Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
13/13.2TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DO TRABALHO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 06/04/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 78º, D) E 85º DA LOFTJ (LEI Nº 3/99, DE 13/09).
Sumário: I – I – Entre os tribunais de competência especializada contam-se os tribunais do trabalho (art. 78.º, al. d) da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), que conhecem em matéria cível das matérias elencadas no art. 85.º dessa Lei (Lei nº 3/99, de 13/09).

II - De entre estas destaca-se, de acordo com o art. 85.º, al. b), a competência dos tribunais de trabalho para conhecer das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contrato de trabalho.

III - A determinação do tribunal materialmente competente deve partir da análise da estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação e julgamento do tribunal, segundo a versão apresentada em juízo pelo autor, isto é, tendo em conta a pretensão concretamente formulada e os respectivos fundamentos.

IV – Tendo a A. invocado como causa de pedir na (presente) acção questões efectivamente relacionadas com um contrato de trabalho, cujos factos não logrou provar em sede de acção laboral anteriormente havida entre as mesmas partes, e que se prendem com o pedido da aqui Ré formulado nessa acção de condenação da aqui A. a pagar-lhe comissões, o tribunal materialmente competente para esta segunda acção é o Tribunal do Trabalho.

V - Sendo créditos laborais o que está em discussão na presente acção, embora da ex-entidade patronal, é numa acção laboral que devem ser apreciados, mesmo que sob o chamado instituto do enriquecimento sem causa, tanto mais que a aqui Ré veio excepcionar a sua prescrição.

VI - Fundando-se o pedido na alegação de ter sido recebido pela Ré um montante superior ao devido na relação laboral já extinta, impõe-se concluir, pese embora a invocação do instituto de enriquecimento sem causa, achar-se tal questão, atenta a sua natureza, subtraída ao conhecimento da jurisdição comum.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I

No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – 4ª Juízo Cível –, a sociedade “N…, S.A.”, com sede …, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra A…, residente na …, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 10.377,56, acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento.

Alega, para tanto, que a Ré lhe prestou serviços, ao abrigo de um contrato de trabalho, entre Março de 2004 e Janeiro de 2009, tendo resolvido esse contrato em 7 de Janeiro de 2009, invocando justa causa.

Que o litígio que se seguiu a essa resolução foi dirimido no processo n.º … que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal de Trabalho de Coimbra, tendo a 30 de Maio de 2011 sido proferida sentença, transitada em julgado no dia 2 de Fevereiro de 2012, na qual foi a ora Autora condenada a pagar à ora Ré o valor global de € 40.482,94 e a ora Ré condenada a pagar à ora Autora a quantia de € 950,00, dividindo-se a quantia devida à ora Ré pela ora Autora, depois de operada a compensação, em duas partes, uma de € 13.870,59, relativa a retribuições fixas, e outra de € 25.662,35, relativa a retribuição variável.

Que a ora Autora pagou à ora Ré tais quantias, após os descontos legais discriminados nos respectivos recibos, nada mais lhe sendo devido a qualquer título.

Mais invoca que da referida sentença resulta ter a ora Autora pago à ora Ré, entre Junho de 2005 e Novembro de 2008, em vinte e uma ocasiões distintas, o montante total líquido de € 10.377,56, a título do que o Tribunal denominou de “garantia+empresa” ou “garantia+”, constando da sua parte final, a respeito destes pagamentos, que «…resultou provado que a Ré (ora Autora) efectuou o pagamento de diversas quantias à A. (a ora Ré) a título de “garantia+” ou “garantia+empresas”; no entanto não foi possível concretizar este pagamento, para além do que constava dos respectivos documentos, sendo certo que competia à ora Ré provar os factos por si alegados no sentido de que tais quantias se destinavam ao pagamento de adiantamentos por conta das comissões vincendas, o que não logrou fazer.». 

Conclui a ora A. que, tendo a autora e a ré tido uma única relação de natureza laboral, cessada em Janeiro de 2009, tendo a ora Autora pago à ora Ré tudo o que lhe era devido em consequência de tal relação laboral; e visto que lhe pagou além do que lhe devia a quantia de € 10.377,56, obteve a Ré uma vantagem patrimonial, correspondente a tal montante, que deve restituir à ora Autora, com base no instituto do enriquecimento sem causa.

Donde a razão de ser da presente acção.


II

A Ré contestou excepcionando a incompetência do Tribunal em razão da matéria, em virtude de a Autora fundamentar o seu pedido num pretenso pagamento efectuado na constância do contrato de trabalho havido entre as partes e por causa dele, subsumindo-se tal pedido numa relação de trabalho, pelo que, nos termos do artº. 118º da Lei n.º 52/2008, de 20 de Agosto, a competência para a sua apreciação caberá ao Tribunal de Trabalho.

Mais excepcionou a prescrição do crédito reclamado pela A., nos termos do art. 381º da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, e ainda o caso julgado formado pela decisão proferida na acção n.º …, invocando para tanto que o mesmo pedido já havia sido formulado em tal acção, quer por impugnação quer em sede de reconvenção.

Por fim, invocou que as quantias em causa foram pagas a título de incentivos e gratificações pelo cumprimento de objectivos mensais definidos pela gerência da A. em cada ano civil, e não, como pretende a Autora, a título de comissões, pelo que se não justifica a sua restituição a título de enriquecimento sem causa.

Terminou pedindo que as excepções invocadas sejam julgadas procedentes e que o pedido da A. seja julgado improcedente.


III

                A Autora respondeu, sustentando que as questões relativas à acção laboral, já finda, ficaram reguladas em definitivo pela decisão judicial supra identificada, que a sua pretensão se não funda em qualquer norma de Direito Laboral, mas antes num instituto de Direito Civil, e que a presente acção surge como consequência da decisão proferida pelo Tribunal do Trabalho de Coimbra que versou sobre questões de natureza laboral, incidindo sobre os aspectos que a mesma exclui da jurisdição laboral.

Conclui pela improcedência da excepção suscitada.

Refutou ainda a prescrição do crédito reclamado, invocando que se aplica, no caso, não o prazo referido pela Ré, mas o prazo especial a que se reporta o art. 482.º do Código Civil, e pugnou, por fim, pela improcedência da excepção do caso julgado.


IV

Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi apreciada a arguida excepção da incompetência material do Tribunal a quo, tendo-se decidido julgar “este tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer a presente acção e, consequentemente, absolve-se a Ré da instância”.

Transcreve-se essa decisão:

Cumpre apreciar, antes de mais, a excepção da incompetência material:

A competência em razão da matéria atribui a diferentes espécies ou categorias de tribunais, que se situam entre si no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia entre eles, o conhecimento de determinados sectores do Direito. Refere-se, assim, ao fraccionamento em função da matéria ou objecto do litígio da jurisdição atribuída às diversas categorias de tribunais judiciais.

A instituição da competência ratione materiae obedece, como observa Antunes Varela, a um princípio de especialização, assente no reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários especializados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e especificidade das normas que os integram (Manual do Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª edição, pág. 207).

Consoante a matéria das causas que lhe são atribuídas, distinguem-se os tribunais judiciais em tribunais de competência genérica, a quem compete julgar as causas não atribuídas a outro tribunal, o que constitui a regra, e tribunais de competência especializada simples ou mista, que conhecem de determinadas matérias (arts. 64.º, n.º 2, e 77.º, n.º 1, al. a), da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovado pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, que é a aplicável no caso).

Entre os tribunais de competência especializada contam-se os tribunais do trabalho (art. 78.º, al. d), da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), que conhecem em matéria cível das matérias elencadas no art. 85.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.

De entre estas, e no que aqui nos importa, destaca-se, de acordo com o art. 85.º, al. b), a competência dos tribunais de trabalho para conhecer das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contrato de trabalho.

A definição do que sejam questões emergentes de relações de trabalho subordinado tem de ser procurada naquilo que o nexo directamente atribuidor de competência tem de substancial, ou seja, no que dá a uma questão um cariz inequivocamente laboral: trata-se das questões que respeitam a direitos e deveres recíprocos, a ela inerentes, daqueles que aí são partes, nomeadamente a entidade patronal e o trabalhador (cfr. o Ac. do STJ de 3.05.2000, CJSTJ, tomo II, pág. 41). 

Não sendo a causa atribuída a alguma jurisdição especial, é da competência de um tribunal de competência genérica ou especializada cível, conforme arts. 77.º, n.º 1, al. a), e 94.º da Lei Orgânica do Funcionamento dos Tribunais Judiciais.

Para determinação da competência do tribunal em razão da matéria importa ter em linha de conta, além do mais, a estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na acção. A competência em razão da matéria depende sempre do thema decidendum concatenado com a causa de pedir, ou seja, com o quid disputatum. Afere-se assim pela relação material em litígio, tal como é configurada pelo autor, atendendo pois, não à versão deduzida pelo réu, mas à versão apresentada pelo autor (cfr. os Acs. do STJ de 3.02.1987, BMJ, 364, pág. 591, de 4.03.1997, CJSTJ, t. I, pág. 125, e de 22.06.2006, proc. n.º 06B2020, e os Acs. da RP de 7.11.2000, CJ, t. V, pág. 184 e de 12.10.2006, processo nº 0634770, disponível em www.dgsi.pt; na doutrina, vide entre outros José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2.ª edição, pág. 136).

Importa ainda referir que a apreciação da competência do tribunal é prévia em relação ao juízo sobre os demais pressupostos processuais, precedendo ainda logicamente a aferição das condições de procedibilidade do pedido formulado. Nas palavras de Manuel de Andrade, «a competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão» (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 91).

No caso, a autora fundamenta a sua pretensão num contrato de trabalho celebrado com a ré, ao qual a mesma pôs termo mediante resolução, e no pagamento de diversas quantias na vigência dessa relação laboral a título do a autora entendida serem comissões, e que o Tribunal de Trabalho denominou de “garantia+empresa” ou “garantia+”, que pretende lhe sejam restituídas.

Segundo a autora, o seu pedido funda-se, não no contrato de trabalho, que cessou, mas no instituto do enriquecimento sem causa, regulado no art. 473.º e seguintes do Código Civil, pelo que entende caber a competência para a apreciação da acção aos tribunais cíveis.

Observa-se que, na acção fundada no enriquecimento sem causa, a inexistência de causa justificativa do enriquecimento tem não só que ser «alegada como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no artigo 342.º, por quem pede a restituição. Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do onus probandi, que não se prove a existência de uma causa de atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa» (Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 4.ª edição, pág. 456; no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 14.05.96, CJSTJ, tomo II, pág. 70).

Ora, analisado o teor da petição inicial e, em particular, a sentença do Tribunal de Trabalho em que a mesma se alicerça, e para a qual remete, verifica-se que os pagamentos em causa foram efectuados na vigência do contrato de trabalho, e na sequência da celebração de um contrato de seguro de vida em benefício da ré no âmbito da relação laboral dele emergente, defendendo aliás a autora que tais quantias terão sido pagas a título de comissão. 

Ou seja, tais quantias foram pagas, na tese da autora, no âmbito do contrato de trabalho e por causa desse mesmo contrato, pelo que a questão de saber se o seu pagamento era, ou não, devido à ré, constitui de acordo com a versão da autora uma questão emergente do contrato de trabalho, e relativa a uma das obrigações fundamentais da relação de trabalho, que é a obrigação de pagamento da retribuição mensal ao trabalhador.

E o facto de a relação de trabalho se encontrar já extinta, ou de o tribunal poder vir a concluir que a restituição se deve fazer segundo as regras do enriquecimento sem causa, não impedem que a questão ajuizada, que é essencialmente a de saber se o pagamento dos valores em causa correspondeu ou não ao cumprimento de uma obrigação que impendia sobre a autora, seja entendida como emergente de uma relação laboral.

Em situação similar, se decidiu no Ac. da RL de 17.03.2011, proc. n.º 8163/09.3TBCSC-A.L1-8, que «Fundando-se o pedido na alegação de ter sido recebido montante superior ao estipulado em acordo de cessação da relação laboral, impõe-se concluir, pese embora a invocação do instituto do enriquecimento sem causa, achar-se a questão, atenta a sua natureza, subtraída ao conhecimento da jurisdição comum».

De igual modo, se entendeu no Ac. da RL de 1.02.2011, proc. n.º 1374/07.8HLSB.L1-7, que «Fundamentando o autor o seu pedido de restituição de quantias indevidamente pagas ao réu, no facto de, tendo com este celebrado um contrato de trabalho, e tendo este sido despedido com efeitos reportados a 13 de Julho de 2004, a quantia que lhe foi processada a título de vencimentos do mês de Agosto já não seria devida, a determinação sobre se tal valor era, ou não, devido ao réu, não deixa de constituir uma questão emergente do contrato de trabalho. Passando a apreciação de tal pedido, pela alegação e prova da cessação do contrato de trabalho, da respectiva ilicitude e da data da produção dos respectivos efeitos, a competência para a sua apreciação caberá ao tribunal de trabalho».

Não se desconhece que alguma jurisprudência, nomeadamente a citada pela autora, tem atribuído aos tribunais comuns a competência para as acções em que a entidade patronal pretende a restituição de pagamentos indevidamente efectuados ao trabalhador, na vigência ou após a cessação da relação laboral, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.

Sucede que nos casos analisados em tais decisões, nomeadamente nos Acs. da RP de 3.05.2010, proc. nº 1538/09.0TTPRT.P1, e da RL de 17.10.2012, proc. nº 206/12.0TTTVD.L1-4, 25.10.2012, os pagamentos terão sido efectuados por lapso, não entroncando a ausência de causa justificativa do enriquecimento no contrato de trabalho. Ao invés, no vertente caso, tal como sucede naqueles a que se referem as decisões anteriormente citadas, a ausência de causa do enriquecimento decorre da relação laboral, e supõe necessariamente a análise de tal relação, já que os pagamentos foram realizados de forma voluntária e deliberada pela entidade no contexto do contrato de trabalho.

Resta, pois, concluir que a competência para o conhecimento do presente litígio cabe ao tribunal do trabalho, sendo este juízo cível incompetente em razão da matéria para a sua apreciação.

A infracção das regras de competência em razão da matéria determina, nos termos do art. 101.º do Código de Processo Civil, a incompetência absoluta do tribunal, implicando, de acordo com os arts. 105.º, n.º 1, e 494.º, al. a), do Código de Processo Civil, a absolvição do réu da instância.

Em face do exposto, julgo este tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer a presente acção e, consequentemente, absolvo a ré da instância.”.


V

                Desta decisão interpôs recurso a Autora, recurso que foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

                Nas conclusões que a Recorrente apresentou defende, em resumo, que “…no caso dos autos não se verifica qualquer necessidade ou possibilidade de apreciação ou reapreciação da relação laboral de cujos contornos emerge a obrigação de restituição do enriquecimento sem causa, pelo simples facto de tal relação ter sido conformada, em definitivo, por sentença do Tribunal do Trabalho de Coimbra, transitada em julgado em 2/2/2012; a decisão da presente causa não só não exige, como o Tribunal que a proferirá está impedido de proceder a uma diferente interpretação juslaboral da relação havida entre as partes; nem a causa de pedir nem o pedido formulado pela Recorrente reclamam a aplicação de normas de direito laboral; pelo que a competência material para dirimir o presente litígio cabe aos Juízos Cíveis de Coimbra, não ao Tribunal do Trabalho, como foi decidido; face ao que deve ser provido o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se o 4º Juízo Cível de Coimbra como o tribunal competente para conhecer da presente causa”.


VI

                Contra-alegou a Ré/Recorrida, onde defende a manutenção da decisão recorrida, tal como por si antes havia sido arguido.

VII

                Nesta Relação foi aceite o recurso interposto, tal como foi admitido em 1ª instância, nada obstando ao conhecimento do seu objecto, o qual se resume à reapreciação da decisão recorrida, isto é, à apreciação da questão da (in)competência material dos tribunais judiciais comuns para o conhecimento da presente causa.       

                Concordamos, em absoluto, com a fundamentação da decisão recorrida, nos seus aspectos genéricos e na sua aplicação ao caso em apreço, e ainda nos permitimos acrescentar o que se diz no Ac. do Tribunal de Conflitos de 31/05/2006, Proc.º 05/06, segundo o qual “a determinação do tribunal materialmente competente deve partir da análise da estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação e julgamento do tribunal, segundo a versão apresentada em juízo pelo autor, isto é, tendo em conta a pretensão concretamente formulada e os respectivos fundamentos”.

                Veja-se, ainda, o Prof. Manuel de Andrade, in NFDPC, ed. 1976, pg. 90; Ac. STJ de 3/02/87, in BMJ 364, 591.

                Assim, passemos, pois, a (re)analisar a causa de pedir na acção, tal como a A. a expôs:

Alega a A. que a Ré lhe prestou serviços, ao abrigo de um contrato de trabalho, entre Março de 2004 e Janeiro de 2009, tendo a Ré resolvido esse contrato em 7 de Janeiro de 2009, invocando justa causa – logo, não há dúvidas que a A. invoca a existência de contrato de trabalho entre as partes, como primeiro fundamento desta acção.

Mais alega que esse litígio – laboral - que se seguiu a essa resolução foi dirimido no processo n.º … que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal de Trabalho de Coimbra, tendo a 30 de Maio de 2011 sido proferida sentença, transitada em julgado no dia 2 de Fevereiro de 2012, na qual foi a ora Autora condenada a pagar à ora Ré o valor global de € 40.482,94 e a ora Ré condenada a pagar à ora Autora a quantia de € 950,00, tendo sido dividida a quantia devida à ora Ré pela ora Autora, depois de operada a compensação, em duas partes: uma de € 13.870,59, relativa a retribuições fixas, e outra de € 25.662,35, relativa a retribuição variável – assim é, conforme bem resulta da cópia da sentença do Tribunal do Trabalho de Coimbra referida e do acórdão desta Relação proferido nessa dita acção, juntos de fls. 67 a 117, acção essa onde se apreciou a licitude da cessão desse contrato de trabalho, por justa causa invocada pela aqui Ré; a existência de diferenças salariais entre os montantes pagos e os devidos à aqui Ré; a responsabilidade da aqui Autora pelo pagamento à aqui Ré de indemnização por esta pedida a título de trabalho suplementar, dias de descanso não gozados, retribuição variável, férias e subsídios de férias e de natal não pagos; a responsabilidade da aqui Autora pelo pagamento à aqui Ré de alegadas comissões devidas sobre as vendas que este terá efectuado no período de vigência contratual.

Conforme resulta dessa sentença laboral, confirmada nesta Relação, a aqui Autora foi condenada a “pagar (à aqui Ré) a quantia de € 40.482,94, a título de trabalho suplementar prestado, dias de descanso não gozados, retribuição variável/comissões, férias, subsídios de férias e de natal”.

E resulta dessa condenação que o montante de € 25.662,35 se reporta a comissões devidas e não pagas pela aqui A. à aqui Ré, e o demais apurado a trabalho suplementar não pago, dias de descanso não gozados e não pagos e a férias e seus subsídios não pagos.

Portanto, o que resulta de tal sentença é a condenação da aqui A. a pagar à aqui Ré o montante global de € 40.482,94 como dívida emergente da relação laboral que existiu entre as partes e que foi dada como cessada.

Mas a ora Autora alega, na presente acção, que pagou à ora Ré tal montante, após os descontos legais discriminados nos respectivos recibos, nada mais lhe sendo devido a qualquer título, sendo que (alega) pagou a parte relativa a comissões (devidas) através de um seguro de vida da Companhia de Seguros …, denominado “Garantia + Empresas” e mais a quantia de € 15.398,35.

Que todos os valores em que a dita sentença condenou a ora Autora foram por esta pagos à Ré, nada mais lhe sendo devido.

Mais invoca que da referida sentença laboral resulta ter a ora Autora pago à ora Ré, entre Junho de 2005 e Novembro de 2008, em vinte e uma ocasiões distintas, o montante total líquido de € 10.377,56, a título do que o Tribunal denominou de “garantia+empresa” ou “garantia+”, constando da sua parte final, a respeito destes pagamentos, que «…resultou provado que a Ré (ora Autora) efectuou o pagamento de diversas quantias à A. (a ora Ré) a título de “garantia+” ou “garantia+empresas”; no entanto não foi possível concretizar este pagamento, para além do que constava dos respectivos documentos, sendo certo que competia à Ré provar os factos por si alegados no sentido de que tais quantias se destinavam ao pagamento de adiantamentos por conta das comissões vincendas, o que não logrou fazer.». 

Conclui a ora A., na presente acção, que tendo Autora e Ré tido uma única relação de natureza laboral, cessada em Janeiro de 2009, tendo a ora Autora pago à ora Ré tudo o que lhe era devido em consequência de tal relação laboral, e visto que lhe pagou além do que lhe devia a quantia de € 10.377,56, obteve a ora Ré uma vantagem patrimonial, correspondente a tal montante, que deve restituir à ora Autora, com base no instituto do enriquecimento sem causa.

Ora, o que resulta desta alegação é, sem sombra para dúvidas, matéria relacionada com a relação laboral que existiu entre as partes, designadamente factos relativos ao que a A. chama de “comissões” a serem devidas e pagas pela aqui A. à aqui Ré.

Esta matéria, em concreto, foi claramente abordada na referida sentença laboral, dado fazer parte do pedido da aqui Ré contra a aqui A. nessa acção, no seu ponto “b).2.4 – pagamento das comissões”, tendo-se escrito nessa sentença que “assistia à A. (a aqui Ré), a título de retribuição variável sobre as vendas por si promovidas, o direito ao recebimento de € 27.786,35 (€ 926.211,75 x 3%). Posto que já recebeu € 2.124,00, remanesce o crédito de € 25.662,35”.

Este crédito foi integrado na condenação global aí proferida.

Mas (parece que) a agora A. pretende “voltar a discutir” tal decisão, porquanto vem alegar que “… da referida sentença laboral resulta ter a ora Autora pago à ora Ré, entre Junho de 2005 e Novembro de 2008, em vinte e uma ocasiões distintas, o montante total líquido de € 10.377,56, a título do que o Tribunal denominou de “garantia+empresa” ou “garantia+”, constando da sua parte final, a respeito destes pagamentos, que «…resultou provado que a Ré (ora Autora) efectuou o pagamento de diversas quantias à A. (a ora Ré) a título de “garantia+” ou “garantia+empresas”; no entanto não foi possível concretizar este pagamento, para além do que constava dos respectivos documentos, sendo certo que competia à Ré provar os factos por si alegados no sentido de que tais quantias se destinavam ao pagamento de adiantamentos por conta das comissões vincendas, o que não logrou fazer.»”.

Isto é, o que a A. vem invocar como causa de pedir na presente acção são efectivamente questões (alegados créditos) relacionadas com esse contrato de trabalho, cujos factos não logrou provar em sede da dita acção laboral e que se prendem com o pedido da aqui Ré formulado nessa acção de condenação da aqui A. a pagar-lhe comissões, conforme supra exposto.

Sendo, pois, créditos laborais (embora alegadamente da aqui A.), é numa acção laboral que devem ser apreciados, mesmo que sob o chamado instituto do enriquecimento sem causa, tanto mais que a aqui Ré veio excepcionar a prescrição do crédito reclamado pela A., nos termos do art. 381º da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, e ainda o caso julgado formado pela decisão proferida na acção n.º …, além de que invocou que as quantias em causa foram pagas a título de incentivos e gratificações pelo cumprimento de objectivos mensais definidos pela gerência da A. em cada ano civil, e não, como pretende a Autora, a título de comissões, pelo que se não justifica a sua restituição a título de enriquecimento sem causa – defende a aqui Ré.

Portanto, toda a fundamentação desta acção, seu pedido e defesa apresentada pela Ré estão relacionados e dizem respeito apenas e tão só ao contrato de trabalho que ligou as partes, pelo que se nos afigura não poder existir dúvida sobre a natureza dessa fundamentação e pedido respectivo – natureza laboral.

Aliás, os alegados pagamentos ditos efectuados pela A. estão directamente relacionados com a sua condenação na acção laboral, pagamentos esses que também estão, de algum modo, em discussão na presente acção, donde também a sua natureza laboral.

Sendo assim, afigura-se-nos que tem razão a Ré na invocada excepção de incompetência material do Tribunal comum para conhecer da presente acção, tal como também o entendeu a sentença recorrida, dado o disposto nos preceitos referidos na decisão recorrida, que aqui se dão por reproduzidos, designadamente os artºs 66º, 101º e 105º, nº 1 do CPC; 64º, nº 2, 78º, al. d) e 85º, al. b) da Lei nº 3/99, de 13/01 (mas também artº 118º, al. b) da Lei nº 52/2008, de 28/08).

No apontado sentido, entre outros, podem ver-se os arestos citados na decisão recorrida, dos quais se passa a reproduzir a seguinte passagem:

“Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

Processo: 8163/09.3TBCSC-A.L1-8 

 Relator: FERREIRA DE ALMEIDA

Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL

TRIBUNAL DO TRABALHO

CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO

ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA

Data do Acordão: 17-03-2011

Sumário: I - A competência do tribunal em razão da matéria, no confronto do tribunal do trabalho com o tribunal de competência genérica ou a vara ou juízo cível é essencialmente determinada à luz da estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial, independentemente da estrutura civil ou laboral das normas jurídicas substantivas aplicáveis.

I - Fundando-se o pedido na alegação de ter sido recebido montante superior ao estipulado em acordo de cessação de relação laboral, impõe-se concluir, pese embora a invocação do instituto de enriquecimento sem causa, achar-se a questão, atenta a sua natureza, subtraída ao conhecimento da jurisdição comum.

Nos termos dos arts. 684º, nº3, e 690º, nº 1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente.

      A questão a decidir centra-se, pois, na apreciação da invocada incompetência material do tribunal recorrido.

    Por força do disposto no art. 85º b) da Lei 3/99, de 13/1 (LOFTJ), compete aos tribunais de trabalho o conhecimento das questões emergentes de relações de trabalho subordinado.   

    A competência do tribunal em razão da matéria, no confronto do tribunal do trabalho com o tribunal de competência genérica ou a vara ou juízo cível é, pois, “essencialmente determinada à luz da estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial, independentemente da estrutura civil ou laboral das normas jurídicas substantivas aplicáveis” (ac. STJ, de 18/11/2004, www.dgsi.pt - SJ200411180038477).

     No caso concreto, constitui objecto da acção a restituição à A., ora apelada, de parte da quantia entregue, a título compensatório, ao R. apelante, na sequência de acordo, relativo à cessação de contrato de trabalho havido entre ambos.

    Não oferece, pois, dúvida que o litígio submetido à apreciação do tribunal emerge de uma relação de trabalho subordinado.

    Sendo que, pese embora a sua invocação do instituto de enriquecimento sem causa, se funda o pedido formulado pela A., ora apelada, na alegação de ter o apelante recebido montante superior ao estipulado no acordo de cessação dessa relação laboral - pelo que sempre haveria o mesmo de ser objecto de análise, na decisão a proferir.

    Ao invés do decidido, impor-se-ia, assim, concluir, achar-se a questão a apreciar, atenta a sua natureza, subtraída ao conhecimento da jurisdição comum.”.

Mas também cumpre dizer que os acórdãos citados pela Recorrente a este respeito não têm o alcance que a Recorrente lhes pretende atribuir, muito pelo contrário, como deles mesmos resulta, indo até no entendimento por nós antes sufragado – como, aliás, também é defendido na decisão recorrida e antes se deixou transcrito.

Razões pelas quais se impõe julgar improcedente o presente recurso e manter a decisão recorrida, o que se decide.    


VIII

                Decisão:

                Face ao supra exposto, acorda-se em julgar o presente recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.


***

                                                              

Jaime Carlos Ferreira (Relator)

 Jorge Arcanjo

Teles Pereira