Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3979/17.08LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
INCUMPRIMENTO
IMPOSSIBILIDADE OBJECTIVA
Data do Acordão: 04/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.790, 795, 1227 CC
Sumário: 1.- A impossibilidade objectiva da prestação, como causa de extinção da obrigação ( art.790 CC), pressupõe uma impossibilidade superveniente, efectiva, absoluta e definitiva, total ou parcial, não bastando o agravamento da prestação.

2.- A circunstância da impossibilidade económica tornar a prestação excessivamente difícil ou onerosa não significa que se esteja perante uma impossibilidade absoluta.

3.- Numa situação de impossibilidade objectiva de um contrato de empreitada, havendo começo de execução, o dono da obra é obrigado a indemnizar o empreiteiro do trabalho executado e das despesas realizadas, como corolário da regra de repartição do risco.

4.- Reclamando a autora o preço do fornecimento de bens à ré, que se destinavam a ser por esta aplicados no âmbito de um contrato de empreitada ( construção de casas pré-fabricadas) celebrado entre a ré ( empreiteira) e a Republica Bolivariana da Venezuela ( comitente ) e provando se que a ré solicitou à autora a suspensão dos fornecimentos com fundamento da interrupção da empreitada por parte da Republica Bolivariana da Venezuela em virtude da grave crise política e económica daquele país, tal não traduz uma impossibilidade objectiva de cumprimento, porque, desde logo, não se mostra demonstrado que se verifica uma impossibilidade definitiva de realização da obra em causa, nada indicando que não possa ser realizada mais tarde, nem que não possa ser realizada pela própria ré ou por um terceiro.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

“P (…), SA”, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra “L (…), S.A., já ambas identificadas nos autos, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 125.187,10 €, acrescida de juros vencidos, no valor de 7.302,58 €, à taxa de 7%, ao ano, desde a data da interpelação, ocorrida em 06/12/2016, até à propositura da acção e dos vincendos, à taxa comercial em vigor, até efectiva e integral liquidação.

Alega, para tanto, que a ré lhe encomendou portas, aros e acessórios, para uma obra que tomou de empreitada, na Venezuela, cujo dono da obra era o Governo Bolivariano da Venezuela.

No seguimento do que, em seis fases, a ré encomendou à autora o fornecimento de várias portas, para a dita empreitada, nas quantidades e especificações melhor referenciadas na petição inicial, alegando ter executado e fornecido à ré, integralmente, as encomendas correspondentes às fases I, II, III, IV e VII.

Mais alega que adquiriu diversas matérias-primas e chapa necessária à execução e fornecimento das fases V e VI, tendo iniciado a produção das encomendas correspondentes a essas fases do contrato, designadamente, 5.000 portas, 5.000 aros e diversos componentes e acessórios, da fase V, tendo entregue 5.000 aros e 3.450 portas e respectivos componentes, ficando em linha de produção, relativamente à fase V, com chapa já cortada à medida e de acordo com a encomenda, 1.550 portas.

Quanto à fase VI, iniciou a produção de 5.000 portas, 5.000 aros e respectivos componentes e acessórios, tendo produzido e entregue os 5.000 aros e ficando em linha de produção com chapa já cortada à medida e de acordo com a encomenda, 5.000 portas e respectivos acessórios e componentes.

Relativamente às fases V e VI, a autora, ficou com um total de 6.550 portas e respectivos acessórios em linha de produção que, uma vez concluídas, teriam o valor global de 236.359,50 €.

Não as tendo concluído, porque a ré, verbalmente, em Agosto de 2015, pediu a suspensão da execução das mesmas, alegando como razão a interrupção da empreitada na Venezuela, em virtude da crise que assolou tal país.

Mais alega que a ré lhe ficou a dever a quantia de 76.166,28 €, de portas e acessórios fornecidos, materiais que, dadas as especificidades da empreitada a que respeitam, não têm utilização para qualquer outro cliente.

Relativamente às fases V e VI, a ré adiantou à autora a quantia de 82.506,32 €.

Quantifica as matérias-primas adquiridas para a produção da encomenda feita pela ré, que estão na sua posse, sem possibilidade de utilização ou retoma, no valor de 131.527,14 €.

Como os fornecimentos não foram retomados, a autora optou por rescindir o contrato celebrado com a ré, não obstante, a ré nada pagou, apesar de reconhecer a dívida.

Contestando, a ré, aceita a existência e contornos do alegado contrato com a autora, referindo que a suspensão da empreitada na Venezuela, ocorrida em Novembro de 2016, foi motivada pelas conhecidas convulsões sociais e políticas ali ocorridas, o que configura, no seu entender, uma impossibilidade objectiva de execução da referida empreitada, extintiva das relações obrigacionais assumidas para com a autora.

No entanto, impugna que a autora tenha iniciado a produção das portas para as fases V e VI, bem como os invocados prejuízos, por não ter chegado a adquirir a matéria-prima para estas fases.

De todo o modo, por força da cláusula 8.ª, n.º 2 e 4, a autora apenas teria direito a ser ressarcida do material já transformado, o que não chegou a acontecer, no que se refere às fases V e VI.

Reconvindo, pede a condenação da autora no pagamento da quantia de 8.236,23 € e respectivos juros de mora, contados desde 05/12/2016, com o fundamento em que adiantou à autora a cifra de 82.506,32 €, apenas lhe devendo a quantia de 74.270,09 €, verificando-se a existência de tal saldo a seu favor.

Respondendo, a autora, reiterou o alegado na p.i., designadamente que não peticiona qualquer indemnização pelo término do contrato, mas apenas o pagamento da quantia correspondente às encomendas já entregues e não pagas pela ré e das matérias-primas que tem em stock, pelas razões referidas na petição inicial.

Impugna a factualidade em que a ré assenta a reconvenção, referindo nada lhe dever, pelo que pugna pela improcedência de tal pedido.

 

Foi proferido despacho-saneador, com dispensa de realização de audiência prévia, onde se admitiu a reconvenção deduzida, se fixou o valor da causa e foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, sobre que foi deduzida reclamação, em virtude do que se veio a realizar audiência prévia, deferindo-se a reclamação deduzida.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, finda a qual foi proferida a sentença de fl.s 102 a 111, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Nos termos e fundamentos expostos,

1. Julgo a presente acção totalmente procedente e, em consequência,

2. Condeno a Ré L (…), S.A., a pagar à Autora P (…), S.A., a quantia de €125.187,10 (cento e vinte e cinco mil, cento e oitenta e sete euros e dez cêntimos), acrescida de juros vencidos no valor de €7.302,58 (sete mil, trezentos e dois euros e cinquenta e oito cêntimos), à taxa comercial de 7 % ao ano, contados desde a data de interpelação - 06/12/2016 - até à data da entrada em juízo da presente ação e dos juros vincendos, à taxa comercial em vigor, contados desde esta última data até efetiva e integral liquidação.

3. Julgo a presente reconvenção totalmente improcedente e, em consequência,

4. Absolvo a Autora do pedido deduzido pela Ré.

5. As custas da acção e da reconvenção são a cargo da Ré.”.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso, a ré, L (…) SA, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida, imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (dada a prestação de caução, cf. despachos de fl.s 138/9 e 174), apresentando as seguintes conclusões:

(…)

Contra-alegando, a autora, pugna pela manutenção da decisão recorrida, valendo-se dos argumentos nesta expendidos, designadamente, que a prova foi bem apreciada, devendo permanecer inalterada a matéria de facto dada como provada e não provada em 1.ª instância e o enquadramento jurídico traduz a correcta aplicação das normas aplicáveis, designadamente, que a ré, sem razão objectiva, incumpriu o contratado.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.   

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente aos itens 20, 21, 22, 25, 26, 28, 30, 31, 1.ª parte e 36, dos factos dados como provados na decisão recorrida, os quais deverão passar a ser considerados como não provados e; devendo, ainda, dar-se como provada, nos termos descritos na conclusão 36.ª, a factualidade vertida no item 33 dos factos provados e; considerar-se como provada a matéria que consta da alínea c), dos factos considerados como não provados;

B. Se estamos perante um caso de impossibilidade objectiva de não cumprimento do contrato de empreitada celebrado entre a ora ré e o Estado Venezuelano, sem culpa sua ou facto ilícito que lhe seja imputável, o que afasta a sua obrigação de indemnizar a autora, nos moldes por esta pretendidos e;

C. Se a existir tal obrigação de indemnização, deve a autora entregar à ré a matéria-prima que detém em sua posse, em que funda tal direito, sob pena de enriquecimento sem causa.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. A Primeira Outorgante dedica-se à atividade de fabrico, comércio, importação e exportação de portas, automatismos e de outros componentes para a construção civil e construção de edifícios, conforme certidão comercial permanente com o código de acesso (…).

2. Por sua vez a Ré dedica-se à construção de empreitadas de obras públicas, comércio e indústria de construções, aluguer de máquinas e equipamentos, compra e venda de propriedades, loteamentos e urbanizações, administração e arrendamento de propriedades, conceção e desenvolvimentos de estudos de obras de construção civil, bem como de projectos de engenharia, gestão e exploração das infraestruturas ao nível do ambiente e saneamento básico, designadamente redes de abastecimento de água, drenagem e tratamento de águas residuais, recolha, transporte e tratamento de resíduos sólidos e instalação, exploração, recuperação, valorização, eliminação e gestão de resíduos perigosos, conforme certidão comercial permanente com o código (…)

3. A Ré como adjudicatária do contrato para a “Transferencia Tecnológica Para La Instalación, Fabricación Y Puesta En Marcha De Sistemas Pre-Fabricados, Para La Construcción E Industrialización De Doce Mil Quinientas Doce (12.512) Viviendas Y La Instalación, Construcción Y Puesta En Marcha De Plantas De Prefabricados”, outorgado com o Ministerio Del Poder Popular Para La Vivienda Y Hábitat do Governo Bolivariano da Venezuela.

4. Empreitada a realizar na República Bolivariana da Venezuela, nas cidades de Cua, Ocumare e Charalhave.

5. Contactou a Autora para fabricar e fornecer as portas, aros e acessórios à referida empreitada.

6. No dia 30 de março de 2012 Autora e Ré celebraram um contrato de fornecimento de portas, aros e acessórios, para 60 edifícios da identificada empreitada, nos termos e condições constantes do mesmo, entre as quais consta da cláusula oitava, n.º 4, que «As situações previstas no número dois [a suspensão dos fornecimentos contratados, entre outros casos] conferirão à SEGUNDA CONTRATANTE o direito a ser ressarcida do valor do Material já transformado».

7. O contrato de fornecimento celebrado entre Autora e Ré regulou o fornecimento, por parte da Autora à Ré, das portas, aros e acessórios de uma primeira fase da empreitada à qual as partes atribuíram a denominação de Fase I.

8. No decorrer do fornecimento e em data posterior à da celebração do contrato (30/03/2012), surgiu a necessidade de executar fornecimentos suplementares para a mesma empreitada.

9. No contrato inicial de fornecimento foi estipulada, conforme já referido, a contratação de portas, aros e acessórios para 60 edifícios e, adicionalmente a contratação de mais seis edifícios.

10. No dia 15 de março de 2013 Autora e Ré celebraram um aditamento ao contrato de fornecimento, no qual regulamentaram e formalizaram as condições do fornecimento adicional de portas, aros e acessórios para 534 edifícios, fornecimento com execução faseada.

11. Tendo a Ré, no aditamento de 15/03/2013, adjudicado à Autora duas fases:

- Fase II – fornecimento de portas, aros e acessórios para 50 edifícios com início na data da celebração do aditamento [15/03/2013];

- Fase III - fornecimento de portas, aros e acessórios para 50 edifícios com início em 22 de abril de 2013.

12. No mesmo aditamento ficou estipulado que “a adjudicação das fases subsequentes, a que corresponde o fornecimento de Material para 434 edifícios será precedida de comunicação escrita a emitir”.

13. Por carta datada de 11 de novembro de 2013 a Ré adjudicou à Autora a Fase IV e a Fase V, cada uma com 50 edifícios, para fornecimento de portas, aros e acessórios,

14. O que a Autora aceitou.

15. Por carta datada de 26 de fevereiro de 2014 a Ré adjudicou à Autora a Fase VI e parte da Fase VII,

16. Obrigando-se a Autora, na Fase VI, a proceder ao fornecimento de portas, aros e acessórios para mais 50 edifícios,

17. E na Fase VII a proceder ao fornecimento de aros para outros 50 edifícios.

18. O que a Autora aceitou.

19. A Autora executou e forneceu à Ré, integralmente, as encomendas efetuadas pela Ré correspondentes às Fases I, II, III, IV e VII.

20. A Autora adquiriu matérias-primas diversas e chapa necessária à execução e fornecimentos das Fases V e VI,

21. E iniciou a produção das encomendas correspondentes a essas fases do contrato.

22. Ou seja, relativamente à Fase V a Autora iniciou a produção de 5.000 portas, de 5.000 aros e respetivos componentes e acessórios necessários ao funcionamento das portas (puxadores e cilindros).

23. A Autora produziu e entregou à Ré os 5.000 aros.

24. E produziu e entregou à Ré 3.450 portas e respetivos componentes.

25. Ficando em linha de produção, relativamente à Fase V, com chapa já cortada à medida e de acordo com a encomenda, 1.550 portas.

26. Quanto à Fase VI a Autora iniciou a produção de mais 5.000 portas, de mais 5.000 aros e respetivos componentes e acessórios necessários ao funcionamento das mesmas (puxadores e cilindros)

27. Produziu e entregou à Ré os 5.000 aros da Fase VI

28. Ficando em linha de produção, relativamente à Fase VI, com chapa já cortada à medida e de acordo com a encomenda, 5.000 portas

29. E os respetivos acessórios e componentes.

30. Relativamente às Fases V e VI a Autora ficou com um total de 6.550 portas e respetivos acessórios em linha de produção, que uma vez concluídas importariam o valor global de € 236.359,50.

31. A Autora ficou com 6.550 portas e respetivos acessórios em linha de produção porque, apesar da adjudicação e da respetiva encomenda, em agosto de 2015 por solicitação verbal da Ré, a execução das mesmas foi suspensa.

32. O pedido de suspensão dos fornecimentos teve como fundamento a interrupção da empreitada identificada nos artos 4º e 5º por parte da República Bolivariana da Venezuela em virtude da grave crise política e económica daquele país, facto que é de conhecimento público

33. A Ré ficou a dever à Autora a quantia de € 76.166,28 de portas e acessórios fornecidos como resulta da conta corrente da Autora, elaborada com o acordo da Ré, para a cada momento traduzir as relações comerciais entre ambas.

34. As portas, aros e acessórios fabricados pela P (…) para integral cumprimento dos contratos de fornecimento celebrados com a Ré são específicos para a empreitada a que dizem respeito, não tendo utilização para qualquer outro cliente.

35. Para produção das encomendas correspondentes às Fases V e VI, e conforme o acordado entre as partes, a Ré pagou à Autora um adiantamento no valor de €82.506,32.

36. As matérias primas adquiridas e transformadas para produção das encomendas efetuadas pela Ré que ficaram na posse da Autora sem possibilidade de utilização noutros clientes e de retoma por parte dos fornecedores perfazem o valor global de €131.527,14,

37. Os fornecimentos não foram retomados, pelo que a Autora contactou a Ré para rescindir o contrato de fornecimento e os seus aditamentos e receber os valores que se encontram em dívida.

38. A Ré não procedeu ao pagamento de qualquer quantia.

39. No dia 28 de novembro de 2016 J (…) enviou a P (…) correio electrónico a solicitar o pagamento da dívida nos seguintes termos – doc. 8:

Boa tarde,

A dívida da L (…) para com a P (…) é de € 125.187,10, discriminada do seguinte

modo:

- Conta corrente - € 76.166,28;

- Matérias Primas transformadas em stock, não reutilizável noutros clientes - € 131.527,14 (A chapa branca foi reutilizada noutras encomendas);

- Valor adiantado para aquisição de matérias primas de € 82.506,32.

Assim (€ 76.166,28 + € 131.527,14) - € 82.506,32 = € 125.187,10.

Conforme acordado na sexta feira passada aguardamos a vossa resposta durante o dia de hoje.

Atentamente,

J (…)

40. Em 02/12/2016 a Autora enviou carta registada datada de 30/11/2016 à Ré e resolveu o contrato “celebrado em 30 de março de 2012 para fornecimento de portas, aros e acessórios [e respetivos aditamentos (adendas) para execução das fases IV e V, VI e VII em 11 de novembro de 2013 e 26 de fevereiro de 2014, respetivamente]” e interpelou a Ré a pagar o montante em dívida de € 125.187,10.

41. A Ré recebeu a carta em 05/12/2016.

42. Em 29 de dezembro de 2016 a Autora recebeu a carta da Ré datada de 27 de dezembro de 2016 a aceitar a resolução do contrato e a dizer que não tem obrigação de pagar a matéria-prima dadas as causas de resolução do contrato, mas a propor por cortesia o pagamento de €20.000,00.

*

B. Factos Não Provados

Não resultaram provados os seguintes factos:

a) Que a Ré reconheceu perante a Autora que deve suportar o valor das matérias-primas diversas e chapa adquiridas pela Autora para cumprimento das encomendas por si efectuadas.

b) Que a Autora poderia ter utilizado o material para vender produtos aos seus clientes.

c) Que a Ré não deu indicações para o fabrico das 5000 portas da fase VI e das 1550 portas da fase V pelo que a Autora não comprou matéria-prima e muito menos iniciou o fabrico das portas e restantes acessórios.

A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente aos itens 20, 21, 22, 25, 26, 28, 30, 31, 1.ª parte e 36, dos factos dados como provados na decisão recorrida, os quais deverão passar a ser considerados como não provados e; devendo, ainda, dar-se como provada, nos termos descritos na conclusão 36.ª, a factualidade vertida no item 33 dos factos provados e; considerar-se como provada a matéria que consta da alínea c), dos factos considerados como não provados.

Alega a ré, ora recorrente, que o Tribunal incorreu em erro de julgamento ao dar como provados e não provados os factos ora referidos, devendo, na sua óptica, os mesmos serem dados como provados e não provados, em consonância com o que alega em recurso, estribando-se, para tal nos depoimentos prestados pelas testemunhas (…) e nos depoimentos de parte dos representantes da autora, (…).

Invoca, ainda, os doc.s n.º 1 e 2, (presume-se, que se refere aos juntos com a contestação, constantes a fl.s 72 v.º e 73) e doc. junto do decurso da audiência (junto a fl.s 97 e 98).

Por seu turno, a autora, com base nos mesmos depoimentos e das testemunhas, (…) e doc.s n.º 5 e 6, juntos com a p.i., defende a imutabilidade da matéria de facto dada como provada e não provada e, em consequência, a improcedência desta questão do recurso.

Posto isto, e em tese geral, convém, desde já, deixar algumas notas acerca da produção da prova e definir os contornos em que a mesma deve ser apreciada em 2.ª instância.

Toda e qualquer decisão judicial em matéria de facto, como operação de reconstituição de factos ou acontecimento delituoso imputado a uma pessoa ou entidade, esta através dos seus representantes, dependente está da prova que, em audiência pública, sob os princípios da investigação oficiosa (nos limites e termos em que esta é permitida ao julgador) e da verdade material, se processa e produz, bem como do juízo apreciativo que sobre a mesma recai por parte do julgador, nos moldes definidos nos artigos 653, n.º 2 e 655, n.º 1, CPC – as já supra mencionadas regras da experiência e o princípio da livre convicção.

Submetidas ao crivo do contraditório, as provas são pois elemento determinante da decisão de facto.

Ora, o valor da prova, isto é, a sua relevância enquanto elemento reconstituinte dos factos em apreço, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade.

Por outro lado, certo é que o juízo de credibilidade da prova por declarações, depende essencialmente do carácter e probidade moral de quem as presta, sendo que tais atributos e qualidades, como regra, não são apreensíveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto directo com as pessoas, razão pela qual o tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.

Quanto à apreciação da prova, actividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção, certo é que em matéria de prova testemunhal (em sentido amplo) quer directa quer indirecta, tendo em vista a carga subjectiva inerente, a mesma não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência e conhecimentos científicos, tudo se englobando na expressão legal “regras de experiência”.

Estando em discussão a matéria de facto nas duas instâncias, nada impede que o tribunal superior, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, conclua de forma diversa do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas.

Não se pode olvidar que existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em primeira instância e a efectuada em tribunal de recurso, ainda que com base nas transcrições dos depoimentos prestados, a qual, como é óbvio, decorre de que só quem o observa se pode aperceber da forma como o testemunho é produzido, cuja sensibilidade se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e observação directa dos comportamentos objectivados no momento em que tal depoimento é prestado, o que tudo só se logra obter através do princípio da imediação considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes de modo a que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da decisão.

As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do acto de julgar em que emerge o senso; a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade. Estamos em crer que quando a opção do julgador se centre em elementos directamente interligados com o princípio da imediação (v. g. quando o julgador refere não foram (ou foram) convincentes num determinado sentido) o tribunal de recurso não tem grandes possibilidades de sindicar a aplicação concreta de tal princípio.

Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, reacções imediatas, o contexto em que é prestado o depoimento e o ambiente gerado em torno de quem o presta, não sendo, ainda, despiciendo, o próprio modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo isso contribuindo para a convicção do julgador.

A comunicação vai muito para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se inserem, pois como informa Lair Ribeiro, as pesquisas neurolinguísticas numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder - “Comunicação Global, Lisboa, 1998, pág. 14.

Já Enriço Altavilla, in Psicologia Judiciaria, vol. II, Coimbra, 3.ª edição, pág. 12, refere que “o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras”.

Então, perguntar-se-á, qual o papel do tribunal de recurso no controle da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento?

Este tribunal poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Para além disso, admitido que é o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, o tribunal de recurso poderá sempre sindicar a formação da convicção do juiz ou seja o processo lógico. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.

Tudo isto, sem prejuízo, como acima já referido, de o Tribunal de recurso, adquirir diferente (e própria) convicção (sendo este o papel do Tribunal da Relação, ao reapreciar a matéria de facto e não apenas o de um mero controle formal da motivação efectuada em 1.ª instância – cf. Acórdão do STJ, de 22 de Fevereiro de 2011, in CJ, STJ, ano XIX, tomo I/2011, a pág. 76 e seg.s e de 30/05/2013, Processo 253/05.7.TBBRG.G1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.

Tendo por base tais asserções, dado que se procedeu à gravação da prova produzida, passemos, então, à reapreciação da matéria de facto em causa, a fim de averiguar se a mesma é de manter ou de alterar, em conformidade com o disposto no artigo 662.º, do CPC., pelo que, nos termos expostos, nos compete apurar da razoabilidade da convicção probatória do tribunal de 1.ª instância, face aos elementos de prova considerados (sem prejuízo, como acima referido de, com base neles, formarmos a nossa própria convicção).

Vejamos, então, a factualidade posta em causa pelos ora recorrentes, nas respectivas alegações de recurso.

A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente aos itens 20, 21, 22, 25, 26, 28, 30, 31, 1.ª parte e 36, dos factos dados como provados na decisão recorrida, os quais deverão passar a ser considerados como não provados e; devendo, ainda, dar-se como provada, nos termos descritos na conclusão 36.ª, a factualidade vertida no item 33 dos factos provados e; considerar-se como provada a matéria que consta da alínea c), dos factos considerados como não provados.

Para melhor esclarecimento e facilitar a decisão desta questão, passa-se a transcrever o teor de tal factualidade:

20. A Autora adquiriu matérias-primas diversas e chapa necessária à execução e fornecimentos das Fases V e VI,

21. E iniciou a produção das encomendas correspondentes a essas fases do contrato.

22. Ou seja, relativamente à Fase V a Autora iniciou a produção de 5.000 portas, de 5.000 aros e respetivos componentes e acessórios necessários ao funcionamento das portas (puxadores e cilindros).

25. Ficando em linha de produção, relativamente à Fase V, com chapa já cortada à medida e de acordo com a encomenda, 1.550 portas.

26. Quanto à Fase VI a Autora iniciou a produção de mais 5.000 portas, de mais 5.000 aros e respetivos componentes e acessórios necessários ao funcionamento das mesmas (puxadores e cilindros)

28. Ficando em linha de produção, relativamente à Fase VI, com chapa já cortada à medida e de acordo com a encomenda, 5.000 portas

30. Relativamente às Fases V e VI a Autora ficou com um total de 6.550 portas e respetivos acessórios em linha de produção, que uma vez concluídas importariam o valor global de € 236.359,50.

31. A Autora ficou com 6.550 portas e respetivos acessórios em linha de produção.

36. As matérias primas adquiridas e transformadas para produção das encomendas efetuadas pela Ré que ficaram na posse da Autora sem possibilidade de utilização noutros clientes e de retoma por parte dos fornecedores perfazem o valor global de €131.527,14,

*

B. Factos Não Provados

Não resultaram provados os seguintes factos:

c) Que a Ré não deu indicações para o fabrico das 5000 portas da fase VI e das 1550 portas da fase V pelo que a Autora não comprou matéria-prima e muito menos iniciou o fabrico das portas e restantes acessórios.”.

Como acima já referido e consta da sentença recorrida, a matéria de facto em causa foi considerada como provada e não provada, conforme ora se transcreveu.

É a seguinte a respectiva motivação (cf. fl.s 107 e 108):

“A convicção do tribunal resultou da apreciação prudente, crítica e ponderada dos seguintes meios de prova, tendo em conta as regras da ciência, da lógica e da experiência comum a todo o homem médio.

Os factos provados correspondentes aos artigos 2.º a 22.º, 26.º, 27.º e 30.º, 34.º fine, 35.º, 36.º, 58.º, da Petição Inicial resultaram do acordo das partes e com base em documentos juntos aos autos.

Os demais factos provados resultaram da valoração das declarações de parte de (…) na qualidade de legais representantes da Autora, em conjugação com os depoimentos das testemunhas (…) em conjugação com os documentos juntos aos autos de onde resulta objectivamente a aquisição da matéria-prima em causa, já transformada e apropriada para satisfazer exclusivamente as encomendas em causa, atenta a cor e medidas das mesmas – as declarações e depoimentos foram prestados de modo isento, coerente e circunstanciado, relatando factos do seu conhecimento pessoal, merecendo a nossa credibilidade.

As referidas declarações e depoimentos mereceram credibilidade em detrimento dos depoimentos das testemunhas (…)

Com efeito, os legais representantes da Autora, em conjugação com os depoimentos das referidas testemunhas e documentos juntos lograram demonstrar a aquisição da matéria-prima em causa e a sua transformação e produção resulta das concretas medidas e cor apresentadas que as tornam exclusivas para o fim a que originariamente se destinavam.

Existem ainda documentos a comprovar tais aquisições.

Destaca-se que a divergência principal relativamente aos depoimentos e declarações consistia essencialmente na interpretação que davam à expressão “transformada”, ou seja, as testemunhas da Ré referiram que não foi a Autora que “transformou” a chapa, no entanto, ficou provado o modo como ocorria tal procedimento e que efectivamente esta adquiriu a matéria-prima objecto de transformação e sem possibilidade de outro fim, sem prejuízo de outras considerações a terem lugar no âmbito do enquadramento jurídico.

Os demais factos não provados resultaram da circunstância de não ter sido produzida prova sobre os mesmos.”.

Vejamos, então, se dos depoimentos invocados pela recorrente, e sem olvidar as considerações prévias, quanto a tal, já acima explanadas, existem motivos para que as supras mencionadas respostas sejam modificadas ou alteradas.

Ora, ouvido, na íntegra, o depoimento prestado pelo gerente da autora, (…), o mesmo referiu que, relativamente às fases V e VI, apenas houve um “fornecimento parcial”, devido aos atrasos no pagamento à ré, por parte do Governo Venezuelano, “sinalizaram a fase V e VI com dinheiro e depois a obra parou”.

Confirmou a conta-corrente apresentada pela autora e que a ré tinha adiantado cerca de 82.000,00 €.

Mais disse que “havia matéria-prima em casa, chapa castanho-chocolate, não vendável, com medida específica. Só conseguimos vender a branca”.

Disse, ainda, que só pagaram a chapa em 2016 e que a matéria-prima em causa foi encomendada e pedida pela L (…). “Nunca encomendámos chapa sem receber o sinal, em todas as fases”.

Referiu que o P (…) foi ver o material às instalações da autora e houve outro funcionário da ré que ia lá “vistoriar a matéria-prima. Foi lá o P (…) e o A (…) ver o material, incluindo alguma chapa desta”.

Encomendavam as bobinas da chapa e o respectivo preço já incluía o desperdício (explicando que era de 1000 metros e se só chegassem 827, como acontecia, pagavam o total).

Mais disse que a chapa já vinha com a cor e medidas da siderurgia, “transformação é fazer a porta”.

O outro representante da autora, J (…), referiu que relativamente às fases V e VI, a autora ficou com as portas mencionadas na p.i., porque o P (…) dizia que havia atrasos na obra. Confirmou a conta-corrente apresentada pela autora.

Disse que os 35% que eram pagos no início de cada fase se destinavam à compra da matéria-prima, que demora cerca de três meses a ser entregue.

Relativamente à questão da “transformação do material”, disse que “a chapa vem formatada para a encomenda, de acordo com o formato”.

O Paulo P (…) foi às instalações da autora ver o material “equacionando a reutilização para um telhado, mas não deu”.

Relativamente à fase V, falta fornecer 1550 portas e da fase VI só forneceram aros “não foi entregue nada de portas”.

Instado sobre o mail de fl.s 98, explicou que o seu teor (não terem material acabado naquela data – Março de 2015 –) se deve ao facto de a obra estar suspensa.

A testemunha F (…), disse que exerce as funções de assistente administrativa da autora, há 10 anos e trata da compra da matéria-prima aos fornecedores.

Referiu que as encomendas foram feitas de acordo com o pretendido pela L (..), a chapa era de acordo com a encomenda do cliente e, “por causa do prazo de entrega do fornecedor, três meses, fazemos a encomenda de chapa na totalidade, para respeitar o prazo de entrega”.

Reiterando que compraram toda a matéria-prima para as portas, relativa a cada fase. A chapa já vinha cortada do fornecedor, à medida das portas, na autora “só era feita a porta”.

Mais disse que a encomenda para as fases V e VI foi feita em 2014, apesar de a factura só ter sido emitida em 2016, “porque a chapa foi encomendada, mas a L (…) pediu para abrandar a produção das portas, só forneceram aros. O fornecedor aguentou a facturação, para 2016, como consta da factura de fl.s 72 v.º, porque a obra estava parada”.

Confirmou o teor desta factura.

Estiveram algum tempo sem fazer portas. “O fornecedor já tinhas as chapas e facturou e entregou à autora”, a que se refere a carta de fl.s 97, em que se explica o que designou por “desfasamento entre a venda e facturação da matéria-prima”.

A testemunha S (…), referiu ser tesoureira da autora, desde 2003, estando a seu cargo efectuar os pagamentos aos fornecedores e o recebimento dos clientes, com base na documentação que para tal lhe é apresentada.

Confirmou e explicitou o teor da conta-corrente de fl.s 48 e o valor do adiantamento feito pela ré, “que se destinava à aquisição da matéria-prima para fornecimento das fases e era feito com a adjudicação da fase”.

Era matéria-prima não utilizável noutras obras, “eram coisas específicas para aquela obra e ficámos com elas em casa”.

Mais disse que as encomendas foram feitas em 2014 e a factura de fl.s 72 v.º é de 2016, porque “pediram o adiamento da entrega”, como resulta da carta de fl.s 97. “Em 2016, o fornecedor exigiu o pagamento, por isso é que a factura saiu em 2016”.

Pela testemunha N (…), foi dito que é assistente comercial da autora, há cerca de 11 anos e fazia o planeamento das cargas e expedição do produto final.

Disse que a chapa demorava cerca de 90 dias a ser entregue pelos fornecedores e a “entrega era total por fase, encomenda por cada fase”. Para “não haver problemas com a matéria-prima e falhar o fornecimento, encomendavam logo”.

Relativamente à fase V ficaram por entregar cerca de 1500 portas e da fase VI, nenhuma foi entregue.

A testemunha M (…), referiu ser técnica financeira da ré, desde 2012, executa as ordens de pagamento.

Justificou o diferente valor das conta-correntes apresentada por autora e ré, com o facto de a da ré só conter o “projecto Venezuela” e instada sobre a diferença de saldos, respondeu “não sei, algum pagamento que possa estar em falta, mas não sei”.

Referiu, ainda, que o adiantamento feito pela L (...) era superior ao débito e por isso é que não pagaram e sob proposta da administração, tentaram fazer a compensação.

Pela testemunha C (…), foi dito ser Eng.º de máquinas e trabalha para a ré, desde 1994 e em 2011 foi para a Venezuela, como Director-geral da ré, responsável por todo o projecto.

Como a Venezuela era um “país de risco”, em todos o contratos que fizeram que “incluíam transformação/industrialização”, procuraram fazer a “divisão do risco, só pagavam material alterado ou processado”, considerando como “material processado, matéria-prima que é trabalhada para um determinado fim nas instalações de uma empresa, transformado dentro das instalações da P (…)”.

Referiu, ainda, que a autora sabia o que se passava na Venezuela e que o “abrandamento maior da obra se verificou em Maio de 2014 e transmiti isso à P (…)”.

“Desde 2014 a 2016, para planeamento da P (…) dizia, têm que esperar, têm que parar”.

Os adiantamentos de 35% eram “para comprar matéria-prima, foi assim que foi contratado”. E disse, ainda”, que “o tamanho das portas não era igual a uma obra europeia”.

A testemunha A (…), disse que exerce as funções de Director de logística da L(…), há 25 anos e fazia a gestão do envio do material para a Venezuela.

Não se lembra de ter dito à autora para “parar a produção, só falei em abrandamento da obra”.

Em finais de 2016 esteve nas instalações da autora, quando se falou nos materiais que lá estavam, “vi lá material da obra na Venezuela, chapas castanhas, um contentor de portas, bobinas não vi lá nenhumas, mas disseram que havia, mas não estavam na P (…) Havia uma palete de placas preparadas par fazer portas”.

Por P (…), foi referido ser Director comercial do Grupo L (…) desde 1979 e acompanhou a negociação do contrato celebrado com a autora.

Disse que a partir do início de 2014, começaram a sentir-se dificuldades e “houve necessidade de fazer um abrandamento. Houve indicação para abrandamento, que foi significativo em Agosto e Setembro de 2014”, o que implicou que deixou de haver encomendas de portas, contrariamente ao planeamento existente.

Confirmou que os 35% que a L(…) adiantava serviam para a compra de matéria-prima “com um prazo de três meses, para a P(…) antecipar a vinda de matéria-prima”.

“Tanto dizíamos para acelerar a produção como para abrandar a produção”. Mas, também, nunca disseram “que a obra acabou, ainda estamos à espera da oportunidade de ela retomar”.

Todas estas indicações eram dadas verbalmente ao F (…) e ao J (…) (sócios da autora), sem que por parte destes fosse levantada qualquer questão.

Referiu, ainda, que “nunca houve stock de produto acabado na autora”.

Numa das visitas que fez às instalações da autora, em 2016, é que foi dito que havia material para transformar, “que havia muitos acessórios e portas em stock”. “Vi lá acessórios para portas e quantidades de chapa. Em Outubro de 2016, fui à fábrica e vi que havia chapa, seria cerca de um contentor e foi dito que havia matéria-prima no fornecedor, que não vi”.

Fez uma proposta para ressarcir a autora do material que viu, que não foi aceite.

Relevantes, ainda, os doc.s de fl.s 48, conta-corrente apresentada pela autora; de fl.s 67, conta-corrente apresentada pela ré; facturas e recibos de fl.s 72 v.º a 83, referentes à compra da matéria-prima em questão e carta de fl.s 97, da autoria da sociedade que fornecia matéria-prima à ora autora e da qual resulta que embora as encomendas tenham sido feitas em 2014, a respectiva facturação só foi efectuada em Maio de 2016, dado o protelamento na respectiva entrega, como nela expressamente referido, o que se coaduna com o depoimento das funcionárias da autora, que tinham a seu cargo a parte contabilística, que referiram que tal se ficou a dever ao facto de a ré ter pedido para se abrandar a produção e entrega das portas.

Analisados estes depoimentos e demais referidos elementos probatórios, designadamente, os documentais acima referidos, pensamos ser de sufragar, na íntegra, a conclusão a que se chegou na sentença recorrida.

A matéria de facto colocada em crise no presente recurso, a questão que, nesta sede, verdadeiramente, importa decidir, não obstante a sua extensão, é a de saber se a autora, efectivamente, produziu todo o material que a ré lhe encomendou, tendo-o em seu poder, por a ré não ter solicitado a respectiva entrega, em virtude da suspensão dos trabalhos na Venezuela, dadas as convulsões políticas e sociais que sobrevieram em tal país.

E, consequentemente, se estão em dívida os valores peticionados.

Desde logo e no que se refere à aquisição, por parte da autora, do material necessário para a satisfação da encomenda da ré, com o devido respeito, inexistem dúvidas de que assim se tem de ter por assente.

Em 1.º lugar, estão juntos aos autos, as facturas e recibos que o demonstram.

Depois, resulta de todos os depoimentos prestados, que parte do pagamento (35%) a efectuar pela ré, era paga logo aquando da contratação, no início, de cada uma das fases e que tal adiantamento se destinava à compra da matéria-prima relativa a cada uma dessas fases.

O que se justificava em face da especificidade do material a adquirir, tendo em vista o concreto produto final a entregar à autora (cor, medidas, dimensão, sendo que a testemunha (…), referiu que a medida das portas não era igual a uma obra europeia) e que o fornecedor demorava cerca de três meses a entregar a matéria-prima à autora, pelo que se compreende que esta, a fim de evitar a atrasos no cumprimento do contratado, atempadamente, fizesse a encomenda total do material a usar em cada uma das fases contratadas.

E, assim, bem se compreende que tendo o material na sua posse se, como, efectivamente, aconteceu, a ré solicitou que a produção fosse abrandada, não solicitando a entrega do material encomendado, este exista, em stock, na autora.

De resto, é pacífico que, a partir de certa altura, a ré não pediu que lhe fosse entregue o produto acabado – portas e acessórios – o que aconteceu quando a autora, como antes referido, já tinha encomendado a matéria-prima necessária para a sua produção.

Relativamente aos valores em dívida, as testemunhas (…) confirmaram-nos, ao passo que a testemunha (…), não justificou a diferença de saldos entre as conta-correntes apresentadas por cada uma das partes, como acima se deixou consignado.

 Em suma, não vemos razões para alterar a matéria de facto dada como provada e não provada, na decisão recorrida.

Consequentemente, nesta parte, improcede o recurso em apreço, mantendo-se inalterada a matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida.

B. Se estamos perante um caso de impossibilidade objectiva de não cumprimento do contrato de empreitada celebrado entre a ora ré e o Estado Venezuelano, sem culpa sua ou facto ilícito que lhe seja imputável, o que afasta a sua obrigação de indemnizar a autora, nos moldes por esta, pretendidos.

Como resulta do exposto, a ré, ora apelante, pretende eximir-se ao pagamento da peticionada indemnização, com o fundamento em que não conseguiu levar a cabo a conclusão dos trabalhos contratados com o Governo da Venezuela, atentas as convulsões sociais e políticas que ali tiveram lugar, o que, no seu entender, configura um caso de impossibilidade objectiva, o que a desobriga da responsabilidade de indemnizar a autora.

Na sentença em análise, por reporte ao teor da cláusula 8.ª, n.º 4, do contrato celebrado, que se refere ao direito á indemnização relativamente ao material já transformado, considerou-se que a autora apenas tinha que fazer as portas, em conformidade com o contratado, não havendo que transformar a matéria-prima para tal adquirida, pelo que tendo-a, para tal, adquirido, tem direito a ser indemnizada nos termos peticionados.

Conforme disposto no artigo 790.º, n.º 1, do Código Civil:

“A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor”

Acrescentando-se no seu artigo 795.º, n.º 1:

“Quando no contrato bilateral uma das prestações se torne impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa.

Acrescentando-se no seu n.º 2 que:

“Se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao credor, não fica este desobrigado da contraprestação; mas, se o devedor tiver algum benefício com a exoneração, será o valor do benefício descontado na contraprestação”.

Como referem P. de Lima e A. Varela in Código Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1981, a pág. 38, com a previsão do artigo 790.º, n.º 1, do Código Civil, visa-se regular os casos em que a obrigação se tornou impossível, supervenientemente, por causa não imputável ao devedor, caso em que se extingue a obrigação.

Ali se notando que “não deve confundir-se a impossibilidade da prestação com a alteração das circunstâncias que a torne excessivamente onerosa”, bem como que, no nosso direito “só a impossibilidade absoluta libera o devedor da obrigação (prestação de uma coisa que entretanto pereceu; realização de um negócio que a lei posteriormente veio a proibir; etc). Não podem, por conseguinte, enquadrar-se na categoria da impossibilidade objectiva as situações dos empresários que, no decurso do período de perturbação social posterior à Revolução do 25 de Abril de 1974, não puderam solver certas obrigações pecuniárias, por terem sido violentamente afastados da administração das empresas pelos trabalhadores”.

Na mesma senda, A. Varela, in Das Obrigações em geral, Vol. II, 4.ª edição, Almedina, 1990, a pág. 63 e seg.s, defende que no artigo 790.º do CC, se prevêem as situações em que “a prestação se torna impossível, quando, por uma qualquer circunstância, legal, natural ou humana, segundo o conteúdo da obrigação se torna inviável”.

Reiterando que a obrigação apenas se extingue, nos casos em que a prestação se tenha tornado verdadeiramente impossível, seja por força da lei, da natureza (caso fortuito ou de força maior) ou por acção do homem, não bastando para tal “que a prestação se tenha tornado extraordinariamente onerosa ou excessivamente difícil para o devedor”.

Só relevando a “impossibilidade (física ou legal) da prestação … impossibilidade absoluta”, em virtude de não se ter acolhido entre nós a doutrina do “limite do sacrifício”, adoptada no direito alemão.

Também José Carlos Brandão Proença, in Lições de Cumprimento e Não Cumprimento Das Obrigações, Coimbra Editora, 1.ª Edição, Setembro de 2011, pág. 163 e seg.s. refere que se justifica o não cumprimento, que acarreta o efeito extintivo da obrigação assumida, se o devedor estiver colocado numa situação de “impossibilidade de cumprir por circunstâncias total ou parcialmente estranhas à sua vontade e de natureza objectiva ou subjectiva”.

Em que cabem as situações de força maior ou caso fortuito, acto dos poderes públicos, conduta do devedor ou do credor ou de terceiro que não seja auxiliar do próprio devedor, tendo o nosso legislador adoptado “como padrão da impossibilidade com efeito exoneratório a impossibilidade objectiva, absoluta, definitiva e total. A impossibilidade diz-se objectiva sempre que o devedor esteja impedido de cumprir por razões que não dizem respeito à sua pessoa (…). Este impedimento é, em si mesmo, uma barreira (objectiva) inultrapassável pelo devedor ou por qualquer pessoa que o possa substituir (…). A impossibilidade objectiva é, assim, em regra, uma impossibilidade absoluta na medida em que o impedimento é um obstáculo inultrapassável (…) mesmo com esforços suplementares”.

Sendo que o seu carácter definitivo, se traduz na impossibilidade do seu cumprimento.

Por último, com referência expressa ao contrato de empreitada, veja-se Pedro Romano Martinez, in Da Cessação do Contrato, Almedina, 2017 – 3.ª Edição, pág. 518 e seg.s, que, realça, igualmente, que para se verificar a impossibilidade objectiva, teremos de estar perante uma impossibilidade superveniente, efectiva, absoluta e definitiva, total ou parcial, não bastando o agravamento da prestação, acrescentando que a “prestação será impossível se se verificar uma inviabilidade total de realização da obra, nos termos de um padrão geral de conduta.

A impossibilidade é absoluta se a obra não puder ser realizada nem pelo empreiteiro, nem por terceiro.

A impossibilidade terá de ser definitiva, no sentido de a obra não poder ser realizada mais tarde”.

No caso da empreitada, em caso de impossibilidade objectiva, com as consequências previstas no artigo 790.º, n.º 1, do CC, importa, ainda, ter presente o disposto no seu artigo 1227.º, que determina, havendo começo de execução, que o dono da obra é obrigado a indemnizar o empreiteiro do trabalho executado e das despesas realizadas, como corolário da regra de repartição do risco – cf. autor e ob. ora cit., a pág. 521.

Ora, efectuando o cotejo entre o que ora se deixou consignado acerca dos requisitos exigíveis para que se possa falar de impossibilidade objectiva e a factualidade em apreço, tem de se concluir que, in casu, os mesmos não se podem ter por verificados.

Efectivamente, a única coisa que quanto a isto se provou é o que consta da 2.ª parte do item 31.º e do item 32.º dos factos provados; ou seja que a ora ré solicitou a suspensão dos trabalhos que contratou com a autora, em virtude da crise política e económica que veio a surgir na Venezuela.

Esta factualidade não traduz uma impossibilidade objectiva de cumprimento, porque, desde logo, não se mostra demonstrado que se verifica uma impossibilidade definitiva de realização da obra em causa, nada indicando que não possa ser realizada mais tarde, nem que não possa ser realizada pela própria ré ou por um terceiro.

Assim, não se verificando o efeito extintivo das obrigações assumidas pela ora ré, perante a autora, a que se refere o artigo 790.º, n.º 1, do Código Civil, mantêm-se as mesmas válidas, nos termos contratados, tendo a autora direito a receber o preço acordado, nos termos do disposto no seu artigo 1207.º, n.º 1.

Também, nos moldes já referidos na sentença recorrida, para que se remete, não colhe a argumentação de que cf. cláusula 8.ª, n.º 4, do contrato, em caso de suspensão deste, só haveria direito a indemnização, pelo valor do material já transformado.

Efectivamente, a única transformação a operar pela autora era o corte da chapa e demais matéria-prima para que as portas fossem feitas nos moldes contratados, o que assim se verificava.

Por último, apenas de referir que não se aplica ao caso o defendido no Acórdão do STJ, de 26/11/2003, Processo n.º 04B1201, disponível no respectivo sítio do itij (citado pela recorrente), uma vez que ali se tratava de um caso em que se aplicavam as regras do mandato e o mandante, contrariamente ao pretendido, não conseguiu obter financiamento bancário, o que inviabilizou a execução do mandato.  

Pelo que, quanto a esta questão, igualmente, improcede o recurso.

C. Se a existir tal obrigação de indemnização, deve a autora entregar à ré a matéria-prima que detém em sua posse, em que funda tal direito, sob pena de enriquecimento sem causa.

Relativamente a esta questão, alega a recorrente que se fosse, como foi, condenada a pagar a quantia peticionada, então, sob pena de enriquecimento sem causa, deve a autora entregar-lhe a matéria-prima que detém em seu poder.

Em caso de impossibilidade superveniente de cumprimento, rege o disposto no artigo 795.º, do Código Civil, em conjugação com o disposto no seu artigo 1227.º.

Não estamos em face de tal situação/figura jurídica, pelo que tais preceitos não são aqui convocáveis.

No entanto, admite-se a justeza (e legalidade) desta pretensão da ré, à luz das regras do enriquecimento sem caus.

Só que, esta, só em recurso, veio deduzir tal pedido.

Como consabido, os recursos não se destinam a conhecer de matéria ou questões novas, apenas visando reapreciar questões (de direito ou de facto), já debatidas nas instâncias, o que, reitera-se, não aconteceu, não se tratando de matéria de conhecimento oficioso pelo tribunal.

Assim, por se tratar de matéria nova, não se conhece desta questão do recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Coimbra, 12 de Abril de 2019.

Arlindo Oliveira ( Relator )

Emídio Santos

Catarina Gonçalves