Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00001/02 - PORTO
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:06/06/2007
Relator:Fernanda Brandão
Descritores:NULIDADE DA SENTENÇA (ARTº 668°, Nº 1, AL. C), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL)
Sumário:I-De acordo com o disposto no artº 668º, nº 1, al c), do CPC, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
I.1-Esta nulidade ocorre quando os fundamentos invocados na decisão deveriam conduzir, num processo lógico, a solução oposta da que nela foi adoptada.
II-Só releva, para este efeito, a contradição entre a decisão e os respectivos fundamentos e não eventuais contradições entre fundamentos de uma mesma decisão, por um lado, ou contradição entre decisões, fundamentadas ou não, por outro.
III-Não ocorre esta causa de nulidade quando (ainda que erradamente) se partiu do pressuposto de que não se trata de um processo em que deva intervir o representante da Fazenda Pública, devendo a acção ser dirigida contra a entidade que tiver competência para, em sede de procedimento administrativo, decidir o pedido e nela se afirma, de forma expressa, que “No caso dos autos, a acção foi, indevidamente, proposta contra a Fazenda Pública“, terminando-se com a sua absolvição da instância.
III.1-Ao não existir qualquer contradição lógica, não se verifica esta nulidade, porquanto ela reporta-se ao plano interno da sentença, a um vício lógico na construção da decisão, que só existirá se entre esta e os seus motivos houver falta de congruência, em termos tais, que os fundamentos invocados pelo tribunal devessem naturalmente conduzir a resultado oposto ao que se chegou.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
Rodovíl, S.A., NIPC , com sede na Rua Marquês Sá da Bandeira, 274, Vila Nova de Gaia, recorreu para este Tribunal da sentença proferida pelo senhor juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou verificada a nulidade decorrente da ineptidão da petição inicial e, consequentemente, absolveu da instância a Fazenda Pública.

Formulou as seguintes conclusões:
A)Os fundamentos e a decisão proferida pelo Tribunal a quo estão claramente em oposição, nos termos e para efeitos do disposto no artº 668°, nº 1, al. c) do CPC;
B)Em sede de fundamentação o Tribunal a quo começa por dizer que não foi indicada a Fazenda Pública como contraparte, facto que provocaria a ininteligibilidade do pedido, para depois dizer que a acção foi indevidamente proposta contra a Fazenda Pública, em virtude de não ser esta a entidade concreta para decidir o pedido;
C)Conclui, em sede de decisão, pela absolvição da instância da Fazenda Pública, com fundamento na ininteligibilidade do pedido e consequente ineptidão da p.i., como se de facto a acção nunca tivesse sido proposta contra esta;
D)A decisão recorrida está por isso ferida de nulidade, na medida em que os respectivos fundamentos estão em oposição com a decisão -cfr. art. 668º, nº 1, al.c) do CPC;
Sem prescindir,
E)Não se verifica nos presentes autos a invocada nulidade ou ineptidão da p.i., nem se justifica a absolvição da instância da Ré;
F)Atento o conjunto factual alegado na p.i. e o pedido na mesma formulado, a presente acção de reconhecimento de direito podia e devia ter sido proposta precisamente contra a Fazenda Pública;
G)O Tribunal a quo violou o disposto nos artsº 193° e 288° do CPC e artº 98º do CPPT.
Pediu que se revogue a sentença recorrida.

Não houve contra-alegações.
O exmo. magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido do improvimento do recurso-cfr. fls. 96 e verso.
Colhidos os vistos foi o processo submetido à Conferência para julgamento.

FUNDAMENTOS
É o seguinte o discurso fundamentador da sentença sob censura:
“Rodovil......, veio deduzir a presente acção de reconhecimento de direito e interesse legítimo em matéria tributária, alegando, em síntese, o seguinte:
-A autora é dona e possuidora de duas fracções autónomas de um prédio urbano;
-Essas fracções foram objecto de hipoteca legal efectuada para garantia de impostos liquidados à sociedade "Ajacto - , S.A. ";
-A autora não figura como devedora nas certidões de dívida nem representa a "Ajacto" e, por isso, a referida hipoteca é ilegal.
(....)
Da ineptidão da petição inicial.
Estabelece a norma contida no artº 145º nº 4 do CPPT, que as acções para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido “seguem os termos do processo de impugnação, considerando-se na posição de entidade que praticou o acto a que tiver competência para decidir o pedido".
Não se trata, portanto, de um processo em que deva intervir o representante da Fazenda Pública, devendo a acção ser dirigida contra aquela entidade-nestes termos, Jorge Lopes de sousa, ..... .
A falta de indicação desta entidade, num processo de estrutura contraditória, torna ininteligível o pedido, pois não será perceptível quem é que se pretende que seja obrigado a reconhecer o direito ou interesse que se pretende ver reconhecido-neste sentido, ....... .
No caso dos autos, a acção foi, indevidamente, proposta contra a Fazenda Pública e não contra a entidade concreta que tivesse competência para, em sede de procedimento administrativo, decidir o pedido.
Ora, a ininteligibidade do pedido é causa de ineptidão da petição inicial -artº 193º nº 2 alínea a) do CPC.
Nos termos do artº 98º nº 1 alínea a) do CPPT, a ineptidão da petição inicial constitui nulidade insanável em processo judicial tributário, nulidade essa que pode ser conhecida oficiosamente até à decisão final (cfr. artsº 202º e 206º n° 2 do CPC).
Por outro lado, nos termos do artº 288º nº 1 al. b) do CPC, o juiz deve abster-se de conhecer o pedido e absolver o réu da instância quando anule todo o processo.”
Com esta fundamentação o senhor juiz a quo julgou verificada a nulidade decorrente da ineptidão da petição inicial e, em consequência, absolveu a Ré da instância.
Na óptica da recorrente, a sentença é nula porquanto os fundamentos e a decisão estão em oposição; apelou, por isso, à nulidade da alínea c) do nº 1 do artº 668º do CPC.
Vejamos, pois.
Antes de mais, convém analisar se existe, ou não, nulidade da sentença.
A este respeito, estipula-se no artº 668º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe de “Causas de nulidade da sentença”, que:
“1-É nula a sentença:
a)Quando não contenha a assinatura do juiz;
b)Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c)Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão;
d)Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e)Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.....”
As situações de nulidade da decisão encontram-se legalmente tipificadas no nº 1 deste art. 668º, cuja enumeração é taxativa comportando causas de nulidade de dois tipos: uma causa de carácter formal [art. 668º, n.º 1, al. a)] e várias causas respeitantes ao conteúdo da decisão [art. 668º, n.º 1, als. b) a e)].
A sentença é uma decisão jurisdicional proferida pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional que, no caso posto à sua apreciação, dirimem um conflito de interesses (públicos e/ou privados) no âmbito das relações jurídicas tributárias.
Como afirmava o Prof. A. Anselmo de Castro (in: Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, págs. 92/93) “(…) A sentença é a forma típica da providência através da qual o juiz decide, no todo ou em parte, o litígio que lhe foi proposto. Conceitual e historicamente, a sentença representa o acto jurisdicional por excelência, aquele em que se traduz na sua forma mais característica a essência da jurisdictio: o acto de julgar. Constitui, assim, um acto de autoridade, dotado de força vinculativa, enquanto formulação da vontade normativa do Estado para o pleito deduzido em juízo.”
Segundo a lição do Prof. J. Castro Mendes (in: Direito Processual Civil”, II vol., revisto e actualizado, págs. 793 a 811) os vícios de que podem enfermar as decisões judiciais reconduzem-se a cinco tipos:
a)Vícios de essência;
b)Vícios de formação;
c)Vícios de conteúdo;
d)Vícios de forma;
e)Vícios de limites.
Os primeiros são “(…) aqueles que, atingindo a sentença nas suas qualidades essenciais, a privam até da aparência de acto judicial, e dão lugar à sua inexistência jurídica. (…)”.
Esta, nas palavras ainda daquele Professor, “(…) pode verificar-se pelas seguintes razões:
-Falta de poder jurisdicional do judicante;
-Falta de forma em termos de não haver sequer aparência social de sentença: sentença proferida pelo juiz num café, ou verbalmente fora do processo;
-Oposição entre o conteúdo da decisão (independentemente dos seus fundamentos) e a lei (sentença contra direito, (…) de objecto impossível: ex. sentença que condene a praticar um crime;
-Absoluta ininteligibilidade da sentença. (…).”
Quanto aos vícios de formação e seguindo aqui uma vez mais a lição do Prof. J. Castro Mendes os mesmos prendem-se com os vícios como o do erro e o da coacção.
Já os vícios de conteúdo são “(…) vícios na própria decisão em si, nos fundamentos, na decisão, ou nos raciocínios lógicos que os ligam. São os erres in judicando dos antigos.
Os vícios de conteúdo são de três espécies:
a)Falta de clareza (“obscuridade ou ambiguidade” - art. 669º (…));
b)Erro material;
c)Erro judicial. (…).”
Os vícios de mera forma (v.g., emissão de decisão após instrução mas antes da audiência final) ficam sujeitos ao regime das nulidades de processo nos termos dos artsº 201º e seguintes do CPC.
Por fim os vícios de limites existem “(…) quando a decisão, porventura formalmente regular e contendo só afirmações exactas e verdadeiras, não contém o que deveria conter ou contém mais do que devia.”
Estes últimos vícios estão vertidos no citado artº 668º, constituindo um dos valores jurídicos negativos da sentença, a par da inexistência jurídica e da revogabilidade em sede de recurso jurisdicional.
Com efeito, a sentença conhece do pedido e da causa de pedir, ditando o direito para aquele caso concreto, pelo que a mesma pode estar viciada de duas causas que poderão obstar à eficácia ou validade da dicção do direito:
-Por um lado, pode ter errado no julgamento dos factos e do direito e então a consequência é a sua revogação;
-Por outro, como acto jurisdicional, pode ter atentado contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada e então torna-se passível de nulidade, nos termos do apontado artigo 668º do CPC.
Voltando ao caso posto temos que a a sentença sob censura reputou de inepta a petição inicial e, como tal, considerou estar-se perante uma nulidade insanável que culminou em sede de decisão final (já que não apreciada em sede liminar) na absolvição da instância da ré.
Assim, vistas as premissas de que partiu o senhor juiz, não se vê que o culminar do processo possa integrar uma nulidade, de acordo com o falado artº 668º, nº 1, al. c)- contradição entre os fundamentos e a decisão.
Com efeito, tem-se entendido, quer na doutrina quer na jurisprudência, que esta nulidade ocorre quando os fundamentos invocados deveriam conduzir, num processo lógico, à solução oposta da que foi adoptada naquela.
Como decorre do texto daquela norma, só releva, para este efeito, a contradição entre a decisão e os respectivos fundamentos e não eventuais contradições entre fundamentos de uma mesma decisão, por um lado, ou contradição entre decisões, fundamentadas ou não, por outro (v. ac. do STA de 6/2/07, no recurso n.º 322/06).
Esta oposição também se não confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se (v. Lebre de Freitas, in CPC Anotado, vol. 2.º, pág. 670).
Na tese da recorrente tal nulidade existe porquanto, em sede de fundamentação, o Tribunal a quo começa por dizer que não foi indicada a Fazenda Pública como contraparte, facto que provocaria a ininteligibilidade do pedido, para depois dizer que a acção foi indevidamente proposta contra a Fazenda Pública, em virtude de não ser esta a entidade concreta para decidir o pedido.
Contudo, analisada a decisão, facilmente se constata que nesta não se afirma o que a recorrente alega; pelo contrário, partiu-se do pressuposto de que -não se trata de um processo em que deva intervir o representante da Fazenda Pública, devendo a acção ser dirigida contra a entidade que tiver competência para, em sede de procedimento administrativo, decidir o pedido; nela afirmou-se, de forma expressa, que “No caso dos autos, a acção foi, indevidamente, proposta contra a Fazenda Pública“.
Deste modo, não há aqui qualquer contradição lógica.
Daí que não se verifique a invocada nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão.
Assim sendo, o recurso não pode obter provimento. De facto, este Tribunal nada mais pode apreciar senão a nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão; na verdade, nem o erro de julgamento (quer à luz da lei ordinária, quer da lei constitucional), nem a obscuridade e/ou insuficiência da fundamentação encontram acolhimento ou conduzem à nulidade da sentença prevista na alínea c) do nº 1 do citado artigo 668º.
Logo, visto que na hipótese vertente tão só foi suscitada matéria atinente à nulidade da sentença, que, como se disse, não se verifica, tal peça terá de manter-se na ordem jurídica.

DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste TCAN em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se em 04 Ucs a taxa de justiça.
Notifique e D.N.
Porto, 2007/06/06
Fernanda Brandão
Francisco Rothes
Fonseca Carvalho