Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
549/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JORGE ARCANJO
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO: INVOCAÇÃO DE UM CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO DE BENS ALHEIOS: SUA ADMISSIBILIDADE E SITUAÇÃO DE NULIDADE DO CONTRATO
Data do Acordão: 11/18/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MONTEMOR O VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Área Temática: CÓDIGO CIVIL
Legislação Nacional: ART. S 1204°, N° 1; 1311 ° E OUTROS, DO C.CIV.
Sumário:
I - Na acção de reivindicação pode conhecer-se da validade e da subsistência de um contrato de arrendamento invocado pelo réu para legitimar a sua ocupação.
II - A legitimidade negocial para dar de arrendamento cabe àquele que puder dispor do uso da fruição da coisa (o proprietário- 1605° C. Civ. ; o fiduciário - 2291º, n° 1, C. Civ.; o enfiteuta - 1501°, al. a); e o usufrutuário - 1446°, C. Civ. ) e bem assim àquele que for administrador do bem a arrendar, neste caso até ao limite de 6 anos - 1204º, n° 1, C. Civ. (entre outros, o cabeça de casal da herança - 2079° e 2087° C. Civ. ; os pais relativamente a bens dos filhos que estejam sob a sua administração - 1878°, n° 1, 1899°, n° 1, e 1897° do C. Civ.; o curador provisório ou definitivo dos bens do ausente - 94°, n° 1, 110° e 1159°, n° 1, C. Civ. ; o tutor- 1935° n° 1, 1878° n° 1, 1889° n° 1, à contrário, e 1897°, C. Civ. ; o mandatário - 1159°, n° 1, C. Civ..
III - O arrendamento de bens alheios é nulo, por falta de legitimidade do locador, embora este esteja obrigado a sanar essa nulidade.
 IV- Na acção de reivindicação incumbe ao réu provar que quem lhe deu de arrendamento o imóvel reivindicado tinha legitimidade negocial para o fazer - art° 342°, n° 2, do C. Civ.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de COIMBRA
I – RELATÓRIO
Os AutoresEUGÉNIO ... e esposa ROSA MARIA ... – instauraram, no Tribunal Judicial da Comarca de Montemor-o-Velho, a presente acção declarativa, com forma de processo sumário, contra o Réu – JOSÉ ....
Alegaram, em resumo:
Os Autores são comproprietários de ¾ indivisos de uma terra de semeadura, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo nº4108 e proprietários de um prédio rústico, inscrito na matriz sob o artigo nº4109, ambos situados no lugar do Meco, freguesia de Arazede, concelho de Montemor-o-Velho.
O Réu ocupa estes prédios por mera tolerância dos anteriores proprietários e, não obstante ter sido interpelado para os entregar, recusou-se a fazê-lo, causando, por isso prejuízos.
Pediram cumulativamente a condenação do Réu:
a) - A reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre os prédios descritos no artigo 1º da petição inicial, nas indicadas proporções;
b) - A restituir aos Autores os terrenos por eles ocupados, livre de pessoas e coisas;
c) - A pagarem aos Autores uma indemnização pelos prejuízos sofridos pela não restituição, a liquidar em execução de sentença, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação.

Contestou o Réu, defendendo-se, em síntese:
Há mais de 30 anos que os prédios lhe foram dados de arrendamento por Rosalina Cavaleiro, mediante o pagamento de uma renda anual de 600$00.
O contrato nunca foi reduzido a escrito, apesar de o réu ter insistido para o efeito, designadamente através de notificação judicial avulsa.
Em reconvenção, pediram:
A condenação dos Autores a firmarem por escrito o contrato de arrendamento rural existente sobre os prédios.
Na resposta, os Autores mantiveram a posição assumida na petição inicial, impugnando que tenha sido celebrado um contrato de arrendamento, que, a verificar-se, deverá ser declarado nulo por falta de forma ou subsidiariamente, resolvido por falta de pagamento de rendas.
No saneador relegou-se para final o conhecimento da excepção peremptória da existência e validade do alegado contrato de arrendamento rural, afirmando-se quanto ao mais a regularidade da instância.
Realizado a audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, decidindo-se:
a) - Reconhecer aos Autores o direito de propriedade sobre ¾ indivisos do prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 4108 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob os nºs 6805 e sobre o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 4109 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob os nos 6806; condenando-se os réus a tal reconhecerem;
b) - Condenar o réu José da Silva Costa a restitui-los aos autores, livres de pessoas e bens;
c) - Absolver o Réu dos demais pedidos formulados pelos autores;
d) - Julgar improcedente a reconvenção e absolver os Autores do pedido reconvencional.

Inconformado com a sentença, o Réu dela interpôs recurso de apelação, em cuja motivação concluiu, em resumo:
1º) - A sentença recorrida decidiu que o Réu tomou de arrendamento a quem não dispunha legitimidade para dispor dos prédios, sendo o mesmo inoponível aos Autores, actuais proprietários, para quem a respectiva posição contratual de arrendatários não se transmitiu.
2º) – Porém, a decisão não levou em consideração o facto provado na resposta ao quesito 9º - “ Provado apenas que, depois do óbito de Rosalina Cavaleiro, o Réu pagou, pelo menos duas vezes, a renda anual ao filho daquela, António Queda “.
3º) – O falecido António Queda ao receber as rendas, pelo menos, duas vezes, e ao não denunciar judicial ou extra-judicial o contrato de arrendamento, interiorizou a relação jurídica locatícia como existente, aceitando o contrato celebrado, designadamente, nos termos e condições em que vigora.
4º) – O art.1056 do Código Civil estabelece que “ se não obstante a caducidade do arrendamento, o locatário se mantiver no gozo da coisa por o lapso de um ano, o contrato considera-se igualmente renovado, nas condições do art.1054 “, sendo que no caso se devem respeitar os prazos previstos no art.5º do DL nº385/88 de 25/12.
5º) – Por força das disposições invocadas e nos termos do art.1º deste diploma legal ( LAR ), terá necessariamente de se transmitir o contrato de arrendamento existente.
6º) – A sentença recorrida violou as normas indicadas.

Contra-alegaram os Autores, sustentando, em síntese, que o contrato de arrendamento rural celebrado verbalmente, há mais de 30 anos, entre o Réu e Rosalina Cavaleiro, é inválido e inoponível aos Autores.
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), impondo-se decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras ( art.660 nº2 do CPC ).

Por seu turno, no nosso sistema processual civil, os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.

Como resulta das conclusões do recurso, a questão essencial que importa decidir consiste em saber se o Réu tem título legítimo para ocupar os prédios reivindicados, ou seja, se o contrato de arrendamento celebrado verbalmente entre ele e Rosalina Cavaleiro se transmitiu ou não aos Autores.

2.2. – Os Factos Provados:
1) - Encontram-se descritos na Conservatória do Registo Predial respectivamente sob os nos 6805 e 6806, da freguesia de Arazede, e aí inscritos a favor dos autores, os seguintes prédios:
a) - ¾ indivisos de uma terra de semeadura, pinhal e mato, sito no Meco, com a área de 3.820 m2, a confrontar do norte com Maria Encarnação Brites, do sul com Ant6nio Queda, do nascente com Rosalina Cavaleiro e do poente com Maria Encarnação Brites e outros, inscrita na matriz predial rústica sob o artigo 4108.
b) - terra de semeadura com algumas oliveiras e terreno matagoso, sito no Meco, com a área de 850 m2, a confrontar do norte com herdeiros de Joaquim Costa, do sul com Joaquim Maria da Silva, do nascente com serventia de inquilinos e do poente com Joaquim Rama, inscrita na matriz predial rústica sob o artigo 4109 (al. A e C).
2) - Tais prédios, nas proporções indicadas, foram adquiridos pelos autores a Maria Angélica da Conceição Lopa e Queda, viúva, e a Anabela da Conceição Lopa Queda, divorciada, por escritura pública de compra e venda celebrada em 17.10.97, no Cartório Notarial de Montemor-o-Velho, lavrada a tIs. 47 do livro de notas para escrituras diversas n° 181-D (al. B).
3) - Estes prédios estavam inscritos a favor de Maria Angélica da Conceição Lopa e Queda, viúva, e a Anabela da Conceição Lopa Queda, por sucessão por óbito de António Queda, casado com Maria Angélica da Conceição Lôpa e Queda (doc. de fls. 11 e 13).
4) - A restante parte do prédio referido na alínea A) (1/4 indiviso) pertence em comum e sem determinação de parte ou direito, a Irene Lavradora, viúva; Maria Odete Lavradora Costa casada com Jaime Oliveira Mendes e Maria de Fátima Lavradora Costa casada com António de Oliveira Teixeira, casados no regime de comunhão de adquiridos, residentes (todos) no lugar de Meco, freguesia de Arazede, concelho de Montemor-o-Velho (al. D).
5) - O réu vem ocupando os dois referidos prédios, semeando neles batatas, couves, feijão e outras espécies agrícolas (al. E).
6) - Logo após a aquisição dos prédios, por mais de uma vez, os autores solicitaram ao réu que lhos entregasse, deixando-os livres de culturas e "coisas" (al. F).
7) - Por notificação judicial avulsa foi a autor mulher notificada para se deslocar ao Cartório Notarial de Montemor-o-Velho a fim de assinar e outorgar o contrato de arrendamento para escritura pública (al. G).
8) - Tendo esta faltado e não comparecido no local e data designadas (al. H).

9) - Os autores pretendem, através do auxilio de terceiro, cultivar os prédios referidos em A) (r.q. 1º).
10) - A não restituição dos prédios, referidos em A), aos autores impede o facto referido no artº 1º ou que os autores dêem tais prédios de arrendamento (r.q. 2º, 3º, 4º e 5º).
11) - Rosalina Cavaleiro, há mais de 30 anos, acordou verbalmente com o réu em ceder-lhe o gozo e fruição dos prédios referidos na alínea A), mediante o pagamento de 600$00 por ano (r.q. 6º e 7º).
12) - Desde a data referida em 6º e 7º o réu sempre cultivou os prédios referidos em A) (r.q. 8º).
13) - Depois do óbito de Rosalina Cavaleiro, o réu pagou, pelo menos por duas vezes, a renda anual ao filho daquela, António Queda (r.q. 9º).
14) - O réu, em 6.3.2000 e em 4.9.2000, depositou a quantia de Esc.: 2.100$00 e de Esc.: 600$00, respectivamente, à ordem do autor na CGD, invocando “recusa no recebimento da renda”, sendo tais depósitos referentes a “rendas de 1997/1998 e 1999” e a “rendas de 2000” (doc. 43 e 44).

2.3. – Considerações gerais:

A acção de reivindicação, como manifestação do direito de sequela, visa afirmar o direito de propriedade e pôr fim a situações ou actos que o violem, tendo como primeiro desiderato a declaração de existência do direito ( “ promuniatio “ ) e, como escopo ulterior, a sua realização ( “ condennatio “ ).
Daí que na acção de reivindicação concorram dois pedidos: o do reconhecimento do direito e o da restituição da coisa, objecto desse direito ( art.1311 nº1 do Código Civil ).
Trata-se de uma cumulação aparente, visto que o pedido de entrega já contem implícito o do reconhecimento do direito de propriedade ( cf. ALBERTO REIS, Comentário, Vol. III, pág.148, Ac do STJ de 14/5/81, BMJ 307, pág.235 ).
E a estes pedidos pode ainda acrescer ( art.470 nº1 do CPC ), o de indemnização pelos danos causados (cf., por ex., ANTUNES VARELA, RLJ ano 115, pág.272, Ac RC de 10/5/88, C.J. ano XIII, tomo III, pág.63 ).
Para a procedência da acção torna-se necessária a comprovação, por um lado, de um requisito subjectivo, que consiste em ser o autor o proprietário da coisa reivindicada, e, por outro, de um requisito objectivo, ou seja, a identidade entre a coisa reivindicada e a possuída pelos réus, cujo ónus da prova incumbe ao autor, por serem factos constitutivos do seu direito ( art.342 nº1 do Código Civil ).
Na acção de reivindicação, a causa de pedir consubstancia-se nos factos de que emergem a titularidade do direito de propriedade.
Em regra é insuficiente a invocação de uma forma de aquisição derivada ( por exemplo, o contrato de compra e venda ), por não ser constitutiva do direito de propriedade, mas apenas translativa desse direito, a menos que se comprove que o direito já existia no transmitente, o que nem sempre é fácil, e daí que alguns autores a designem por “ probatio diabolica “.
Ora, a prova do direito deve ser feita pelo autor, não bastando justificar a própria aquisição, sendo também necessário provar o “ dominium auctoris “ ou a usucapião, como forma de aquisição originária.
Por isso, o reivindicante terá de invocar factos dos quais resulte a aquisição originária do domínio por parte dele ou de um transmitente anterior, e neste sentido se consolidou a doutrina, tanto na vigência do Código de Seabra, como no Código Civil de 1966.
Só assim não será quando o autor beneficie da presunção legal de propriedade, como a resultante do registo ( art.7º do Código de Registo Predial ).
A pretensão real dos Autores assenta no reconhecimento do direito de propriedade dos prédios identificados no art.1º da petição inicial, com base não só na aquisição originária do direito, através da usucapião ( art.1287 e segs. do Código Civil ), como na presunção legal derivada do registo.
Reconhecido que está o direito de (com)propriedade dos Autores sobre os prédios e, por isso, julgado procedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade, deve ser julgado no mesmo sentido o pedido de restituição, salvo se o Réu tiver direito de retenção ou outro título que legitime a ocupação, já que a restituição só pode ser recusada nos casos expressamente previstos na lei.
Tratando-se de um facto impeditivo do direito dos Autores, o ónus a prova compete ao Réu ( art.1311 nº2 e 342 nº2 do Código Civil ).

2.4. – A existência e validade do contrato de arrendamento rural:

A posição do Réu:
Alegou na contestação que, há mais de 30 anos, celebrou verbalmente com Rosalina Cavaleiro ( falecida em 23/1/78 ), mandatada pelo seu filho António Queda, um contrato de arrendamento rural, pela renda anual de 600$00, tendo por objecto os prédios reivindicados.
O António Queda faleceu, deixando como herdeiros a viúva, Maria Angélica da Conceição Lopes Queda e a filha Anabela da Conceição Queda, que venderam os prédios aos Autores.
Por isso, o contrato de arrendamento transmitiu-se aos Autores.
A não formalização do contrato é da exclusiva responsabilidade dos Autores, já que o Réu insistiu para que eles o fizessem, tendo, em 22/3/2001, notificado judicialmente a Autora mulher, para o efeito, mas ela não compareceu no Cartório Notarial, nem deu qualquer explicação.

A posição dos Autores:
Na resposta, os Autores alegaram que o Réu nunca outorgou com os anteriores proprietários qualquer contrato de arrendamento, ocupando os prédios por mera tolerância.
A existir contrato de arrendamento, é nulo por vício de forma, já que nunca foi reduzido a escrito, e a interpelação feita apenas à Autora mulher, é ineficaz perante o Autor.

A decisão do tribunal a quo:
A sentença recorrida, face à a factualidade apurada, considerou a existência de um contrato de arrendamento rural, celebrado verbalmente entre o Réu e Rosalina Cavaleiro, há mais de 30 anos, pela renda anual de 600$00, e a não formalização por escrito é imputada aos Autores, pelo que afastou a nulidade formal.
Contudo, o Réu tomou de arrendamento a quem não tinha legitimidade negocial para dispor dos prédios, sendo o mesmo inoponível aos Autores, actuais proprietários, para quem a respectiva posição contratual de locadores não se transmitiu.
A este propósito, argumentou-se o seguinte:
“ O réu apenas alegou que Rosalina Cavaleiro tinha sido mandatada pelo seu filho para dar de arrendamento, mas tal matéria não resultou provada, como já referimos. Assim e perante a matéria que ficou assente temos que concluir que o réu tomou de arrendamento a quem não dispunha de legitimidade para dispor dos prédios. Só o titular do gozo do imóvel é que poderá proporcionar a terceiros esse mesmo gozo.
Assim sendo, perante a matéria de facto assente, o contrato de arrendamento que o réu celebrou é inoponível aos autores, actuais proprietários dos prédios e para quem a respectiva posição contratual (de locatário) não se transmitiu - porque os anteriores proprietários também não a detinham “.

A lógica discursiva da sentença apresenta, desde logo, uma contradição, pois se o arrendamento não se transmitiu aos Autores, claro está que a sua interpelação para a formalização escrita do contrato é de todo irrelevante e daí que não podia, sem mais, postergar a nulidade do contrato, ou seja, ao valorar a notificação judicial avulsa feita à Autora mulher, está a pressupor implicitamente que o arrendamento se transmitira aos Réus.
Por isso, impõe-se indagar se ocorreu ou não a transmissão do contrato, o que implica saber se o Réu tomou de arrendamento a quem tinha poderes para dispor dos prédios, o que pressupõe a validade e subsistência do contrato de arrendamento, face à legitimidade negocial do locador.
Com efeito, na acção de reivindicação pode conhecer-se da validade e subsistência do contrato de arrendamento invocado pelos réus para legitimar a ocupação, como facto impeditivo do direito do proprietário a pedir a restituição ( cf., por ex., Ac STJ de 18/2/84, BMJ 342, pág.387 ).
Como princípio geral, está legitimado a da dar de arrendamento o titular do gozo do imóvel que, pelo contrato, como parte, se obriga a proporcionar à contraparte – presta-se aquilo que se tem.
Assim, detém legitimidade negocial para dar de arrendamento todo aquele que puder dispor do uso da fruição da coisa: o proprietário ( art.1605 CC ), o fiduciário ( art.2299 nº1 CC ), o enfiteuta ( art.1501 al.a) ) e o usufrutuário ( art.1446 CC ).
Por seu turno, a norma do art.1204 nº1 do CC contem ainda outro princípio sobre a legitimidade para prestar arrendamento até 6 anos, quem for administrador do bem a arrendar.
Nesta medida, podem dar de arrendamento, entre outros, o cabeça de casal da herança ( art.2079 e 2087 CC ), os pais relativamente a bens dos filhos que estejam sob a sua administração ( arts.1878 nº1, 1899 nº1 e 1897 CC ), o curador provisório ou definitivo dos bens do ausente ( arts.94 nº1, 110 e 1159 nº1 CC ), o tutor ( arts.1935 nº1, 1878 nº1, 1889 nº1, a contrário, e 1897 CC ), o mandatário ( art.1159 nº1 CC ).
Todavia, em casos especiais, a lei recusa a certos administradores a legitimidade negocial para, só por si, prestarem arrendamento de bens que tenham sob a sua administração, como, por exemplo, os cônjuges que, embora tenham a faculdade de administrar bens próprios ou comuns do casal, só podem dar de arrendamento com o consentimento de ambos, salvo se vigorar entre eles o regime de separação ( arts. 1678 nº1, 2 f) e nº3, 1682-A nº1 a) e b) CC ), ou o arrendamento de prédio indiviso, embora possa ser feito pelo consorte administrador, carece de assentimento dos outros, antes ou depois de celebrado o contrato ( art.1024 nº2 CC ).

Contrariamente ao alegado pelo Réu, considerando a resposta restritiva ao quesito 6º da base instrutória, o contrato verbal de arrendamento rural foi celebrado, não com António Queda, mas com Rosalina Cavaleiro, sua mãe, sendo esta a locadora e não mandatária daquele.
Segundo a sentença recorrida, não se provando que ela tivesse poderes de disposição sobre os prédios, logo carecia de legitimidade para dar de arrendamento, e daí o contrato ser ineficaz para os Autores.
Mas sendo assim, impõe-se problematizar se a inoponibilidade abrange também o arrendamento de coisa alheia.
Para PEREIRA COELHO ( Direito Civil, Arrendamento, 1980, pág.97 e 98 ) o arrendamento de bens alheios é nulo, por falta de legitimidade do locador, embora este esteja obrigado a sanar a nulidade do contrato, que se torna válido logo que o locador adquira direito ( de propriedade, usufruto, etc. ) que lhe dê legitimidade para arrendar, aplicando analogicamente os arts.895 e 897 do CC.
Nestes casos, o locador não poderá opor a nulidade do arrendamento ao locatário de boa-fé ( art.892 por analogia ), o qual, não querendo invocar a nulidade, pode exigir ao locador responsabilidade contratual, nos termos do art.1034 nº1 a) CC.
No mesmo sentido, o Ac RP de 20/11/90 ( C.J. ano XV, tomo V, pág.202 ), onde se decidiu que ao contrato de arrendamento de coisa alheia aplica-se, por analogia, o regime da venda de coisa alheia.
Nesta perspectiva, a convalidação do contrato exigiria que locadora ( Rosalina Cavaleiro ) adquirisse entretanto o direito, com base no qual pudesse dispor dos prédios, o que também não está demonstrado.
Em contrapartida, HENRIQUE MESQUITA ( RLJ ano 125, pág.100, nota 1 ), sustenta a legitimidade do arrendamento de coisa alheia, com base em dois tópicos argumentativos: a natureza obrigacional do contrato e o regime inscrito no art.1034 nº1 a) do CC.
Escreve, a dado passo, - “ (…) se o contrato de locação de coisa alheia pode originar a sujeição do locador aos efeitos do não cumprimento, isso significa inquestionavelmente que se considera válido o contrato. O locador não pode eximir-se ao cumprimento da obrigação de entrega da coisa locada com fundamento em que esta lhe não pertence e responderá pelos danos que causar ao locatário se culposamente a não cumprir “.
Não é seguro que se possa retirar deste entendimento doutrinário o carácter oponível do contrato, pois o locador, para realizar a prestação que está vinculado ( proporcionar o gozo da coisa mediante uma retribuição), terá de adquirir o direito que lhe confere dispor dela e, em todo o caso, sempre seria indispensável a comprovação da transmissão do arrendamento para os Autores.
Ora, é precisamente aqui que se situa o enfoque da pretensão recursal do apelante, ao trazer à colação a resposta ao quesito 9º e o recebimento das duas rendas pelo António Queda.
Argumenta o apelante que a sentença não levou em consideração o facto provado na resposta ao quesito 9º - “ ou seja, que, “ depois do óbito de Rosalina Cavaleiro, o Réu pagou, pelo menos duas vezes, a renda anual ao filho daquela, António Queda “.
Coloca-se, por isso, a questão de saber se este facto, por si só, implica o reconhecimento do contrato de arrendamento e qual a consequência jurídica.
Tendo a Rosalina Cavaleiro falecido em 23/1/78, em plena vigência da Lei nº76/77 de 29/9, sobre a caducidade, dispunha o art.22 nº1 – “ o arrendamento rural não caduca por morte do senhorio, pela transmissão do prédio ou quando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado “.
Este regime deixou de vigorar com a Lei nº76/79 de 3/12, uma vez que o art.1º substituiu diversos artigos da Lei nº76/77, entre os quais o art.22, que passou a estabelecer os casos de resolução, sem qualquer referência à caducidade.
Face à extinção da norma do art.22 da Lei nº76/77, entendia-se ser de aplicar o regime geral da locação ( art.1051 e segs. do CC ), sob pena de se entender que o instituto da caducidade não tinha aplicação ao contrato de arrendamento ( cf., por ex. Ac RP de 6/10/83, C.J, ano VIII, tomo IV, pág.254, Ac RE de 19/2/87, C.J. ano XII, tomo I, pág.316 ), sustentando PEREIRA COELHO que o art.22 se mantinha em vigor, por se tratar de um lapso do legislador ou sendo uma lacuna deveria ser integrada, nos termos gerais ( art.10 nº3 CC ) pela referida norma ( Direito Civil, Arrendamento, 1980, pág.282, nota 1 ).
Como quer que seja, a discussão é aqui irrelevante, visto que o regime legal da caducidade é o vigente à data do facto que o determina, conforme orientação jurisprudencial prevalecente ( cf., por ex., Ac STJ de 17/6/76, BMJ 248, pág.431 ).
Daí que estando em vigor, à data do óbito da locadora, o art.22 nº1 da Lei nº76/77 ( antes da substituição ou extinção ) é o regime nele estabelecido o aplicado, pelo que, falecido o senhorio a respectiva posição transmite-se ao herdeiro ou legatário a quem venha pertencer o prédio arrendado.
Todavia, mesmo que porventura fosse a Rosalina Cavaleiro a proprietária dos prédios ( facto não demonstrado ), a verdade é que não foi sequer alegado que o António Queda os houvesse adquirido à mãe, quer por acto entre vivos, quer por sucessão.
E tal facto não se pode presumir da circunstância dos prédios haverem sido comprados pelos Autores a Maria Angélica da Conceição Lopa e Queda e a Anabela da Conceição Lopa Queda, que os adquiriram por sucessão, por óbito de António Queda.
De resto, comprovando-se que o recebimento das duas rendas ocorreu “ depois do óbito “, ignora-se a que título o fez, tanto mais que se desconhece se, nessa altura, a herança já havia sido partilhada ou se era o único herdeiro.
Em todo o caso, competia ao Réu alegar e provar se, quando ao recebeu as duas rendas, o António Queda, já era efectivamente o proprietário dos terrenos arrendados, ou melhor dizendo, se ele podia, nessa altura, dispor deles, o que manifestamente não fez.
Por isso, não estando comprovado que era então o proprietário ou que pudesse dispor da coisa, e, nessa, medida, estivesse legitimado a reconhecer o arrendamento, ter-se-á de concluir não estar demonstrado que a posição de senhorio se transmitiu aos seus herdeiros, vendedores dos prédios aos Autores, e ipso facto, também a transmissão para estes ( art.1057 do CC ).
Na acção de reivindicação incumbe ao réu provar que quem lhe deu de arrendamento o imóvel reivindicado tinha legitimidade negocial para o fazer, não bastando para o efeito a invocação de um título, não só abstracta, mas efectivamente válido, e portanto legítimo para a ocupação do arrendado ( cf., por ex. Ac RC de 22/5/2001 ( relator Des. Eduardo Antunes ), processo 877/2001, www dgsi.pt/jtrc ).
Neste contexto, não provou o Réu, como lhe incumbia ( art.342 nº2 CC ), a validade do título para recusar a entrega, pelo que a sentença recorrida não violou as normas legais invocadas pelo recorrente, improcedendo consequentemente a apelação.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
2)
Condenar o apelante nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário.