Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
683/10.3TBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: INTERESSE EM AGIR
VALOR
PRESTAÇÃO
MORA
Data do Acordão: 12/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - CASTELO BRANCO - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 804.º E 1154º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: O interesse em agir surge da necessidade do demandante obter a protecção de um interesse substancial, pressupondo a lesão desse interesse e a idoneidade da pretensão requerida tendo em vista a sua reintegração, destinando-se a assegurar a utilidade da decisão proferida.

II. Por assim ser, é de reconhecer o interesse em agir como pressuposto processual autónomo inominado referente às partes -a não ser exigido, a actividade jurisdicional seria exercida em vão-cuja falta consubstancia excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso.

III. Tem interesse em agir a credora se o devedor, reconhecendo embora parte do crédito não proceder ao respectivo pagamento, impugnando o remanescente.

IV. Estando-se perante obrigação com prazo, não é suficiente para afastar a mora a mera circunstância de ser controvertido o valor da prestação, por divergirem as partes quanto à quantidade e preço dos serviços prestados; ainda que a devedora venha a ser condenada em montante inferior ao peticionado, são devidos juros moratórios desde a data fixada para o vencimento da obrigação de pagamento.

Decisão Texto Integral:
I. Relatório

A..., Lda. com sede na (...), em Castelo Branco, instaurou contra B...Lda., sediada na (...), em Panamacor, acção declarativa de condenação, a seguir a forma sumária do processo comum, pedindo a final a condenação da demandada no pagamento da quantia de €23.813,15€, a título de remuneração pelos serviços prestados, acrescida de juros de mora vencidos e dos vincendos até efectivo e integral pagamento.

Em fundamento alegou, em síntese, ter por objecto a elaboração de projectos de engenharia, fiscalização de obras e consultadoria em engenharia civil, actividade no âmbito da qual, a solicitação da ré, elaborou planos de trabalho, planos de segurança e de saúde e efectuou o acompanhamento técnico de obras, nos termos e pelo preço discriminados nas facturas emitidas. Mais alegou ter procedido ao envio à ré das mesmas facturas, que as recebeu, sem que tenha procedido ao pagamento dos serviços prestados, quer no prazo de 30 dias de que dispunha para o efeito, quer posteriormente, a despeito das diversas solicitações que lhe foram efectuadas.

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Regularmente citada, a ré contestou e, tendo-se defendido por excepção, invocou a nulidade de todo o processo decorrente da ineptidão da petição inicial.

Reconhecendo ter beneficiado dos serviços discriminados nas facturas nº 214, 216, 218 e 233, que não pagou, impugnou, no que se refere às demais, quer os serviços facturados, quer os preços cobrados. Assim, relativamente à factura nº 221, defendeu ter a autora facturado o acompanhamento da globalidade da obra quando na realidade esta não se encontra ainda concluída; no que à factura n.º 222 diz respeito, alegou que os serviços nela discriminados são os mesmos que constam da factura n.º 218, assistindo-se assim a uma indevida dupla facturação; quanto à factura n.º 230 são facturados 32 planos de trabalho quando foram executados apenas 30, carecendo assim de ser rectificada conforme por diversas vezes solicitou, sendo certo que o preço unitário é superior ao acordado; no que à factura n.º 231 concerne, impugnou igualmente o preço dos serviços nela contemplados; finalmente, e no que respeita à factura n.º 232, sustentou que a demandante acompanhou a obra apenas no que respeita aos trabalhos executados no 1.º auto de medição, sendo por isso devida a quantia de €540.

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A autora respondeu, pugnando pela improcedência da excepção arguida e, aceitando que a factura n.º 230 contém o erro acusado, tendo procedido à elaboração de apenas 30 planos, impugnou o demais alegado pela ré em sede de contestação.

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Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção arguida, prosseguindo os autos com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, de que a autora reclamou, sem êxito embora.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento com observância das legais formalidades, no termo da qual foi proferida douta sentença que, na procedência parcial da acção, condenou a ré a pagar à autora:

a) €1.440 (mil quatrocentos e quarenta euros), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa comercial sucessivamente em vigor desde 4 de Agosto de 2009 e até integral pagamento – titulado pela factura nº 214.

b) €2.934,90 (dois mil, novecentos e trinta e quatro euros e noventa cêntimos), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa comercial sucessivamente em vigor desde 3 de Agosto de 2009 e até integral pagamento – titulado pela factura nº 216.

c) € 444,77 (quatrocentos e quarenta e quatro euros e setenta e sete cêntimos), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa comercial sucessivamente em vigor desde 6 de Agosto de 2009 e até integral pagamento – titulado pela factura nº 218.

d) €3.492,78 (três mil, quatrocentos e noventa e dois euros e setenta e oito cêntimos), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa comercial sucessivamente em vigor desde 8 de Agosto de 2009 e até integral pagamento – titulado pela factura nº 221.

d) €1.200 (mil e duzentos euros), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa comercial sucessivamente em vigor desde 14 de Agosto de 2009 e até integral pagamento – titulado pela factura nº 222.

e) €4.200 (quatro mil e duzentos euros), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa comercial sucessivamente em vigor desde 4 de Dezembro de 2009 e até integral pagamento – titulado pela factura nº 230.

f) €900 (novecentos euros), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa comercial sucessivamente em vigor desde 4 de Novembro de 2009 e até integral pagamento – titulado pela factura nº 231.

g) €1.640,08 (mil, seiscentos e quarenta euros e oito cêntimos), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa comercial sucessivamente em vigor desde 23 de Dezembro de 2009 e até integral pagamento – titulado pela factura nº 232.

h) €1.429,50 (mil, quatrocentos e vinte e nove euros e cinquenta cêntimos), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa comercial sucessivamente em vigor desde 14 de Agosto de 2009 e até integral pagamento – titulado pela factura nº 233.

Tudo no montante de capital de €17.682,03 (dezassete mil, seiscentos e oitenta e dois euros e três cêntimos), ao qual acrescem os juros de mora como explicitado.

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Inconformada, apelou a ré da sentença e, tendo apresentado as suas alegações, rematou-as com as necessárias conclusões, de que se destacam, por pertinentes:

“1. Vem o presente recurso de Apelação interposto da douta Sentença que julgou a acção parcialmente procedente, por provada, e condenou a Recorrente a pagar à autora (…) a quantia global de € 17.682,03 de capital, ao qual acrescem juros de mora como explicitado.

2. A Decisão da Meritíssima Juiz “a quo”, aqui posta em causa, não foi, com o devido respeito, na perspectiva do Recorrente, nem a mais acertada, nem a mais bem fundada, no tocante às respostas dadas à matéria de facto, e consequentemente, no que respeita à solução jurídica da questão supra identificada e suscitada nos autos.

3. Relativamente às respostas dadas à matéria de facto, a Meritíssima Juiz “a quo”, na perspectiva da aqui Recorrente e, com o devido respeito, respondeu erradamente aos pontos 16º, 17º e 18º da matéria dada como não provada.

4. Na verdade, a Meritíssima Juiz, sem que se alcance fundamento para isso, fez tábua rasa do depoimento da testemunha C..., a qual foi a única que demonstrou ter conhecimento directo dos fatos em discussão, bem como de parte do depoimento da testemunha D....

5. Consequentemente, face ao depoimento das testemunhas acima referida, e face às regras da experiência comum do homem médio é manifesto, sem mais, que os quesitos 8º, 9º e 10º têm que ser considerados provados.

6. Venerandos Desembargadores, ao contrário do entendimento da Meritíssima Juiz “a quo”, salvo o devido respeito, face ao supra explanado, sendo considerados provados os factos supra elencados, fica que a matéria invocada pela ré tem que proceder.

7. Em consequência, verifica-se que estão reunidos os pressupostos relativos à excepção dilatória da falta de interesse processual das partes;

8. Devendo, consequentemente, a ora Recorrente ser absolvida na instância e a decisão recorrida revogada.

9. Se assim não for entendido, o que se admite por mero dever de patrocínio, os juros só poderão ser devido juros de mora a partir da data do trânsito em julgado dos presentes autos.

10. Assim, a douta Sentença violou, por erro de interpretação e de aplicação do disposto nos arts. 607º, nºs 2 a 6 e 608º todos do C.P. Civil, impondo-se a modificabilidade da decisão de facto”.

Conclui pedindo que, na procedência do recurso, seja determinada “a modificabilidade da sentença”.

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Contra alegou a autora, pugnando naturalmente pela improcedência do recurso interposto pela ré e, convocando expressamente o n.º 2 do art.º 636.º do CPC em vigor, requereu a ampliação do objecto do recurso, rematando a sua minuta com as seguintes proposições recursivas:

“1.ª- Não aceita a Mma Juiz que as facturas 230 e 231 sejam liquidadas e pagas com base nos preços acordados na reunião de 9 de Outubro de 2009.

2.ª- Decide, sim, que a tais facturas deverá ser aplicado o tarifário antigo, o constante das alíneas a), b), c), d) e e) do quesito nº 6 da BI (fls. 167 dos autos).

3.ª- A reunião de 9 de Outubro de 2009 teve lugar porque a R., face ao falecimento do gerente da A., havia declarado que prescindia da direcção técnica das obras pela A. a partir da morte do Eng.º F..., e a Autora não aceitava esta declaração porque os preços dos planos de trabalho, planos de saúde e segurança e mapas de risco se mantinham e não seriam mais pagos em função da taxa de 2% do tarifário, quando a obra fosse adjudicada à Ré.

4.ª- A A. tinha no seu quadro de pessoal um arquitecto e uma engenheira e podia por isso realizar e queria realizar a direcção técnica das obras para que continuava a elaborar os planos de trabalho, de segurança e saúde e mapas de risco das empreitadas a que a Ré pretendia concorrer.

5.ª- Na reunião de 9 de Outubro de 2009, a A. anuiu à pretensão da Ré quanto à direcção técnica das obras, aceitando a declaração de rescisão desse item do contrato, e a Ré obrigou-se, em contrapartida, a pagar-lhe os planos de trabalho à razão de 200,00 € cada um e os planos de segurança e saúde desenvolvidos e os mapas de risco à razão de 500,00 € cada um (resposta ao quesito 4), planos e mapa que tinha elaborado depois da morte do Eng.º F....

6.ª- Não cabendo à A. a direcção técnica das obras deixava de vigorar o tarifário referido na conclusão 2 em todas as empreitadas a que a Ré concorrera, depois da morte do Eng.º F..., mesmo que lhe fossem adjudicadas.

7.ª- As facturas 230 e 231 foram emitidas em 4 de Novembro de 2009, de acordo com a transacção da reunião de 9 de Outubro de 2009, ou seja, pelos valores do novo tarifário.

8.ª- Serviram de base à emissão das mesmas facturas os documentos de fls. 25 e 26 e de fls. 95 a 154, dos quais decorre a data do pedido e execução pela Autora.

9.ª Do acordo de 9 de Outubro, aprovado o novo tarifário, decorre que a R. viu aceite a sua pretensão de retirar à Autora a direcção técnica das obras e, consequentemente, o pagamento daquela direcção técnica e dos planos de trabalho, de segurança e outros pela percentagem de 2% do valor das empreitadas que lhe fossem adjudicadas, e que A., obteve, em compensação um preço duplo do anterior dos mesmos planos, fossem ou não adjudicados à Ré as obras respectivas.

10.ª- A decisão da Mma Juiz, quanto ao preço dos mapas de trabalho e mapas de segurança e saúde das facturas 230 e 231, liberta a Ré do pagamento destes planos pela percentagem de 2% sobre o valor das empreitadas que viessem a ser-lhe adjudicadas e amarra a Autora ao pagamento dos preços das alíneas a), b), c) do quesito 6º que tinha sido acordado para vigorar apenas quando à Ré não fosse adjudicada a empreitada respectiva.

11-ª- Tal decisão é por isso injusta e ilegal, viola os arts. 405º e 437º do Código Civil, devendo ser revogada, o que se requer”.

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Questão prévia:

Delimitação do objecto do recurso

Com se vê do relatado, a autora, confrontada com o recurso interposto pela ré veio, na resposta, de forma expressa e convocando a norma do n.º 2 do art.º 636.º, ampliar o âmbito do recurso. Todavia, contrariando essa declarada intenção, invocando o cometimento pela Mm.ª juíza de erro de julgamento no que respeita às facturas n.ºs 230 e 231, acabou por formular pedido de revogação da sentença.

O art.º 636.º, disposição legal invocada pela apelada, prevê a possibilidade do recorrido requerer a ampliação do âmbito do recurso, abrangendo a previsão legal duas situações:

- ter sido invocada uma pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, tendo a parte vencedora decaído num ou mais do que um desses fundamentos, caso em que o Tribunal de recurso deverá dele(s) conhecer desde que o recorrido o requeira, ainda que a título subsidiário e prevenindo a necessidade da sua apreciação (naturalmente motivada pela procedência dos fundamentos invocados pelo recorrente);

- prevenindo a hipótese de procedência das questões pelo recorrente suscitadas, ter o recorrido, aqui a título necessariamente subsidiário, arguido a nulidade da sentença ou impugnado a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto não impugnados pelo recorrente.

Atenta a previsão da disposição legal a que nos reportamos, dela resulta claramente que se trata de um instrumento processual disponibilizado à parte vencedora -que obteve portanto do Tribunal um juízo de procedência sobre a pretensão formulada- ainda que não tenham sido atendidos todos os fundamentos que invocou e/ou a decisão proferida sobre a matéria de facto não lhe tenha sido absolutamente favorável. E compreende-se que a lei tenha disponibilizado esta via de ataque à decisão proferida, uma vez que a parte vencedora não tem legitimidade para recorrer (cf. n.º 1 do art.º 631.º). Daí que, prevenindo eventual procedência do recurso interposto pela parte vencida, se faculte àquela, a quem estava vedado recorrer da decisão, que a impugne por esta via.

Ora, se assim é, logo se intui não ser esta a via processual adequada para impugnar uma decisão, na parte em que ela foi desfavorável ao vencedor, tal como ocorreu no caso em apreço. Com efeito, ficando vencidas ambas as partes, cada uma delas terá que recorrer autonomamente da sentença, na parte em que lhe foi desfavorável, conforme resulta claramente do disposto no n.º 1 do art.º 633.º do CPC, podendo o recurso ser independente ou subordinado. Esta legitimidade recíproca para recorrer, conferida pela lei a ambas as partes no caso de procedência parcial da acção, é ainda uma consequência da proibição da “reformatio in pejus”. Com efeito, uma vez que o recorrido -parte vencedora- só pode obter a improcedência do recurso interposto pela parte contrária, não podendo obter na instância de recurso mais do que aquilo que lhe foi concedido pela 1.ª instância, há que reconhecer-lhe legitimidade para recorrer da decisão, na parte em que lhe foi desfavorável, única via de obter ainda vencimento na parcela em que decaiu.

Revertendo ao caso dos autos, resulta do argumentário expendido e conclusões que a final formula, que aquilo que a autora pretende é, afinal, a alteração da sentença na parte em que lhe foi desfavorável, o que só poderia obter pela via de interposição do recurso, ainda que subordinado. Mas não foi essa, como vimos, a via escolhida, não sendo possível ao Tribunal transmutar uma ampliação do objecto do recurso, sem aptidão para modificar a decisão proferida em desfavor do recorrente, num recurso subordinado, introduzindo a possibilidade de a modificar em prejuízo da ré apelante, com o que seguramente não contava, tanto mais que a Mm.ª juíza se limitou -e bem- a admitir o recurso interposto pela ré e a resposta da autora.

Resulta do exposto que a pretensão da autora no sentido de ver modificada em seu favor a sentença apelada não pode aqui ser conhecida.

Por outro lado, e no que concerne à parte da pretensão em que obteve vencimento, única em relação à qual poderia requerer a ampliação do objecto do recurso, não se vê -nem a autora apelada o indica- qual ou quais os fundamentos em que decaiu, nem tão pouco especifica quais os pontos da matéria de facto que, não tendo sido impugnados pela ré apelante, pretende ver reapreciados, limitando-se a invocar a resposta ao art.º 4.º e determinados documentos, que especificou, para neles sustentar a pretendida alteração, em seu favor, da decisão apelada o que, repete-se, não cabe no âmbito da requerida ampliação.

Atento o exposto, e porque a intenção de recorrer, tendo em atenção o princípio do pedido e do contraditório consagrados latamente no art.º 3.º do CPC, terá que ser expressa e inequívoca, não poderá este Tribunal considerar que estamos perante a interposição de um recurso subordinado quando a parte, expressa e inequivocamente, declarou antes pretender a ampliação do objecto do recurso. De outra parte, porque a autora não especificou qual ou quais os fundamentos em suporte da pretensão que foram desatendidos pelo Tribunal, nem tão pouco quais os concretos pontos da matéria de facto decididos desfavoravelmente -sendo certo que a sua reapreciação dependeria da procedência das questões que, a propósito, fossem pela recorrente suscitadas cf. n.º 2 do art.º 636.º- não se conhecerá também da requerida ampliação.

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Assente que pelo teor das conclusões se define e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões colocadas à apreciação deste Tribunal:

i. da verificação da excepção dilatória inominada da falta de interesse em agir;

ii. do erro de julgamento no que respeita às respostas negativas que mereceram os artigos da base instrutória e consequente modificação da decisão proferida;

iii. do início da contagem dos juros de mora.

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i. da falta de interesse em agir

Desprezando aqui o óbvio lapso cometido pela apelante, evidenciado pelo contexto (cfr. art.º 249.º do Código Civil), ao aludir à entrega de cheques que se encontrariam em poder da demandante, questão nunca antes suscitada nestes autos e que cremos firmemente ter-se ficado a dever a lapso informático, tendo sido aqui reproduzida passagem de um texto seguramente elaborado tendo como destinatário um outro processo, ficou ainda assim a invocação da excepção dilatória da falta do interesse em agir.

Se bem compreendemos o sentido da argumentação expendida pela recorrente em suporte da invocação, a verificação da aludida excepção assentaria na desnecessidade do recurso a juízo por banda da autora. Tal resultaria do facto de a demandada ter reconhecido encontrarem-se em dívida as facturas que se reportavam a serviços efectivamente prestados sendo, de outro lado, legítima a sua recusa em satisfazer as quantias tituladas pelas demais, assim justificadamente impugnadas. Deste modo, e segundo conclui, tendo sido a autora a dar azo ao não pagamento das facturas -porque não as rectificou em conformidade com a pretensão da devedora- seria abusivo o recurso a juízo.

Vejamos da pertinência desta argumentação.

Por pressupostos processuais costumam designar-se aqueles requisitos de que depende dever o juiz proferir decisão sobre o mérito da causa, concedendo ou denegando a providência judiciária requerida pelo demandante”[1].

O interesse em agir “cuja caracterização jurídica e autonomização face aos restantes processuais não é pacífica, tem sido definido como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”[2].

Numa outra idêntica formulação “O interesse em agir consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela jurisdicional”[3], “é o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, tornando por isso legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece”[4].

O interesse em agir surge da necessidade do demandante obter a protecção de um interesse substancial, pressupondo a lesão desse interesse e a idoneidade da pretensão requerida tendo em vista a sua reintegração. Não se destina a assegurar a eficácia da sentença, mas antes a sua utilidade, nisso se distinguindo da ilegitimidade porquanto, sendo uma das partes ilegítima, a decisão proferida será sempre ineficaz.

Assim sendo, é de reconhecer o interesse em agir como pressuposto processual autónomo inominado referente às partes -a não ser exigido, a actividade jurisdicional seria exercida em vão-[5]
cuja falta consubstancia excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso
.

E por se tratar de excepção de conhecimento oficioso -cfr. art.º 495.º do CPC em vigor ao tempo, a que corresponde o art.º 578.º do diploma actualmente em vigor- não formando caso julgado a afirmação tabelar, em sede de prolação do despacho saneador, de que se não verificam outras excepções dilatórias (o caso julgado formal, conforme expressamente previsto no n.º 3 do art.º 510.º do CPC então em vigor, formava-se apenas em relação às questões concretamente apreciadas, solução que o art.º 595 reproduz no seu número 3), nada obstava ao seu conhecimento em sede de recurso, caso se verificasse, o que, todavia, manifestamente não ocorre.

Com efeito, conforme resulta claro dos termos da alegação da autora, confirmados pela ré no articulado de contestação, impôs-se o recurso à via judicial porquanto, mesmo em relação às quantias reconhecidamente em dívida e apesar das solicitações, a ré não procedeu ao seu pagamento. Do mesmo passo, era evidente o litígio sobre as quantias tituladas pelas facturas impugnadas, não restando à demandante outra via para obter o reconhecimento do direito de crédito que se arroga.

Impõe-se assim como uma evidência ter a autora interesse real no recurso a juízo, tendo em vista o reconhecimento do seu direito de crédito e consequente condenação da ré na sua satisfação, sendo manifesta a utilidade na obtenção de uma decisão que tal consagrasse, necessária à sua cobrança coerciva, dado que a ré não se dispôs a satisfazê-lo de forma voluntária (nem sequer, repete-se, no que respeita à parte do crédito por si reconhecida).

Improcede, pelo exposto, e sem necessidade de outros considerandos, este fundamento recursivo.

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ii. da modificação da matéria de facto

Pretende a ré apelante ter sido pela Mm.ª juíza “a quo” cometido erro de julgamento quando respondeu negativamente aos artigos 8.º, 9.º e 10.º da base instrutória, respostas que pretende, todas elas, positivas, apelando aos depoimentos prestados por D... e, sobretudo, por C..., única testemunha que, em seu dizer, “demonstrou ter conhecimento directo dos factos em discussão”.

Estão em causa os seguintes factos, perguntados nos artigos indicados:

“16º. Desde 3.08.2009, após o Eng. F... falecer, a Autora nunca mais se deslocou à obra Loteamento da G... no Marvão?

17º. Com o intuito de não haver devolução ou anulação de factura e resolver o problema, as partes convencionaram que a Autora emitiria uma nota de crédito no valor de € 2.037,50, correspondente ao não acompanhamento da obra?

18º. O que até à data ainda não foi feito?”

Contextualizando os artigos cujas respostas foram pela apelante impugnadas, referiam-se os mesmos à obra “Loteamento da G...”, no Marvão, a qual beneficiou reconhecidamente do acompanhamento da autora, através do seu sócio gerente Eng.º F..., entretanto falecido, e que deu origem à factura n.º 221, no valor de € 4075,50 (IVA incluído), datada de 8 de Julho de 2009, cuja cópia consta de fls. 89 dos autos.

A propósito desta factura, a ré, na missiva enviada à autora em 22 de Dezembro de 2009, carta que por esta foi junta com a petição inicial, fazendo fls. 39-40 dos autos, refere que a factura não se encontra correctamente emitida, uma vez que foi facturada a totalidade da obra sem que a mesma se mostrasse concluída, mesmíssima razão invocada na contestação (cf. o art.º 43.º).

Mas afinal foi isso mesmo que a Mm.ª juíza deu como demonstrado, como se alcança das respostas aos artigos 1.º e 7.º da base instrutória -pontos de facto n.ºs 4. e 5. da sentença- com o seguinte teor:

4. No exercício da sua actividade, a autora, a pedido da ré, que deles necessitava para o exercício da sua actividade, executou ainda o acompanhamento técnico da obra “Loteamento da G...”, em Marvão, ao qual alude a factura n.º 221, mas tão só até ao 4.º auto de medição, no montante global de €145 532,65;

5. Tendo, no entanto, na factura n.º 221 facturado o acompanhamento da totalidade da obra, quando a mesma não se encontrava ainda concluída.

E motivou a sua convicção -quer no que se refere às respostas positivas, ainda que restritivas, agora transcritas, quer no que respeita às negativas agora objecto de impugnação- pelo seguinte modo:

“Relativamente à factura nº 221, não está posto em causa por nenhuma das partes que a autora tenha dado acompanhamento técnico à obra Loteamento da G... no Marvão, a questão é tão-somente a da extensão desse apoio.

Em concreto, do teor da factura, junta aos autos a fls. 89, efectivamente constata-se que a autora facturou os 2% sobre a totalidade do valor da obra (2% sobre o montante de €169.812,29).

No entanto, resulta dos documentos juntos a fls. 203 e 204 a 208 que a autora elaborou apenas 4 autos de medição, tendo acompanhado a obra até ao montante de €145.532,65.

Neste ponto, considerou igualmente o Tribunal os depoimentos de H..., funcionário da ré e que trabalhava nas obras, que asseverou que a obra em causa não foi completamente acompanhada pela autora, asseverando até que a obra se mantém inacabada.

É, portanto, com base nestes elementos de prova que a autora executou a pedido da ré o Acompanhamento Técnico da obra Loteamento da G... em Marvão a que alude a factura n.º 221, mas tão só até ao 4º auto de medição, no montante global de €145.532,65.

Em consequência, julga-se igualmente provado que na factura nº 221, a autora facturou o acompanhamento da totalidade da obra, quando a mesma não se encontrava ainda concluída - pontos 4 e 5 da matéria de facto provada e resposta ao quesito 1º e 7º da base instrutória, respectivamente.

(…) No que aos trabalhos descritos nesta factura concerne, salienta-se que se julga não provada a matéria dos artigos 8º a 10º na medida em que não houve prova suficiente que lograsse convencer o Tribunal do alegado.

Em concreto, nenhuma prova houve de que após o falecimento do Eng. F... a autora nunca mais se tivesse deslocado à obra; pelo contrário, neste ponto o Tribunal teve em consideração o depoimento de D... que, de forma que o Tribunal reputou de assertiva e sincera, explicou que mesmo após o falecimento do seu marido, a autora tinha outros engenheiros disponíveis, tendo sido a ré que recusou que fosse outro engenheiro a acompanhar as obras.

Por outro lado, nenhuma prova houve com credibilidade suficiente que lograsse convencer o Tribunal que a autora se havia comprometido a emitir a nota de crédito.

Sobre este ponto, a testemunha H..., funcionário da ré, defendeu no seu depoimento inicialmente que na reunião de 9 de Outubro ficou acordado que iria ser emitida uma nota de crédito para mais à frente no mesmo depoimento acabar por esclarecer que não sabia nada sobre os pagamentos e que o seu trabalho era desenvolvido nas obras.

Ora, assim sendo, o depoimento desta testemunha não mereceu neste ponto credibilidade por parte do Tribunal, pelo que se julga não provada a matéria dos artigos 9º e 10º da base instrutória”.

Impugnou a ré, como se disse, as respostas aos aludidos artigos da base instrutória que, em seu entender, teriam resultado cabalmente demonstrados pelo testemunho do seu sócio C....

Pois bem, no que se refere à resposta dada ao art.º 8.º, mesmo admitindo que devesse ser alterada, uma vez que a testemunha D..., viúva do falecido Eng.º F..., aludiu ao facto de, após a morte deste, a ré ter recusado que o acompanhamento das obras se fizesse por outro colaborador da autora, conforme esta propôs, daqui resultando efectivamente que o referido serviço, ainda que por vontade daquela, deixou de ser assegurado pela apelada, a verdade é que tal modificação nenhum relevo assumiria. Com efeito, e tal como resulta das transcritas respostas dadas aos art.ºs 1.º e 7.º, a Mm.ª juíza considerou apenas, no que respeita ao Loteamento da G..., o acompanhamento da obra até ao 4.º auto de medição, sempre efectuado pelo falecido Eng.º F..., como o evidenciam os documentos de fls. 203 e 204 a 244 e a data da emissão da factura e ele atinente. Por assim ser, irreleva, para este efeito, que a partir da morte do aludido engenheiro a obra tenha deixado de ser acompanhada pela autora, uma vez que a Mm.ª juíza apenas considerou em dívida o montante atinente ao acompanhamento efectivamente assegurado pelo falecido.

Atento o exposto, visto a lei vedar a prática de actos inúteis -cf. art.º 130.º do CPC- não se conhecerá da impugnação da resposta dada ao art.º 8.º.

Quanto aos demais artigos, se é verdade que a testemunha identificada pela apelante aludiu à emissão de uma nota de crédito, a emitir por cerca de 50 % do valor da factura, não é menos verdade que, conforme a apelada sublinhou, a testemunha D..., tendo confirmado que tal foi proposto pela ré, negou no entanto de forma peremptória que a tal tivesse acedido. E ponderados ambos os depoimentos à luz das regras da experiência, não podemos deixar de conferir maior credibilidade a este último porquanto, mesmo a reconhecer que a factura englobava acompanhamento não assegurado pela autora, tal devia-se à indisponibilidade da ré para aceitar que fosse um outro colaborador daquela a fazê-lo; depois, a verdade é que a diferença entre o trabalho que ainda foi executado pelo falecido e o valor da factura é substancialmente inferior aos 50% referidos pelo identificado sócio e representante (de facto) da ré, o que reforça a credibilidade da recusa a que fez alusão a aludida testemunha D.... Acresce que, conforme é sabido, na incerteza sobre a verificação dos factos, sempre a dúvida seria resolvida contra a ré, parte a quem os mesmos aproveitavam e sobre a qual recaía o ónus da prova respectiva (cf. art.º 414.º do CPC).

Improcede, pelo exposto, a pretendida modificação da matéria de facto.

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II. Fundamentação

De facto

Julgada improcedente a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e não existindo fundamento para a sua modificação oficiosa, são os seguintes os factos a considerar:

1. A Autora é uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada que tem por objecto a elaboração de projectos de engenharia; fiscalização de obras e consultadoria em 78engenharia civil – cfr. certidão de registo comercial de fls. 14 a 18, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido (al. A).

2. Autora e Ré celebraram um acordo, mediante o qual a Autora executaria para a Ré Planos de Trabalho, Planos de Segurança e Saúde, Mapas de avaliação de risco e, quando a obra fosse adjudicada à Autora, faria o acompanhamento técnico da obra (resposta ao art.º 5.º da base instrutória).

3. No exercício da sua actividade, a Autora a pedido da Ré, que deles necessitava para o exercício da sua actividade, executou os serviços a que aludem as facturas n.º 214, 216, 218 e 233, documentos juntos a fls. 86 a 88 e 91, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, concretamente:

- 12 planos de trabalhos / planos de mão-de-obra, no montante de €1.200, acrescido de IVA, no montante global de 1.440 titulado pela factura nº 214 – conforme documento junto a fls. 86, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.

- Direcção técnica da obra – Calçada de Santo André na Covilhã, no montante de €2.445,75, acrescido de IVA no montante global de €2.934,90 titulado pela factura nº 216 – conforme documento junto a fls. 87, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.

- Direcção Técnica da obra do Sistema de abastecimento de água, no montante de €370,11, acrescido de IVA no montante global de €444,77, titulado pela factura nº 218 – conforme documento junto a fls. 88, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.

- Direcção Técnica da obra, no montante de €1.191,75 acrescido de IVA no montante global de €1.429,50 titulado pela factura nº 233 – conforme documento junto a fls. 91, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido (al. B).

4. No exercício da sua actividade, a Autora a pedido da Ré, que deles necessitava para o exercício da sua actividade, executou ainda o Acompanhamento Técnico da obra Loteamento da G... em Marvão a que alude a factura n.º 221, mas tão só até ao 4º auto de medição, no montante global de €145.532,65 (resposta ao quesito 1º da base instrutória).

5. Tendo, no entanto, na factura nº 221 facturado o acompanhamento da totalidade da obra, quando a mesma não se encontrava ainda concluída (resposta ao quesito 7º da base instrutória).

6. No exercício da sua actividade, a Autora a pedido da Ré, que deles necessitava para o exercício da sua actividade, executou ainda o Acompanhamento Técnico da obra do Sistema de abastecimento de água, a que alude a factura n.º 222 (resposta ao quesito 1º da base instrutória).

7. Ainda de igual forma, no exercício da sua actividade, a Autora a pedido da Ré, executou os Planos de Trabalho a que corresponde a factura n.º 231, concretamente 2 planos de segurança e saúde e 1 mapa de avaliação de riscos (resposta ao quesito 1º da base instrutória).

8. No exercício da sua actividade, a Autora a pedido da Ré, que deles necessitava para o exercício da sua actividade, executou ainda o Acompanhamento Técnico da obra a que alude a factura n.º 232 (resposta ao quesito 1º da base instrutória).

9. Ainda de igual forma, no exercício da sua actividade, a Autora a pedido da Ré, executou os Planos de Trabalho a que corresponde a factura n.º 230, concretamente 30 planos de trabalho (e não 32) e 2 planos de segurança e saúde, encontrando-se repetidos os planos 8. e 10. (resposta aos quesitos 2.º e 12.º da base instrutória).

10. Os planos de trabalho n.º 30 e 32, mencionados na relação de planos de trabalhos de fls. 25 e a 26, encontram-se repetidos, tendo a autora na factura n.º 230 lançado a mais, pelo menos, o plano 32 (al. C).

11. Autora e ré acordaram que as contrapartidas pagas pela Ré à Autora pelos referidos serviços seriam as seguintes:

a) Por cada Plano de Trabalho seria pago € 100,00;

b) Por cada Plano de Segurança e Saúde seria pago € 250,00;

c) Por cada Mapa de Avaliação de Riscos seria pago € 250,00; e

d) Quando a obra fosse adjudicada à Ré, a Autora faria o acompanhamento técnico da mesma e receberia 2% do valor total da empreitada;

e) Todavia, sempre que a obra fosse adjudicada à Ré não haveria qualquer pagamento dos três primeiros itens, entendendo-se que, os 2% referidos já englobariam os três primeiros itens (resposta ao quesito 6.º da base instrutória).

12. Na reunião havida nas instalações da Autora, a 9 de Outubro de 2009, na qual estiveram presentes C..., como representante da ré, a esposa do falecido Gerente da Autora – Eng. E...– e o Eng. F..., ficou assente entre as partes que os Planos de Trabalho seriam pagos à razão de € 200,00 cada um e os Planos de Segurança e Saúde Desenvolvidos e os Mapas de Avaliação de Riscos à razão de € 500,00 cada um (resposta ao quesito 4.º da base instrutória).

13. Entre a autora (por si e por mandatário) e a ré, foi trocada a correspondência de fls. 19 a 50, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido (al. D).

14. Enquanto o Eng. F... foi vivo as relações entre Autora e Ré nunca tiveram qualquer problema com a facturação (Facto Assente E).

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Fundamentação de direito

Conforme resulta do teor das conclusões, a procedência da pretensão recursiva da ré apelante em muito assentava na modificação da matéria de facto o que, como vimos, não lhe foi concedido.

Não está em causa a qualificação jurídica dos acordos celebrados entre autora e ré como contratos de prestação de serviços, à luz da definição contida no artigo 1154º do Código Civil[6], nem tão pouco o seu carácter oneroso que, de resto, sempre seria de presumir (cf. art.º 1158.º, n.º 1 “in fine”, aplicável ex vi da remissão do art.º 1156.º).

Do tipo negocial em causa resultam, tal como justamente se assinala na sentença proferida, obrigações para ambas as partes: para uma a obrigação de prestar o serviço, assegurando um resultado material, para a outra, a obrigação de pagar o preço.

A autora veio a juízo reclamar da ré o pagamento dos serviços prestados. Não questionando a demandada os discriminados nas facturas nºs 214, 216, 218 e 233, nem o preço fixado, sendo portanto inquestionável a condenação no respectivo pagamento.

No que concerne às demais facturas, atendendo à factualidade apurada, bem andou a Mm.ª juíza quando considerou, no respeitante à factura n.º 221, ser devido o acompanhamento da obra até ao 4.º auto de medição, inclusive, no montante de €145.532,65, sendo devida a remuneração acordado, correspondente a 2% daquele valor o que perfaz, incluindo o IVA à taxa em vigor à data, o montante global de €3. 492,78.

No que às igualmente impugnadas facturas n.ºs 222, 230 diz respeito, esta com a rectificação admitida pela própria autora quanto ao número de planos elaborado, 231 e 232, tendo-se a autora desincumbido do ónus da prova que sobre si recaía, logrando demonstrar ter prestado os serviços facturados, são os mesmos naturalmente devidos.

Finalmente, e quanto ao preço a cobrar pela autora, considerando a factualidade apurada nos autos, bem andou igualmente a Mm.ª juíza ao considerar aplicáveis os preços antes acordados entre as partes. Com efeito, apesar das facturas com os n.ºs 230 e 231 terem sido ambas emitidas a 4 de Novembro de 2009, a verdade é que, no que respeita à primeira, conforme dela consta, estão em causa planos de trabalho realizados entre Agosto e Outubro, ou seja, parte deles, senão todos, foram adjudicados e elaborados em data anterior à reunião a que se alude em 12. dos factos assentes, na qual foram acordados novos preços. Deste modo, recaindo sobre a autora o ónus de provar que em relação a tais serviços vigorava já a nova tabela, ónus que incumpriu, é devido o preço anteriormente praticado, outro tanto valendo para os planos de segurança a que se reporta a factura n.º 231.

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iii. do início da contagem dos juros

Assim apurado o montante em dívida reportado a cada uma das facturas, foi a ré condenada no pagamento de juros desde a data de vencimento de cada uma delas, considerando-se ter ocorrido 30 dias depois da data da emissão, ponto em relação ao qual veio igualmente manifestar o seu inconformismo porquanto, alega, aceitou as facturas n.ºs 214, 216, 218 e 233, tendo posto em causa os valores e os serviços facturados no que se refere às facturas n.ºs 221, 222, 230, 231 e 232, as quais não poderiam ser pagas enquanto não fossem rectificadas.

Vejamos da razão que lhe assiste (ou não).

Nos termos do disposto no art.º 804.º, a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os prejuízos causados ao credor, considerando-se constituído em mora o devedor quando a prestação, ainda possível, não foi, por causa que lhe seja imputável, efectuada no tempo devido (cf. n.ºs 1 e 2 do preceito).

Nas obrigações pecuniárias, a indemnização moratória encontra-se fixada a forfait pelo legislador, correspondendo aos juros legais contados do dia da constituição em mora (cf. nºs 1 e 2 do art.º 806.º).

Finalmente, consoante dispõe o art.º 895.º n.º 2, al. a), o devedor constitui-se em mora, independentemente de interpelação, quando a obrigação tiver prazo [certo].

Retornando ao caso dos autos, não questionando a ré no âmbito do recurso que a obrigação de pagamento se vencia no prazo de 30 dias contado da data da emissão de cada uma das facturas, tratando-se portanto de obrigação com prazo, não tendo comprovadamente pago o preço, constituiu-se em mora no 31.º dia. Tal conclusão, óbvia quando se considere as facturas não impugnadas -a ré, tal como diz, reconheceu a dívida mas nem por isso pagou, tendo-se por isso constituído em mora- vale igualmente para as restantes.

Com efeito, a despeito da autora não ter logrado demonstrar ser credora da totalidade dos valores facturados, nem por isso estamos perante um crédito ilíquido, insusceptível portanto de gerar o direito do credor à indemnização moratória (cf. n.º 3 do art.º 805.º), como parece entender a apelante. É que este preceito “deve ser interpretado no sentido de que o crédito só é ilíquido quando, à data em que deve ser efectuado o pagamento, não for possível proceder à sua liquidação, ou seja, saber qual a quantia em dívida” sendo que “…para que o crédito se considere ilíquido não basta que o devedor impugne a obrigação de pagar ou alegue que a quantia pedida não é (total ou parcialmente) devida[7].

No caso em apreço a apelada reclamou determinadas quantias, devidas por força dos contratos celebrados entre as partes, e não é a circunstância de ter peticionado, em relação a alguns dos contratos de prestação de serviços firmados com a recorrente, preço superior ao que se provou ser devido, que acarreta a iliquidez da obrigação, exonerando a apelante do pagamento dos juros de mora, e isto porque nada obstava a que esta efectuasse -ou pelo menos oferecesse- o pagamento do preço que tinha como correcto, sem que para tal fosse em absoluto necessário que a demandante procedesse à rectificação das facturas ou à emissão de uma nota de crédito.[8]

Não sendo assim suficiente para afastar a mora a mera circunstância de ser controvertido o valor da prestação, por divergirem as partes, como ocorreu no caso sub judice, quanto à verificação de determinados factos e desacordo quanto ao preço, ainda que a obrigação tenha sido fixada em valor inferior ao peticionado, são devidos os juros moratórios sobre as quantias em que a apelante foi condenada, dado que se constituíra em mora, improcedendo esta derradeira via de ataque à decisão apelada.

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III Decisão

Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença apelada.

Custas a cargo da ré apelante.

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida


[1] Manuel de Andrade, “Noções elementares de processo civil” vol. I, pág. 74 apud Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. II, pág 7.
[2] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. I, 2.ª ed., revista e ampliada, pág. 262.
[3] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. II, pág. 251.
[4] Manuel de Andrade, ob. cit., 2.ª ed., pág. 79.
[5] Assim conclui o Prof.  A. Castro, ob. cit., págs. 253 a 255, maxime, pág. 254.
[6] Diploma legal a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[7] Assim, o aresto da Relação de Lisboa de 6/12/2011, processo n.º 7303/06.9 TBALM.L1, acessível em www.dgsi.pt
[8] Neste preciso sentido, e aqui seguido de muito perto, dada a identidade de argumentação das apelantes num e noutro casos, o aresto desta mesma Relação de 23/10/2012, processo n.º 2073/10.9T2AVR.C1, no qual a ora relatora interveio como 1.ª adjunta, acessível no identificado sítio.