, na morada dos 1º e 2º Réus.
3. O Autor AA é irmão da 1ª Ré, CC, ambos filhos de NN e de OO, casados sob o regime de comunhão geral de bens e já falecidos, respetivamente, em 2007 e 2009.
4. O avô paterno do Autor AA é WW nascido em .../.../1888 e falecido em 8 de fevereiro de 1923.
5. A avó paterna do Autor é LL, nascida em .../.../1897 e falecida em 27 de fevereiro de 1985, com primeiro matrimónio contraído e mantido com o supra aludido WW desde 17 de outubro de 1914 até ao óbito deste em 8 de fevereiro de 1923, e segundo matrimónio contraído com MM em 28 de setembro de 1925.
6. Em meados do ano de mil novecentos e oitenta, pelo que já na constância do matrimónio dos Autores, foi atribuída ao Autor pelos seus pais a propriedade de bens, tal como feito também às três irmãs do Autor, na proporção do que seria o seu quinhão hereditário à morte de ambos os pais: FF, casada com GG; HH, casada com QQ; A aqui 1ª Ré CC, casada com o 2º Réu DD, sendo que por óbito de WW e de LL, avós do Autor e da Ré CC, integrava a respetiva herança indivisa o imóvel sito no lugar ..., atualmente inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...17 e que não se encontrava descrito na competente Conservatória do Registo Predial.
7. Foram estabelecidos lotes e o que se ajustava atribuir, na respetiva propriedade, a cada um dos filhos de NN e OO, tendo cabido ao Autor, além do mais, o direito de propriedade sobre “Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2 a 200 esc – 24.650$”, traduzindo-se num terreno de quintal e de “serventia” com 1 (um) metro de largura, e corresponde, nas respetivas área e dimensão, a 123,25 m2, terreno este que os réus CC e DD incluíram na área do prédio do artigo matricial 1117 aquando da escritura pública de justificação/doação de 2005 e depois na escritura de doação de 2019.
8. A avaliação dos imóveis cuja atribuição da propriedade ao Autor e suas irmãs se estabeleceu de comum acordo teve a intervenção de dois “louvados”, que o atestaram e subscreveram.
9. No dia 16 de setembro de 2005, junto do Cartório Notarial de ..., foi lavrada uma escritura de justificação e doação, exarada de folhas trinta e quatro a folhas trinta e seis, do livro de notas para escrituras diversas número DOIS – E, daquele Cartório Notarial, então cargo da Notária XX.
10. Na escritura de justificação e doação, NN e sua mulher OO, pais do Autor, declararam serem “donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do seguinte prédio sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., ainda por descrever na competente Conservatória e inscrito na matriz em nome do justificante marido: Urbano, composto de casa de habitação de ..., pátio e currais, com a superfície coberta de cento e quarenta e nove metros quadrados e pátio e quintal com setenta e dois metros quadrados, a confrontar de norte e nascente com NN, sul com estrada e poente com VV, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...17, com o valor patrimonial tributário e atribuído de mil quinhentos e oitenta e nove euros e trinta e três cêntimos.”
11. Por não deterem efetivamente título de propriedade sobre aquele imóvel, declararam NN e sua mulher OO, enquanto justificantes, a respeito de como aquele imóvel veio à sua posse: «Que em meados de mil novecentos e setenta, ajustaram contrato verbal de doação, e por isso não titulado, com LL e marido KK, já falecidos, que foram residentes no referido lugar ..., cujo objecto foi o imóvel supra identificado.»
12. Declararam ainda NN e sua mulher OO que daquela forma e por aquele motivo: «(…) possuem o dito imóvel, sem qualquer interrupção, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, habitando-o, procedendo às necessárias reparações ao longo do tempo, pagando as contribuições e impostos respeitantes, posse que assim exerceram como verdadeiros proprietários que sempre se julgaram, eram e são do dito imóvel, pelo que o adquiram por usucapião, fundada nessa posse, que exerceram em seu próprio nome, de boa fé, de modo pacífico, contínua e publicamente, por período superior a vinte anos, estando eles justificantes impossibilitados de comprovar pelos meios extrajudiciais normais a aquisição do seu direito sobre aquele imóvel, atento o título de aquisição.»
13. Os Autores apuraram a certa altura que o imóvel estava registado junto a Autoridade Tributária como sendo da propriedade (plena) da Ré CC, casada sob o regime de comunhão de adquiridos com o Réu DD.
14. Era e é objetivamente impossível que em meados do ano de 1970 tenham KK e sua mulher LL doado verbalmente aos justificantes - e, após doadores - o imóvel em causa porquanto, KK tinha falecido há mais de 56 anos e LL estava, em meados de 1970, casada com MM, com quem contraiu (segundo) matrimónio em 28 de setembro de 1925.
15. Tudo o que era, do pleno conhecimento não só do seu próprio filho NN e da mulher deste, OO, como dos aqui Réus CC (neta dos justificantes) e DD, não tendo sequer a Ré CC, nascida em .../.../1953, chegado a conhecer o seu avô paterno e bem sabendo que a avó paterna casara, em segundo matrimónio, com MM.
16. Conforme escritura de doação de 1 de abril de 2019, exarada de folhas cento e sete a folhas cento e nove do livro de notas para escrituras diversas DEZOITO–R, do Cartório Notarial de ..., a Ré CC, com o consentimento do Réu DD, doou à Ré EE o prédio urbano «(…) situado em ..., na Rua ..., composto de ..., pátio e currais, a confrontar de norte e de nascente com NN, de sul com estrada e de poente com VV, com superfície coberta de setenta e cinco metros quadrados e com superfície descoberta de duzentos e setenta e cinco metros quadrados (área total de trezentos e cinquenta metros quadrados), inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...17, com o valor patrimonial de €13.349,31, que é o atribuído a esta doação, não descrito na Conservatória do Registo Predial ....»
17. Mais declararam os 1º e 2ª Réus na aludida escritura de doação, em 1 de abril de 2019, à sua filha e também aqui Ré «Que desconhecem qual o artigo que lhe correspondia na antiga matriz por não possuírem elementos que lhes permita fazer essa correspondência.
Que, a outorgante doadora adquiriu o imóvel referido por escritura pública de Justificação e doação, lavrada em dezasseis de setembro de dois mil e cinco, exarada a folhas trinta e quatro e seguintes do livro de notas para escrituras diversas número DOIS-E, deste Cartório Notarial.»
18. E ainda que: «Na referida escritura foram reservados os direitos de usufruto a favor de NN e de OO, os quais já se encontram extintos por óbito dos usufrutuários, conforme se verifica pelos respectivos assentos de óbito números 35/2007 do ano de 2007 da Conservatória do Registo Civil ... e 901/2009 do ano de 2009 da Conservatória do Registo Civil ..., de que exibiram certidões.»
19. Consta ainda da escritura de doação lavrada em 1 de abril de 2019 que: «MAIS DISSE A OUTORGANTE SOB SUA INTEIRA RESPONSABILIDADE: Que procedeu a um levantamento topográfico do prédio acima identificado e verificou que a área do mesmo e a constante da escritura supra mencionada e da matriz predial não estava correcta. Assim, pela presente escritura, vem rectificar a área do dito imóvel, no sentido de passar a constar que o prédio tem a superfície coberta de setenta e cinco metros quadrados e a superfície descoberta de duzentos e setenta e cinco metros quadrados (área total de trezentos e cinquenta metros quadrados). Mais declarou que o referido prédio manteve sempre a mesma configuração e composição e que a diferença de áreas se deve a simples erro de medição, conforme planta topográfica que adiante se arquiva, nunca tendo efectuado qualquer desanexação não titulada. MAIS DECLAROU: Que, o prédio urbano não sofreu quaisquer obras sujeitas a licenciamento camarário, posteriormente a sete de Agosto de mil novecentos e cinquenta e um.»
20. A propriedade do imóvel consta atualmente registada na matriz em nome da 3ª Ré.
21. Apenas já depois de efetuada a doação a favor da Ré EE, veio o imóvel a ser registado na Conservatória do Registo Predial - descrito com o número ...13... -, e já diretamente em nome da aqui 3ª Ré, sem que nele constasse a anterior justificação e doação feita por NN e OO à 1.º Ré (CC).
22. O referido NN e esposa há mais de 70 anos e por referência ao imóvel descrito em 10 e ss, construíram a sua habitação e aí instalaram o seu lar conjugal, onde nasceram os seus filhos, habitando o mesmo, preparando e tomando aí as suas refeições e da família que fundaram, recebendo aí amigos e familiares, o seu correio, dormindo e pernoitando.
23. Deste modo, e tendo por referencia a data da escritura de justificação o referido NN e sua esposa OO, há mais de cinquenta ano que vinham detendo, desfrutando, fruindo e usufruindo do prédio urbano inscrito sob o artigo ...17 da freguesia ..., nele habitando, limpando-o, realizando reparações, zelando-o, pernoitando, recebendo visitas e tudo que lhes aprouvera e assim retirando assim todas as utilidades que tal prédio proporcionava, em seu proveito e interesse exclusivo, à exceção da porção de terreno identificada no facto provado n.º 7 como «Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2…»
24. Tudo isto, à vista de toda a gente, e dos próprios Réus, isto é, publicamente.
25. De forma contínua e ininterrupta.
26. Sem oposição ou violência de ninguém, antes de modo pacífico.
27. Pagando as contribuições e impostos respeitantes.
28. Na intenção e convicção de que ao exercerem tal “posse” não lesavam o direito de quem quer que seja, atuando assim de “boa-fé” convencidos de que gozavam coisa própria e de que lhes pertencia como proprietários exclusivos.
29. Agindo plenamente convictos de que estavam a atuar no exercício de um direito de propriedade plena sobre tal imóvel.
30. Os Autores agiram em relação à parcela supra identificada como donos, de forma ininterrupta desde 1980 até data indeterminada, mas posterior a agosto de 2009, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, limpando o terreno, cobrindo de pedra a passagem/caminho que também integra essa parcela, passando através dela até à via pública, a sul, a partir do imóvel de que são também proprietários, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...27, planeando fazer passar o saneamento pela sua propriedade.
31. A parcela referida no facto provado n.º 7, atribuída ao Autor, confrontava então do norte com AA (Autor), a nascente com NN, a sul com estrada e a poente com VV, a qual permite e permitiu desde 1980 até data incerta após Agosto de 2009, passar desde o imóvel também da propriedade dos Autores com que a parcela confina a norte até à estrada pública, com que a parcela confina a sul.
32. Os Autores têm vivenciado e sentido ansiedade, nervosismo, revolta e desgosto devido à conduta adotada pelos Réus, referida nos factos provados 6, 7, 10 e 31.
2. Matéria de facto – Factos não provados
a) [Passou para o facto provado 30].
b) [Passou para o facto provado 31].
c) [Passou para o facto provado 31].
d) [Passou para o facto provado 32].
e) [Passou para o facto provado 32].
f) [Passou para o facto provado 32].
g) [Passou para o facto provado 32].
h) O artigo urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., sob o artigo ...17 e que foi objeto de escritura de justificação realizada em 16 de setembro de 2005, nunca fez parte da herança deixada por óbito de WW e LL.
i) Os únicos bens que a avó LL herdou foram terrenos que lhes foram deixados por uns tios que estavam no ....
j) Com efeito, herdou dois terrenos, um sito no lugar de ... e outro em ..., precisamente onde o referido NN construi o prédio inscrito sob o artigo ...17.
k) E para aí construir o referido NN deu a sua mãe quinhentos escudos.
l) Tal negócio ocorreu há mais de 70 (setenta anos).
m) Desde 2005 até 2019 têm sido os Réus CC e DD que têm estado na posse do referido prédio.
n) Com efeito, desde que o prédio lhes foi doado que os Réus CC e marido DD o vêm detendo, desfrutando, fruindo e usufruindo do prédio urbano inscrito sob o artigo ...17 da freguesia ..., limpando-o, realizando reparações, colocando novas portas e janelas, renovando o sistema de eletricidade, zelando-o, cultivando o quintal, e tudo que lhes aprouver e assim retirando assim todas as utilidades que tal prédio proporcionava, em seu proveito e interesse exclusivo.
o) Tudo isto, à vista de toda a gente, e dos próprios Réus, isto é, publicamente.
p) De forma contínua e ininterrupta.
q) Sem oposição ou violência de ninguém, antes de modo pacífico.
r) Pagando as contribuições e impostos respeitantes.
s) Na intenção e convicção de que ao exercerem tal posse não lesavam o direito de quem quer que seja, atuando assim de boa-fé convencidos de que gozavam coisa própria e de que lhes pertencia como proprietários exclusivos.
t) Agindo plenamente convictos de que estavam a atuar no exercício de um direito de propriedade plena sobre tal imóvel.
u) A Ré EE após a escritura de doação realizada pelos seus pais a si, entrou na posse do referido prédio.
E) Apreciação das restantes questões objeto do recurso
1 - Vejamos face aos factos provados se a escritura de justificação/doação deve subsistir.
A resposta é parcialmente negativa, pelas seguintes razões.
(a) Nos termos do artigo 89.º do Código do Notariado (aprovado pelo DL n.º 207/95, de 14 de Agosto, «1 - A justificação, para os efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.
2 - Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.»
Por sua vez, o n.º 1 do artigo 116.º (Justificação relativa ao trato sucessivo) do Código do Registo Predial (aprovado pelo DL n.º 224/84, de 06 de julho) dispõe que «O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo.»
Resulta destas normas que quando alguém pretende registar um prédio em seu nome e não dispõe de título que lhe permita efetuar esse registo, pode obtê-lo através de uma escritura de justificação notarial.
Como se diz no n.º 1 do artigo 89.º do Código do Notariado, acima reproduzido, a justificação consiste numa declaração feita pelo interessado através da qual este deve afirmar que é titular do direito que invoca e deve descrever os factos históricos que lhe conferiram tal direito.
Se se invocar a usucapião, o interessado há de mencionar os factos relativos ao início da posse e as circunstâncias em que essa posse foi exercida e lhe confere o direito invocado.
Verifica-se que não existe qualquer controlo do notário ou de outra entidade relativamente à correspondência entre estas afirmações do interessado e a realidade histórica.
Por conseguinte, dada esta fragilidade, a lei estabelece que este ato notarial possa ser impugnado com vista a inutilizá-lo e impedir que produza os efeitos a que se destina, que são os de levar ao registo predial a descrição do prédio e a inscrição dos direitos sobre ele e identificação dos seus titulares.
A impugnação da escritura de justificação consiste na impugnação dos factos aí declarados como fundadores do direito invocado.
(b) Como resulta do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2008, publicado no Diário da República n.º 63/2008, Série I, de 31 de março de 2008, «Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial.»
Verifica-se que no caso dos autos os Réus não conseguiram provar os factos constitutivos do direito de propriedade que invocaram sobre o prédio do artigo matricial 1117, da freguesia ..., concelho ..., tal como o retrataram, como o descreveram, na escritura, no que respeita à área que ocupava e confrontações.
Ou seja, não provaram atos de posse em relação à faixa de terreno com 123,25 metros quadrados que os outorgantes pais da ré CC, esta e o marido DD, incluíram nas declarações que exararam na escritura de justificação e doação de 2005 (cfr. factos provados do n.º 7 e 10), como resulta dos factos provados sob os n.º 23 a 28, porquanto os atos de posse que invocaram e provaram na presente ação não abrangeram a porção de terreno identificada no facto provado n.º 7 o «Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2…».
Aliás, em sede de animus, os Réus bem sabiam em 2005 que tal terreno não lhes pertencia. Por terem esta convicção, careciam de ter agido publicamente como donos em relação a esse terreno, opondo-se aos Autores, o que nunca fizeram até à data da escritura de justificação de 2005 onde tal posse foi invocada.
E, como é sabido, sem animus não há posse.
Em contrapartida, resultou provado que coube ao Autor «…o direito de propriedade sobre “Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2 …» - Facto provado n.º 7 – e que «Os Autores agiram em relação à parcela supra identificada como donos, de forma ininterrupta desde 1980 até data indeterminada, mas posterior a agosto de 2009, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, limpando o terreno, cobrindo de pedra a passagem/caminho que também integra essa parcela, passando através dela até à via pública, a sul, a partir do imóvel de que são também proprietários, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...27, planeando fazer passar o saneamento pela sua propriedade» - Facto provado n.º 30.
Ou seja, os Autores provaram ter estado na posse da parcela, como donos, desde 1980 ao ano 2000 e depois deste ano, mais de 20 anos, portanto, ou seja, durante o tempo necessário à aquisição do respetivo direito de propriedade por usucapião.
Com efeito, «A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião» - art.1287.º do Código Civil.
Por sua vez, o artigo 1296.º do mesmo código dispõe que «Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé e de vinte anos se for de má fé.»
Mas resultaram provados, face aos factos provados dos n.º 23 a 29 e às normas legais acabadas de transcrever atos de posse que conferem aos Réus CC e DD a propriedade sobre o prédio do artigo ...17.
Não se afigura necessário justificar mais longamente esta afirmação por se afigurar que a mesma é evidente.
Resulta do que fica exposto, que a impugnação da escritura de justificação procede em parte porque fica demonstrado nos autos que a parte dos factos alegados nessa escritura que abrangeu aquela parcela com 123,25 m2 não correspondiam à realidade histórica.
Os Autores pedem que se declare a escritura nula e de nenhum efeito.
Como se ponderou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-12-2007, no processo identificado com o n.º 07A2464, «O autor pede se declare nula a escritura de justificação notarial de 14 de Fevereiro de 1996, com fundamento na falsidade das afirmações justificatórias constantes da mesma escritura.
Ora, a falsidade das afirmações dos outorgantes não figura entre as causas típicas de nulidade dos actos notariais, previstas nos arts 70º e 71º do Código do Notariado.
Do que se trata é antes da ineficácia de tal escritura, declarando-se que não produz efeitos, por os réus não terem adquirido o prédio por usucapião.
Tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em vez da sua nulidade, o tribunal deve corrigir, oficiosamente, tal erro, e declarar tal ineficácia da escritura de justificação notarial, como permitido pelo art. 664º do C.P.C. (Acórdão uniformizador de jurisprudência nº 3/01, de 23-1-01, publicado no Diário da República, 1ª Série A, de 9-2-01).»
Cumpre, pelo exposto, declarar a ineficácia da escritura de justificação aqui impugnada porquanto os Réus CC e DD não adquiriram por usucapião o prédio tal como foi aí descrito, ou seja, não adquiriram a mencionada parcela com 123,25 m2.
A ineficácia é parcial porquanto em relação à restante parte do prédio verifica-se que os Réus provaram os respetivos atos de posse que lhe conferem a aquisição do direito de propriedade por usucapião.
Uma última nota quanto a esta parte, para concordar com o argumentado em 1.ª instância na parte em que não deu relevância à falência da prova quanto aos factos alegados pelos Réus como causais da posse alegada e mesmo falsos na parte em que atribuíram a doação verbal a WW, falecido em 1923.
Com efeito, se se provarem os atos de posse não pode deixar de se declarar o respetivo efeito face à lei, o que mostra que aquilo que releva são os atos de posse e não a sua origem genética.
2- Quanto à escritura de doação lavrada em 2005.
A escritura de doação em que são donatários os réus CC e DD padece do mesmo vício que afeta o ato de justificação, isto é, foi doado um prédio que, tal como está descrito nessa escritura não pertencia aos doadores, porque incluiu a tal parcela de 123,25 m2 que é propriedade dos Autores.
Foi doado algo que não pertencia aos doadores.
Nos termos do disposto no artigo 892.º do Código Civil, aplicável à doação por força do disposto no artigo 939.º do mesmo código, «É nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar», como é o caso.
O artigo 292.º do Código Civil dispõe, porém, que a «A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.»
No caso a nulidade que afeta a doação é parcial, pois apenas atinge a parte do prédio que não faz parte dele por ser propriedade dos Autores, os mencionados 123,25 m2.
Será declarada, pois, a nulidade parcial desta doação.
3- Quanto à escritura de doação lavrada em 2019.
Esta escritura de doação em que é doadora a ré CC e donatária ré EE padece do mesmo vício que afeta o ato de justificação e a doação de 2005, isto é, foi doado um prédio que, tal como está descrito nessa escritura não pertencia à doadora, porque incluiu a tal parcela de 123,25 m2 que é propriedade dos Autores.
Ou melhor dizendo, a nulidade parcial que afeta a doação de 2005 reflete-se na doação de 2019 porquanto tem por objeto o mesmo prédio.
Como referiu, Heinrich Hörster «Quanto aos efeitos da nulidade e da anulação, prevê o art. 289.º, n.º 1, que ela tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado. Em regra, estes efeitos não se limitam às partes do negócio invalidado mas estendem-se a todos os que, entretanto, hajam adquirido na sequência dele (os subadquirentes), ou seja, os terceiros adquirentes. Quer dizer, normalmente, todos, tanto as partes como os terceiros, são abrangidos pelos efeitos retroactivos tal como o art. 289.º, n.º 1, os determina» - Nulidade do negócio e terceiro de boa fé. Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ – Ano XII -Tomo III, pág. 14-15.
A nulidade que afeta esta doação é do mesmo modo parcial, pois apenas atinge a parte do prédio que não faz parte dele por ser propriedade dos Autores, os mencionados 123,25 m2.
Será declarada, pois, a nulidade parcial desta doação.
4 - Cancelamento dos registos
Nos termos do artigo 12.º, n.º 1 do Código do Imposto Municipal sobre imóveis (IMI) «As matrizes prediais são registos de que constam, designadamente, a caracterização dos prédios, a localização e o seu valor patrimonial tributário, a identidade dos proprietários e, sendo caso disso, dos usufrutuários e superficiários.»
E no artigo 28.º, n.º 3 do Código de Registo Predial, refere-se que nos títulos respeitantes a factos sujeitos a registo deve haver harmonização com a matriz, nos termos dos n.os 1 e 2, e com a respetiva descrição, salvo se quanto a esta os interessados esclarecerem que a divergência resulta de alteração superveniente ou de simples erro de medição.»
Deve existir, portanto, uma correspondência fiel entre a realidade jurídica por um lado e a realidade matricial e registral por outro.
Os Autores pedem o cancelamento dos registos prediais feitos com base nas referidas escrituras.
Sucede, que o conteúdo das referidas escrituras não é declarado ineficaz ou nulo na sua totalidade, como resulta do exposto, mas só em parte.
Há uma parte dos efeitos produzidos pelos atos notariais que subsiste.
Procede, pois, o pedido de cancelamento, porquanto visa aquela correspondência, mas o cancelamento não pode abranger a totalidade do conteúdo registado, ou seja, os registos relativos ao prédio têm de ser corrigidos de modo a não incluírem a parcela de 123,25 m2.
Ordenar-se-á que se proceda a implementação da mencionada correspondência de acordo com os mecanismos que se revelarem mais apropriados no registo predial e promovam a efetivação do direito substantivo.
Por conseguinte, não se pode ordenar o cancelamento dos registos na sua totalidade, como é pedido.
5 - Quanto aos danos não patrimoniais.
Resultou provado que «Os Autores têm vivenciado e sentido ansiedade, nervosismo, revolta e desgosto devido à conduta adotada pelos Réus, referida nos factos provados 6, 7, 10 e 31.
Afigura-se que estes estados mentais dos Autores de conteúdo negativo são indemnizáveis face ao disposto no artigo 496.º do Código Civil onde se dispõe que
São indenizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Tutelam-se aqui como referiu Antunes Varela, «...não apenas os chamados danos morais (ofensas à honra, à dignidade, ao bom nome das pessoas, humilhações, vexames, desgostos de ordem afectiva), mas também os sofrimentos físicos (as dores corporais, padecimentos ou tratamentos dolorosos) e os complexos de pura ordem estética (como os provenientes de cicatrizes no rosto ou de anomalias no andar, no falar, no gesticular, etc.)» - Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 123, pág. 253.
Não merecem essa tutela «...os prejuízos insignificantes ou de diminuto significado, cuja compensação pecuniária não se justifica, que todos devem suportar num contexto de adequação social, cuja ressarcibilidade estimularia uma exagerada mania de processar e que, em parte, são pressupostos pela cada vez mais intensa e interactiva vida social hodierna. Assim não são indemnizáveis os diminutos incómodos, desgostos e contrariedades, embora emergentes de actos ilícitos, imputáveis a outrem e culposos» - R. Capelo de Sousa. O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, 1995, pág. 555/556.
Afigura-se que o facto dos Réus terem procurado apoderar-se da faixa de terreno que sabiam ser dos Autores e de o fazerem perante estes não pode deixar de causar, como se provou, um estado de ansiedade, nervosismo, revolta e desgosto que não pode ser considerado como algo de normal no âmbito das relações sociais de convivência e que deva ser suportado por quem o sofre como um ónus proveniente dos benefícios resultantes da vivência em sociedade.
Afigura-se que os factos e os referidos danos demonstram suficiente gravidade para merecerem tutela.
Relativamente à sua quantificação tem-se por suficiente os 750,00 euros que cada um dos Autores pede dos Réus. Tratando-se de responsabilidade extracontratual, é solidária (artigo 497.º, n.º 1 do Código Civil).
A que acrescem juros legais de mora desde a citação, nos termos dos artigos 804.º, n.º 1, 805.º, n.º 2, al. b) e 806.º, todos do Código Civil.
IV. Decisão
Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e, em consequência:
1 – Altera-se a matéria de facto nos termos que ficaram indicados e revoga-se a sentença recorrida.
2 – Declara-se parcialmente ineficaz a escritura de justificação e doação outorgada no dia 16 de setembro de 2005, no Cartório Notarial de ..., exarada de folhas trinta e quatro a folhas trinta e seis, do livro de notas para escrituras diversas número DOIS – E, daquele Cartório Notarial, então cargo da Notária XX, na qual foram outorgantes NN e esposa OO, ineficaz na parte em que incluiu a parcela de terreno identificada nos factos provados n.º 7 como «Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2…»
3 – Declara-se parcialmente nula a doação constante da escritura de doação de 1 de abril de 2019, exarada de folhas cento e sete a folhas cento e nove do livro de notas para escrituras diversas DEZOITO–R, do Cartório Notarial de ..., na qual foram outorgantes CC, com o consentimento do Réu DD e EE o prédio urbano, nula na parte em que incluiu a parcela de terreno identificada nos factos provados n.º 7 como «Terreno de quintal e serventia (pegada a DD) ao fundo da casa de DD com 1m de largura 123,25 m2…»
4 – Determina-se que se proceda em sede de registo predial ao cancelamento do(s) registo(s), de modo a que no registo relativo ao prédio do artigo matricial 1117 da freguesia ..., não inclua a parcela de 123,25 m2 mencionada nos factos provados.
5 – Condenam-se os Réus solidariamente a pagar a cada um dos Autores a quantia de 750,00 (setecentos e cinquenta euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais desde a citação até pagamento.
Custas pelos Réus.
*
Coimbra,…