Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
35/12.0PFVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: USURPAÇÃO
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
MÚSICA DIFUNDIDA ATRAVÉS DE SISTEMA DE AMPLIAÇÃO DE SOM
Data do Acordão: 10/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA CENTRAL DE VISEU - SECÇÃO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 149.º, 2, 155.º, 195.º E 197.º, DO CÓDIGO DO DIREITO DE AUTOR E DOS DIREITOS CONEXOS
Sumário: A difusão de música, em estabelecimento comercial, através da aplicação, a um aparelho de rádio, de sistema de ampliação de som, não configurando uma nova utilização da obra transmitida, não carece de autorização do autor da mesma; consequentemente, não integra a prática do crime de usurpação p. e p. pelos artigos 195.º e 197.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
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No âmbito da Instrução nº 35/12.0PFVIS que corre termos pelo J1 da Inst Central - Sec. Inst. Criminal da comarca de Viseu, o JIC proferiu decisão instrutória de não pronúncia do arguido, com os demais sinais dos autos, por um crime de usurpação, p.p. Artigo 194º, 195º e 197º do CDADC, ou qualquer outro, mantendo o despacho de arquivamento.

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Inconformada com o despacho de não pronúncia recorreu a assistente A... , pedindo a revogação daquele e a sua substituição por outro que pronuncie o arguido pelo aludido crime de usurpação.

Apresentou para tal as seguintes conclusões:

“a)       Nos presentes autos, entendeu a Meritíssima Juiz "a quo" não pronunciar o arguido B... pelo crime de usurpação;

b)         Já que entendeu a Meritíssima Juiz "a quo" não ser necessário o arguido ter autorização dos autores, ou de quem os represente, para proceder à emissão de obras radiodifundidas no seu estabelecimento comercial;

c)         A recorrente entende que a decisão merece reparo e deverá ser alterada por outra que pronuncie o arguido pela prática de um crime de usurpação;

d)         Porquanto, em 30 de Junho de 2012, pelas 00h25, o arguido, B... , na qualidade de gerente da sociedade "T ... , Lda.", que explorava o estabelecimento comercial "T ... " promovia a execução pública de obras intelectuais protegidas pelo direito de autor.

e)         Para efeito da difusão das obras, o arguido tinha no seu estabelecimento, um equipamento de som, ligado a três colunas, de som através das quais o som era propagado.

f)         O arguido não tinha qualquer autorização dos autores, ou da entidade que os representa, a ora Recorrente, para difundir obras intelectuais protegidas para os clientes que estavam no estabelecimento;

g)         A comunicação da obra em local público é uma utilização diferente da radiodifusão, que implica a obtenção de uma autorização diferente daquela que o autor, ou o seu representante, haviam concedido para efeitos de radiodifusão. Assim, a autorização concedida à entidade de radiodifusão não se estende ao explorador de um estabelecimento comercial, e, por consequência, este não se pode servir da autorização que havia sido concedida àquela;

h)         Sempre que uma obra radiodifundida seja utilizada em local público, num estabelecimento comercial, como no caso dos autos, será sempre necessária autorização dos autores, certo sendo que a sua falta configura a prática de um crime de usurpação previsto e punido nos termos do artigo 195° do CDADC;

i)          Termos em que a decisão recorrida deverá ser alterada por outra que condene o arguido pela prática de um crime de usurpação;

j) A decisão recorrida sustenta uma interpretação diferente da Lei, que resulta de uma interpretação incorrecta do conceito de comunicação de obra ao público, que tem origem no direito da União Europeia, em particular na Directiva 2001/29/CE;

I) A generalidade das legislações internas dos países pertencentes à União Europeia, as quais de baseiam na Convenção de Berna, e, mais recentemente, se sustentam nas Directivas aprovadas e já transpostas para os diversos ordenamentos jurídicos internos, tal como acontece com o ordenamento jurídico português, consagra, de forma muito clara e evidente, o direito dos autores receberem a remuneração que lhes é devida pela comunicação de obras em local público;

m) A orientação doutrinária sustentada na decisão de que se recorre coloca em causa o princípio da aplicação harmonizada e coerente do direito de autor na União Europeia, n) Embora este entendimento não ofereça dúvidas à recorrente, caso assim não se entenda, sugere a recorrente que o Tribunal as afaste, colocando as seguintes questões ao Tribunal de Justiça:

(i)        O conceito de comunicação de obra ao público previsto no artigo 3º n.° 1 da Directiva 2001/29/CE deve interpretar-se como abrangendo a transmissão de obras radiodifundidas, em estabelecimentos comerciais como bares, cafés, restaurantes, ou outros com características semelhantes, através de aparelhos televisores receptores e cuja difusão é ampliada por colunas e/ou amplificadores, configurando, nessa medida, uma nova utilização de obras protegidas pelo direito de autor?

(ii)       A utilização de colunas e/ou amplificadores, ou seja, de meios técnicos distintos do aparelho televisivo receptor para ampliar a recepção de som influencia a resposta à questão anterior?

Termos em que, e nos mais de direito, se requer a V. Exas., Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra, colham a argumentação expendida, revogando a decisão instrutória recorrida, substituindo-a por outra que pronuncie o arguido B... pela prática do crime de usurpação, p. e p. pelos artigos 195° e 197° do CDADC.”

Respondeu o MP pugnando pela improcedência do recurso tendo para tal formulado as seguintes conclusões:
1 - Não se verificam in casu condições para revogação da decisão de não pronúncia do arguido.

2 - A instalação das colunas ligadas ao rádio nada acrescentava ou alterava à emissão.

3 - O STJ uniformizou e fixou jurisprudência, no Acórdão n.º 15/2013, de 13/11, publicado no D.R. de 16 de dezembro, considera que a distribuição do som feita por colunas distribuídas por vários pontos do estabelecimento comercial, que ampliam o som, não sendo estas parte integrante do televisor ou radiofonia, não extravasa a mera receção, que é livre, não configurando assim uma nova transmissão do programa.

Assim, mantendo-se a douta decisão que não pronunciou o arguido, farão, Vossas Excelências, como sempre, e mais uma vez,

JUSTIÇA.

*

Respondeu também o arguido, nos seguintes termos:

Parece estar em questão a interpretação do significado do n.º 2 do artigo 149° do CDADC: “Depende (...) de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens”. Sendo certo que o n.º 3 acrescenta ainda ser “lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela e ainda que com reserva declarada do direito de admissão”. O artigo 155° prevê ainda que “É devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida, por altifalante ou por qualquer outro instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens”.

Ora, a doutrina e a jurisprudência portuguesas consideram maioritariamente que é necessário distinguir entre a mera receção e a reutilização da obra, que supõe uma certa “estrutura técnica organizativa” (v. Acórdão STJ n.º 15/2013, Diário da República, 1.a série - N.° 243 - 16 de dezembro de 2013), só neste segundo caso se devendo conferir ao autor da obra direito a remuneração.

Refere o Acórdão do STJ n.º 15/2013 que o n.º 2 do artigo 149.º “tem de reportar-se a situações em que a transmissão acrescenta, modifica ou inova, constituindo assim uma nova utilização da obra. (...) Essa nova utilização passa necessariamente por uma qualquer modificação por meios técnicos na forma de receção, em ordem a aproveitá-la para produzir um efeito visual ou sonoro espetacular, para criar uma encenação que a mera receção do programa radiodifundido não provocaria. Será esse normalmente o caso quando a receção é convertida ela própria num espetáculo, organizado em estabelecimentos públicos, em tomo de eventos desportivos ou musicais, haja ou não entradas pagas, mas publicitado, eventualmente com um arranjo ou decoração especial do espaço, tudo com vista à captação de uma audiência alargada, pelo menos mais alargada do que aquela que normalmente acorreria ao estabelecimento.” (V., neste sentido o Ac. do Tribunal de Justiça da União Europeia de 4.10.2011, procs. n.ºs 403/08 e 429/08, citação minha)

Acrescenta o STJ no referido acórdão que “ Aceitar-se-á a mesma solução quando se tratar de uma receção multiplicada, como acontece nos estabelecimentos hoteleiros, em que a receção é distribuída nos quartos e salas comuns, o que se traduz, para além da amplificação exponencial do sinal adiodifundido, num serviço extra prestado pelo hotel aos hóspedes, suscetível de atrair clientela, e por consequência lucros, pelo que se pode considerar uma reutilização da obra, sendo por ela devida uma remuneração”. (V. o Ac. do Tribunal de Justiça da União Europeia de 15.3.2012, proc. n.º C -162/10, citado pelo Ac. STJ n.º 15/2013).

Conclui o STJ “Mas já não será o caso da mera receção em cafés ou bares abertos à generalidade das pessoas, sem obrigação de pagamento de entrada, estabelecimentos que representam tradicionalmente lugares de convivência ou reunião, sobretudo nos meios pequenos, mas não só neles, nos quais a captação de programas televisivos pode funcionar ocasionalmente como chamariz especial, mas normalmente apenas serve a clientela habitual, para a qual não constitui nenhum atractivo”.

(Aqui se inserirá o caso agora em apreço).

Assim o Supremo Tribunal de Justiça decidiu fixar a seguinte jurisprudência:

“A aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149.°, 195.° e 197.° do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos”;

Ou seja, havendo mera receção da obra não é necessária autorização do autor.

Alega ainda a recorrente que a interpretação que o Tribunal de Justiça tem feito dos princípios e das normas da Diretiva 2001/29/CE levará a considerar que em situações idênticas às dos autos estaremos perante uma nova utilização de obras protegidas pelo direito de autor, o que, no estrito respeito pelos princípios basilares do direito de autor, implicará a obtenção de uma nova autorização, divergindo assim da orientação doutrinária e jurisprudencial portuguesa, a qual violará o princípio da aplicação harmonizada e coerente do direito de autor na União Europeia

Pelo contrário, pensamos que a divergência não é assim tão grande.

O Tribunal de Justiça tem considerado, quanto ao conceito de “comunicação ao público”, que o mesmo implica uma apreciação caso a caso, assim também quanto à identidade do utilizador e utilização do fonograma em causa. Para efeitos da referida apreciação importa ter em conta vários critérios complementares, de natureza não autónoma e interdependentes entre si. (V. Ac. do Tribunal de Justiça da União Europeia de 15.3.2012, proc. n.º C-135/10)

A questão é a de saber se o uso de música ambiente (rádio) num café constitui ou não uma “comunicação ao público”. O Tribunal de Justiça da União Europeia tem usado três critérios para proceder a essa apreciação: 1- O papel do utilizador: 2- O conceito de público; 3- E o carácter lucrativo;

Em primeiro lugar, o utilizador permite aos seus clientes ouvir música como música ambiente, o que não sucederia sem a sua intervenção, promovendo a execução pública de obras protegidas, num local sob a sua responsabilidade.

Em seguida, é decisivo o caráter público ou privado da utilização em causa e não, porém, o caráter público ou privado do lugar onde esta utilização ocorre. (V. n.º 151 das Conclusões da advogada-geral, apresentadas em 29 de junho de 2011 no proc. C- 162/10) Assim, público tem sido definido em vários acórdãos como um número indeterminado de potenciais destinatários e um número de pessoas bastante significativo. (V. neste sentido também o Ac. do Tribunal de Justiça da União Europeia de 27.02.2014, proc. n.º C-351/12, n.º 27 e o Ac. do Tribunal de Justiça da União Europeia de 15.03.2012, proc. n.º C-135/10, n.º 84) O termo indeterminado refere-se a pessoas em geral e não a indivíduos concretos pertencentes a um grupo particular. Necessário é apurar ainda se ouvem música simultaneamente, se o acesso é simultâneo ou se se vai fazendo sucessivamente. No presente processo, quando do ato de fiscalização, apenas um pequeno número de pessoas estava no café. Neste tipo de cafés o número de pessoas costuma ser pequeno e limitado, geralmente não ouvem música ao mesmo tempo. Será um grupo constante e determinado, habitantes de um meio pequeno, clientes habituais que não utilizarão a música como critério de escolha do café. Tal sucederia se estivesse organizado de outra forma, conforme apontado no referido Acórdão do STJ n.º 15/2013, se tivesse convertido a receção num espetáculo.

Em terceiro lugar, quanto ao carácter lucrativo poderemos interrogar-nos se o uso do rádio, da música tem por objectivo o lucro. O uso de música ambiente tem influência no rendimento ou no número de clientes? Aumenta o preço dos bens consumidos? O acesso à música não parece ser resultado da própria escolha dos clientes. Não parece que haja grande recetividade por parte dos frequentadores, a ponto de se poder falar de um grande número de pessoas, de clientes, não tendo consequentemente significado económico para o dono do estabelecimento. (V. no mesmo sentido o Ac. do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 15.03.2012, proc. n.º C-135/10)

Para concluir, na nossa opinião, também à luz da interpretação que o Tribunal de Justiça tem feito dos princípios e das normas da Diretiva 2001/29/CE haverá mera receção e não uma reutilização da obra, pelo que não é necessária a autorização do autor.

Pelas razões já referidas, com a decisão de arquivamento, salvo melhor opinião, parece estar salvaguardado o princípio da unidade da ordem jurídica da União e sua coerência.

Termos em que, não dando provimento ao recurso interposto pela assistente A... , CRL e confirmando o despacho de não pronúncia, farão vossas excelências justiça.”

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Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, elaborou parecer cujo teor, em parte, passamos a reproduzir:

“No que ao mérito do recurso respeita, acompanha-se a resposta apresentada pelo Ex.m° M MP na Secção de Instrução Criminal da Instância Central da comarca de Viseu.

Com efeito, tendo em conta o constante do AFJ citado no despacho de arquivamento e na decisão recorrida, não me parece que a recorrente tenha razão, pois aí se definiu o conceito de comunicação, que refere na sua motivação, em termos que não consentem a sua aplicação no caso dos autos, já que as colunas em causa nada acrescentam ou alteram à emissão radiofónica. Nenhuma recriação do programa transmitido era produzida. Insiste-se: o que as colunas permitiam era a melhoria da captação do som, como afirma a final o mencionado acórdão, após precisar que o conceito de comunicação do n.º 2 do art.° 149.º do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos é uma modalidade de utilização da obra diferente das previstas no n.º 1 (transmissão e retransmissão), distinguindo esta, traduzida na mera receção (captação dos sinais), da reutilização da obra, situação prevista no n.º 2 do art. 149.º. Este preceito tem de reportar-se a situações em que a transmissão acrescenta, modifica ou inova, constituindo assim uma nova utilização da obra. Só assim tem sentido conferir ao autor da obra direito a nova remuneração. E conclui, após apontar situações de reutilização: Daí que a situação se enquadre inteiramente no plano da recepção da radiodifusão.

Face ao exposto não ocorrendo nos autos através da difusão pelas colunas, que apenas permitiam melhorar a captação de som, qualquer reutilização da obra, qualquer nova utilização desta, qualquer comunicação diferente a um público diferente, não pode a situação em causa constituir ilícito penal como pretende a recorrente.

Quanto à questão prejudicial anote-se apenas que o AFJ, cujo acolhimento é obrigatório, teve em conta o conceito de comunicação definido pelo TJ das Comunidades nas referências que faz para decisões deste sobre o assunto, designadamente quando refere a recepção multiplicada em estabelecimento hoteleiro, onde indica, na nota 7, o ac. de 15.3.2012, proc. n° C-162/10 (a que se poderia acrescentar o de 7 /12/ 2006 proc. C-306/05), ou quando alude à transmissão televisiva em cafés, mencionando em sentido contrário ao que aí se afirma o ac. de 4.10.2011, procs. n.ºs 403/08 e 429/08 (importando contudo atentar que, neste último caso, a destrinça no conceito de comunicação se reporta a público presente ao evento - o que estava em causa era a transmissão televisiva de jogos de futebol através de retransmissores não comercializados no país em causa - e público dele ausente, mas que pode visualizar, através da retransmissão, aquele, o que no caso da transmissão de música de um estúdio, como ocorre na situação dos autos, não se verifica, sendo certo que a situação ali em apreço, pela ambiência que envolve, bem diferente da que referem os presentes autos, se poderá enquadrar na visualização de eventos desportivos a que se reporta o AFJ, o qual também menciona, a propósito das transmissões televisivas, o seu carácter anódino - normalmente apenas serve a clientela habitual para a qual não

constitui nenhum atrativo). Daí que não pareça existir a divergência mencionada pela recorrente, justificativa do pedido de reenvio prejudicial.

Pelo que sou de parecer que o recurso não merece provimento.”

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Respondeu a A... no sentido assinalado na motivação do recurso.

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É o seguinte o teor da decisão instrutória:

“l - Relatório:

Iniciaram-se os presentes autos com a notícia, que no dia 30.6.2012, no TASTE CAFÉ, estabelecimento de restauração, estava a ser difundida música, através de 3 colunas de som, estando o rádio PIONNER colocado no balcão, sintonizado na Antena 3.

Do auto consta ainda que o estabelecimento não possuía licença para tal.

O Ministério Publico arquivou os autos com fundamento no ac. do STJ n.º 15/2013.

A assistente veio requerer a abertura de instrução, pedindo a pronúncia do arguido por um crime de usurpação, p.p.p artigo 195 do CDADC

Foi admitida a instrução.

Procedeu-se à realização de debate instrutório.

***

O Tribunal é competente e as partes são legítimas.

Não há qualquer questão prévia ou incidental que cumpra conhecer.

***

II - Fundamentação da decisão:

Cabe agora proferir a decisão a que alude o art. 307° do CPP.

Tal como refere o art. 286°, n°1 do CPP “ A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

De acordo com o artigo 308°, n°1 do mesmo diploma preceitua que: “ Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Por sua vez o art. 283°, n.º 2 refere que: “ Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Assim, sendo este o entendimento legal em que deve assentar a prolação de despacho de pronúncia ou de não pronuncia, do mesmo resulta que o despacho de pronúncia só deve ser proferido se se poder formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança”.

Desde logo, na situação concreta há que ter em conta os seguintes artigos 68°, 149°, 155°, 195° e 197°, todos do CDADC.

Assim, o artigo 68, n°2, al. e) estipula que:

A exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se, segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos atualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser.

2 - Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes: a) (...);

e) A difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens e a comunicação pública por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras óticas, cabo ou satélite, quando essa comunicação for feita por outro organismo que não o de origem;

Por seu turno o artigo 149 estipula que :

“1 - Depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual da obra, tanto direta como por retransmissão, por qualquer modo obtida.

2 - Depende igualmente de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens.

3 - Entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, ainda que com reserva declarada do direito de admissão”.

O artigo 155 estipula que:

“É devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida, por altifalante ou por qualquer outro instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens”.

O artigo 195 acrescenta que :

1 - Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código.

2 - Comete também o crime de usurpação:

a) Quem divulgar ou publicar abusivamente uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo seu autor ou não destinada a divulgação ou publicação, mesmo que a apresente como sendo do respetivo autor, quer se proponha ou não obter qualquer vantagem económica;

b) Quem coligir ou compilar obras publicadas ou inéditas sem autorização do autor;

c) Quem, estando autorizado a utilizar uma obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão radiodifundida, exceder os limites da autorização concedida, salvo nos casos expressamente previstos neste Código.

3 - Será punido com as penas previstas no artigo 197 ° o autor que, tendo transmitido, total ou parcialmente, os respetivos direitos ou tendo autorizado a utilização da sua obra por qualquer dos modos previstos neste Código, a utilizar direta ou indiretamente com ofensa dos direitos atribuídos a outrem”.

Finalmente o 197 estipula que:

“1 - Os crimes previstos nos artigos anteriores são punidos com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infracção, agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência, se o facto constitutivo da infracção não tipificar crime punível com pena mais grave.

2 - Nos crimes previstos neste título a negligência é punível com multa de 50 a 150 dias.

3 - Em caso de reincidência não há suspensão da pena".

Dúvidas não existem que a criação literária e artística carece de proteção e recebe a tutela do Direito de Autor, vertida no CDADC.

Com o CDACD protegem-se bens de carácter pessoal e direitos patrimoniais.

A questão a decidir nos presentes autos resume-se a uma discussão de direito, nomeadamente de saber se não fazendo as colunas que ampliam o som parte integrante do rádio, a distribuição do som, que por elas é feita, extravasa a mera receção, passando a configurar uma nova transmissão do programa.

Tal questão de direito originou na jurisprudência alguma divisão, terminando com o ac. do STJ a que alude a Digna Procuradora Adjunta no seu despacho de arquivamento.

Dúvidas não existiam, a nosso ver, que art.° 149°, n.º 2 do CDADC não prevê a mera receção de emissões de radiodifusão, que é livre, mas a transmissão daquelas emissões.

A mera receção de uma emissão radiodifundida em estabelecimentos comerciais é livre, sendo que o que se discutia é se a futura transmissão daquela receção, nomeadamente através de colunas constituía, ou não crime.

A este propósito escrevia Oliveira Ascensão:” Princípio fundamental nesta matéria é o da liberdade de recepção (...) seria absurdo sujeitar as duas autorizações o mesmo programa, com a consequente dupla cobrança, na fonte e no destino. Na realidade, quem possuir um receptor pode utilizá-lo livremente, pois a autorização inicial para a radiodifusão abrange já a posterior recepção”.

Os defensores de que não constituía crime argumentavam, basicamente que a mera existência de colunas de ampliação do som difundido por radiofonia ou televisor não transforma o ato de receção livre em (re)transmissão do programa, não se adulterando por essa forma a utilização da obra transmitida através daqueles aparelhos. De facto, o que se dizia era que a utilização das colunas em nada alterava a utilização da obra transmitida através da televisão uma vez que quer a imagem quer o som eram exatamente os que o canal sintonizado transmitia.

Os defensores de que não constituía crime, salientavam, ainda, a necessidade de distinguir entre a mera receção e a reutilização da obra, pois só quando se dava esta última é que fazia sentido conferir ao autor da obra direito a nova remuneração.

Acontece que esta questão ficou decidida através do UF de 13.11.2013, DR, I SÉRIE, 243, 16.12.2013, que estipulou que: “A aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149°, 195° e 197° do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos”.

Ora, concordamos na íntegra com os fundamentos que constam do acórdão, aplicável, por maioria de razão às situações do som ser difundido não por televisão, mas por rádio.

Assim, e não obstante, o mesmo, nos termos do artigo 445, n°3 do CPP não constituir jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, nada mais temos a acrescentar, sendo que, só em caso de divergência do acórdão é que a mesma deveria ser fundamentada.

Assim, bem andou a Sr.a Procuradora Adjunta ao arquivar os autos, não assistindo razão ao assistente.

Perante tal, e tratando-se exclusivamente de uma questão de direito, o Tribunal não descrimina os factos indiciados e os não indiciados, não obstante duvidas não existirem que os factos que constam do auto de notícia se encontram suficientemente indiciados.

Pelo exposto:

III - Decide-se:

Não Pronunciar o arguido, por um crime de usurpação, p.p.p artigo 194, 195 e 197 do CDADC, ou qualquer outro, mantendo o despacho de arquivamento.

Custas pela assistente, sem prejuízo das isenções legais.

Notifique.”

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Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.*

O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões, é saber se os factos indiciados integram ou não a prática pelo arguido de um crime de usurpação p. e p. pelos arts. 195º e 197º, CDADC.

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São finalidades da instrução, assinaladas no nº 1 do art. 286º do C.P.P., a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou o controlo judicial da decisão do MºPº de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento.

Em consequência da estrutura acusatória do processo, “o juiz de instrução está vinculado (…) aos termos da própria acusação ou do requerimento instrutório do assistente”, que assim limitam o objecto do processo.

No quadro traçado, o despacho de pronúncia será resultado da recolha até ao encerramento da instrução, de indícios suficientes dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

Indícios suficientes nos termos do nº 2 do art. 283º, do CPP, aplicável por determinação expressa do nº 2 do art. 308º: a prova indiciária de que resulta uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança.

“A expressão indícios suficientes exige uma possibilidade particularmente qualificada de futura condenação, pressupondo a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade dessa condenação “ - O conceito de indícios suficientes no processo penal português, de Jorge Noronha e Silveira.

É claro que na fase da instrução, o grau de exigência quanto à consistência dos indícios é idêntico ao imposto ao juiz do julgamento quanto à certeza da infracção, pois que desenvolve também um juízo objectivo e apoiado no acervo probatório recolhido nos autos.

Como facilmente se constata por simples leitura do texto,a decisão revela que os factos indiciados não integram o crime imputado, aliás em conformidade com jurisprudência uniformizadora.

É claro que a posição adoptada não é única no País. Eventualmente será até minoritária no espaço europeu.

A questão que aqui se coloca é a de saber se a situação dos autos – difusão de obra radiodifundida em local público – configura uma mera recepção daquela ou antes uma nova utilização (recepção – transmissão), uma transmissão autónoma, dado que apenas esta última exige a obtenção de autorização dos respectivos autores e o direito a serem remunerados.
O
thema em apreço e a questão suscitada não têm vindo a obter uma solução consensual por parte da jurisprudência e da doutrina.

Com efeito, no sentido propugnado pelo despacho recorrido e pelo MP, assinalamos os Acs. RG, de 15-11-04, Proc. nº 1204/04-2; e de 2-7-07, Proc. nº 974/07-2, voto de vencido; e da RP, de 5-11-97, Proc. nº 9710719, in www.dgsi.pt; no sentido da verificação de uma nova transmissão cfr o Ac. RL, de 15-5-07, Proc. nº 72/2007, desta Secção, in www.dgsi.pt, e Oliveira Ascensão – Direito de Autor e Direitos Conexos, 1992, pg. 310 a 312.

A fundamentação aduzida no voto de vencido de Anselmo Augusto Lopes no Proc. nº 974/07-2, é aplicável ao critério normativo aqui em apreciação, mutatis mutandis, por isso que se transcreve:

“Nos termos do artº 195º, nº 1 do CDADC, comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código.

Diz o artº 4º do DL nº 42660, de 20-11-59:

O disposto no artigo anterior aplica-se de igual modo à recepção pública de emissões de radiodifusão visual em recintos que se destinem à exploração de outra actividade como principal, desde que aos espectadores seja exigida directamente qualquer importância para assistirem à recepção, ou, para este particular efeito, se faça reserva de mesas, se imponham consumos mínimos, se cobrem preços mais elevados do que os habituais, ou por qualquer outra forma, directa ou indirecta, se faça pagar o espectáculo.

E o § 2º do artº 39º do Decreto nº 42661, de 20-11-59 estabelece que:
Em relação aos recintos onde se fizer a recepção pública de emissões de radiodifusão visual o visto poderá ser aposto para o número de dias por que for requerido, independentemente do programa a exibir
.

Ora, no caso presente, quem difundia a obra em causa era a TV Cabo, como entidade emissora, e o arguido apenas ampliava um dos sinais, o de som, por tal forma que nada retirava ou acrescentava à obra em si, melhorando apenas, qualitativa e quantitativamente, o aspecto sonoro, o que também não cabe na previsão do artº 155º do citado Código, que prevê que é devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida, por altifalante ou por qualquer outro instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens, ou seja, prevê uma situação de transmissão autónoma.

No Parecer citado no aresto diz-se, sublinhando-se, que correspondentemente, o artigo 155º do CDADC só prevê o direito dos autores à remuneração pela comunicação pública das suas obras radiodifundidas nas situações de transmissão, isto é, de nova utilização ou aproveitamento nos termos atrás enunciados.
No caso, como se disse, a conduta do arguido não era uma actividade da recepção-transmissão, mas sim, se quisermos ser rigorosos, uma actividade de recepção-ampliação e só de um dos sinais, como se disse, mantendo-se a obra recebida e ampliada a mesma e sem qualquer violação dos direitos de autor.

A levar-se o entendimento tão longe como no acórdão em apreço, todos os locais onde estão instaladas colunas sonoras para difusão de música - locais de trabalho, estabelecimentos de restauração, edifícios públicos, etc. -, teriam que ser pagos direitos sem que se faça qualquer transmissão.

Por exemplo, comparativamente com aparelhos standard, um aparelho receptor da maior qualidade pode dispor de mais e melhores altifalantes e debitar muito mais decibéis e nem por isso transgride a lei.

E, por fim, diga-se que, se por qualquer meio técnico for possível ampliar também o sinal visual, não se vê como é que isso usurpe os direitos de autor e, em qualquer dos casos, crê-se que as aparelhagens amplificadoras (ou difusoras) não são susceptíveis de ser captadas por qualquer outra aparelhagem.

Nestes termos, repito, daria procedência ao recurso.”

*

Reportando-nos aos autos basta pensar na incongruência da diferente perspectiva e solução jurídica consoante o rádio tenha ou não em si mesmo incorporadas as colunas de som com qualidade. Porque sempre terá alguma necessariamente, sob pena de silêncio.

O que não deixa de suscitar o ridículo da operação intelectual que, segundo informação da recorrente, vem sendo adoptada nos restantes países da EU.

Oarguido limitou-se a ampliar os sinais de som, nada retirando, alterando ou acrescentando à obra radiodifundida, atendo-se somente a melhorar aqueles sinais, qualitativa e quantitativamente.

De resto, como se sublinha no mencionado da RG, de 2-2-07, “comparativamente com aparelhos standard, um aparelho receptor de maior qualidade pode dispor de mais e melhores altifalantes e debitar muitos mais decibéis e nem por isso transgride a lei, como não se transgride se por qualquer meio técnico for possível ampliar também o seu sinal visual, pois as aparelhagens amplificadoras (ou difusoras) não são susceptíveis de ser captadas por qualquer outra aparelhagem”.

Assim, a descrita actuação do arguido configura uma mera actividade de recepção dos sinais sonoros e visuais que estavam a ser radiodifundidos, a qual não se enquadra na previsão dos arts. 149º, 2 e 155º, CDADC, pelo que não se verifica qualquer violação dos direitos de autor (cuja satisfação in casu compete à estação de rádio emissora) pelo que, consequentemente, não se mostram preenchidos os elementos típicos do crime de usurpação p. e p. pelos arts. 195º e 197º, CDADC.
Em suma, entende este tribunal continuar a observar a jurisprudência uniformizada pelo ac. STJ de 13.11.2013.

Assim sendo, importa ponderar que «A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame” – Ac STJ 26-06-06.

Consequentemente, há que julgar improcedente o recurso, mantendo-se o decidido pelo tribunal a quo.

III DISPOSITIVO

Pelo exposto:

Acordam, em conferência, os juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão instrutória recorrida nos seus precisos termos.

Sem custas - isenção nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do art. 4.º do Regulamento das Custas Processuais (D.L. n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro)

Coimbra, 14 de Outubro de 2015

 [Processado informaticamente e revisto pela relatora]

(Isabel Valongo - relatora)



(Jorge França - adjunto)