Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
322/14.3TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA
TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 06/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 892º DO NCPC; 81º E 130º, Nº 1, AL. A), AMBOS DA LEI N°62/2013, DE 26/8.
Sumário: Compete à Instância local e não à Secção de Família e Menores que exista na comarca preparar e julgar as acções de interdição por anomalia psíquica.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - a)M... instaurou, em 21/01/2014, no Tribunal Judicial de Leiria, contra J..., seu marido, acção de interdição por anomalia psíquica.

A Mma. Juiz do 5º Juízo Cível do referido Tribunal Judicial, por despacho de 19/05/2014, mandou dar a publicidade que determina o artº 892º do novo Código de Processo Civil[1] (doravante designado como NCPC, para o distinguir daquele que o precedeu e que se passará a referir como CPC), mandando, também, citar o Requerido.

Não se tendo conseguido a citação do Requerido, em virtude de, conforme se certificou, estar o mesmo impossibilitado de a receber, nomeou-se-lhe como tutora, a sua filha, C..., cuja citação para contestar se ordenou.

Na sequência da entrada em vigor, em 01/09/2014, das normas da Lei n.º 62/2013, de 26/08, e do DL nº 49/2014, de 27/03, os autos vieram a ficar afectos à Instância Local - Secção Cível - J2, da Comarca de Leiria, tendo a Mma. Juiz desse Tribunal, após cumprimento do contraditório, por despacho de 17/02/2015 (que despois veio a ser reformado, quanto a custas, pelo despacho de 09/04/2015), declarado incompetente, em razão da matéria, a referida Instância Local, declarando que tal competência para conhecer da acção em causa pertencia à 2ª Secção de Família e Menores - Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria.

b) - Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso dessa decisão, tendo, nas alegações desse recurso, formulado as seguintes conclusões:

«1. Os presentes autos versam sobre a decisão do Mm. Juiz a quo, de se declarar incompetente, em razão da matéria, para julgar a presente acção de interdição, por entender que a mesma, face ao disposto no art. 122.º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto, mais concretamente, da alínea g), é da competência do Tribunal de Família e Menores.

2. No sentido social, entende-se estado civil como a existência e condições da existência do indivíduo perante a lei civil (solteiro, casado, viúvo ou divorciado), o que em nada está relacionado com as situações julgadas e decididas nas acções de interdição ou seja, situações de incapacidade para o governo da sua pessoa e dos seus bens.

3. O facto das acções de interdição serem objecto de registo, nos termos do disposto no art. 1º do Código de Registo Civil, não implica que estas assumam natureza de acção de estado civil, uma vez que no art. 1º do Código de Registo Civil encontram-se elencados vários factos, cujo registo, não obstante ser obrigatório, v.g., declaração de insolvência, em nada estão relacionados com o “estado civil das pessoas”.

4. As acções de interdição não versam sobre o estado civil das pessoas, propriamente dito, mas sim sobre uma situação pessoal que afecta a capacidade de exercício de direitos do indivíduo.

5. O instituto da interdição e da inabilitação encontram-se reguladas na lei substantiva no Livro I (parte geral), Título II (das Relações Jurídicas), Subtítulo I (das pessoas), Secção V (incapacidades), subsecção I e II, a par com a maioridade e emancipação (subsecção I e II), releva, uma vez que, a interdição, tal como a menoridade, constituem modalidades de incapacidade para o exercício de direito, colocando-se as questões relacionadas com as mesmas, nomeadamente, a sua declaração, no plano da titularidade de situações jurídicas, relevante para efeitos de capacidade para ser parte em negócio jurídico.

6. Deste modo, é indubitável, que, por exemplo, no caso de incumprimento de contrato em que uma das partes é menor, legalmente representada, os tribunais chamados para resolver a questão não serão os tribunais de Família e Menores, mas sim, os tribunais de instância central ou local, apesar de se tratar de questão relacionada com menor.

7. Atendendo aos princípios proclamados pela “nova organização judiciária”, nomeadamente o espírito de especialização judiciária, apenas as questões de menores e família devem ser tratadas nos Tribunais de Família e Menores.

8. Por tudo o exposto, não podia o despacho declarar incompetente em razão da matéria a Instância Local Cível de Leiria, por o ser a Instância Central de Família e Menores do Tribunal de Judicial da Comarca de Leria (2ª Secção), devendo, antes, verificar-se os ulteriores termos do processo.».
II - Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, e 639º, nº 1, ambos do NCPC, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, no domínio da legislação pretérita correspondente, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586[2]).
A questão objecto do presente recurso consiste em saber se, para a acção de interdição, o tribunal materialmente competente é a Instância Local Cível de Leiria, ou, antes, se é a 2ª Secção de Família e Menores - Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria.

III - a) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I - supra.

A questão a solucionar, acima enunciada, colocou-se já a esta Relação de Coimbra no âmbito dos autos de recurso de apelação nºs 1579/14.5TBLRA.C1, tendo aí sido resolvida, pelo ora Relator - em termos que merecem agora a plena concordância deste Colectivo -, mediante a decisão sumária de 10 de Março de 2015, consultável em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/b72713c49b3e08a180257e12003e226a?OpenDocument.

Em face do que se acabou de expor, passa-se a transcrever, em itálico, o teor da fundamentação dessa decisão sumária de 10/03/2015:

«[…]b) - De acordo com o artº 81º da Lei n°62/2013, de 26/8, os tribunais de comarca, desdobram-se em Instâncias centrais, que integram secções de competência Especializada (nº1, a) do artigo) - nestas podendo ser criadas, entre outras, secções de competência especializada de “Família e menores” (nº 2, d)) -, e em Instâncias locais, que integram secções de competência de competência genérica (que podem, por sua vez, ser desdobradas em secções cíveis, em secções criminais e em secções de pequena criminalidade - nº 3, do artº 81º, cfr. tb., artº 130º, nº 2) e secções de proximidade (nº1, b)).

As secções de competência genérica, integrando, como se viu, a Instância Local, têm competência residual, cabendo-lhes, de harmonia com o disposto no artº 130º, nº 1, da Lei n°62/2013:

«a) Preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da instância central ou tribunal de competência territorial alargada;

b) Proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, onde não houver secção de instrução criminal ou juiz de instrução criminal;

c) Fora dos municípios onde estejam instaladas secções de instrução criminal, exercer as funções jurisdicionais relativas aos inquéritos penais, ainda que a respetiva área territorial se mostre abrangida por essa secção especializada;

d) Exercer, no âmbito do processo de execução, as competências previstas no Código de Processo Civil, onde não houver secção de execução ou outra secção ou tribunal de competência especializada competente;

e) Julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação, salvo os recursos expressamente atribuídos a secções de competência especializada de instância central ou a tribunal de competência territorial alargada;

f) Cumprir os mandados, cartas, ofícios e comunicações que lhes sejam dirigidos pelos tribunais ou autoridades competentes;

g) Exercer as demais competências conferidas por lei.»

As Secções de família e menores têm a sua competência repartida pelos artºs 122º, 123º e 124º, da Lei n°62/2013, respectivamente, sob as epígrafes “Competência relativa ao estado civil das pessoas e família”, “Competência relativa a menores e filhos maiores” e “Competências em matéria tutelar educativa e de proteção”.

Ora, de acordo com o art.º 122º da Lei n°62/2013, de 26/8, às secções de família e menores compete, entre o mais, “preparar e julgar” “Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.” (alínea g) do nº 1 do artigo).

A alicerçar a decisão impugnada esteve, essencialmente, a seguinte consideração: As acções de interdição integram-se na alínea g) do n° l do artigo 122° da Lei n°62/2013, de 26/8, por serem acções relativas ao estado civil das pessoas.

Ora, salvo o devido respeito, discordamos deste entendimento, adiantando a advertência de que, a jurisprudência que citarmos para conforto da nossa posição, se reporta à questão que semelhantemente se colocava no âmbito da pretérita legislação de organização judiciária (v.g., da Lei nº 52/2008 de 28/08).

Na verdade a questão que aqui se debate, como nota o Ministério Público, colocava-se em termos similares no âmbito da pretérita legislação de organização judiciária, passando pela interpretação da al. h) do art. 114º da Lei nº 52/2008 de 28/08[3] - a que corresponde a al. g) do nº 1 do art.º 122º da Lei n°62/2013 - tendo sido resolvida, maioritariamente, no sentido de que a competência material para as acções de interdição cabia aos Juízos cíveis e não aos Juízos de família e menores.

“Brevitatis causa”, dir-se-á, por um lado, que, como se salienta no Acórdão da Relação de Lisboa, de 18 de Outubro de 2012 (Apelação nº 12983/12.3T2SNT.L1-2)[4] «…na linguagem corrente “estado civil” reporta-se ao posicionamento dos cidadãos face ao matrimónio (casado, solteiro, divorciado, separado, viúvo), nada tendo a ver com as situações de incapacidade para o governo da sua pessoa e dos seus bens. Por outro lado, o próprio legislador utiliza por vezes o conceito com esse sentido mais restrito...».

E foi, segundo se julga, tendo em mente que o legislador, no caso que aí versou, utilizou a expressão com esse sentido “mais restrito” que se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29/05/2012 (Apelação nº 3928/12.1T2SNT.L1-1)[5], que «…as acções de interdição não versam sobre o estado civil das pessoas, tendo a ver com uma situação pessoal que lhes afecta a sua capacidade de exercício de direitos…», mais se tendo acrescentado nesse aresto, que «…o facto das acções sobre o estado das pessoas pressuporem um registo, como nas acções de interdição, tal não implica que estas assumam essa natureza.».

Sobre esta perspectiva, escreveu-se no Acórdão do STJ, de 13/11/2012 (Revista nº 13466/11.4T2SNT.L1.S1)[6]: «…na acepção do conceito mais restrito de estado civil abrange a posição da pessoa face ao matrimónio (solteiro, casado, divorciado, separado, viúvo) e está usado nomeadamente nos arts. 7º, nºs 1 e 2; 69º, al. n), 220º-A, 126º, nº 1 als. a) e b), 132º, nº 2, e 136º, nº 2 al. a), todos do Código de Registo Civil.

Já o conceito mais amplo de estado civil abrange os factos sujeitos a registo, e está usado no art. 211º do mesmo Cód. de Registo Civil.

Como dissemos já, a redacção da apontada al. h) não prima pela clareza e até pela correcção sob o ponto de vista gramatical.

Porém, pensamos que a referência na parte final à palavra família se tem de entender como referida às acções sobre o estado civil das pessoas, ou seja, fazendo qualificar o conceito de estado civil usado no seu sentido restrito.».

Entendemos, assim, ao invés do Exmo. Juiz do Tribunal “a quo”, que a utilização da conjunção “e” permite concluir que a competência para as acções referentes ao estado civil previstas na mencionada alínea g) está subordinada à condição destas respeitarem à aludida acepção restrita desse “estado”, tendo essas acções, como se diz no citado Acórdão do STJ, de 13/11/2012, “de ser reguladas pelo Direito da Família.”.

Por outro lado, entendemos que reforça a ideia de que a competência para as acções de interdição não compete à “jurisdição” de família e menores, a previsão do artº 140º do Código Civil, quando estatui, sob a epígrafe “Competência dos tribunais comuns”, que “Pertence ao tribunal por onde corre o processo de interdição a competência atribuída ao tribunal de menores nas disposições que regulam o suprimento do poder paternal.”.

Finalmente, o argumento histórico também aqui é revelador, evidenciando-se o seguinte no citado Acórdão do STJ, de 13/11/2012:

«De qualquer modo, pensamos que o grande argumento é de ordem sistemática ou histórica.

Os Tribunais de Família foram criados pela Lei nº 4/70 de 29/4 e vieram a ser regulamentados pela primeira vez, pelo Decreto-Lei nº 8/72 de 7/1.

Neste e nos diplomas que se seguiram a regular tal competência especializada e até à presente LOFTJ, se previu como competência dos mesmos, o conhecimento de acções que versassem o ramo do Direito Civil: Direito da Família.

E mesmo as acções que versassem o aludido ramo do Direito Civil nem todas foram cometidas àqueles tribunais.

Assim, as acções de investigação de paternidade que aplicam normas de Direito da Família, no ramo da Filiação, continuaram a ser da competência dos tribunais cíveis, até à alteração introduzida na competência daqueles tribunais pela Lei nº 52/2008, como já referimos.

Deste modo, se o legislador pretendesse romper com esta longa tradição já sedimentada, estendendo a competência daquele tribunal de competência especializada a um tipo de acções de verificação frequente nos tribunais, mas em que não há lugar à aplicação de normas de Direito da Família, não teria deixado de o fazer de forma mais clara ou expressa no texto da lei.».

Transposto, com as devidas adaptações, para os termos da questão de que tratamos, importa, pois, concluir, que o entendimento que seguiram os citados arestos e, em particular, o Acórdão do STJ, de 13/11/2012 (Revista nº 13466/11.4T2SNT.L1.S1), com o qual se concorda por inteiro, leva a que se considere que a competência material para a acção de interdição ora em causa não encontra cabimento na alínea g) do nº 1 do artigo 122º da Lei n°62/2013, mas sim na alínea a) do nº 1, do artº 130º da mesma lei, pelo que compete ao Tribunal “a quo” e não à 2ª Secção de Família e Menores - Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria. […]».

Assim, tal como nos autos de onde se extraiu o que se acaba de transcrever, também no presente caso tem de se concluir que o Tribunal “a quo” é o competente, em razão da matéria, para preparar e julgar a acção, sendo de revogar a decisão recorrida, que, negando essa competência, atribuiu-a à 2ª Secção de Família e Menores - Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria.

Concluindo, poder-se-á, pois, sumariar: “Compete à Instância local e não à Secção de Família e Menores que exista na comarca, preparar e julgar as acções de interdição por anomalia psíquica.”.

IV - Nos termos expostos, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação procedente, pelo que, revogando o despacho recorrido, declaram o Tribunal “a quo” competente, em razão da matéria, para preparar e julgar a acção de interdição em causa, determinando que aí prossigam os ulteriores termos desse processo.

Sem custas.

Coimbra, 02/06/2015

         (Luís José Falcão de Magalhães)

             (Sílvia Maria Pereira Pires)

(Henrique Antunes)


[1] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.
[2] Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, tal como todos os Acórdãos do STJ ou os respectivos sumários que adiante se citarem sem referência de publicação.
[3] Segundo essa norma da Lei 52/2008, competia aos juízos de família e menores preparar e julgar “Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família.”.
[4] Relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Leal e consultável, tal como os restantes Acórdãos da Relação de Lisboa que vierem a ser citados sem referência de publicação, em “http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf?OpenDatabase”.
[5] Relatado pela Exma. Desembargadora Rosário Gonçalves.
[6] Relatado pelo Exmo. Sr. Conselheiro João Camilo.