Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
135/08.1GASEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIEIRA MARINHO
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
ACUSAÇÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 10/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 19 A 23,32º E 33 CPP
Sumário: A questão da “competência territorial”, tem que ser resolvida no quadro normativo estabelecido nos art.ºs 19º a 23º (Secção II, do Capítulo II, do Título I, do Livro I) e 32º e 33º (Capítulo III, do Título I, do Livro I), do Código de Processo Penal e não por via da rejeição da acusação, sendo certo que, se assim fosse, o caso acabaria por não ser julgado, quer por tribunal competente, quer por tribunal incompetente.
Decisão Texto Integral: 1. Relatório:


Nos autos de Inquérito, com o número em epígrafe, que correu termos nos Serviços do Ministério Público, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Seia, foi deduzida acusação, pelo Ministério Público, contra N..., aí devidamente identificado.

Nessa acusação é imputada ao referido arguido a prática de um crime de ameaça, p. e p. pelos art.ºs 153º, n.º 1 e 155º, al. a), do Código Penal, com a narração dos seguintes factos:

No dia 5 de Abril de 2008, o arguido N... enviou do seu telemóvel n.º xxxxx para o telemóvel n.º zzzzzz pertencente a C... uma mensagem escrita em que dizia que o esperava de dia ou de noite, que o metia no hospital e que o matava.
O arguido N..., de forma deliberada, livre e consciente, actuou de modo susceptível e adequado a causar receio e medo em C... , dadas as circunstâncias e o modo como fez chegar ao conhecimento do visado as expressões ameaçatórias susceptíveis de integrar ilícito criminal tipificado na lei e punido com pena de prisão superior a 3 anos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”








No mesmo processo foi também deduzida acusação particular, por C... contra o mesmo arguido, imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181º, n.º 1, do mesmo Código.

O Ministério Público, porém, não acompanhou esta acusação particular, tendo, aliás, proferido despacho consignando o entendimento de que a mesma não deverá ser recebida.

E, após distribuição dos autos, sobre as referidas acusações veio a ser proferido o seguinte despacho judicial:

“O Ministério Público deduziu acusação pública contra o arguido N…, imputando-lhe a prática de um crime de ameaça, p. e p. pelos arst. 153º nº 1 e 155 al. a), ambos do Código Penal (CP) – cfr. fls. 51 e ss.

Por seu turno, o assistente C... (numa fase processual em que ainda não se encontrava admitido a intervir como tal), deduziu acusação particular, que não foi acompanhada pelo Ministério Público, imputando ao mesmo arguido a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181 nº 1 do CP – cfr. fls. 114 e ss.

Ambas as acusações reportam-se a factos praticados pelo arguido através da utilização de um telemóvel (sms ou mensagens escritas).

Porém, nenhuma das acusações faz qualquer referência ao local da prática dos factos, mormente o local do envio das mensagens e/ ou o local da recepção das mesmas, por parte do assistente.

Por despacho a fls. 144-145, este Tribunal determinou a devolução dos autos ao Ministério Público por se considerar que a enunciada questão consubstanciava uma questão prévia ao recebimento/ rejeição da(s) acusação(ões) [inexistência de elementos que permitissem concluir pela competência (deste ou de outro) do Tribunal], e poderia ser susceptível de sanação.

O Ministério Público, porém, e com os fundamentos constantes do despacho a fls. 156-158, determinou novamente a remessa dos autos à distribuição.

Conforme o supra referido, as acusações são totalmente omissas quanto ao local ou locais da prática dos factos.

A este propósito, dispõe o art. 19º nº 1 do Código de Processo Penal que “é competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação”.

Assim, e independentemente da questão de saber se o crime se consumou na área da comarca do envio das mensagens ou na área da comarca da recepção das mesmas (caso não haja coincidência entre as mesmas), o certo é que nada foi alegado a este nível.

Nem se pode inferir, nesta sede, que o lugar da residência do arguido (São Brás de Alportel, conforme consta da respectiva identificação) coincide com o lugar do envio das mensagens.

Por seu turno, não pode o Tribunal basear-se noutros elementos dos autos, pois a acusação define o thema do processo, inclusive os pressupostos de competência do Tribunal.

Nesta medida, também o disposto no art. 21º do CPP também é inaplicável ao caso dos autos, porquanto também não resulta das acusações qualquer factualidade referente à dúvida ou desconhecimento da área da localização dos elementos relevantes para a determinação da competência territorial ou da área onde primeiro houve a notícia do crime, ou uma singela alegação de que é impossível referir o lugar da prática dos factos.

É que mesmo admitindo-se não ser possível mencionar o local, bastaria a formulação genérica do “lugar desconhecido ou cuja localização exacta não foi possível apurar, mas na área da comarca de …”.

Não se olvida que o art. 283º nº 3 al. b) do CPP (também aplicável á acusação particular, nos termos do disposto no art. 285º nº 3 do CPP) apenas exige que a acusação deve conter a “narração, ainda que sintética, dos factos (…) incluindo, se possível, o lugar (…) da sua prática.

Não obstante, entende-se que tal possibilidade não exclui a necessidade de a acusação conter um mínimo de factualidade atinente às circunstâncias de lugar da conduta imputada ao arguido, por forma a se poder concluir, nesta fase, pela competência territorial do Tribunal, nos moldes acima referidos.

É que a competência territorial deve ser aferida pela positiva (“o Tribunal é competente”) e não pela negativa (“o Tribunal não é incompetente”), o que requer um mínimo de substrato factual para o efeito.

As acusações encontram-se, pois, feridas de nulidade por falta de indicação de elementos a que se reporta o art. 283º nº 3 al. b) do CPP, o que constitui fundamento de rejeição – art. 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. d) do CPP.

Em face do exposto, rejeito a acusação pública deduzida pelo Ministério Público e a acusação particular deduzida pelo assistente C... e, em consequência, julgo extinto o procedimento criminal contra o arguido N… .

Custas a cargo do assistente, que se fixam em 1 UC, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido – arts. 515º nº 1 al. f) do CPP e 85º nº 3 al. e) do Código das Custas Judiciais.

Notifique.
…”


O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal “a quo” não se conformou com esta decisão e interpôs recurso da mesma, formulando, na respectiva motivação, as seguintes

Conclusões:

I. A expressão “se possível” prevista no art.º 283°, n.°3, al. b), do Código de Processo Penal, apenas poderá ser interpretada no sentido de que poderão existir casos em que tal possibilidade de narração de factos do lugar não ocorra, ou seja, muito embora, se possível, deva constar da acusação, não se traduz num facto essencial da mesma.





II. Não pode confundir-se a falta de narração de factos do tipo de crime com a omissão de apenas um facto atinente ás coordenadas geográficas, que não se logrou apurar.

III. Do teor da acusação deduzida pelo Ministério Público constam todos os factos necessários à subsunção ao crime que é imputado ao arguido e se não foi efectuada uma maior concretização quanto ao lugar da prática dos factos foi porque tal não se revelou possível.

IV. Não resultando dos autos a exacta localização dos factos ou sendo a mesma duvidosa, sempre o Tribunal de Seia seria competente para a fase de julgamento por imposição do disposto no art.º 21°, do mesmo diploma legal, que derroga a regra geral da competência prevista no art.º 19°, não carecendo esse desconhecimento de ser alegado na narração factual.

V. A apurar-se em sede de audiência de julgamento a localização
exacta dos factos, tal nem sequer consubstancia uma alteração substancial de factos, podendo apenas vir a determinar o cumprimento do preceituado no art.º 358°, do Código de Processo Penal ou a eventual incompetência territorial do Tribunal.

VI. A narração dos factos efectuada na acusação particular (a referência à acusação particular, nesta conclusão, a nosso ver, deve resultar de um lapso, sendo certo que, na motivação, não há qualquer referência à decisão recorrida, na parte em incidiu sobre esta acusação, estando aí apenas em causa a decisão recorrida, na parte em que incidiu sobre a acusação deduzida pelo Ministério Público Aliás, o recurso do Ministério Público não pode abranger a decisão em causa, na parte respeitante à rejeição da acusação particular, sendo certo que, no que a tal respeita, o Ministério Público não tem interesse em agir, porquanto promovera o não recebimento desta acusação, embora por outros fundamentos (cfr. art.º 401º, n.º 2, do C. Proc. Penal).) em nada afectou as garantias de defesa do arguido, pois daquela resultam as acções que em concreto lhe são imputadas, e sendo certo que o arguido também nada invocou a este respeito.

VII. Não se pode confundir uma acusação com algumas deficiências, com uma acusação nula.

VIII. Os factos imputados ao arguido na acusação deduzida pelo Ministério Público preenchem os elementos objectivos e subjectivos do crime de ameaça, inexistindo fundamentos para a rejeição da acusação.

IX. Face ao exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se o despacho judicial recorrido, em virtude de o mesmo não ter feito a interpretação adequada do disposto nos art.ºs 283°, n°3, al. b) e 311°, n.°s 2, al. a) e 3, al. b), do Código de Processo Penal, assim os violando, devendo assim ser substituído por outro, que designe data para a realização da audiência de julgamento.”








Respondeu o assistente C..., concluindo no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente, sendo revogado o despacho recorrido e substituído por outro em que se designe a data para a audiência de julgamento.

E o Exm.º Senhor Procurador-Geral Adjunto, nesta sede, emitiu o respectivo Parecer, também no sentido de que o recurso merece provimento.


Colhidos os vistos legais e realizada a Conferência prevista no art.º 419º, n.º 3, al. b), do C. Proc. Penal, cumpre decidir.


2. Fundamentação:


Como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelo teor das conclusões extraídas, pelo recorrente, da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.

No caso em apreciação, a questão que importa decidir, face às conclusões formuladas, pelo Digno Magistrado recorrente, na sua motivação, é a de saber se se verifica o fundamento invocado, na decisão recorrida, para ter sido rejeitada, como foi, a referida acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido N....

Na decisão recorrida, o Exm.º Juiz “a quo”, rejeitou a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido N..., por considerar que esta acusação padecia de nulidade, por ser omissa quanto ao lugar da prática dos factos aí narrados, em conformidade com o disposto no art.º 283º, n.º 3, al. b), do C. Proc. Penal, o que constituiria fundamento de rejeição de tal acusação, em conformidade com o preceituado no art.º 311º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. d), do mesmo Código.

E, por se lhe afigurar claro que a situação em causa não se enquadra na referida al. d), do n.º 3, do art.º 311º, o Digno Magistrado recorrente admitiu a possibilidade de a mesma, na perspectiva sustentada na decisão recorrida, se enquadrar na previsão da al. b), do n.º 3, do mesmo artigo, sendo nesta base que fundamentou a sua motivação.

Mas afigura-se-nos ser patente que a decisão recorrida não pode fundamentar-se em qualquer dos citados normativos legais ou em qualquer outro.

Preceitua o art.º 283º, n.º 3, do C. Proc. Penal, que a acusação contém, sob pena de nulidade:





“a) ...
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática …”

E estabelece o art.º 311º, do mesmo Código, sob a epígrafe “Saneamento do processo”:

“1. …

2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;


E, como refere Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, 17ª Ed., pág. 728:
Acusação manifestamente infundada é aquela que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade. Os casos em que, para efeitos do n.º 2, a acusação se considera manifestamente infundada estão agora enumerados no n.º 3.

Com efeito, o n.º 3, do referido art.º 311º, do C. Proc. Penal, estabelece:
“…
3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) …
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) …
d) Se os factos não constituírem crime.”

Ora, lendo a acusação deduzida pelo Ministério público atrás transcrita, constata-se que não faz sentido, de facto, a invocação, no caso, do disposto na al. d), do n.º 3, deste normativo, estando em causa apenas a omissão na acusação da referência ao lugar da prática dos factos narrados na mesma, tratando-se, assim, de uma circunstância meramente acidental e não de um elemento essencial à constituição do tipo de ilícito penal imputado ao arguido.

Mas também não pode dizer-se que se verifique, no caso, a situação prevista na al. b), do n.º 3, do mesmo normativo, porquanto se constata que a referida acusação contém a narração dos factos, tendo sido omitida apenas a citada referência ao lugar da prática dos factos, tratando-se, porém, de uma circunstância a incluir apenas se possível, nos referidos termos legais.

E, como já se decidiu no acórdão de 30.05.2007, deste Tribunal da Relação, proferido no recurso n.º 9563/2006-3 (in www.dgsi.pt): “Não deverá ser rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação deduzida pelo MP contra a arguida … ainda que contendo uma enunciação fáctica deficiente, se aquela comporta factos bastantes minimamente susceptíveis de justificarem a aplicação de uma pena.







Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, no seu “Comentário do Código de Processo Penal”, 3ª Ed., UCE, pág. 790:
O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante.”

E, a propósito da articulação do n.º 3, do art.º 311º com a nulidade prevista no n.º 3, do art.º 283º, escreve Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, Verbo, 2000, págs. 207 e 208, no que se refere à al. b), deste último normativo:
Se não há factos objecto da acusação, não pode haver processo, a relação é inexistente, não pode manter-se o processo e, por isso, o juiz não deve receber a acusação. A narração defeituosa, mas suprível, constitui nulidade sanável e, por isso, não é também causa de rejeição da acusação, se não for arguida.”

Finalmente, uma última nota para referir apenas que a questão da “competência territorial” que o Exm.º Juiz “a quo” suscita, na decisão recorrida, tem que ser resolvida no quadro normativo estabelecido nos art.ºs 19º a 23º (Secção II, do Capítulo II, do Título I, do Livro I) e 32º e 33º (Capítulo III, do Título I, do Livro I), do Código de Processo Penal e não, como o fez, por via da rejeição da acusação, sendo certo que, se assim fosse, o caso acabaria por não ser julgado, quer por tribunal competente, quer por tribunal incompetente.

Ora, não pode olvidar-se que, nos termos do referido art.º 33º, n.º 1, do C. Proc. Penal, “declarada a incompetência do tribunal, o processo é remetido para o tribunal competente …”.

Tudo a significar que o recurso não pode deixar de proceder.


3. Decisão:


Pelo exposto, sem necessidade de outras considerações, face à simplicidade da questão em causa, acordam os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, no que respeita à rejeição da acusação deduzida pelo Ministério Público, devendo aquela decisão ser substituída por outra em que se dê seguimento ao processo, no que a tal respeita, nos termos do art.º 311º, do C. Proc. Penal.

Sem tributação.

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Vieira Marinho (Relator)
Cacilda Sena