Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
234/12.5PANZR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
Data do Acordão: 09/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA LOCAL DA NAZARÉ – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 347.º, N.º 1, DO CP
Sumário: Comete o crime, de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. no artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, quem, sendo-lhe dada ordem de detenção, com o propósito de obstar à consumação desta, dirige ao membro das forças militarizadas ou de segurança interventor as seguintes expressões “polícias de merda, não valem nada, venham cá que eu mato-vos”, e coloca, ao mesmo tempo, a sua mão esquerda junto de uma faca (com o comprimento total de 38 cm, sendo o da lâmina de 13 cm).
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


Nos autos de processo sumário que, sob o nº 234/12.5PANZR, correram termos pelo extinto Tribunal Judicial da Comarca da Nazaré, foi submetido a julgamento o arguido A..., acusado pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, do crime de ameaça agravado, p. e p. pelos artigos 153º, n.º 1, 155º, n.º 1 por referencia ao disposto no artigo 131º do Código Penal e artigo 155º, n.º 1 alínea c) do Código Penal e artigo 86º, n.º 3 do Regime Jurídico das Armas e Munições e um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, n.º 1, alíneas d), por referência aos artºs2º, n.º 1, alínea m), 3º, n.º 2 alínea f) e 4º todos do Regime Jurídico das Armas e Munições.
     Efectuado um primeiro julgamento, viria a ser proferida sentença, absolvendo o arguido relativamente a todas as acusações.

     Desta sentença recorreu o MP, tendo sido proferido acórdão nesta Relação, declarando nula a sentença recorrida, por falta de fundamentação.

     Após as vicissitudes que se podem ver através da análise do processo, acabaria por ser designada nova data para a realização de novo julgamento, no decurso do qual viria a ser comunicada ao arguido uma alteração substancial dos factos. Após, viria a ser proferida sentença, concluindo nos seguintes termos (extracto):

«a) Absolver o arguido A... da prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de ameaça agravada, p.p. pelos artºs 153º, 1, 155º, 1, por referência ao artº 131º do CP, e 155º, 1, c) do CP e 86º, 3, do Regime Jurídico das armas e Munições;

b) Absolver o arguido A... da prática um crime de detenção de arma proibida, p.p. pelos artºs 2º, 1, m), 3º, 2, f), 4º e 86º, 1, d) do Regime Jurídico das armas e Munições;

c) Condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p.p. pelos artºs 347º, 1, do CP, na pena de 4 meses de prisão;

d) Substituir a pena de prisão aplicada ao arguido por 120 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, num total de 600 euros, de acordo com o disposto no artº 43º, 1, do CP.»

Agora inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1. Face à prova produzida, admita-se que o arguido, ora recorrente, procurou evitar ou dificultar a actuação dos senhores agentes da PSP, os quais pretendiam proceder à sua detenção.

2. Os senhores agentes da PSP já conheciam o arguido ora recorrente doutras situações, sendo um indivíduo que, de acordo com o testemunho do senhor agente B... “… por vezes, reage mal às abordagens da polícia e torna-se agressivo e prontos, era como estava na altura” – registo sonoro aos 5m:37s e seguintes.

3. As expressões “Polícias de merda! Não valem nada! Venham cá que eu mato-vos” ao mesmo tempo que colocava a mão esquerda junto da faca” foi proferida perante dois agentes da PSP devidamente identificados e fardados, os quais são possuidores de capacidades e competências especiais para não se deixarem intimidar por tentativas que visam obstar ao exercício das respectivas funções, motivo pelo qual, aliás, a detenção não deixou de se concretizar.

4. As especiais capacidades e competências dos agentes da PSP permite-lhes gerir situações de conflito, pressão e confronto de uma forma que, comportamentos como os que foram praticados pelo arguido ora recorrente, não sejam considerados suficientemente idóneos para inviabilizar os seus actos funcionais, nomeadamente a detenção que por eles viria a ser concretizada.

5. O comportamento do arguido ora recorrente não foi adequado a anular ou dificultar, de forma significativa, a capacidade d actuação dos agentes da PSP.

6. O comportamento do arguido ora recorrente não evidenciou actos de violência ou de ameaça de tal forma grave que permitam preencher o elemento objectivo do crime de resistência e coacção sobre funcionário.

7. Atente-se que para o agente B... o arguido apresentava-se “bastante agressivo, bastante violento”, registo sonoro aos 2m:55s e seguintes do seu depoimento, já o seu colega presente no local, o agente da PSP C..., o arguido “… ficou um bocado alterado” – registo sonoro aos 2m:24s e seguintes, não sentindo que mal algum contra si pudesse ser praticado pelo arguido ora recorrente, uma vez que, conforme referido, “ele até estava a beber o café… ele nunca nos apontou a nós, disse que nos matava e aproximou a mão” – registo sonoro aos 5m:5s e seguintes.

8. O crime de resistência e coacção sobre funcionário só se consuma quando a acção violenta ou ameaçatória seja idónea a atingir de facto o seu destinatário ou destinatários, ou seja, que essas acções sejam adequadas a concretizar o propósito de impedir a actividade pretendida pelo funcionário ou agente.

9. Da matéria fáctica dada como provada, após ter sido dada ordem de detenção, “o arguido reagiu, dirigindo ao agente B... as seguintes expressões: “Polícias de merda! Não valem nada, Venham cá que eu mato-vos”, ao mesmo tempo que colocava a mão esquerda junto da faca”.

10. Mas fê-lo enquanto “estava a beber o café”, nunca tendo apontado a faca aos senhores agentes da PSP – “… ele nunca nos apontou a nós, disse que nos matava e aproximou a mão”, conforme registo sonoro aos 5m:5s e seguintes do depoimento prestado pelo agente da PSP C....

11. Ou seja, salvo o devido respeito por entendimento diverso, o comportamento do arguido ora recorrente não foi idóneo à perturbação ou oposição à prática do acto relativo ao exercício das funções dos agentes da PSP, nomeadamente concretizar a detenção, o que lograram fazer.

12. Atente-se, face à prova testemunhal produzida, que o comportamento do arguido foi praticado enquanto “estava a beber café”, sem nunca pegar na faca, nem tão pouco a apontar aos agentes da PSP, não tendo sequer oferecido resistência no momento da sua detenção.

13. Poderão os comportamentos supra mencionados consubstanciar a prática de actos de violência? Permita-se ao aqui arguido e ora recorrente dizer que não.

14. O comportamento do arguido não é, manifestamente, dotado de idoneidade suficiente para impedir os agentes da PSP de concretizarem a detenção, como o não foi, na medida em que, face ao exposto, esse mesmo comportamento não foi adequado a anular ou a dificultar de forma significativa a capacidade de actuação dos agentes da PSP, os quais, conforme igualmente já referido, são dotados de especiais qualidades e capacidades com vista a suportarem o tipo de pressão como a que terá sido exercida pelo arguido ora recorrente.

15. Em face do exposto, a prova testemunhal produzida teria que ter conduzido, necessariamente, à absolvição do arguido.

16. Com o devido respeito pelo douto tribunal ‘a quo’, que é muito, houve um erro notório na apreciação da prova, pois à luz das regras da experiência e da lógica, teria necessariamente que conduzir à não verificação dos elementos objectivos do crime de resistência e coacção sobre funcionário de que o arguido vinha acusado.

17. Erro esse que influenciou a sentença condenatória.

18. Não tivesse errado o douto tribunal ‘a quo’ na apreciação da prova produzida, que necessariamente o arguido não seria condenado pela prática do crime previsto e punido nos termos do nº 1 do artº 347º do CP.

19. Pelo que, necessariamente, terá que se considerar que o tribunal ‘a quo’ violou o disposto no nº 1 do artº 347º do CP.

Termos em que, em face do exposto, deve dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência ser revogada a douta sentença recorrida, na parte em que condenou o ora recorrente.

Respondeu o MP em primeira instância, concluindo pelo não provimento do recurso, concluindo nos seguintes termos:

1) A douta sentença proferida nos presentes autos não violou o disposto no artº 347º, 1, do CP.

2) A conduta dada como provada preenche todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de resistência e coacção p.p. pelo artº 347º, 1, do CP.

3) De facto, o arguido ao proferir as expressões “Polícias de merda! Não valem nada, Venham cá que eu mato-vos”, ao mesmo tempo que colocava a mão esquerda junto da faca com 25 cm de comprimento de lâmina e 13 cm de cabo, assumiu um comportamento apto a impedir a prática de acto relativo ao exercício das funções dos agentes da PSP, o que concretizou.

4) Neste sentido, a conduta praticada pelo arguido assume dignidade penal e preencheu todos os elementos do tipo deste crime de perigo.

5) Pelo exposto, o recurso interposto pelo arguido não merece provimento, devendo manter-se a sentença recorrida.

No mesmo sentido concluiu o Ex.mo PGA, em douto parecer que emitiu.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FACTOS ASSENTES:

Discutida a causa provou-se que:

1. No dia 11 de Setembro de 2012, cerca das 18 horas, o agente da Polícia de Segurança Pública B..., com a matrícula (...) , foi chamado, via rádio, ao café bar “S (...) ”, sito na (...) , na Nazaré, por haver notícia de aí se encontrar um indivíduo, que se veio a apurar ser A..., com uma faca de grandes dimensões a ameaçar os funcionários e clientes do respectivo estabelecimento.

2. Chegado ao local, o agente da PSP B..., devidamente fardado e identificado, falou com o funcionário do estabelecimento, D... , que o informou que o arguido, enquanto esteve naquele local, entrou na parte interior do balcão do café e retirou uma faca de grandes dimensões que ali se encontrava, fazendo-a sua contra a vontade do legitimo proprietário e que após ameaçou os funcionários e clientes do café e de seguida abandonou o local em direcção à geladaria “Â (...) ” sita também na vila da Nazaré.

3. O agente acima identificado deslocou-se à geladaria “Â (...) ”, onde se encontrava o arguido a tomar um café, que havia exigido ao proprietário – G... , mediante a ameaça com a faca que tinha na sua posse, tendo-lhe o mesmo sido servido, por esse motivo.

4. Junto ao arguido e em cima do balcão encontrava-se a faca de cozinha, com o comprimento total de 38 cm (lâmina fixa – cabo), com a inscrição “NICUL”, com o peso de 156 gr, cabo de estrutura de madeira, de cor branco, com 13 cm de comprimento, lâmina em inox metálica de serrilha, pontiaguda, com 25 cm de comprimento, em razoável estado de conservação.

5. Reconhecendo o arguido a propriedade da faca, foi-lhe dada ordem de detenção pelo agente B..., ao que o arguido reagiu, dirigindo ao mesmo as seguintes expressões: “Polícias de merda! Não valem nada! Venham cá que eu mato-vos”, ao mesmo tempo que colocava a mão esquerda junto da referida faca.

6. Perante isto, foi pedido reforço policial pelo autuante, chegando ao local E... , matrícula n.º (...) e F... , matrícula n.º (...) , devidamente fardados e identificados, que auxiliaram na detenção do arguido.

7. O arguido A... , de forma livre apropriou-se da faca supra referida, contra a vontade do proprietário da mesma, fazendo-a sua, sabendo das características da arma que usou e que detinha e que pelas suas características, em particular pela dimensão e material da respectiva lâmina, podia ser usada como arma de agressão, o que veio efectivamente a acontecer, sendo certo que não existe qualquer justificação para que o arguido a tivesse na sua posse.

8. Ao proferir as expressões acima descritas, o arguido agiu de forma livre e com o propósito concretizado de utilizar a mencionada expressão, fazendo uso da faca, bem sabendo que era adequada a produzir receio, medo e inquietação ao agente da Polícia de Segurança Pública - B..., como veio a acontecer.

9. O arguido proferiu a expressão “venham cá que eu mato-vos” de forma livre e consciente, querendo impedir os agentes da PSP das funções que lhe são atribuídas, de forma a furtar-se a que estes procedessem à sua detenção, o que todavia não logrou, uma vez que os agentes solicitaram reforços e procederam na mesma à sua detenção.

10. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente.

11. O arguido bem sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Mais se apurou, quanto aos antecedentes criminais do arguido:

12. O arguido não tem antecedentes criminais averbados no seu certificado do registo criminal.

E quanto às condições sócio-económicas:

13. O arguido é feirante.

14. Ganha mensalmente e em média, entre 100 e 150 euros.

15. Tem 10 filhos e 2 netos.

16. Vive com a companheira, 5 dos seus filhos, em idade escolar, e 2 netos, de 6 e 7 anos.

17. Os filhos que se encontram a residir consigo não trabalham.

18. Reside em habitação social, pagando 20€ por mês a título de renda e entre 60 a 90€ de água, gás e electricidade.

19. Paga cerca de 50€ por mês para tratamentos e outras despesas médicas da mulher e de uma filha.

20. O arguido não completou a escolaridade obrigatória.

FACTOS NÃO PROVADOS:

21. A faca identificada anteriormente não tem afectação ao exercício de qualquer prática doméstica.

22. O arguido bem sabia que não podia deter, guardar, usar e transportar a supra referida faca.

23. O arguido bem sabia que a conduta referida no ponto anterior era proibida e punida por lei penal.

     DECIDINDO:

     Analisando as conclusões que o arguido/recorrente retira da sua motivação, e não obstante a sua amplitude, logo se vislumbra que são essencialmente duas as grandes questões que através delas coloca à nossa apreciação:

I – O comportamento do recorrente não foi idóneo à perturbação ou oposição à prática do acto da detenção, pelo que não se verificando os elementos objectivos do tipo criminal, se impõe a sua absolvição;

II – que o tribunal ‘a quo’ terá incorrido em erro notório na apreciação da prova.

     Começaremos por dizer que, quer na sua motivação, quer nas conclusões que formula, o recorrente faz diversos apelos aos suportes informáticos da prova pessoal, o que poderia induzir o intérprete a concluir que ele pretende, além do mais, impugnar a matéria de facto provada, ao abrigo da norma do artº 412º, 3, do CPP. Mas não é esse o caso concreto, pois que ao invés de pretender que os concretos factos provados devem ser trasladados para os não provados, o que ele pretende é que aquela concreta factualidade provada não pode conduzir à sua condenação, tal qual aconteceu em primeira instância. Ou seja, a questão deixa de ser uma questão de facto para passar a ser uma questão de direito, de integração jurídica dos factos, pois que, no dizer do recorrente, «teria necessariamente de conduzir à não verificação dos elementos objectivos do crime de resistência e coacção sobre funcionário», já que o seu comportamento «não foi adequado a anular ou dificultar, de forma significativa, a capacidade de actuação dos senhores agentes da PSP».

     De forma passageira, e após suscitar tal questão de direito, o recorrente faz, porém, expressa invocação da ocorrência do erro notório na apreciação da prova (conclusão 16.), estabelecendo alguma confusão entre tal erro e o erro de julgamento.

Todos os vícios referidos no nº 2 do artº 410º, para serem atendíveis, devem resultar «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum». Ou seja, o vício há-de ressaltar do próprio contexto da sentença, não sendo lícito, neste pormenor, o recurso a elementos externos de onde esse vício se possa evidenciar.

O vício de erro notório na apreciação da prova traduz-se numa falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, se chamado a apreciar a prova produzida e a convicção com base nela formada; esse erro deve ressaltar de modo claro e evidente do texto da própria decisão. O seu contexto logo evidencia que, face às regras da interpretação lógica, do bom senso e da experiência do homem normal, a conclusão deveria ser outra, face às premissas referidas.

     Ora, analisado o arrazoado produzido pelo recorrente nas suas alegações e conclusões deve concluir-se que o que ele pretende, ao fim e ao cabo, não é afirmar a ocorrência deste vício, pois que não põe em causa a factualidade dada como assente, na sua generalidade, mas apenas que da factualidade assente não resulta necessariamente o preenchimento dos elementos típicos do crime por cuja prática acabou por ser condenado. Repare-se que ele aceita a factualidade assente.

Por isso, também este vício não ocorre no acórdão recorrido.

O arguido foi condenado pela prática do crime de resistência e coacção sobre funcionário, p.p. pelo artº 347º, 1, do CP.

Segundo esta norma, comete tal crime «quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções…».

Na parte que agora nos importa, dada a modalidade de acção dada como provada, exige a norma em questão que através do emprego de violência ou ameaça grave, o agente impeça o funcionário [lato sensu] de praticar acto relativo ao exercício das duas funções.

Como é sabido, o bem jurídico que a norma visa salvaguardar é a designada autonomia intencional do Estado, pretendendo-se que os “não-funcionário” não ponham entraves ilegítimos à livre execução das ‘intenções’ estaduais. Como se diz no ‘Comentário Conimbricense do CP’ (glosando o artigo em questão, tomo III-pag. 340) «proíbe-se a interferência coactora na actividade funcional do Estado. Do tipo objectivo fazem parte quer o fim da acção – opor-se a que a autoridade pública exerça as suas funções -, quer o meio utilizado: a violência ou a ameaça». Como se diz, mais adiante, e o recorrente replica nas suas conclusões, «há-de considerar-se, em todo o caso, que os destinatários da coacção possuem, nalgumas das hipóteses deste tipo legal, especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum. Membros das forças armadas, militarizadas ou de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios. O grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo não há-de medir-se, por conseguinte, pela capacidade de afectar a liberdade física ou moral de acção de um homem comum. A utilização do critério objectivo-individual há-de assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de acção do funcionário».

A pedra de toque do crime em questão está, assim, na conjugação entre a natureza e intensidade da ameaça proferida pelo agente e a repercussão que ela tem na liberdade de acção do funcionário, ou seja, na sua capacidade de afectação dessa liberdade, muito embora o tipo legal não exija que, no caso concreto, ela tenha surtido a sua eficácia, antes se punindo mesmo os casos em que, muito embora a ameaça seja idónea a obstar à prática do facto pelo funcionário, ela não haja logrado obter esse resultado. Estamos perante um crime de execução vinculada, já que apenas se mostra preenchido nos casos em que ele é praticado mediante o uso de violência (vis physica, vis corporalis) ou de ameaça grave (vis compulsiva).

Porque a norma usa um conceito em branco, ‘ameaça grave’ há que o integrar com recurso a todos os apoios que possamos encontrar dentro do sistema, v.g. através do recurso a uma integração sistemática, fazendo apelo a todos os elementos de interpretação que nos sejam fornecidos pela própria codificação penal.

Assim, teremos de considerar que estamos perante ‘ameaça grave’ quando o mal ameaçado constitui crime: veja-se a previsão do tipo legal base de ameaça [artº 153º, 1, CP] que considera estar preenchido o tipo quando se ameaça alguém com a prática de crime contra a vida ou a integridade física. Acresce que a gravidade do mal ameaçado é indiciado pelo artº 155º do CP, que opera a agravação do crime quando a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos (como será o caso do homicídio – artº 131º, CP e das ofensas corporais graves ou qualificadas – artºs 144º e 145º do mesmo CP).

Em análise à paralela norma do artº 550º do CP Espanhol, Carlos Suárez-Mira Rodríguez (in‘Manual de Derecho Penal. Tomo II. Parte Especial, pag.s 644 e seg.s) que prevê que uma das modalidades da acção se traduz na “intimidação grave”, afirmam que «a intimidação é o anúncio ou a comissão de um mal iminente, grave, concreto e possível, susceptível de despertar um sentimento de angústia ou temor ante o eventual dano, provocando uma coacção anímica intensa».

Revertendo ao caso concreto: - o recorrente, após ter subtraído num estabelecimento comercial uma faca de cozinha com o comprimento total de 38 cm, dos quais 25 cm são de lâmina serrilhada e pontiaguda, com ela ameaçou funcionários e clientes do estabelecimento; após, deslocou-se para outro estabelecimento, no qual, mediante a ameaça com a mesma faca, e só por isso, logrou que aí lhe tenham servido um café. Ao ser abordado pelo agente B... , nesse estabelecimento, tinha junto a si, e em cima do balcão, a referida faca. Ao ser-lhe dada ordem de detenção, dados os acontecimentos referidos, o arguido reagiu, dirigindo ao referido agente da PSP as seguintes expressões: “Polícias de merda! Não valem nada! Venham cá que eu mato-vos”, ao mesmo tempo que colocava a mão esquerda junto da referida faca. Actuou com o propósito concretizado de utilizar a mencionada expressão, fazendo uso da faca, bem sabendo que era adequada a produzir receio, medo e inquietação ao agente da Polícia de Segurança Pública - B..., como veio a acontecer.

Aqui chegados, devemos analisar a relevância das conclusões formuladas pelo recorrente, nas quais pretende que dadas as especiais capacidades e competências do destinatário dos seus comportamentos, agente da PSP, deve entender-se que eles «não suficientemente idóneos para inviabilizar os seus actos funcionais, nomeadamente a detenção que por eles viria a ser concretizada».

Ou seja, era exigível ao agente B... que, não obstante a ameaça proferida pelo arguido, levasse a cabo a detenção anunciada, sem necessidade de fazer os reforços que foram chamados?

A resposta definitiva tem de ser negativa. Não era exigível ao agente da PSP outro comportamento, assim se compreendendo que ele não tenha levado a cabo a detenção do arguido, a qual só aconteceu após a chegada dos reforços policiais.

A actuação dos agentes da PSP – ameaçados de morte iminente (“Venham cá que eu mato-vos”) e com o arguido a fazer tenção, em simultâneo, de manejar a faca para tal efeito, foi perfeitamente compreensível, já que era adequada a criar nas suas mentes um medo, um receio inultrapassável de que ele concretizasse os seus anunciados intentos. Se tivesse actuado, cremos que nem sequer em comportamento corajoso poderíamos falar, mas sim em comportamento temerário, imprudente. E a ninguém é exigível que se transforme num desnecessário herói, nem sequer aos agentes da PSP. E tanto ficaram afectados na sua delegada liberdade intencional que não levaram a cabo a detenção que haviam anunciado, a qual apenas teve lugar após a chegada dos reforços policiais.

O caso retratado no acórdão do TRP, de 5/7/2006, segundo o qual “não comete o crime de resistência e coacção sobre funcionário uma mulher que, após ser agarrada por dois agentes da Polícia Municipal, para a levarem ao posto da GNR, esbracejou, tentou agredi-los com pontapés e se agarrou a uma corda que sustentava um toldo de feira, para evitar ser conduzida àquele posto” nada tem a ver com a situação que nos ocupa. Naquele caso, os agentes policiais foram postos perante alguma resistência física da mulher, que facilmente podiam ultrapassar mediante o uso de força física superior, tanto mais que eram dois; no nosso caso foram postos perante a ameaça com mal grave e inultrapassável. Se a condição de polícias das vítimas exigia actuação no primeiro dos casos, aconselhava prudência e receio (e mesmo medo, por que não dizê-lo!) no caso presente. A ameaça de morte e com a simultânea manifestação da tenção de pegar na faca é completamente inibidora de qualquer comportamento aceitável por parte dos agentes da PSP. A sua gravidade objectiva e subjectiva (mesmo tendo em conta a qualidade do destinatário, agente da PSP) era perfeitamente idónea a obstar a que ele levasse a cabo o acto que anunciara - a detenção do recorrente.

A argumentação do recorrente, ao afirmar a inidoineidade da ameaça em causa para obstar à sua detenção - tanto mais que ela viria a ser concretizada - é manifestamente improcedente: - por um lado porque ela só ocorreu após a intervenção dos reforços policiais; - por outro porque mesmo que o agente B... tivesse tentado a detenção, sendo ferido, ou mesmo mortalmente atingido pelo arguido, este sempre seria detido.

Termos em que, nesta Relação, se acorda em negar provimento ao recurso do arguido, assim confirmando a douta sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 4 UC’s.

Coimbra, 9 de Setembro de 2015

(Jorge França - relator)

(Fernanda Ventura - adjunta)