Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3404/06.1TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: CRIME DE DANO
DESFIGURAÇÃO
PINTURA EM VIADUTO
PROVA DA DESFIGURAÇÃO
Data do Acordão: 05/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 212º DO CP
Sumário: 1. Cabe na desfiguração do crime de dano prevista no art.º 212º do CP actos como pintar, sujar, colar coisas sobre ela.
2. Não pode todavia relevar como desfiguração constitutiva do crime toda e qualquer acção de modificação da aparência, designadamente os actos sem a dignidade penal suposta pela destruição ou inutilização.
3. Constituindo a caracterização do dano (desfiguração) o elemento típico do crime, não é a defesa que tem que provar a sua inexistência. É a acusação que tem que provar a sua verificação.
4. Tendo sido efectuada a pintura duma frase num viaduto urbano, sem que a acusação faça qualquer referência a algum aspecto especial de interesse urbanístico ou paisagístico do referido viaduto, ou identifique qualquer especificidade do viaduto particularmente susceptível à alteração relevante da aparência, para além daquela que é normal num viaduto ou passagem aérea sobre outra via, em forma de ponte, em betão vulgar, tão-pouco se referindo qualquer efeito corrosivo/danoso da tinta utilizada ou sobre o efeito da pintura no aspecto geral do viaduto ou ainda da relevância da pintura da frase, com a dimensão do escrito, na aparência do dito viaduto não se verifica o elemento objectivo (desfiguração danosa) do tipo de crime.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

L... e C..., arguidos devidamente identificados nos autos, recorrem da sentença na qual o tribunal recorrido decidiu:
- Condená-los, pela prática, em co-autoria material de um crime de dano p e p pelo art. 212º, n.º1, do C. Penal, cada um na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete euros); e ainda
- A pagarem, solidariamente, ao demandante civil, Município de Viseu, a quantia de € 102, 00 (cento e dois euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos desde a notificação para a contestação do pedido até integral e efectivo pagamento.
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Na motivação do recurso formulam as seguintes CONCLUSÕES:
1- A douta sentença erra quando considera que só se podem fazer inscrições e pinturas murais nos sítios reservados pelas Câmaras Municipais. Existe firme jurisprudência constitucional sobre este tema (vide os Acórdãos n.º 636/95 e n.º 258/06, do Tribunal Constitucional).
2- A douta sentença erra quando considera que não estamos perante meios amovíveis de propaganda, na medida em que a Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2000, de 23 de Agosto, condicionou a propaganda à utilização de materiais biodegradáveis - estamos perante meios amovíveis de propaganda.
3- E, como tal vigora a jurisprudência da Comissão Nacional de Eleições, que não foi seguida pela Câmara Municipal de Viseu, e que consiste no seguinte:
“As Câmaras Municipais só podem remover meios amovíveis de propaganda política e eleitoral que não respeitem o disposto no n.º 1 do artigo 4º da Lei 97/88 quando tal for determinado por tribunal competente ou ouvidos os interessados e com eles fixados os prazos e condições, sem prejuízo do direito de recurso que a estes assista. Os actos de ordenação da remoção de propaganda devem ser fundamentados relativamente a cada meio de propaganda cuja remoção esteja em causa. É necessário justificar e indicar concretamente as razões pelas quais o exercício da actividade de propaganda não obedece, em determinado local ou edifício, aos requisitos previstos na lei. E mesmo neste caso não podem os órgãos executivos autárquicos mandar remover material de propaganda gráfica colocado em locais classificados ou proibidos por lei sem primeiro notificar e ouvir as forças partidárias envolvidas (arts. 5º n.º 2 e 6 n.º 2, da referida Lei n.º 97/88)”.
4- O viaduto público onde foi feita a inscrição mural e propriedade pública e não está classificado entre os imóveis em que não se podem fazer inscrições murais (cfr. n.º 3 do artigo 4º da Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, na redacção actual).
5- No local havia já outros cartazes e inscrições, pelo que não pôde deixar de ser uma discriminação da ABC... a atitude de deter, identificar e apreender pinturas dos jovens arguidos.
6- A liberdade de expressão, uma das mais emblemáticas liberdades conquistadas com o 25 de Abril e que tanto custou aos povos serranos, e um dos direitos, liberdades e garantias fundamentais que só a Assembleia da República pode restringir.
7- O direito de propriedade privada está devidamente acautelado pela lei. E se não o estivesse só poderia ser a Assembleia da República a acautelá-lo introduzindo restrições a direitos, liberdades e garantias, coisa que, como e óbvio não esteve na mente dos autores do Código Penal.
8- Mas acontece que o direito de propriedade e um direito inferior ao direito de liberdade de expressão. Não pertence ao catálogo dos direitos, liberdades e garantias. E um direito económico e nem sequer e o primeiro direito económico.
9- Nunca se poderia resolver um eventual conflito com o aniquilamento de um direito superior, que foi o que aconteceu.
10- O Tribunal violou a Lei n.º 97/88 de 17 de Agosto, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 23/2000 de 23 de Agosto, o artigo 3º, n.º 1, o artigo 4º n.ºs 2 e 3 e o artigo 6º.
11- Acresce que o entendimento que o Tribunal deu ao artigo 212º n.º1 do Código Penal assenta numa interpretação inconstitucional que como tal deve ser declarada.
Termos em que, bem como em todos os demais, de direito, aplicáveis, deve a douta sentença sob censura ser revogada, absolvendo-se os arguidos da prática de um crime de dano simples, previsto e punido pelo artigo 212º, n.º1, do Código Penal, mais se absolvendo os arguidos do pagamento da indemnização civil peticionada Câmara Municipal de Viseu e do pagamento das custas.
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Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido desenvolvendo douta e proficuamente a questão do conflito e perspectivas de superação/harmonização desse conflito, entre o direito à liberdade de expressão e propaganda e o direito à integridade dos espaços, conclui pela verificação dos pressupostos do crime e pela consequente improcedência do recurso.
Respondeu o demandante civil sustentando a improcedência do recurso.
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex. Mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual manifesta a sua concordância com a resposta apresentada pelo MºPº em 1ª instância.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP, ao que responderam os recorrentes renovando a argumentação aduzida na motivação.
Corridos os vistos, procedeu-se a julgamento, em conferência.
Mantendo-se a validade e regularidade afirmadas no processo, cumpre conhecer e decidir.
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II. Fundamentação

1. Nos termos do art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constituindo entendimento uniforme que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso - cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173, fazendo eco da jurisprudência uniforme daquele alto tribunal.
Sem prejuízo, naturalmente, da apreciação das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º, n.º2 do CPP, de acordo como o Ac. STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.
Na motivação do recurso os recorrentes, embora centrando a sua argumentação em aspectos relativos à liberdade de expressão e propaganda política, põem em causa a constitucionalidade da interpretação do tipo de crime de dano em que repousa a decisão recorrida.
Para proceder à apreciação, vejamos a decisão recorrida quanto à matéria de facto.

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2. A decisão do tribunal recorrido em matéria de facto, com a fundamentação que a suporta, é a seguinte:
A) Factos provados:
1. No dia 11 de Abril de 2006, cerca das 23 horas e 10 minutos, os arguidos, agindo de comum acordo e conjugação de esforços e intentos, pintaram numa das paredes do Viaduto, sito na Estrada da Circunvalação, junto à Universidade Católica, em Viseu, a seguinte frase: “8º CONGRESSO-TRANSFORMAR O SONHO EM VIDA, 20 E 21 DE MAIO, V.N. GAIA, ABC...”;
2. Com tal comportamento, os arguidos causaram danos cuja reparação importou o valor de € 102,00, causando, dessa forma, prejuízos naquele montante à Câmara Municipal de Viseu, responsável pela construção e manutenção do Viaduto em causa;
3. Os arguidos foram surpreendidos no local pela PSP, tendo-lhes sido apreendido o material com que procediam à pintura;
4. Ao actuarem da forma supra descrita, os arguidos agiram com o propósito de danificar e causar prejuízos na parede do Viaduto, o que conseguiram, bem sabendo que o mesmo não lhes pertencia e que agiam contra a vontade e em prejuízo do respectivo dono;
5. Os arguidos sabiam que, com tal comportamento, desfiguravam e danificavam a parede do Viaduto, causando necessariamente prejuízos á Câmara Municipal, que é a responsável pela construção e manutenção do mesmo. E, cientes de tal, agiram querendo proceder dessa forma;
6. Os arguidos agiram sempre livre, voluntária e conscientemente, procedendo de comum acordo e em conjugação de esforços e intentos, em execução de plano traçado por ambos, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei;
7. Os arguidos são membros da ABC...;
8. O arguido L...aufere a quantia mensal de £ 600,00;
9. Vive com a companheira em casa arrendada, não sendo, contudo o arguido quem paga a renda de casa;
10. Tem o 10º ano de escolaridade;
11. A arguida C...exerce a profissão de professora;
12. Aos arguidos não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais.

B) Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contradição com os que foram dados por assentes.

C) Motivação
A convicção do tribunal no que respeita á factualidade assente formou-se com base na apreciação global e crítica da prova produzida e regras de normalidade e experiência comum.
Assim, teve-se em consideração as declarações do próprio arguido que confessou parcialmente os factos de que se encontra acusado dizendo que ele a arguida pintaram os dizeres referidos nos factos provados. Contudo, entende ser lícita a sua conduta por se tratar de pintura mural e pelo facto de, no local, se encontrarem normalmente coisas escritas.
Considerou-se ainda os depoimentos isentos e credíveis das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, designadamente, os depoimentos de:
- F..., agente da PSP de Viseu que tomou conta da ocorrência elaborando a participação de fls. 44, identificou os arguidos no local e apreendeu as tintas, pincéis e lápis.
Esta testemunha, ouvida em sede de audiência de julgamento, referiu que os factos ocorreram na parede lateral do Viaduto, na parede de suporte do Viaduto e que quando chegou ao local os arguidos estavam a terminar de pintar a frase.
- J..., funcionário da Câmara Municipal de Viseu que esclareceu o modo como foi retirada a pintura do Viaduto e os custos que a Câmara teve com esse serviço e que computou em cerca de € 100,00.
No que concerne ao facto referido em 2.1.7. tomou-se em consideração os depoimentos das testemunhas M..., B..., R... e A....
Quanto ao facto vertido em 2.1.10. teve-se em consideração o depoimento da testemunha M....
Relevou ainda o teor de fls. 6 e 44 a 48.
Relativamente aos antecedentes criminais dos arguidos considerou-se o teor dos certificados de registo criminal junto aos autos a fls. 110 e 111.
Quanto à situação patrimonial e pessoal do arguido L… consideraram-se as suas próprias declarações, que nos mereceram credibilidade.

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3. Apreciação

3.1. Na motivação do recurso os recorrentes, embora centrando a sua argumentação em aspectos relativos à liberdade de expressão e propaganda política, põem em causa a constitucionalidade da interpretação do tipo de crime de dano (no processo penal são apenas os pressupostos do crime e da aplicação da pena que estão em causa) em que repousa a decisão recorrida.
Está assim em causa, o preenchimento, pela actuação dos arguidos, dos elementos do tipo objectivo e do tipo subjectivo do crime de dano, numa interpretação conforme à Constituição, no confronto com o direito à livre expressão na vertente da livre afixação de mensagens de propaganda de natureza política.
Interpretação a efectuar, ainda, de acordo com os princípios gerais do direito criminal e da interpretação das leis, designadamente os princípios da unidade de ordem jurídica, da subsidiariedade da tutela penal, imanentes aos princípios constitucionais da proporcionalidade, dignidade penal e da subsidiariedade da lei penal.
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3.2.Nos termos do artigo 212º/1 do Código Penal, pratica o crime de dano “Quem destruir no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia (…)”.
A par da destruição e do dano propriamente ditos, enquanto alterações da substância das coisas móveis, o tipo prevê o acto de a tornar não utilizável, bem como a mera desfiguração de coisa alheia. O código alargou assim o conceito de dano ou lesão da substância à inutilização para a função e ainda aqueles casos em o agente, na vez de atingir a substância ou a função da coisa, desfiguram a coisa. Cabendo na desfiguração actos como pintar, sujar, colar coisas sobre ela.
Não pode todavia relevar como desfiguração constitutiva do crime toda e qualquer acção de modificação da aparência, designadamente os actos sem a dignidade penal suposta pela destruição ou inutilização da função previstas no art. 212º.
Com efeito o princípio da dignidade penal constitui “um momento não escrito do tipo, que dá expressão aos princípios da proporcionalidade, dignidade penal e subsidiariedade, segundo o qual o direito penal só deve intervir contra factos de inequívoca danosidade social” – cfr. Costa Andrade, Comentário Conimbricence ao Código Penal, em anotação ao citado art. 212º. Sobre a dignidade e a carência de tutela penal como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime veja-se, o mesmo autor, desenvolvidamente, na RPCC, 1992, p. 173º a 205, cuja lição procuraremos seguir, bem como Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Coimbra Editora, 2004, p. 621.
Assim, a conduta típica, em qualquer das 4 modalidades enunciadas no art. 212º, deve atingir o limiar da dignidade penal suposto na definição do tipo de crime.
A que acrescem os elemento do tipo subjectivo doloso, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal: previsão dos elementos do tipo objectivo - elemento intelectual do dolo e vontade (elemento volitivo) de realização da ilicitude condensada no tipo, como causa directa, necessária ou eventual da conduta. No caso a representação e vontade de “destruir, danificar, desfigurar, ou tornar não utilizável o viaduto.
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No caso em apreço, a circunstância de os factos danosos imputados aos arguidos terem sido praticados no âmbito da afixação/pintura de uma mensagem de propaganda política – como resulta do teor da frase pintada, em conjugação com o facto descrito sob o ponto 7 – alerta-nos para necessidade de harmonização do regime legal da afixação de propaganda política com os bens jurídicos e a ilicitude condensada no tipo legal do crime de dano.
Sabendo-se que ao direito penal está reservada a tutela subsidiária do núcleo mais restrito de bens jurídicos indispensáveis à vivência em sociedade, definidores do chamado mínimo ético essencial. Ainda na perspectiva da unidade do sistema e da ultima ratio da intervenção da lei penal.
Indagando até que ponto a ilicitude do caso não foi “esgotada” pelo legislador na tutela não penal da factualidade imputada aos arguidos na acusação, delimitadora do objecto do processo e do âmbito da vinculação temática do tribunal.
A afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda encontra-se regulada pela Lei n.º 96/88 de 17 de Agosto, alterada pela Lei 23/2000 de 23 de Agosto.
Postula, com relevo para o caso dos autos, além do mais:
Artigo 1º:
1- O pedido de licenciamento ou inscrição de mensagens de propaganda é garantida, na área de cada município, nos espaços e lugares públicos necessariamente disponibilizados para o efeito pelas câmaras municipais.
2 - A afixação ou inscrição de mensagens de propaganda nos lugares ou espaços de propriedade particular depende do consentimento do respectivo proprietário ou possuidor e deve respeitar as normas em vigor sobre a protecção do património arquitectónico e do meio urbanístico, ambiental e paisagístico.
Artigo 4º:
1. Os critérios a estabelecer no licenciamento da publicidade, comercial assim como o exercício das actividades de propaganda, devem prosseguir os seguintes objectivos:
a) não provocar obstrução das perspectivas panorâmicas ou afectar a estética ou o ambiente dos lugares ou da paisagem;
b) não prejudicar a beleza ou enquadramento de monumentos nacionais, de edifícios de interesse público ou outros susceptíveis de ser classificados pelas entidades públicas:
c) não causar prejuízos a terceiros;
d) não afectar a segurança das pessoas ou das coisas, nomeadamente na circulação rodoviária ou ferroviária; e) não apresentar disposições, formatos ou cores que possam confundir-se com os da sinalização de tráfego; f) não prejudicar a circulação dos peões, designadamente dos deficientes.
2 - É proibida a utilização, em qualquer caso, de materiais não biodegradáveis na afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda.
3 - É proibida, em qualquer caso, a realização de inscrições ou pinturas murais em monumentos nacionais, edifícios religiosos, sedes de órgão de soberania, de regiões autónomas ou de autarquias locais, tal como em sinais de trânsito, placas de sinalização rodoviárias, interior de quaisquer repartições ou edifícios públicos ou franqueados ao público, incluindo estabelecimentos comerciais ou centros históricos como tal declarados ao abrigo da competente regulação urbanística.
Artigo 6º:
1 - Os meios amovíveis de propaganda afixados em lugares públicos devem respeitar as regras definidas no artigo 4º, sendo a sua remoção da responsabilidade das entidades que a tiverem instalado ou resultem identificáveis das mensagens expostas.
2 - Compete às câmaras municipais, ouvidos os interessados, definir os prazos e condições de remoção dos meios de propaganda utilizados.
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Acresce, com relevo para a definição do nível sancionatório penal em confronto com o nível da relevância da mera ordenação social, que o referido diploma, contém uma disposição sancionatória das violações ao regime legal ali definido.
Com efeito, postulando o Artigo 10º:
1. Constitui contra-ordenação punível com coima a violação do disposto nos artigos 1º, 3º, n.º2, 4º e 6º da presente Lei.
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3.3. No caso em apreço, está a pintura pelos recorrentes dos seguintes dizeres, num viaduto urbano: “8º CONGRESSO-TRANSFORMAR O SONHO EM VIDA, 20 E 21 DE MAIO, V.N. GAIA, ABC...”.
Identificando assim a data e local de realização de um congresso da juventude de um partido político nacional (ABC...).
Os dizeres, além da palavra “congresso”, consistem na reprodução do respectivo lema, formado por três palavras e conjunções de ligação, identificando a entidade promotora apenas pelas letras iniciais (ABC...), a data e local de realização.
A simples pintura da frase è manifesto que não causou qualquer destruição, ruptura, ou afectação da estrutura material da coisa ou da sua substância. Muito menos qualquer afectação da função do viaduto.
Pelo contrário houve um adicionamento da tinta necessária para pintar a frase que em nada afecta a estrutura ou a função. Apenas podendo representar, para efeito de subsunção no tipo de crime, uma modificação na aparência do objecto, ou seja o conceito de mera desfiguração.
Ora a coisa onde foi efectuada a pintura da frase constitui um viaduto urbano sobre uma estrada (Estrada da Circunvalação – ponto 1 da matéria provada).
Sem que a acusação faça qualquer referência a algum aspecto especial de interesse urbanístico ou paisagístico do referido viaduto.
Ou identifique qualquer especificidade do viaduto particularmente susceptível à alteração relevante da aparência, para além daquela que é normal num viaduto ou passagem aérea sobre outra via, em forma de ponte, em betão vulgar.
Tão-pouco se refere qualquer efeito corrosivo/danoso da tinta utilizada pelos arguidos. Ou sobre o efeito da pintura no aspecto geral do viaduto ou ainda da relevância da pintura da frase, com a dimensão do escrito, na aparência do dito viaduto.
O que, tratando-se de elementos relevantes para a definição do tipo de ilícito do crime de dano (que no caso não é dano mas desfiguração) competia à acusação descrever (e provar), como elemento caracterizador de um elemento objectivo (desfiguração danosa) do tipo de crime.
Alega o MºPº, com relevo neste âmbito, na resposta, que os arguidos não provaram que a tinta utilizada fosse biodegradável. Significando que aos arguidos competia provar a inexistência do dano.
No entanto, constituindo a caracterização do dano (desfiguração) o elemento típico do crime, não é a defesa que tem que provar a sua inexistência. É a acusação que tem que provar a sua verificação. Sob pena de violação de princípios fundamentais como a estrutura acusatório do processo penal e presunção de inocência.
Ora da acusação não resulta (porque assim não sucede) que o viaduto tenha qualquer componente ou interesse visual ou arquitectónico relevante, para além do vulgar viaduto em betão. Nem que a pintura da frase ocupe, sequer, mais espaço um espaço tal que altere a fisionomia do viaduto – e o viaduto é uma estrutura com paredes e pavimento inferior e superior.
Não estando assim caracterizado um dano (desfiguração danosa) relevante com a dignidade subjacente ao tipo de crime.
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3.4. Acresce que se o legislador punir a conduta com sanções de natureza menos grave que a penal – prevendo a conduta na sua globalidade, redondamente, esgotando a ilicitude da acção – não pode, sob pena de se defraudar a valoração subjacente à lei, a mesma conduta ser punida (sem qualquer elemento adicional de densificação da conduta que o previsto no ilícito menor, por exemplo de mera ordenação social) ainda como crime, dentro da mesma dimensão valorativa dos bens jurídicos subjacentes a uma e outra.
Ora, no caso dos autos, o viaduto onde foi efectuada a inscrição da frase, não se integra em qualquer das situações descritas artigo 4º, n.º3 da citada lei: – “monumentos nacionais, edifícios religiosos, sedes de órgão de soberania, de regiões autónomas ou de autarquias locais, sinais de trânsito, placas de sinalização rodoviárias, interior de repartições ou edifícios públicos, estabelecimentos comerciais ou centros históricos, como tal declarados ao abrigo da competente regulação urbanística”.
Tão-pouco se enquadra em qualquer das várias alíneas do n.º1 do art. 4º supra reproduzido - violação dos critérios do licenciamento da publicidade ali definidos.
O viaduto também não cabe na definição do art. 1º n.º1 – publicidade comercial.
Nem, por ultimo, no art. 3º, n.º2 – afixação em espaços de propriedade particular.
Sendo certo que as infracções aos referidos normativos (de densidade manifestamente superior á pintura da frase no viaduto), são punidas, como se viu, pelo já descrito art. 10º, como (meras) contra-ordenações.
De onde resulta que, para o legislador, actuações de gravidade superior (proibição absoluta) à dos autos, manifestamente aquém das previstas nas referidas proibições sancionadas com coima, constituem – apenas – ilícitos, menores, de mera ordenação social, de natureza administrativa.
O que, por contraponto com a acusação deduzida nos autos, evidencia que a procedência da acusação, no caso vertente, equivale a sancionar como crime de dano uma conduta a que o legislador nem sequer atribuiu relevância suficiente para a sancionar como contra-ordenação, tal como fez em relação, designadamente às condutas violadoras do artigo (publicidade em monumentos nacionais, edifícios religiosos, sedes de órgão de soberania, sinais de trânsito, placas de sinalização rodoviárias, interior de repartições ou edifícios públicos).
Ou seja, equivaleria a sancionar de forma mais gravosa (como crime) por via indirecta do crime de dano, uma conduta menos grave do que aquelas que, no âmbito da actividade em que foi levada a cabo, não teve sequer dignidade contra-ordenacional, para o legislador, quando valorou as infracções ao regime da actividade de afixação de publicidade/propaganda.
O que redundaria numa interpretação do tipo de crime desconforme aos princípios, com assento constitucional, nos termos a que se fez referência supra, da proporcionalidade, dignidade penal e subsidiariedade.
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3.5. Ainda uma referência aos pressupostos do tipo subjectivo do crime
Face às situações comuns do dano (afectação da substância ou da funcionalidade da coisa) e atenta a específica motivação/finalidade da acção (anúncio de um congresso partidário), verifica-se que a decisão recorrida não fundamenta quais os elementos de prova ou a valoração probatória em que ancora os factos dados como provados do conhecimento e vontade de danificar/desfigurar o viaduto.
É certo que os elementos subjectivos, na falta de confissão do agente provam-se por presunção judicial, por inferência a partir da acção objectiva – quem sendo imputável e em liberdade, representa certo facto como ilícito e o pratica não pode deixar de o querer praticar.
No entanto a validade da inferência depende, além do mais, da sua racionalidade e da sua “adequação” à base da inferência ou do facto objectivo em que se funda.
Com efeito a associação a entre elementos de prova objectivos e regras objectivas da experiência leva alguns autores a afirmarem a sua superioridade perante outros tipos de provas, nomeadamente a prova directa testemunhal, onde também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será mais perigoso de determinar, qual seja a credibilidade do testemunho.
Como decidiu o Ac. do ST J de 11-11-2004, Proc. n° 04P3182, in www.dgsi.pt, O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através de uma espécie de presunções. O recurso às presunções naturais não viola o princípio do in dubio pro reo.

Trata-se aliás de prova especialmente apta para dilucidar os elementos do tipo subjectivo do crime que de outra forma seriam impossíveis de demonstrar a não ser pela confissão.
No entanto, para que a prova indirecta, circunstancial ou indiciária possa ser tomada em consideração exigem-se como requisitos, além do mais: - a pluralidade de factos-base ou indícios; que os indícios estejam acreditados por prova de carácter directo; que sejam periféricos do facto a provar ou interrelacionados com esse facto; a racionalidade da inferência; e expressão, na motivação do tribunal de instância, de como se chegou à inferência – cfr. FRANCISCO ALCOY, Prueba de Indicios, Credibilidad del Acusado y Presuncion de Inocencia, Editora Tirant Blanch, Valencia 2003, p. 39 e, desenvolvidamente, CARLOS CLIMENT DURÁN, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch p. 626 e segs., em especial p. 633, citando Mitermayer e a jurisprudência constitucional e do Supremo Tribunal do país vizinho, cujo ordenamento é, tal como o nosso, é amplamente credor do alemão.
Ora, no caso, não sendo o acto objectivo da pintura da frase, com a dimensão, local, motivação e meios utilizado, no contexto em que foi escrita, em termos de normalidade e senso e comum, uma acção comum de dano, falece a racionalidade da inferência.
Pelo que sempre haveria que ter como não provada a intenção danosa, faltando assim também os pressupostos do tipo subjectivo.
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3.6. Não significa que se afaste em absoluto a possibilidade de a actividade de colagem de cartazes/pintura de mensagens poder constituir crime de dano.
Como argumenta, doutamente, o digno magistrado do MºPº na resposta, o direito à liberdade de expressão não é um direito absoluto (nenhum direito o é). O seu exercício compatibiliza-se com o exercício de outro direitos, também tutelados pela Lei Fundamental e pelas leis ordinárias.
Podendo verificar-se o crime de dano designadamente quando exista dano de relevo distinto/superior ao dos ilícitos de natureza contra-ordenacional definidos pelo legislador.
Como não significa, por maioria de razão, que se reconheça a licitude ou a legalidade da conduta dos arguidos.
Mas apenas que a qualificação da concreta conduta dos arguidos descrita na acusação violaria não só a interpretação do tipo de crime em conformidade com dimensão da ilicitude subjacente ao tipo e os citados princípios constitucionais – punição como crime de conduta sem dignidade penal.
Não competindo, porém, aqui definir a responsabilidade administrativa
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3.7. No que toca à responsabilidade civil conexa com a criminal, pode sustentar-se que caindo a responsabilidade criminal cai a civil que tem por base os mesmos pressupostos, sendo certo que não existe preceito que consagre a responsabilidade objectiva.
Permanecendo a eventual responsabilidade civil por acto ilícito com culpa negligente.
Ora, a este respeito, a Lei da Afixação e Inscrição de Mensagens e Propaganda prevê, especificamente, os meios de defesa dos proprietários (cfr. o art. 8).
Bem como os meios de reacção contra a afixação ilegal em espaços públicos (como é o caso dos autos), nos artigos 5º, 6º e 9º.
Estabelece o art. 5º, n.º2: As câmaras municipais, notificado o infractor, são competentes para ordenar a remoção das mensagens de publicidade ou de propaganda e para embargar ou demolir as obras quando contrárias ao disposto na presente lei.
E o art. 6º (relativo aos “Meios amovíveis de propaganda”, como é a pintura da frase em causa, ainda que não provado que seja biodegradável):
1- Os meios amovíveis de propaganda afixados em lugares públicos devem respeitar as regras definidas no artigo 4º, sendo a sua remoção da responsabilidade das entidades que a tiverem instalado ou resultado identificáveis das mensagens expostas.
2- Compete às câmaras municipais, ouvidos os interessados, definir os prazos e condições de remoção dos meios de propaganda utilizados.

Por último o legislador imputa os custos de remoção, ainda quando efectivada pelos serviços públicos, à entidade responsável pela afixação – cfr. art. 9º.

Resulta assim da conjugação das normas reproduzidas que a lei consagra, em primeira linha, a remoção, pelos próprios responsáveis. E, só depois de esgotado o prazo concedido para o efeito, pode a câmara municipal substituir-se aos responsáveis, procedendo ela própria à remoção e subsequente responsabilização pelos custos.
Confere o direito à remoção e imputação da despesa, apenas depois de conceder e fixar prazo aos responsáveis para o fazerem, por si próprios e com os seus próprios meios.
Aliás é diferente a remoção dos meios de publicidade/propaganda pela sua própria mão e com afectação dos seus próprios recursos, da substituição por outrem, sem mais, com a natural inflação de custos.
E no caso não foi, manifestamente, concedida aquela faculdade, condição sine qua non para o passo seguinte.
Impondo-se assim também a procedência do recurso nesta parte.

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III. Decisão
Nestes termos decide-se julgar procedente o recurso com a consequente revogação da decisão recorrida, absolvendo-se os arguidos do crime e do pedido de indemnização civil assente nos pressupostos da responsabilidade criminal. ------
Sem custas.