Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4505/21.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: PROVIDÊNCIAS CAUTELARES NÃO ESPECIFICADAS
DIREITO DE PROPRIEDADE
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 362.º, N.º 1, DO CPC E ARTIGOS 410.º E 879.º, ALÍNEA A), AMBOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Em procedimento cautelar não especificado tendente à defesa do direito de propriedade sobre um veículo automóvel cabe requerente o ónus de provar sumariamente a existência desse direito e o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do mesmo.

II - Juntando a requerente, para comprovar a aquisição do direito, um contrato escrito, intitulado «contrato de compra e venda de viatura usada», mas cujo clausulado se refere, invariavelmente, a «prometer vender» e a «prometer comprar» o veículo, ocorrendo a venda «após este acordo», prometida venda essa «ao segundo contratante, ou a quem por este for indicado», o que ocorre é um contrato-promessa de compra e venda, que não tem por efeito a transmissão do direito de propriedade.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                            ***    

I – Relatório

P...,  Unipessoal,  Lda.”, com os sinais dos autos,

intentou os presentes autos de procedimento cautelar não especificado (art.º 362.º do NCPCiv.) contra

1.ª - AA e

2.ª - “G..., S. A.”, ambas também com os sinais dos autos,

formulando os seguintes pedidos:

«a) Ser ordenado que a 1.ª Requerida se abstenha de praticar qualquer ato de transmissão ou oneração, ou qualquer outro, que possa prejudicar o direito de propriedade e posse da Requerente relativamente ao Veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca ..., modelo ... ..., com a matrícula ..-ZA-.., sob pena de legal cominação e consequências, o que se requer;

b) Ser ordenado que a 2.ª Requerida seja, igualmente, impedida de praticar qualquer ato que, da mesma forma, possa por em causa o direito de propriedade e posse da Requerente sobre o Veículo automóvel supra identificado e, bem assim, que seja obrigada a emitir nova Declaração de Circulação idêntica à primeira (cf. artigos 10.º e 41.º do presente Requerimento), pelo prazo de 60/90 dias, sucessivamente renovável até à obtenção de título para registo de propriedade;

c) Seja reconhecida a propriedade e posse legítima da Requerente sobre o Veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca ..., modelo ... ..., com a matrícula ..-ZA-.., em consequência do Contrato de Venda celebrado com a 2.ª Requerida, ou, quando assim se não entenda – o que só por hipótese de raciocínio se aceita –, atenta a boa fé demonstrada na sua aquisição, pelo menos a posse legítima, até que seja emitido documento necessário para levar ao registo, seja a Declaração emitida pela aqui 2.ª Requerida, seja através de Sentença Judicial;

d) Ser a ordenada a constituição da Requerente como fiel depositária do Veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca ..., modelo ... ..., com a matrícula ..-ZA-.., sendo autorizada a dela fazer o seu uso normal, justificando esta sua condição perante as Autoridades, até que seja possível a obtenção do título necessário ao registo de propriedade, seja através da Declaração emitida pela 2.ª Requerida, seja através da Sentença Judicial;

e) Ser ordenada a entrega imediata, pela 1.ª Requerida AA, à Requerente, de toda a documentação necessária para a promoção do registo de aquisição do Veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca ..., modelo ... ..., com a matrícula ..-ZA-.., nomeadamente, do Modelo de Venda devidamente assinado, e a não obstar ao registo de tal veículo a favor da mesma».

Posteriormente, requereu a correção da matrícula da viatura para “..-ZA-..”.

Alegou, para tanto ([1]):

- ter adquirido, mediante contrato de compra e venda, o veículo em causa à sociedade aqui 2.ª Requerida, vindo, posteriormente, a ter conhecimento de ser a 1.ª Requerida quem tem a seu favor o respetivo registo de propriedade, sendo certo que tal 2.ª Requerida transmitiu que o havia adquirido àquela;

- a sociedade 2.ª Requerida incumpriu o contrato de compra e venda, não tendo entregue à Requerente o “modelo de venda” do veículo;

- por sua vez, a 1.ª Requerida recusa-se a entregar à Requerente ou à 2.ª Requerida os documentos do veículo, nomeadamente, o “modelo de venda que esta ilegitimamente mantém em seu poder sem que goze de qualquer direito de retenção”;

- a atual situação do veículo permite – quanto ao periculum in mora – que a 1.ª Requerida dele possa dispor, onerando-o ou vendendo-o a terceiros, com os prejuízos daí decorrentes para a Requerente, podendo até ocorrer a indicação do veículo à penhora;

- a Requerente tem receio fundado de que a atuação da 1.ª Requerida possa prejudicar, de forma gravosa, os seus direitos sobre a viatura – em reunião havida no dia 23/11/2021, a 1.ª Requerida disse à Requerente ter contratado os serviços de um advogado para assegurar a defesa dos seus direitos, incluindo o de reaver a viatura por falta de pagamento;

- encontra-se, pois, a Requerente na situação de poder, de um momento para o outro, ver o seu direito de propriedade ameaçado por qualquer diligência levada a cabo por tal 1.ª Requerida, designadamente a apreensão do veículo (pelo qual pagou o preço final de € 150.000,00), com todos os prejuízos que tal situação determinaria;

- doutro modo, ocorreriam para a Requerente graves e irreparáveis prejuízos, que importa acautelar.

Por decisão liminar, proferida em 06/12/2021, foi julgado nos seguintes termos:

«Destarte, porque é manifesto que a pretensão da requerente não pode proceder e nos termos dos artigos 226º, nº 4, alínea b), e 590º, nº 1, do Código de Processo Civil, indefere-se liminarmente a presente providência cautelar.» (destaques aditados).

Inconformada com o assim decidido, recorre a Requerente, para o que apresenta alegação, onde formula as seguintes

Conclusões ([2]):

«1. A Recorrente P...,  Unipessoal,  Lda.  é única  dona  e  legítima  possuidora  e  proprietária   do  veículo  automóvel  ligeiro de passageiros, de marca ..., modelo ... ..., com a matrícula ..-ZA-.., o qual comprou à Recorrida G..., S. A.  — como documentalmente  provado  nos  Autos,  através  da junção do respectivo contrato de Compra e Venda outorgado em 25/08/2021.

2. A Recorrente ficou, desde aquela data, na posse efectiva do veiculo em causa, exercendo de forma plena o seu direito de propriedade, gozando e fruindo do aludido veículo, na medida  em  que  lhe  foi  entregue  pela  Vendedora e aqui Recorrida G..., S. A., uma Declaração de Circulação, por esta emitida, válida pelo prazo de 60 dias após a celebração do Contrato de Compra e Venda.

3. Até à presente data, e porque o  veículo se encontra ainda registado  a favor do anterior proprietário - a Recorrida AA, e não (como julgava a Recorrente) da Recorrida Sociedade Vendedora, que  o  havia comprado anteriormente à Recorrida AA -, não logrou a Recorrente obter a documentação  necessária ao registo de aquisição do veículo a seu favor, pelo que se encontra impedida de dispor do mesmo e, atenta a caducidade da Declaração de Circulação oportunamente emitida, está também impedida de circular com o aludido veículo na via pública.

4. Tendo em vista assegurar o efeito útil de uma eventual decisão judicial definitiva, que venha a reconhecer o seu direito de propriedade, em toda a sua plenitude, a Recorrente instaurou a presente Providência  Cautelar  onde  se requer que a Requerida AA – enquanto titular ainda inscrita no registo — seja condenada  a abster-se  da  prática de qualquer acto de transmissão ou oneração do veículo que possa pôr em causa o direito de propriedade ou a posse da Recorrente;  e que a Requerida G..., S. A seja condenada a  abster-se  da prática de qualquer acto que possa pôr em causa o direito de propriedade ou a posse da Recorrente, bem como a emitir nova Declaração de Circulação, válida (ou sucessivamente renovável) até à obtenção de titulo/documentação para que a Recorrente possa registar a viatura em causa a seu favor.

5. A providência cautelar requerida foi liminarmente indeferida, porquanto, no entender do Tribunal “a quo” – com o qual se discorda inteiramente –, através da factualidade alegada na Petição Inicial, não logrou a Requerente demonstrar a verificação do requisito essencial da existência de fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável dos direitos da Requerente, nem demonstrou, sem margem de dúvida, a “probabilidade séria da existência do direito” invocado.

6. O acervo probatório junto aos autos e os factos alegados – que a Requerente se propunha complementar através da audição da prova testemunhal –, impunham uma conclusão diferente. Sindicado o iter decisório percorrido pelo Tribunal “a quo”, entende a ora Recorrente poder facilmente chegar-se a uma conclusão totalmente oposta: a de que, neste caso, se encontram verificados todos os pressupostos/requisitos de que depende o deferimento da presente Providência Cautelar, razão pela qual se interpõe o presente Recurso.

7. Os procedimentos cautelares consubstanciam uma antecipação ou garantia de eficácia do resultado que se visa alcançar no processo principal e assentam numa análise sumária da situação de facto, devendo ser deferida se puder concluir-se, nesta análise sumária, pela provável existência do direito (fumus boni juris) e pela existência de um justo receio de que tal direito seja seriamente afectado ou inutilizado se não for decretada uma determinada medida cautelar (perruculum in mora).

8. A transferência da propriedade dá-se por mero efeito de contrato, ainda que celebrado verbalmente, sendo que o registo de aquisição não tem efeito constitutivo, pelo que está consolidado o direito de propriedade a favor da Recorrente (como estava a favor da Recorrida Sociedade) -  cf.  arts.  408.°,  n.° 1, e 1317.°, al. a), ambos do C.C.

9. No caso concreto, encontra-se demonstrada a existência do direito invocado pela Recorrente, mais concretamente, do direito  de  propriedade sobre o veículo supra-identificado, razão pela qual, perante a factualidade descrita, não poderia, rectius, não poderá deixar de ser reconhecida a efectiva lesão do seu direito, consubstanciada: no facto de não  lhe  ser  permitido registar a aquisição do veículo; de a Recorrente dele não poder dispor livremente, circulando na via pública de forma legal e legitima; de a impossibilidade de plena disposição do veículo, por parte da Recorrente, gerar assinaláveis e facilmente reconhecidos prejuízos para o proprietário do veículo, pois que se trata de um bem de desgaste, deterioração e desvalorização rápidas, como é consabido.

10. Pese embora a aparente natureza meramente patrimonial da lesão grave e irreparável que se invoca, certo é que, numa análise mais criteriosa, haverá que concluir que os mesmos merecem tutela cautelar. Na verdade, ainda que a Apelante obtenha “ganho de causa” numa acção comum, os “tempos da justiça” não se compadecem com o efectivo direito a acautelar, pois que, nessa hipótese, dificilmente a ora Requerente ver-se ressarcido dos prejuízos sofridos pelo facto de se ver, desde já, privado de usar e  usufruir  do  veículo adquirido.

11. Surge, assim, como essencial para o pleno exercício do direito de propriedade da Apelante que lhe sejam entregues, ainda que por decisão provisória, os documentos do veiculo adquirido, sendo-lhe, portanto, lícito exercer tal direito contra ambas as Recorridas, e designadamente contra a Recorrida AA, que não terá entregue à Recorrida Sociedade (a quem vendeu o veículo em causa - em conformidade, aliás, com todos os documentos juntos aos autos a tal propósito, onde se verifica a aludida transmissão), o Modelo de Venda, documento este que mantêm em seu poder, sem que goze de qualquer direito de retenção que legitime tal actuação (cf. artigos 606.° e 755.° do Código Civil).

12. O que se pretende acautelar através da presente Providência, é, acima de tudo, o direito de uso e fruição da viatura até à composição definitiva do litígio, uma vez que, por justo título, a recorrente adquiriu a propriedade do mesmo, daquela que legitimamente se apresentou como proprietária do mesmo, e, presentemente, se depara com uma clara e séria limitação de todos os seus direitos sobre o veículo em causa nos autos, incluindo o direito de disposição e fruição do mesmo, situação esta que, sem tutela cautelar se poderá protelar por longos meses ou mesmo anos, com o que isso implica para efeitos de irreparável deterioração e desvalorização de um veículo automóvel.

13. O “periculum in mora” a apreciar pelo Tribunal “a quo” - com  o  muito devido respeito por melhor opinião - não se resume  ao  que  se  refere  na sentença prolatada, e que se prende com o risco de satisfação de um eventual direito a indemnização por prejuízos sofridos, tendo antes um conteúdo muito distinto e mais abrangente,  na medida em que se reporta ao risco  de afectação grave e dificilmente reparável dos direitos inerentes à aquisição, uso e fruição e livre disposição do bem em causa, em todas as suas potencialidades.

14. Contrariamente ao entendimento perfilhado pelo Tribunal “a quo”, existem presentemente danos concretos e imediatos - materializados na impossibilidade de a Recorrente utilizar e circular livremente com o veículo em questão (violação concreta do seu direito de propriedade), com todos os prejuízos daí decorrentes, designadamente, além dos directamente inerentes à proibição do  seu   uso  e  livre  circulação,  a  irreversível   desvalorização  e do  mesmo, por tempo  indeterminado  - que reclamam por  uma  decisão provisória, que permita à Apelante o efectivo, imediato e pleno exercício do seu direito de propriedade, cuja existência se logrou demonstrar.

15. Na decisão em crise, não tomou o Tribunal “a quo” em consideração que, em concreto, actualmente e até ao trânsito em julgado de eventual decisão definitiva proferida em acção comum a instaurar, a Apelante se encontra impedida de utilizar o veiculo em questão, tendo de recorrer a um veículo alternativo para fazer face às suas necessidades - situação esta que se irá manter até decisão definitiva e transitada em julgado, que ponha termo ao presente litigio.

16. Acresce, ainda, que a atual situação registral do veículo, não reflectindo nem publicitando a verdade material, permite que a Recorrida AA possa dispor de um bem que já não lhe pertence, nomeadamente, onerando-o ou vendendo-o a terceiros, podendo ainda o mesmo ser penhorado ou objecto de apreensão judicial, com todos os prejuízos que tal situação implicaria para a Recorrente.

17. Sem prescindir, mais se dirá ainda que, com o devido respeito, o juízo explanado na douta sentença quanto à alegada falta de adequação à natureza de um procedimento cautelar inominado, dos pedidos formulados no Requerimento Inicial, nas alíneas c), d) e e), não tomou em consideração a possibilidade de, em sede de Providência Cautelar inominada, a decisão proferida poder consolidar-se como definitiva na composição  do  litígio,  nos termos do artigo 369.° do Código de Processo Civil. Assim, não poderia o Requerente, até por razões de maior celeridade e economia processual,  deixar de carrear para os Autos toda a matéria fãctica {e pedidos respectivos} que permitissem ao Tribunal formar uma convicção segura quanto à existência do direito  a  acautelar,  com  vista  à  justa  e  definitiva  composição  do  litígio,  caso tal viesse a ser requerido.

18. Nos termos da Legislação aplicável, até ao encerramento da Audiência, sempre a Requerente da providência Cautelar poderá requerer a Inversão do Contencioso, sendo que, para o efeito, bastará que na pendência do processo venham a ser demonstrados os requisitos necessários à formação de nina convicção segura acerca da existência dos direitos acautelados. In casu, e após Audição dos Requeridos, poderia a presente Providência vir a revelar-se como ajustada a realizar a composição definitiva do litígio.

19. A decisão proferida, e que por via do presente recurso se coloca em crise, não tomou, assim, em consideração a finalidade e a natureza da providência cautelar instaurada, bem como os princípios que regem em matéria da tutela dos direitos no âmbito das providências cautelares, fazendo assim uma errada aplicação da Lei, e designadamente do disposto nos artigos 369.°, 362.° e 379.° do Código de Processo Civil.

20. Os factos alegados e a prova carreada para os Autos impunham uma decisão diversa, pelo que deve a sentença proferida ser revogada e, em sua substituição, ser proferido despacho que admita a providência cautelar requerida e determine a tramitação subsequente, nos termos da Lei.

TERMOS EM QUE, DE ACORDO COM AS CONCLUSÕES ACIMA FORMULADAS, DEVE A DECISÃO RECORRIDA SER REVOGADA POR FAZER UMA ERRADA APLICAÇÃO DA LEI, DESIGNADAMENTE DO DISPOSTO NOS ARTS.  369.°,  362.° e 379.•,  DO C.P.C., E, BEM ASSIM, DOS ARTS.  408.º,  n.°  1,  e 1317.°,  al.  a), DO C.C.,  E,  EM SUA SUBSTITUIÇÃO,   SER PROFERIDA DECISÃO QUE ADMITA A PROVIDÊNCIA CAUTELAR REQUERIDA E DETERMINE A TRAMITAÇÃO SUBSEQUENTE, NOS TERMOS DA LEI, COMO É LEGAL E DE

JUSTIÇA!».

As Requeridas foram citadas para os termos da ação e do recurso, não tendo oferecido contra-alegação recursiva.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo da decisão, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime recursivo.

A Requerente veio requerer a junção de documentos de cariz probatório na fase recursiva, após admissão do recurso.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, está em causa na presente apelação, no essencial, saber se:

a) É admissível a junção de documentos na fase recursiva;

b) Os factos alegados permitem, ou não, concluir pelo preenchimento dos requisitos de decretamento do procedimento (a probabilidade séria da existência do direito e o fundado receio de que a atuação das Requeridas, antes da ação principal ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a esse direito).

III – Questão prévia

Da admissibilidade de junção de prova documental na fase de recurso

A Recorrente veio, em 19/01/2022, requerer a junção de documento, tratando-se de notificação, que lhe foi dirigida, para deduzir oposição a autos de procedimento cautelar, a correr termos no Juízo Central Cível ..., que lhe é movido por AA (a aqui 1.ª Requerida), com referência ao mesmo veículo automóvel, notificação essa que incorpora o contrato escrito celebrado entre as aqui 1.ª e 2.ª Requeridas (cfr. fls. 75 e segs. do processo físico).

Refere, neste âmbito, a Requerente/Apelante que se trata da «junção do Contrato de Compra e Venda outorgado entre ambas as Requeridas, o que só agora lhe foi dado a conhecer», tratando-se, a seu ver, de documento com inquestionável relevância, sendo a junção de admitir, pois era impossível a apresentação do documento em data anterior.

Ora, importa dizer – apreciando – que cabia à Recorrente, por isso, não só requerer a junção, como ainda justificar/demonstrar a admissibilidade/tempestividade e a pertinência/necessidade dessa junção na fase recursiva.

Tal Recorrente pretende que se admita a junção de documento ao abrigo do disposto no art.º 651.º, n.º 1, do NCPCiv., para o que logra demonstrar que a junção não lhe era possível anteriormente.

Com efeito, quanto à tempestividade da junção, ocorre demonstração da impossibilidade de apresentação em momento anterior, para além da necessidade da junção em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância (art.ºs 425.º e 651.º, n.º 1, ambos do NCPCiv.), posto, desde logo, o expediente notificatório em causa ter data de elaboração de 28/12/2021 (cfr. fls. 77 do processo físico), quando é sabido que os presentes autos foram instaurados em 02/12/2021 (vide fls. 01 e segs. do processo físico).

Já quanto à relevância do documento, também haverá de concordar-se que se trata de prova com interesse para a boa decisão da causa, já que o dito expediente notificatório contempla o contrato celebrado entre as Requeridas com referência à viatura aqui discutida.

Como é consabido, a junção de documentos na fase de recurso é excecional (art.º 651.º do NCPCiv.), pois que a junção de prova documental “deve ocorrer preferencialmente na 1.ª instância, regime que se compreende na medida em que os documentos visam demonstrar certos factos, antes de o tribunal proceder à sua integração jurídica” ([3]).

        Assim, é admissível a junção em sede de recurso quando a apresentação dos documentos não tenha sido possível até então ou quando a junção apenas se tenha revelado necessária por força do julgamento proferido, “maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo”, sendo de recusar a junção “para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado” ([4]).

Demonstrando-se, pois, no caso dos autos, a tempestividade da junção, tal como a respetiva relevância/pertinência probatória, resta concluir pela admissibilidade da documentação apresentada, impondo-se a sua aquisição para os autos, com ponderação no quadro recursivo.

        Pelo exposto, e decidindo, admite-se a requerida junção de documento pela Recorrente.

IV – Fundamentação

          A) Materialidade fáctica a considerar

A materialidade fáctica a considerar é a que consta do antecedente relatório, cujo teor aqui se dá por reproduzido, a que se acrescenta ainda o seguinte factualismo ([5]):

1. - Com data de 25/08/2021, a Requerida sociedade (como primeiro contratante) e a aqui Requerente (como segundo contratante) celebraram entre si contrato escrito, intitulado “Contrato de compra e venda de viatura usada”, referente ao veículo em discussão nos autos, constando do respetivo clausulado (para além do mais):

«Cláusula 1.ª

O Primeiro Contratante promete vender ao Segundo Contratante, ou a quem por este for indicado, e o Segundo Contratante promete comprar o veículo atrás identificado.

Cláusula 2.ª

a) Após este acordo, o Primeiro Contratante vende ao Segundo Contratante a viatura indicada (…) pelo valor de 150.000,00 € (…)»;

2. - Com data aposta de 01/08/2021, a Requerida sociedade (como primeiro contratante) e a aqui 1.ª Requerida (como segundo contratante) celebraram entre si contrato escrito, intitulado “Contrato de compra e venda de viatura usada”, referente ao veículo em discussão nos autos, constando do respetivo clausulado (para além do mais):

«Cláusula 1.ª

O Primeiro Contratante promete comprar ao Segundo Contratante, ou a quem por este for indicado, e o Segundo Contratante promete vender o veículo atrás identificado.

Cláusula 2.ª

a) Após este acordo, o Primeiro Contratante compra ao Segundo Contratante a viatura indicada (…) pelo valor de 145.000,00 € (…)»;

3. - O referido veículo tem registo vigente de aquisição a favor da 1.ª Requerida.

          B) Substância jurídica do recurso

1. - Da existência do invocado direito

Começa a Apelante por esgrimir, inconformada, neste âmbito ([6]), que, tendo pago o preço convencionado e tendo-lhe sido entregue o veículo, lhe assiste o direito de propriedade – adquirido por via de contrato de compra e venda à 2.ª Requerida (sociedade) – e a inerente posse, muito embora o veículo se encontrasse registado (e ainda assim se encontre) em nome da 1.ª Requerida (AA).

É nesta base que a Requerente/Apelante estrutura toda a sua pretensão, seja no quadro da petição do procedimento cautelar, seja no do recurso (cfr. art.ºs 22.º e segs. da petição e conclusões recursivas 1.ª a 4.ª).

Porém, junto o clausulado de ambos os contratos celebrados, importa, antes de mais, analisar esses contratos escritos em profundidade, de modo a apurar se efetivamente pode concluir-se no sentido da aquisição, por força dos mesmos, do direito de propriedade – e da correspondente posse (efetiva e em nome próprio) – por parte da ora Requerente/Apelante.

Assim, é certo – como visto – que ambos os contratos, na sua cláusula 1.ª (cfr. fls. 15 v.º e seg. e 88 e seg. do processo físico), se referem, quanto ao efetivamente declarado pelos contraentes, a «promete vender» e «promete comprar» (fls. 15 v.º) ou «promete comprar» e «promete vender» (fls. 88).

Prometida transmissão essa (mediante subsequente contrato de compra e venda) ao/do outro contraente, «ou a quem por este for indicado» (fls. 15 v.º e 88), deixando claramente em aberto que a ulterior transmissão (contrato definitivo) poderia ser a terceiro, desde que indicado pela parte com essa prerrogativa contratual. O que nos remete, em termos de qualificação jurídica dos dois contratos ([7]), para uma declaração de prometer transmitir, isto é, uma promessa de compra e venda.

E, se dúvidas ainda houvesse, a cláusula 2.ª, al.ª a), em ambos os contratos, com clausulado algo semelhante, alude a «Após este contrato, o Primeiro Contratante vende ao Segundo Contratante a viatura (…)» (fls. 15 v.º, com itálico aditado) ou «Após este contrato, o Primeiro Contratante compra ao Segundo Contratante a viatura (…)» (fls. 88 v.º, com destaque aditado).

Isto é, a locução «após» logo nos remete para momento posterior, não se declarando que por força deste contrato (ou por via/efeito dele ou através dele) fica efetuada/realizada/consumada a venda [no imediato, como é caraterístico do contrato de compra e venda, atento o disposto no art.º 879.º, al.ª a), do CCiv.].

Ao invés, alude-se à compra e venda posterior (o contrato definitivo).

Em suma, o declarado no clausulado contratual, em ambos os contratos – aliás, com elaboração de clausulado algo semelhante –, é no sentido de uma promessa de compra e venda, um contrato-promessa, e não uma compra e venda propriamente dita (esta ainda sem consumação).

Trata-se, pois, nesta perspetiva, de uma promessa de contrato definitivo e não o próprio contrato definitivo, uma promessa de compra e venda e não ainda a compra e venda, embora – de forma algo inconsistente, incoerente ou, porventura, eventualmente enganosa – se tenha mencionado, invariavelmente, no cabeçalho do texto contratual, reduzido a escrito (não meramente verbal), «Contrato de compra e venda de viatura usada».

Porém, é sabido que a qualificação que as partes dão ao contrato não vincula o Tribunal, o qual, em matéria de direito, na sua consabida liberdade de conformação, não está sujeito às qualificações das partes (nem aos nomes/títulos por elas atribuídos), seja na designação atribuída ao contrato ([8]), seja na demais qualificação jurídica dos factos e aplicação das normas de direito (cfr. art.º 5.º, n.º 3, do NCPCiv.).

Assim sendo, tudo indica, em sede interpretativa e qualificativa, que de dois contratos-promessa se trata, e assim se conclui, adotando esta perspetiva analítica, nesta Relação ([9]), sendo que, por outro lado, o registo da propriedade do veículo permanece – como a aqui Requerente reconhece – a favor da Requerida AA.

Ora, são conhecidos os efeitos do comum contrato-promessa (sem eficácia real, não atribuída in casu), mesmo que com traditio ([10]), à luz do disposto nos art.ºs 410.º e segs. do CCiv..

Assim, é sabido que no «nosso ordenamento jurídico-civil vigora o princípio da liberdade contratual, termos em que as partes nos contratos têm, dentro dos limites legais, a faculdade, não só de fixar livremente o conteúdo dos contratos que celebram, como de neles incluir as clausulas que lhes aprouver – art.º 405.º, n.º 1, do Código Civil (doravante CCiv.).

E, nos termos do disposto no art.º 406.º, n.º 1, do CCiv., tais contratos devem ser pontualmente cumpridos, nos precisos termos acordados, só podendo ser modificados ou extintos por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.

O contrato promessa, que pode ser bilateral ou unilateral, consiste numa convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato com outrem.

No dizer de Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 376], tal contrato “... cria a obrigação de contratar, isto é, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido. Trata-se de uma obrigação de prestação de facto positivo”» ([11]).

É um contrato preliminar ou, nessa medida, provisório/instrumental, por funcionalizado ao projetado contrato definitivo.

Por outro lado, o contrato é bilateral se ambos os contraentes se obrigam à celebração do contrato prometido, sendo unilateral se apenas um de tais contraentes se obriga a tal. No caso, trata-se de promessas bilaterais.

Ao contrato-promessa são aplicáveis as disposições legais referentes ao contrato prometido, excetuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa (art.º 410.º, n.º 1, do CCiv.).

É, pois, muito duvidoso que tenha sido transmitida a posse efetiva (apesar da ocorrida entrega do veículo, por parte da sociedade Requerida), podendo haver uma mera detenção, uma situação precária, por a posse ser exercida em nome de outrem, tanto mais que a Requerente nem consegue, legalmente, circular com o veículo, cujo registo permanece a favor de Requerida AA, que não disponibiliza os documentos pretendidos pela Requerente (para poder registar e circular).

Com efeito, é pacífico que, em regra, o contrato-promessa não é, por si só, suscetível de transferir a posse ao promitente-comprador, que a exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste – sendo, por conseguinte, mero detentor ou possuidor precário ([12]).

E, se é assim quanto à posse, óbvio resulta que também não transmite, de modo nenhum, o direito de propriedade, o qual só pode ser transmitido através do contrato-prometido [no caso, de compra e venda, de acordo com o disposto no art.º 879.º, al.ª a), do CCiv.].

Em nada resulta, pois, que tivesse sido transmitido o direito de propriedade, desde logo da Requerida AA para a Requerida sociedade, posto mostrar-se que, em vez de uma compra e venda (com efeito translativo da propriedade), apenas foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda, o qual não é suscetível de transmitir o direito dominial, o que só pode ocorrer através do contrato definitivo/prometido (só este tendo efeito translativo do domínio).

Âmbito em que a aqui Requerida sociedade não dispunha, assim sendo, do direito de propriedade, o qual, por isso, também não poderia transmitir ([13]).

Mas também o contrato celebrado com a aqui Requerente, embora “rotulado” de «compra e venda», não passou de uma promessa de compra e venda, já que as partes, em vez de declarar vender e declarar comprar, declararam prometer vender e prometer comprar (e até poderia ser a outrem que viesse a ser indicado pelo dito “segundo contraente”).

Não se demonstra, pois, mesmo em termos sumários, a existência do invocado direito de propriedade, em que se fundava toda a argumentação e pretensão da Requerente ([14]).

Com o que soçobram as conclusões da Apelante em contrário, designadamente a conclusão 8.ª, onde se refere que a transferência de propriedade se dá por mero efeito do contrato, ainda que meramente verbal, quando in casu temos contrato escrito (não verbal) e alusivo, não à compra e venda (a que permitiria a transmissão do direito de propriedade), mas a uma simples promessa bilateral de compra e venda (uma promessa de contrato, que apenas obriga a celebrar o contrato prometido, logo, sem transferência de direitos reais).

E se o registo de aquisição – a favor da Requerida AA – não tem efeito constitutivo, também é líquido que fundamenta presunção de que o direito (dominial) existe e pertence ao titular inscrito – consabida presunção legal de propriedade (cfr. art.ºs 349.º e 350.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CCiv.), resultante do registo definitivo de aquisição ([15]).

Logo por isso, o procedimento não poderia proceder, tendo em conta os moldes e fundamentos em que deduzido e os pedidos formulados.

Mas, ainda assim, vejamos o outro pressuposto de decretamento do procedimento cautelar.

2. - Do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável

A Apelante, sempre inconformada, se invoca um receio de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, liga-o exclusivamente à possibilidade de perda ou oneração do veículo – a 1.ª Requerida, que tem o registo a seu favor, poder vendê-lo a terceiros ou onerá-lo, com a possibilidade de o veículo ser apreendido e, por isso, a Requerente ter de abrir mão dele.

Já nas conclusões de recurso foca-se mais na impossibilidade de registo da aquisição e de circulação com a viatura e decorrente prejuízo quanto aos poderes de uso/fruição do bem (cfr. conclusões 9.ª e 12.ª a 14.ª).

Ora, estes prejuízos decorrentes da imobilização da viatura, com a consequente impossibilidade de uso/circulação e desvalorização do bem, são precisamente daquele tipo que pode ser indemnizado.

Isto é – e como salientado na decisão em crise –, traduzem-se em «danos materiais (…) passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva», não permitindo concluir que a lesão seja «de difícil reparação», designadamente pela via indemnizatória.

Assim, o direito pretendido pela Requerente – que já se viu não poder ser o invocado direito de propriedade, que não se transmite/adquire mediante contrato-promessa –, enquanto lesada/prejudicada, numa tal hipótese, não se perderia sem remédio.

Com efeito, a ocorrer dano (por via de facto ilícito e culposo da contraparte no contrato celebrado), sempre teria o direito a ser indemnizada de todos os prejuízos sofridos.

E era aqui que a Requerente teria de mostrar que, mesmo nesta hipótese – direito indemnizatório –, continuava a ocorrer o receio de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, designadamente por a dita contraparte (promitente-vendedora) não dispor de património que permitisse pagar a indemnização ou estar a praticar atos de dissipação patrimonial com vista a, se condenada, não dispor de meios para pagar, levando à inutilidade de uma condenação na ação principal e ao insucesso de uma eventual ulterior execução patrimonial (para pagamento da indemnização).

Porém, nada disto foi alegado, nem é suscitado na peça recursiva, por a pretensão da Requerente se direcionar, ab initio, para a aquisição do direito de propriedade do veículo.

Assim, ainda que haja o invocado risco de alienação ou oneração da viatura, não resulta que seja a Requerente a respetiva proprietária, nem que haja receio fundado de aquela não poder ser ressarcida, pelo(s) lesante(s), de todos os danos sofridos.

Reforça-se que, afastado o invocado direito de propriedade, em que se estruturava o procedimento cautelar, afastado sempre teria de resultar também, por consequência, o invocado receio de lesão grave e dificilmente reparável quanto a tal direito e aos poderes do mesmo resultantes para o proprietário.

Em suma – e com todo o respeito devido –, não podem proceder as conclusões da Apelante em contrário, devendo manter-se a decisão recorrida.

                                       ***

(…).

                                       ***
VI – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, com manutenção da decisão recorrida.

Custas da apelação pela parte recorrente.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 05/04/2022

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro



([1]) Segue-se, por economia de meios, o resumo constante do relatório da decisão recorrida.
([2]) Que se deixam reproduzidas, com destaques retirados.
([3]) Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 184.
([4]) Vide Abrantes Geraldes, op. cit., ps. 184 e seg..
([5]) Com base nos documentos juntos pela Requerente a fls. 14 v.º a 16 v.º e 87 a 89 do processo físico (contratos celebrados).
([6]) De notar que, quanto ao direito invocado, não houve, se bem se interpreta, uma pronúncia (expressa/perentória) no sentido da sua inexistência, mas a formulação de uma dúvida. Com efeito, o Tribunal a quo explanou assim, na sua fundamentação: «No concreto caso, perante o acima sumariado e mais desenvolvidamente exposto no requerimento inicial, começa por se revelar duvidoso que os factos alegados pela requerente – se provados indiciariamente – permitam concluir pela probabilidade séria da existência dos seus direitos, uma vez que, por um lado, no que respeita ao seu invocado direito de propriedade, a vendedora do bem – aqui 2ª requerida – poderia não ter na sua esfera jurídica o poder de o alinear e, por outro lado, dado pretender dirigir as suas pretensões perante uma terceira em relação ao contrato de compra e venda – a aqui 1ª requerida –, que, assim sendo, não é pelo mesmo vinculada – cf. artigo 406º, nº2, do Código Civil -, sem que se vislumbre que, na ausência de responsabilidade civil contratual, seja invocada, em relação a ela, qualquer fonte de responsabilidade civil extracontratual (nomeadamente, qualquer comportamento ilícito e culposo suscetível de prejudicar a requerente).».
([7]) Cfr., sobre a problemática da interpretação dos dados contratuais, para o efeito da qualificação jurídica do contrato, por todos, o recente Ac. STJ de 20/01/2022, Proc. 2655/19.3T8FAR.E1.S1 (Cons. Nuno Pinto Oliveira), em www.dgsi.pt.
([8]) Pense-se, a título de exemplo, num contrato que as partes intitulassem de “doação” (negócio gratuito), mas cujo clausulado se reportasse, diversamente, a uma  compra e venda (contrato oneroso), com cláusula referente ao preço a pagar e ao prazo de pagamento. Num tal caso, teria de desconsiderar-se a qualificação das partes como doação e aplicar ao contrato o regime legal da compra e venda, com os inerentes efeitos jurídicos.
([9]) A tal não obsta a traditio ocorrida, que é consabidamente compatível com o contrato-promessa, nem o invocado pagamento integral do preço (no caso do contrato em que se vinculou a aqui Requerente/Recorrente, o mesmo parecendo não ter ocorrido, ante os elementos documentais disponibilizados por esta nos autos, quanto ao outro contrato, o celebrado entre as Requeridas), posto ser possível, no âmbito do contrato-promessa, a fixação, ou não, de sinal, e a estipulação do prazo para pagamento do preço do contrato prometido, deixando às partes a liberdade para, querendo, clausularem o pagamento da totalidade do preço aquando da celebração do contrato-promessa, tal como podem, diversamente (o que será mais comum perante valores especialmente elevados), estabelecer prazos para pagamento faseado desse montante do preço convencionado. A antecipação, de algum modo, de efeitos correspondentes ao contrato prometido, com entrega da coisa e, simultaneamente, entrega da totalidade do valor do preço convencionado, não retira ao contrato a natureza de contrato-promessa, bem se compreendendo que, no caso de promessa de compra e venda de um veículo automóvel (pela sua mobilidade e possibilidade de descaminho/ocultação/perecimento), à entrega imediata da viatura corresponda a disponibilização da totalidade do preço acordado para a respetiva compra e venda. Todavia, é sabido que, no caso, o veículo continuou – e assim subsiste – registado a favor da Requerida Lélia, que não disponibilizou a totalidade dos respetivos documentos, mormente a documentação necessária para a viatura poder continuar a circular e para novo registo de aquisição, o que bem se compatibiliza com a vontade de (apenas) prometer vender, sem consumação ainda da venda (especialmente se não recebeu o quantum do preço convencionado). E nem a compra e venda (contrato definitivo) seria compatível com uma cláusula que estabelecesse a alternativa da venda – futura – ao outro contraente ou a quem por este fosse indicado (um terceiro). É que a compra e venda de coisa determinada implica a imediata transmissão da propriedade para o outro contraente, por mero efeito (automático) do contrato, termos em que a possibilidade de a venda ser realizada, não ao outro contraente, mas a terceiro por este indicado, só com o contrato-promessa se compatibiliza (por ser preliminar/instrumental), conflituando manifestamente com a disciplina jurídica do contrato de compra e venda (de tal coisa determinada), pelo caráter definitivo deste e pelos efeitos transmissivos imediatos que comporta, revestindo-se de “natureza real, e não apenas obrigacional” (cfr. art.ºs 874.º e 879.º, ambos do CCiv. e, na doutrina, por todos, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1986, ps. 165 e segs. e 173).
([10]) Como defendido no Ac. TRP de 15/12/2021, Proc. 6903/13.5TBVNG-B.P2 (Rel. Rodrigues Pires), em www.dgsi.pt, a entrega ou tradição da coisa pressupõe a detenção material, não sendo necessária uma posse em nome próprio.
([11]) Cfr., inter alia, o Ac. TRL de 23/04/2015, Proc. 3311/10.3TBBRR.L2-6 (Rel. Vítor Amaral), em www.dgsi.pt.
([12]) V., entre outros, o Ac. STJ de 18/10/2012, Proc. 5978/08.3TBMTS.P1.S1 (Cons. Tavares de Paiva), também em www.dgsi.pt.
([13]) É sabido que, no quadro da aquisição derivada, ninguém pode validamente transmitir mais do que aquilo que tem (regra nemo plus juris in alium transferre potest quam ipse habet).
([14]) E nem sequer uma verdadeira posse (exercida em nome próprio), em vez de uma simples posse precária, uma mera detenção ou posse em nome de outrem.
([15]) Cfr., inter alia, o Ac. STJ de 16/06/1983, BMJ, 328.º - 546, citado por Abílio Neto, em Código Civil Anot., 6.ª ed., Livraria Petrony, Lisboa, 1987, p. 771, e, na lei, o disposto no art.º 7.º do CRPred., aplicável também no âmbito do registo automóvel.