Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
682/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
RECURSO
LIBERDADE DE JULGAMENTO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 04/12/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VAGOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 668º, 3 E 4;712º, Nº 1, A), B) E C) E 653º, Nº 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. A alegação de deficiência, obscuridade e contradição da decisão proferida sobre a matéria de facto não pode esconder uma reclamação encapotada quanto à alteração das respostas dadas a pontos concretos da base instrutória que, manifestamente, tem o seu lugar adequado, em sede de recurso da sentença final, e não, no final do julgamento sobre a matéria de facto.
2. Sendo inadmissível recurso autónomo da reclamação desatendida contra a deficiência, obscuridade ou contradição da decisão sobre a matéria de facto, ou contra a falta da sua motivação, o seu indeferimento, no Tribunal «a quo», por razões de extemporaneidade, não preclude a possibilidade da sua apreciação, na fase de recurso.

3. A convicção do Tribunal, alicerçada no princípio da liberdade do julgamento, tem subjacente o sistema da convicção racional da prova, que combina a impressão que as provas oferecidas causaram no espírito do julgador com a expressão que estas devem evidenciar na correspondente motivação.

4. Arguida a omissão de pronúncia da sentença, não levada em consideração pelo Tribunal «a quo», após a apresentação das alegações de recurso, deverá ser suprida pelo Tribunal da Relação, não se justificando a baixa dos autos, à primeira instância, para sanar o ocorrido, quando a factualidade que ficou demonstrada não importe uma diversa solução de Direito.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A... intentou a presente acção, com processo
ordinário, emergente de acidente de viação, contra o Fundo de Garantia
Automóvel, ambos, suficientemente, identificados, pedindo que, na sua procedência, este seja condenado a pagar-lhe, a titulo de danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia de 691.085.000$00, alegando, para o efeito, e, em síntese, que, quando tripulava um motociclo, de matrícula 1-MIR-03-80, no sentido Fonte de Angeão-Vagos, foi embatido por um veiculo automóvel, concretamente, não identificado, na traseira daquele motociclo, que circulava no mesmo sentido deste, numa estrada recta, transitando o autor, junto à berma direita da estrada, tendo sido, em consequência, projectado e embatido num poste, pondo-se em fuga o condutor do automóvel desconhecido.
Conduzido ao hospital, o autor foi tratado e operado, aos membros atingidos, resultando das sequelas permanentes que sofreu uma incapacidade especifica absoluta, para o exercício profissional da construção civil, de 100%, e uma incapacidade genérica para qualquer outro trabalho, de 80%.
Com efeito, continua o autor, era operário da construção civil, na Alemanha, auferindo entre 400.000$00 e 500.000$00 mensais do exercício desta actividade, sendo certo que, no momento do acidente, trabalhava em Portugal, auferindo 1.000$00 por cada hora de trabalho, das cerca de dez a onze horas diárias que realizava.
Sofreu muitas e fortes dores, e ainda hoje padece quando intenta fazer algum esforço com a mão direita e nas mudanças de tempo, e sofre pelo facto de se ver sem horizontes de vida, para além de que suportou prejuízos com a roupa estragada e a motorizada destruída.
Na contestação, o réu invoca, em resumo, que desconhece as circunstâncias em que ocorreu o acidente e os danos invocados pelo autor, sendo certo que o direito deste se encontra prescrito, concluindo pela improcedência da acção.
Na réplica, o autor sustenta que a excepção da prescrição deve ser julgada improcedente, terminando como na petição inicial.
A sentença julgou a acção improcedente, por não provada, absolvendo o réu do pedido.
Desta sentença, o autor interpôs recurso de apelação, pedindo a anulação e repetição do julgamento, a adição de novos quesitos e a renovação da produção dos meios de prova, terminando as suas alegações com cem conclusões, ao longo de catorze páginas, frente e verso, quase um mero repositório do respectivo corpo, donde se extraem as seguintes questões, em função das quais se fixa o objecto do recurso, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC) :
I – A questão da falsidade da acta sobre a decisão da matéria de facto.
II – A questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto.
III - A questão da deficiência, obscuridade, contradição e falta de fundamentação das respostas dadas à matéria de facto.
IV - A questão da nulidade da sentença.

*

Nas suas contra-alegações, o réu defende que deve ser julgado improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

I

DA FALSIDADE DA ACTA

Diz o autor que a acta sobre a decisão da matéria de facto não é verdadeira, porque não se passou o que nela consta, ou seja, ao contrário do respectivo teor, o seu advogado não esteve presente à leitura das respostas dadas à base instrutória.
Efectivamente, consta do conteúdo da acta da leitura das respostas à matéria de facto, a folhas 159, reportada a uma sessão da audiência de discussão e julgamento que teve lugar, no dia 26 de Maio de 2004, entre as 9,30 e as 9,40 horas, presidida pela Exª Juiz de Círculo, que a subscreveu, e bem assim como a respectiva funcionária judicial, que, depois de facultada para exame ao ilustre mandatário do autor a resposta à matéria de facto proposta no questionário, pelo mesmo foi dito não ter qualquer reclamação a fazer, quanto a deficiências, obscuridades ou contradições contidas nas respostas.
Certo é que, datada de 15 de Junho de 2004, o Exº Advogado do autor, sem apresentar qualquer justificação, veio reclamar contra a deficiência, obscuridade e contradição da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Na altura, a Exª Juiz titular do processo, baseando-se no disposto pelo artigo 653º, nº 4, do CPC, considerando que o mandatário do autor tinha estado presente na diligência e não deduzira qualquer reclamação, considerando ainda que as reclamações devem obedecer à forma oral, sendo apresentadas na audiência, entendeu precludida a faculdade de reclamar da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Porém, o autor requereu pronúncia sobre o incidente, por parte da Exª Juiz Presidente, considerando que tinha estado ausente da sessão de julgamento, tendo a mesma decidido indeferir a reclamação, em virtude de o mandatário do autor ter estado presente e, na ocasião, não haver reclamado, ordenando ainda a extracção de certidões sobre o sucedido, a remeter ao Ministério Público e ao Conselho Distrital da Ordem dos Advogados.
Seguiu-se, sem mais, a prolação da sentença, objecto deste recurso.
Assim sendo, independentemente das vicissitudes que o desenrolar futuro deste incidente possa vir a revelar, importa ter presente que a mera arguição da falsidade da acta não tem a virtualidade de, por si só, converter a alegação em factualidade provada, nem sequer de operar a suspensão da instância, por eventual prejudicialidade da causa, nos termos do disposto pelo artigo 279º, nº 1, do CPC, mas, tão-só, a de fundamentar um hipotético recurso extraordinário de revisão de sentença, dentro dos apertados limites consentidos pelo artigo 771º, b), do CPC.
A falsidade consiste na falsa atestação, ou seja, na exposição, em documento verdadeiro, de factos ou declarações que não correspondem à verdade do que se passou no momento da sua celebração Guilherme Moreira, Instituições, I, 674 e ss..
Efectivamente, a acta da audiência de discussão e julgamento é um inequívoco documento autêntico, que a lei define, no que ao caso concreto interessa considerar, como aquele que é exarado, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas, nos limites da sua competência ou, dentro do círculo da actividade que lhe é atribuído, isto é, quando a autoridade que o exara for competente, em razão da matéria e do lugar, e não estiver, legalmente, impedida de o lavrar, atendendo ao preceituado pelos artigos 363º, nº 2 e 369º, nº 1, do Código Civil (CC).
Ora, os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade respectiva, sendo certo que a sua força probatória apenas pode ser ilidida com base na falsidade, que ao Tribunal caberá declarar, atento o disposto pelos artigos 371º, nº 1 e 372º, do CC.
Assim sendo, mantém-se intacta, por ora, a força probatória da questionada acta da sessão da audiência de discussão e julgamento.
A isto acresce que, independentemente da real ou inexistente intempestividade da reclamação contra a matéria de facto, a mesma nunca poderia ser atendida, considerando que, sob a alegação de deficiência, obscuridade e contradição da decisão sobre a matéria de facto, o autor esconde antes uma reclamação sobre a decisão proferida, em relação a pontos concretos da base instrutória que, manifestamente, teria o seu lugar adequado, em sede de recurso da sentença final, como, também, veio a acontecer, e não, impropriamente, no final do julgamento sobre a matéria de facto.
De todo o modo, considerando que é inadmissível o recurso autónomo da reclamação desatendida contra a deficiência, obscuridade ou contradição da decisão sobre a matéria de facto ou contra a falta da sua motivação, nos termos do disposto pelo artigo 653º, nº 4, do CPC Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 656; Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 2001, 267; RL, de 25-1-80, BMJ nº 297, 400., o seu indeferimento, no Tribunal «a quo», por razões de extemporaneidade, não preclude a sua apreciação, nesta fase de recurso, como irá acontecer, com o que se esgota, irremediavelmente, qualquer especulação sobre as consequências futuras de uma hipotética falsidade da acta, no estrito âmbito dos autos, com óbvia ressalva da área da responsabilidade penal e disciplinar.

II

DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

O autor defende que deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, dando-se como provada toda a matéria quesitada, sob os números 2, 3, 4, 12, 14, 15, 16, 17, 27, 31, 34 e 40.
Porém, não constando do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos concretos da matéria de facto em causa, nomeadamente, a gravação dos depoimentos prestados em audiência, não pode a Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão sobre a matéria de facto e, consequentemente, substituindo-se ao Tribunal «a quo», alterá-la, nos termos do disposto pelo artigo 712º, nºs 1, a) e 2, do CPC.

III

DA DEFICIÊNCIA, OBSCURIDADE, CONTRADIÇÃO E FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DAS RESPOSTAS À BASE INSTRUTÓRIA

O autor sustenta que existem erros na apreciação da prova e, por isso, algumas das respostas dadas a determinados quesitos são deficientes, obscuras e contraditórias.
No entanto, o autor, enredando-se na desmontagem das múltiplas insuficiências que encontra na apreciação e decisão da matéria de facto, nem um só caso aponta em que se verifiquem as aludidas deficientes, obscuras e contraditórias respostas sobre os pontos da base instrutória que, impropriamente, qualifica como tais, quando pretende insurgir-se contra vícios que, substantivamente, constituiriam antes erros de julgamento da matéria de facto.
Com efeito, a resposta é deficiente quando é incompleta, ou seja, quando não abrange a totalidade da pergunta, obscura quando admite várias interpretações, de modo a que dela se possam extrair diversos entendimentos, e contraditória com outra quando em ambas se façam afirmações inconciliáveis entre si, de modo a que a veracidade de uma exclua a da outra Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV, 1981, 553..
Ora, nenhum destes vícios vem, concretamente, apontado à decisão sobre a matéria de facto, não bastando, para tal, meras alegações abstractas, totalmente, desligadas da realidade vertida nas alegações do autor.
Insurge-se ainda o autor contra as graves deficiências que a decisão sobre a matéria de facto enferma, quanto à sua fundamentação, nomeadamente, no que concerne à dinâmica do acidente verificado, considerando que o Tribunal «a quo» o qualificou como incompreensível.
Efectivamente, lê-se, no despacho de motivação, que o acidente não é compreensível, “nem sem intervenção de qualquer veículo, nem com essa intervenção, não se percebendo qual o motivo que levou o autor a embater no poste de iluminação”, cuja consistência escapa, ainda segundo o aludido despacho, à versão das testemunhas David Moitas e João Moitas, e ao comportamento da esposa do autor, no dia da participação do acidente, e do próprio autor, quando foi ouvido em inquérito, mais de nove meses após o embate.
Enfim, o Tribunal «a quo» não considerou credíveis os depoimentos das duas testemunhas referidas, quanto à participação de qualquer outra viatura, para além do motociclo tripulado pelo autor, no acidente de trânsito a que se reportam os autos, fundamentando a sua posição numa tese coerente, onde foi, cuidadosamente, questionada a hipótese do embate de um outro automóvel na traseira do motociclo, para, em seguida, ser afastada.
Assim sendo, a essência da oposição dirigida pelo autor à decisão sobre a matéria de facto não reside na deficiência, obscuridade, contradição, falta ou insuficiência de motivação, porquanto a mesma se mostra compreensível e fundamentada a versão que sobre o acidente adoptou o Tribunal, mas antes na convicção deste, alicerçada no princípio da liberdade do julgamento, que tem subjacente o sistema da convicção racional da prova, que combina a impressão que as provas oferecidas causaram no espírito do julgador com a expressão que estas devem evidenciar na correspondente motivação.
Ora, como já se acentuou, não tendo ocorrido a gravação dos depoimentos prestados, não constando dos autos todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, não impondo os dados fornecidos pelo processo decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, nem, finalmente, tendo sido apresentado documento novo superveniente que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou, não se verificando, em suma, nenhuma das circunstâncias que consentem a modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto, a que alude o artigo 712º, nº 1, a), b) e c), do CPC, inexiste fundamento legal para proceder à alteração das respostas dadas aos pontos controvertidos da base instrutória, no sentido pretendido pelo autor.
Assim sendo, este Tribunal da Relação entende que se devem declarar como demonstrados os seguintes factos:
À data do acidente, o autor tinha 34 anos — A).
No dia 22 de Janeiro de 1998, pelas 19 horas, na estrada camarária n° 598, no lugar de Fonte de Angeão, em frente da Igreja Paroquial desta freguesia, ocorreu um acidente de viação – 1º.
No acidente, interveio o motociclo, de marca Famel, matrícula 1-MIR-03-80, tripulado pelo autor – 2º.
O autor circulava, no sentido Sul-Norte, Fonte de Angeão-Vagos – 4º.
Nesse local, a estrada estende-se, em linha recta, e tinha duas faixas de rodagem, cada uma com largura para a passagem de um carro – 5º.
A estrada tinha piso em alcatrão e em bom estado de conservação – 6º.
O autor transitava, junto à berma direita da estrada, considerando o sentido de marcha, referido na resposta ao ponto nº 4º - 7º.
O motociclo que o autor tripulava tinha duas velocidades – 8º.
E transitava com as duas luzes acesas, a dianteira e a traseira – 9º.
Não chovia – 10º.
A via e o local onde ocorreu o acidente têm iluminação pública, estando já as lâmpadas da rua acesas – 11º.
O autor embateu contra o muro e poste de iluminação existentes no local – 12º e 17º.
O autor foi transportado pelos bombeiros para o Hospital de Aveiro, cerca de 30 m depois do acidente, logo após a chegada dos bombeiros ao local – 18º.
Tendo o autor ali ficado internado – 19º.
No Hospital de Aveiro, foram prestados ao autor os primeiros socorros – 20º.
O autor tinha escoriações no corpo e foram diagnosticadas fracturas na perna direita - uma fractura exposta da tíbia e do perónio - e no braço direito, com fractura, também, do úmero, do rádio e do cúbito – 21º.
0 autor foi tratado e operado aos membros atingidos – 22º.
Ao braço direito fizeram-lhe três operações – 23º.
Apesar disso, os médicos não conseguiram que o úmero recolasse ou
consolidasse – 24º.
O autor, hoje, porque o osso, referido na resposta ao ponto nº 24, está seccionado, não pode trabalhar, nem fazer força com o braço direito – 25º.
Antes do acidente, o autor era um homem robusto, cheio de saúde e
com uma extraordinária capacidade para o trabalho – 26º.
O autor trabalhou na construção civil, na Alemanha – 27º.
Quando estava em Portugal, ajudava a família na actividade agrícola, e em todas as actividades conexas, ou seja, na criação e exploração de animais domésticos – 28º.
Do acidente e das suas sequelas permanentes resultou para o autor
uma incapacidade especifica absoluta para o exercício da sua profissão ligada à construção civil, de 100% - 29º.
E uma incapacidade genérica para qualquer outro trabalho, de 55% - 30º.
Quando esteve na Alemanha, o autor trabalhava 11 a 12 horas, por dia, e ganhava 1.200$00, por hora – 31º.
O autor ganhava sempre, entre 400.000$00 a 500.000$00 mensais – 32º.
O autor aproveitava o tempo em que se encontrava em Portugal para
continuar no exercício da sua actividade profissional – 33º.
Aquando do acidente, o autor trabalhava para a empresa "Construções Vizinhos, Ldª", com sede em Fonte de Angeão – 34º.
Trabalhava, cerca de 10 a 11 horas, por dia, e ganhava 1.000$00, por hora de trabalho – 35º.
A partir do acidente, o autor nunca mais trabalhou – 36º.
Não auferindo mais qualquer salário – 37º.
A roupa que o autor vestia, aquando do acidente, ficou, completamente, estragada, nomeadamente, as calças, o blusão de ganga, a camisola, a camisa, os sapatos e a roupa interior – 38º.
O custo da roupa ascende a 25.000$00 – 39º.
A motorizada em que o autor se fazia transportar valia, na altura do acidente, 60.000$00 – 41º.
O autor era alegre e sonhava com uma vida melhor – 42º.
Não padecia de qualquer deficiência, enfermidade ou incapacidade física – 43º.
O autor, quer no momento do acidente, quer durante o período de tratamento e recuperação, sofreu muitas e fortes dores – 44º.
E ainda hoje sofre dores quando intenta fazer algum esforço com a mão direita e nas mudanças de tempo atmosférico – 45º.
O autor sofre pelo facto de se ver sem horizontes de vida e
impossibilitado de a construir, como antigamente, e de ajudar a família – 46º.
Tudo isto lhe causa um profundo desgosto, uma grande prostração
psicológica, esgotamentos psíquicos contínuos e uma grande inibição perante as outras pessoas – 47º.

IV

DA NULIDADE DA SENTENÇA

Finalmente, o autor invoca a nulidade da sentença, em virtude de a mesma não ter tomado posição sobre a excepção da prescrição, arguida pelo réu, cujo conhecimento, por ocasião da elaboração do despacho saneador, foi relegado para a sentença final.
E, com efeito, importa considerar que assiste total razão ao autor, quando argui a omissão de pronúncia da sentença, neste particular, consistente na falta de apreciação e de conhecimento da mencionada excepção, porquanto aquela se limitou a julgar a acção improcedente e a absolver o réu do pedido, ainda que se estranhe a sua invocação pelo autor, aparentemente, contrária aos seus interesses na causa.
Note-se que esta arguida omissão de pronúncia da sentença, com assento no artigo 668º, nº 1, d), do CPC, podendo e devendo ter sido suprida, não foi levada em consideração, após a apresentação das alegações de recurso, por parte do autor, pelo Exº Juiz, quando, ao determinar a subida dos autos a esta Relação, não observou o estipulado pelo artigo 668, nº 4, com referência ao artigo 744º, ambos do CPC.
Entende-se, porém, não se justificar a baixa dos autos, à primeira instância, para sanar a omissão ocorrida, dada a inocuidade prática deste procedimento, considerando a factualidade que ficou demonstrada nos autos, que exclui, de todo, a verificação de um ilícito penal no acidente de viação ajuizado, por forma a trazer à colação o prazo prescricional alargado, a que aludem os artigos 498º, nº 3, do CC, 148º, nºs 1 e 3 e118º, nº 1, c), do Código Penal.
Assim sendo, impondo-se ao Juiz que se pronuncie, expressamente, sobre todas as questões de que deva conhecer, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, sob pena de nulidade, em conformidade com o estipulado pelos artigos 668º, nº 1, d), 660º, nº 2 e 156º, nº 1, todos do CPC, e não o tendo feito o Tribunal «a quo», oportunamente, porquanto não vigora, no ordenamento jurídico nacional, o princípio da absolvição implícita, importa reconhecer que foi dada causa a uma nulidade da sentença, cuja procedência determina a modificação do seu dispositivo.
Nestes termos, suprindo a nulidade cometida, em consonância com a prova produzida, e de acordo com o estipulado pelo artigo 668º, nºs 3 e 4, do CPC, considerando que o acidente de viação, ocorrido a 22 de Janeiro de 1998, data em que o autor dele teve conhecimento, teve a participação isolada deste, enquanto que a acção deu entrada em juízo, no dia 30 de Outubro de 2001, portanto, muito para além do prazo de três anos, a que alude o artigo 498º, nº 1, do CC, procede a invocada excepção peremptória da prescrição do direito de acção, que extingue o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, com a consequente absolvição total do réu pedido, de acordo com o disposto no artigo 493º, nºs 1 e 3, do CPC.
Por outro lado, sendo de manter as respostas dadas à base instrutória, conforme foi decidido, inexiste fundamento legal para determinar a condenação do réu no pagamento da importância do pedido, nem tal sequer foi defendido pelo apelante, na consideração da não alteração da factualidade que ficou demonstrada.
Improcedem, portanto, no essencial, as conclusões constantes das alegações do autor.

CONCLUSÕES:

I - A alegação de deficiência, obscuridade e contradição da decisão proferida sobre a matéria de facto não pode esconder uma reclamação encapotada quanto à alteração das respostas dadas a pontos concretos da base instrutória que, manifestamente, tem o seu lugar adequado, em sede de recurso da sentença final, e não, no final do julgamento sobre a matéria de facto.
II - Sendo inadmissível recurso autónomo da reclamação desatendida contra a deficiência, obscuridade ou contradição da decisão sobre a matéria de facto, ou contra a falta da sua motivação, o seu indeferimento, no Tribunal «a quo», por razões de extemporaneidade, não preclude a possibilidade da sua apreciação, na fase de recurso.
III - A convicção do Tribunal, alicerçada no princípio da liberdade do julgamento, tem subjacente o sistema da convicção racional da prova, que combina a impressão que as provas oferecidas causaram no espírito do julgador com a expressão que estas devem evidenciar na correspondente motivação.
IV – Arguida a omissão de pronúncia da sentença, não levada em consideração pelo Tribunal «a quo», após a apresentação das alegações de recurso, deverá ser suprida pelo Tribunal da Relação, não se justificando a baixa dos autos, à primeira instância, para sanar o ocorrido, quando a factualidade que ficou demonstrada não importe uma diversa solução de Direito.

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar a douta sentença recorrida.
Custas, a cargo do autor-apelante.