Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01695/08.2BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:01/22/2009
Relator:Francisco Rothes
Descritores:AVALIAÇÃO DA MATÉRIA TRIBUTÁVEL POR MÉTODO INDIRECTO - MANIFESTAÇÕES DE FORTUNA - ACRÉSCIMOS PATRIMONIAIS - ARTS. 87.º, ALÍNEAS D) E F), DA LGT
Sumário:I - Ainda que a compra de imóveis no ano de 2006 por um preço global de € 393.500,00, quando o contribuinte declarou nesse ano um rendimento de € 32.714,29, revele a divergência superior a um terço entre o acréscimo patrimonial evidenciado e o rendimento declarado, tal divergência não permite à AT proceder à avaliação do rendimento tributável para efeitos de IRS por método indirecto ao abrigo do disposto na alínea f) do art. 87.º da LGT.
II - Isto porque, para as situações de compra de imóveis, a lei prevê um regime especial para as situações em que considera que o valor da aquisição faz presumir determinado rendimento: o da alínea d) do art. 87.º da LGT, conjugado com os n.ºs 1 e 4 do art. 89.º-A, da LGT.
III - Face a este regime, especial porque destinado a regular um número mais restrito de casos e justificado pelo particular esforço financeiro que a aquisição de imóveis, normalmente, representa para os particulares, não pode a AT aplicar a estas situações o regime referido em I, que se configura como regime regra (note-se que à situação não é aplicável o n.º 2 que o Orçamento do Estado para 2009 veio aditar ao art. 87.º e que tem carácter inovatório).
IV - Nem se diga que o regime legal da alínea f) do art. 87.º, porque ulterior ao da alínea d) do mesmo preceito, o derrogou tacitamente: desde logo porque mal se compreenderia, à luz da técnica legislativa, que tal revogação não fosse expressa (designadamente, consubstanciando-se numa nova redacção dada à alínea d), substituindo a sua redacção original pela que foi dada à alínea f)); depois porque a lei geral não derroga a lei especial (cf. art. 7.º, n.º 3, do CC).
V - A não ser assim, a alínea f) do art. 87.º da LGT teria esvaziado de qualquer sentido útil a alínea d) do mesmo preceito conjugada com o n.º 1 do art. 89.º-A, pelo menos no que respeita às manifestações de fortuna que constituem acréscimos patrimoniais.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:1. RELATÓRIO

1.1 A DIRECÇÃO-GERAL DOS IMPOSTOS (adiante Recorrida ou, abreviadamente, DGCI), tendo verificado que JOSÉ MARIA (adiante Contribuinte ou Recorrente), em 2006, comprou três imóveis pelo valor global de € 393.500,00 e declarou, para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do mesmo ano, o montante de € 32.714,29, e considerando que o Contribuinte não logrou demonstrar a realidade dos rendimentos declarados e que é outra a fonte dos acréscimos patrimoniais evidenciados com aquelas compras, entendeu verificada a previsão legal do art. 87.º, alínea f), da Lei Geral Tributária (LGT) (() Todos os artigos adiante mencionados sem expressa menção do diploma de origem serão da LGT.-() Redacção introduzida pela Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro.).
Consequentemente, procedeu à fixação do rendimento tributável do Contribuinte por métodos indirectos, nos termos do n.º 5 do art. 89.º-A (() Idem.), em € 393.500,00, sendo € 360.785,71, correspondentes à diferença entre o rendimento declarado e o acréscimo patrimonial evidenciado, a enquadrar na Categoria G.

1.2 O Contribuinte recorreu dessa decisão para o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, pedindo ao Juiz daquele Tribunal a anulação (() Embora o Recorrente não tenha formulado tal pedido de forma explícita, é inquestionável que é essa a pretensão dele no recurso judicial.) daquele acto de fixação do rendimento.
Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
foi notificado, primeiro, de um projecto de decisão da fixação do rendimento ilíquido para o ano de 2006 em € 78.700,00 (correcção de € 45.985,71) ao abrigo do art. 89.º, n.ºs 1 e 4, por naquele ano ter adquirido imóveis do valor de € 393.500,00 e o rendimento declarado ser inferior ao rendimento padrão, e, depois, de um segundo projecto de fixação do rendimento em € 393.500,00 (correcção de € 360.785,11), agora pela aplicação dos arts. 87.º, alínea f) e 89.º, n.º 5, o que o deixou «atónito e preocupado» (() As partes entre aspas e com um tipo de letra diferente, aqui como adiante, são transcrições.), sendo este último valor o que acabou por ser fixado;
os rendimentos por ele auferidos no ano de 2006 foram de € 32.714,29, como declarou, sendo que, como deixou dito quando exerceu o direito de audição prévia no procedimento relativamente aos dois projectos de decisão acima referidos, não lhe é possível evidenciar a origem e mobilização dos recursos financeiros utilizados para a aquisição dos imóveis pela simples razão de que os não pagou realmente, mas antes os adquiriu gratuitamente de seus pais;
na verdade, os prédios em causa eram de uma sociedade irregular constituída por três sócios, um dos quais o seu pai, e, apesar da celebração de escrituras de compra e venda dos mesmos, em que constam como vendedores os sócios daquela sociedade e como comprador o Recorrente, o que realmente sucedeu foi que o seu pai adquiriu aos demais sócios as partes deles nos referidos imóveis e lhe doou a totalidade dos mesmos;
sendo certo que é impossível ao Contribuinte comprovar a mobilização de meios financeiros para a aquisição dos imóveis em causa, já que na realidade não os pagou, também a AT não produziu prova alguma de que os rendimentos declarados pelo Contribuinte não correspondem à verdade.

1.3 A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou improcedente o recurso. Isto, em síntese, porque,
tendo definido a questão a apreciar e decidir como sendo «a de saber se se verificam os pressupostos da avaliação indirecta previstos no art. 89º-A da LGT»,
depois de considerar que a AT andou bem ao considerar verificada a situação de divergência não justificada de, pelo menos, um terço entre os rendimentos declarados e o acréscimo de património no mesmo período de tributação, o que a autorizava a proceder à avaliação indirecta da matéria tributável nos termos do art. 87.º, alínea f),
considerou que o Contribuinte não logrou fazer prova, nem no procedimento tributário nem no presente recurso judicial, de que os rendimentos por ele declarados no ano de 2006 correspondiam à realidade e que era outra a fonte responsável pelo acréscimo patrimonial evidenciado, como lho impunha o n.º 3 do art. 89.º-A pois, apesar de alegar que foi o pai dele quem suportou as despesas relativas à aquisição dos imóveis, acertando contas com os demais comproprietários dos mesmos, não juntou qualquer elemento de prova dessa alegação, como lhe competia.

1.4 Inconformado com essa sentença, o Contribuinte dela recorreu para este Tribunal Central Administrativo Norte, apresentando com o requerimento de interposição do recurso as respectivas alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor (() Por comodidade de exposição, na transcrição das conclusões do recurso, as notas que no original estavam em rodapé serão transcritas no local onde está feita a respectiva referência.):
«
A. É objecto deste recurso a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 27 de Outubro de 2008, que negou provimento ao recurso da decisão do Senhor Director das Finanças, interposto pelo contribuinte, ora Recorrente, relativamente à fixação da matéria colectável por avaliação indirecta no ano de 2006.
B. Assim, deve a decisão ser revista por variados motivos.
C. Em primeiro lugar, por se ter verificado erro de apreciação da prova a que procedeu o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
D. De facto, o Recorrente foi notificado de dois projectos de decisão de fixação de rendimentos pela Administração Fiscal.
E. Em ambos foi feita referência à possibilidade de vir o ora Recorrente fazer prova de corresponderem à realidade os rendimentos declarados e de ser outra a fonte das manifestações de fortuna evidenciadas,
F. Assim, veio o Recorrente produzir prova em sede de audiência prévia,
G. Tendo reiterado, a propósito do segundo projecto de decisão do qual foi notificado, o já alegado anteriormente, em resposta que ao primeiro projecto respeitava.
H. De facto, confirmou terem vindo à sua posse, a 28 de Novembro de 2006, por escritura pública de compra e venda, os prédios urbanos inscritos na matriz predial sob os artigos 3952-Y, 3952-Z e 3524-Y,
I. Muito embora tenha relembrado que “os únicos encargos que suportou e meios financeiros que mobilizou respeitaram ao pagamento da escritura e do Imposto sobre Imóveis”, tal como comprovam os extractos bancários que se juntaram à mencionada resposta, para a qual aqui se remete.
J. Na verdade, e nos termos dos referidos extractos, nunca deles constou qualquer entrada ou saída no valor de € 393.500,00,
K. Não podendo, consequentemente, ter sido por ele movimentado para qualquer fim, inclusive para proceder à aquisição do imóvel em causa, com base na qual procedeu a Administração Fiscal à aplicação de avaliação indirecta.
L. Pelo que existiu uma errada apreciação da prova junta pelo ora Recorrente.
M. Ainda a propósito da prova, cumpre igualmente referir que a escritura pública, à qual teve acesso, aliás, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, contrariamente ao afirmado, não é suficiente, per si, para fazer prova de ter sido o montante de € 393.500,00 mobilizado pelo ora Recorrente para proceder ao pagamento do imóvel adquirido.
N. Na verdade, e como vem sendo afirmado pelo Supremo Tribunal Administrativo10 [10 Processo n.º 066/04, a 1 de Fevereiro de 2005, in www.dgsi.pt.], “a escritura pública faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas, mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas pelas partes, matéria que, consequentemente, pode ser impugnada por qualquer delas, sem necessidade de arguir a falsidade do documento, por não estar coberta pela força probatória plena desta” (sublinhado nosso).
O. Ora, o mesmo valerá no caso sub judice, no sentido em que, nos termos da escritura pública outorgada pelo ora Recorrente apenas atesta que as partes materialmente declararam a vontade de comprar e vender, por um determinado preço, mas não que o mencionado pagamento foi na realidade efectuado pelo ora Recorrente.
P. Refira-se, ainda, que, uma vez que o pai do ora Recorrente faleceu no dia 24 de Julho de 2008, precisamente dias antes de ter sido interposto o recurso da decisão do Senhor Director das Finanças,
Q. Pelo que não foi possível ao Recorrente, como bem se compreende, localizar os documentos comprovativos do pagamento do preço estabelecido na escritura pública, relativa aos prédios urbanos inscritos na matriz predial sob os artigos 3952-Y, 3952-Z e 3524-Y, a fim de juntá-los ao recurso, não só pelo estado emocional em que se encontrava, como também por não ter ainda tido oportunidade de organizar toda a documentação relevante que se encontrava na posse de seu pai.
R. A Administração Fiscal, por seu turno, não diligenciou no sentido de localizar estes mesmos documentos junto dos outros proprietários, bem como, junto do pai do Recorrente, em data anterior, embora já depois de ter iniciado o procedimento inspectivo, comportamento que deveria ter adoptado, em cumprimento do princípio da verdade material, ao qual se encontra vinculada.
S. Ademais, seria de esperar que, no caso em apreço, a Administração Fiscal tomasse especial atenção, designadamente, ao facto de se ver o Recorrente confrontado com o ónus de uma prova negativa, isto é, a prova de não ter efectuado o pagamento do preço dos imóveis que foram à sua posse.
T. Prova essa unanimemente considerada como sendo diabólica, por ser compreensivelmente mais penoso provar algo que não ocorreu, do que o contrário.
U. Mais se refira que resulta da experiência de vida que, em muitos casos, os pais através de uma escritura de compra e venda fazem doações aos seus filhos.
V. Ora, no caso em apreço estamos perante um filho único, cujo pai pretendia deixar a situação dos imóveis em causa completamente regularizada antes de morrer (o que veio a acontecer no Verão do corrente ano), o que, por ignorância, fez de uma forma errada, declarando estar a realizar uma compra e venda sem que, no entanto tenha alguma vez recebido, ou pensasse receber o “preço” mencionado, em vez de realizar uma escritura de doação que formalizaria o acto que estava a praticar – e além do mais não teria quaisquer encargos em termos de imposto já que não incidia Imposto do Selo sobre o acto, o que mostra inequivocamente que não houve qualquer intenção de defraudar o Estado.
W. Por outro lado, ainda, entende o Recorrente ter procedido o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto a uma errada aplicação do direito.
X. Em primeiro lugar, por não ter cuidado de assegurar que estaria a ser tributado o rendimento real (por oposição ao rendimento normal).
Y. Ou seja, que estaria a ser determinada a “matéria colectável realmente auferida pelo sujeito passivo”, ainda que não determinado “de forma efectiva (…)” mas sim “de forma presumida”, embora sempre “dentro do princípio da tributação do rendimento real”. 11 [11 Cfr. JOSÉ XAVIER DE BASTO, - “O Princípio da Tributação do Rendimento Real e a Lei Geral Tributária” - , in Fiscalidade, n.º 5, p. 9. ].
Z. De facto, e apesar de se tratar de uma situação de facto, em abstracto subsumível que ao artigo 87.º, alínea f) como ao artigo 89.º-A, n.º 5 da LGT, é manifesto que a alínea d) do artigo 87.º da LGT, em conjugação com o artigo 89.º-A, n.º 4 do mesmo diploma, assumem um carácter de especialidade relativamente àquelas,
AA. Por regularem situações em que a manifestação de fortuna, passível de constituir critério da avaliação indirecta, se traduz na aquisição de um ou vários imóveis, em montante igual ou superior a € 250.000,00.
BB. Assim, e porque estava em causa o recurso de uma decisão de fixação do rendimento global ilíquido para o IRS de 2006 do ora Recorrente, por aplicação de métodos indirectos, com base na relação entre os rendimentos declarados e o valor de imóveis adquiridos, deveriam ter sido aplicados os artigos 87.º, alínea d) e 89.º-A, n.º 4 da LGT e não, como foram, os artigos 87.º, alínea f) e 89.º-A, n.º 5 do mesmo diploma.
CC. Acresce, por outro lado, a falta de fundamentação de que padece a decisão em face da significativa alteração em termos de base legal, verificada entre a tributação exposta no Ofício n.º 14969, de 25/02/2008 e no Ofício n.º 40403, de 27/05/2008.
DD. Na verdade, o primeiro Ofício assentava no artigo 89.º-A, n.º 1 da LGT, em ligação com o n.º 4 da mesma disposição, caso em que o rendimento padrão seria obtido através do cálculo de 20% do valor pelo qual foi adquirido o imóvel, € 393.500,00, determinando uma fixação de rendimento € 78.700,00.
EE. No entanto, nos termos do segundo Ofício, a Administração Fiscal decidiu com base no artigo 87.º, alínea f) da LGT, em conjugação com o artigo 89.º-A n.º 5 da mesma lei,
FF. Concluindo que, “verificada a divergência superior a um terço entre o valor declarado relativamente ao IRS do ano de 2006 e o acréscimo de património evidenciado no mesmo ano, encontram-se reunidas as condições legais para se proceder à fixação do rendimento no montante de € 360 785,71”.
GG. Ora, daqui resulta que a Administração Fiscal acompanhou a emissão de Ofícios da mudança de normas a que é subsumível o caso sub judice, sem, porém, cumprir o dever de fundamentação a que se encontra obrigada, nos termos do artigo 77.º, n.º 5 da LGT.
HH. Por fim, refira-se também que o artigo 87.º, alínea f) da LGT não pode ser aplicado por inconstitucionalidade.
II. Na medida em que “faz incidir o imposto sobre os rendimentos ou valores normais, sem os fazer filtrar pelo crivo da realidade concreta do sujeito passivo” 12 [12 IDEM, Ibidem].
JJ. E também por não se encontrarem devidamente densificados os conceitos de “consumo” e “acréscimo de património”, deixando à Administração Fiscal a tarefa de concretizar os mesmos e de decidir se a norma se refere a qualquer tipo de consumo, ou apenas às manifestações de fortuna legalmente previstas e o que deve considerar-se como sendo “acréscimo de património”, quando, por exemplo um contribuinte deixa de ter em sua posse capital mas adquire um imóvel.
KK. Nesta medida, parece estar a Administração Fiscal a proceder ao “desenvolvimento das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis”, competência, porém, do Governo, nos termos do artigo 198.º, n.º 1, alínea c) da CRP.
Termos em que deve a douta sentença ser revogada, sendo substituída por uma decisão de anulação do acto administrativo impugnado, assim se fazendo inteira e costumada justiça».

1.5 O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

1.6 A DGCI não contra alegou.

1.7 Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo Norte, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que se convidasse o Recorrente a sintetizar as conclusões do recurso.

1.8 Cumpre apreciar e decidir, com dispensa dos vistos dos Juízes adjuntos, atenta a natureza urgente do processo.

1.9 No presente recurso, as questões que cumpre apreciar e decidir são, e são apenas, como procuraremos demonstrar em 2.2.1, as de saber
se a sentença fez correcto julgamento de facto quando deu como não provado que o pagamento dos imóveis adquiridos pelo Contribuinte tenha sido efectuado por outrem, designadamente pelo pai dele, designadamente, se procedeu a uma correcta apreciação da prova produzida e se devia ter diligenciado em sede judicial pela produção da prova que a AT se absteve de produzir em sede administrativa (cf. conclusões de recurso C) a V));
se a sentença fez correcto julgamento de direito quando considerou legal o enquadramento jurídico que a AT fez da situação fáctica, designadamente a sua subsunção à alínea f) do art. 87.º e ao n.º 5 do art. 89.º-A, ao invés de subsumi-la à previsão do n.º 1 deste art. 89.º-A (e da alínea d) do art. 87.º), conforme constava do primeiro projecto de decisão remetido ao Contribuinte (cf. conclusões de recurso W) a BB)); na negativa,
se a referida alínea f) do art. 87.º enferma de inconstitucionalidade, seja por fazer incidir o IRS sobre rendimentos ou valores normais, «sem os fazer filtrar pelo crivo da realidade concreta do sujeito passivo», em violação do princípio da tributação do rendimento real e da capacidade contributiva, seja por não estarem devidamente densificados os conceitos de “consumo” e de “acréscimo de património”, deixando-se para a AT uma competência – a do “desenvolvimento das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis” – reservada ao Governo, nos termos do disposto no art. 198.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa (cf. conclusões de recurso HH) a KK)).


* * *
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO
2.1.1 Na sentença recorrida o julgamento de facto foi efectuado nos seguintes termos:
« MATÉRIA DE FACTO

Com fundamento nos documentos existentes nos autos, considero provados os seguintes factos, com relevância para a decisão da causa:
1) Em 28 de Novembro de 2006, por escritura de compra e venda, vieram à posse do José Maria (Autor) os prédios urbanos sitos na freguesia de Senhora da Hora (Matosinhos), inscritos na respectiva matriz sob os artigos: 3952-Y, ao qual foi atribuído o valor de 147 000,00€; 3952-Z, ao qual foi atribuído o valor de 219 000,00€ e 3524-Y, ao qual foi atribuído o valor de 27 500,00€ (cfr. fls. 47 a 58 dos autos e fls. 30/45).
2) Da declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, respectivos anexos, respeitante ao ano de 2006, e em cujo agregado familiar o sujeito passivo Autor se integra, foi indicado um total de rendimentos líquidos de 32 714,29€ (cfr. fls. 2 do Processo Administrativo apenso);
3) Através de ofício n.º 40403 datado de 27.05.2006, o Autor José Maria foi notificado para exercer o direito de audição sobre o Projecto de aplicação de métodos indirectos para a determinação do rendimento sujeito a IRS de 2006 (cfr. fls. 40/41 do Processo Administrativo apenso);
4) A fundamentação da avaliação indirecta do rendimento colectável para o exercício de 2006 consta [d]a informação da acção inspectiva, constante de fls. 4 a 9 do Processo Administrativo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e onde se refere em sede de conclusões:

“IV – CONCLUSÃO
1. Em face do exposto, para haver afastamento da avaliação indirecta prevista no art. 87º alínea f) da Lei Geral Tributária, tem de existir uma justificação da manifestação de fortuna evidenciada. O contribuinte não fez prova de que correspondem à realidade os rendimentos e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna evidenciadas, como prescreve o número 3 do artigo 89-A da LGT. Não comprovou a mobilização dos meios financeiros destinados à aquisição das fracções autónomas.
2. Aliás, o próprio contribuinte começa por referir no exercido do direito de audição que “não poderá evidenciar a origem e mobilização dos recursos financeiros utilizados para a aquisição dos imóveis em virtude de não os ter efectivamente pago”, contrariando assim o que subscreveu na escritura de compra e venda.
3. Afirma ainda o próprio contribuinte “que os prédios foram adquiridos gratuitamente de seus pais e os únicos encargos que suportou e meios financeiros que mobilizou respeitaram ao pagamento da escritura e do Imposto Municipal sobre imóveis”. Atente-se no facto de este imposto incidir sobre transmissões onerosas de imóveis.
4. Assim, em virtude de se verificar uma divergência não justificada de pelo menos um terço entre os rendimentos declarados pelo contribuinte em análise no ano de 2006 e o acréscimo patrimonial evidenciado, encontram-se reunidas as condições legais para, de acordo com o artigo 87º da LGT, se proceder à fixação do rendimento no montante de € 360 785,11, o qual de acordo com a alínea d) do número 1 do artigo 9º do Código do IRS, será considerado como rendimento da categoria G, como já se descreveu nos pontos I-1 e I-3 e de novo se transcreve:

ACRÉSCIMO PATRIMONIAL
(valor imóvel adquirido)
RENDIMENTO DECLARADO
(categorias A+B+F)
CORRECÇÃO
(divergência categoria G)
€ 393 500,00
€ 32 714,29
€ 360 785,71
Discriminando:

Categoria A……………………..…………………………………...€ 20 804,00
Categoria B…………………………………………………………...€ 5 265,91
Categoria F…………………………………………………………...€ 6 644,38
Categoria G (divergência)………………………………………..€ 360 785,71
TOTAL……...……………………………………………………………...€ 393 500,00”
5) Sobre aquela informação em 25.07.2008 foi proferido despacho pelo Director de Finanças da Direcção de Finanças do Porto com o seguinte teor “Concordo” (cfr. fls. 4 do Processo Administrativo apenso);
6) Por oficio nº 53961 datado de 25.07.2008 foi o Autor José Maria notificado de que:

“Fica(m) V. Exs(s), por este meio NOTIFICADO(S), nos termos do artigo 77º da Lei Geral Tributária (LGT) e nos termos do artigo 36º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), de que foi alterado o conjunto de rendimentos declarados na declaração modelo 3 de IRS/2006 nos seguintes termos:
- Foi apurado por avaliação indirecta, nos termos do número 2 do artigo 65º do Código de Impostos sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (CIRS) e artigo 89º-A nº 5 da LGT por remissão do artigo 39º do CIRS o conjunto do rendimento global ilíquido no montante de € 393 500,00 correspondendo a verba de € 360 785,71 à divergência não justificada entre o rendimento declarado e o acréscimo de património evidenciado, conforme consigna a alínea f) do artigo 87º da LGT.
- A decisão da avaliação indirecta teve por base os factos, motivos e fundamentos constantes na nota de apuramento e na fundamentação da decisão que se anexam.
- Da decisão da avaliação indirecta da matéria colectável pelo método indirecto cabe recurso para o Tribunal Tributário de 1ª instância, a apresentar no prazo de 10 (DEZ) dias a contar da data da assinatura do aviso de recepção que acompanha esta notificação, nos termos dos números 7º e 8º do citado artigo 89º-A da LGT e 146º-B do CPPT”.
7) O presente recurso foi apresentado em 07 de Agosto de 2008;

FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram outros factos além dos supra referidos, nomeadamente que o pagamento dos imóveis adquiridos pelo Recorrente no ano de 2006 tenha sido feitos por terceira pessoa (pai do recorrente) por transferência de dinheiros ou por acerto de contas no âmbito da sociedade irregular.
MOTIVAÇÃO

O tribunal formou a sua convicção, relativamente aos factos provados, com base no teor dos documentos indicados relativamente a cada um dos factos, os quais não foram impugnados.
Quanto aos factos não provados, resultam aqueles da falta de prova feita pelo recorrente».

2.1.2 Os factos dados como assentes na sentença não nos merecem qualquer reparo, nem vêm postos em causa. O julgamento da matéria de facto apenas vem questionado no que se refere ao facto dado como não provado, sendo que, adiantando desde já que se nos afigura que existe défice instrutório a respeito da questão, a mesma será relegada para ulterior apreciação. Em todo o caso, para uma melhor compreensão da situação fáctica e respectivo enquadramento jurídico e ao abrigo dos poderes que nos concede o art. 712.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi da alínea e) do art. 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), entendemos pertinente aditar alguns factos aos que foram dados como assentes em 1.ª instância:
8) A Direcção de Finanças do Porto remeteu ao Contribuinte o ofício com o n.º 14969, datado de 25 de Fevereiro de 2008, para notificá-lo para o exercício do direito de audição relativamente ao projecto de decisão de aplicação de métodos indirectos para a determinação do rendimento sujeito a IRS do ano de 2006 (cf. cópia desse ofício, a fls. 13 e 14);
9) Desse ofício consta, para além do mais, o seguinte:
«[…]
1. De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 89º-A da LGT, há lugar a avaliação indirecta da matéria colectável quando falta e declaração de rendimentos ou o rendimentos declarados, num determinado ano, para efeitos de IRS, mostrem uma desproporção superior a 50%, para menos, em relação ao rendimento padrão apurado nos termos da tabela a que se refere o número 4 do citado artigo.
2. De acordo com os elementos disponíveis no sistema informático da DGCI, nomeadamente, a relação modelo 11, verifica-se que no ano de 2006 adquiriu pelo valor global de € 393 500,00 os prédios urbanos os prédios urbanos sitos na freguesia de Senhora da Hora (Matosinhos) inscritos na respectiva matriz sob os artigos: 3952-Y-Z, 3524-Y (escritura de compra e venda de 28-11-2006).
3. Nos termos do citado normativo legal, a esta aquisição corresponde o rendimento padrão de € 78 700,00, conforme se demonstra no quadro seguinte:

apuramento do rendimento padrão
manifestações de fortuna valorpercentagemrendimento padrão
Aquisição de imóveis€ 393 500,0020%€ 78 700,00

4. No mesmo ano apresentou declaração de rendimentos modelo 3 de IRS com rendimentos de montante inferior a 50% deste rendimento padrão, pelo que, em virtude de o rendimento global declarado por V. Exa. relativamente ao IRS do ano de 2006 ser inferior a 50% deste rendimento padrão, encontram-se reunidas as condições legais para, de acordo com a tabela a que se refere o número 4 do referido Artigo 89-A, se proceder à fixação do rendimento no montante de € 78 700,00, o qual, de acordo com a alínea d) do número 1 do Artigo 9º do código do IRS, será considerado como rendimento da categoria G, como a seguir se descreve:

valor imóvel
adquirido
rendimento padrão
(cat G)
rendimento global
declarado
correcção
proposta
(diferença)
€393 500,00
€ 78 700,00
(Cat. A + B + F = 32 714,29)
€ 45 985,71
[…]
(cf. cópia do ofício a fls. 13 e 14 dos autos);
10) No ofício dito em 3) a AT deixou expresso, na parte final do mesmo, que «O presente projecto de decisão anula e substitui o projecto notificado através do ofício número 14969 de 25-02-2008 desta Direcção de Finanças» (cf. cópia do ofício, a fls. 19 e 20, maxime o seu n.º 8.).

2.1.3 Os factos que ora levamos ao probatório estão documentadas nos termos que ficaram referidos a seguir a cada um deles e não mereceram impugnação.

*
2.2 DE FACTO E DE DIREITO
2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR E A ORDEM POR QUE SERÃO CONHECIDAS
A DGCI, tendo tomado conhecimento, através das respectivas escrituras de compra e venda, que José Maria , durante o ano de 2006, declarou comprar três imóveis pelo preço global declarado de € 393.500,00 e verificando que, para efeitos de IRS do mesmo ano, aquele Contribuinte declarara rendimentos do montante global de € 32.714,29, entendeu que a situação era susceptível de integrar a previsão legal do art. 87.º, alínea f), ou seja, a «Existência de uma divergência não justificada de, pelo menos, um terço entre os rendimentos declarados e o acréscimo de património ou o consumo evidenciados pelo sujeito passivo no mesmo período de tributação», a determinar a avaliação do rendimento colectável por métodos indirectos (() Cf. art. 39.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS).).
Consequentemente, após ter ouvido o Contribuinte nos termos do n.º 3 do art. 89.º-A, procedeu à fixação do rendimento colectável por métodos indirectos, fixando-lhe o rendimento global ilíquido, nos termos do n.º 5 do art. 89.º-A (() Diz o n.º 5 do art. 89.º-A da LGT, na redacção aplicável, que lhe foi dada pela Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2005):
«No caso da alínea f) do artigo 87º, considera-se como rendimento tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G, quando não existam indícios fundados, de acordo com os critérios previstos no artigo 90º, que permitam à administração tributária fixar rendimento superior, a diferença entre o acréscimo de património ou o consumo evidenciados e os rendimentos declarados pelo sujeito passivo no mesmo período de tributação».), em € 393.500,00, sendo € 360.785,71 correspondentes à divergência não justificada entre o rendimento declarado e o acréscimo patrimonial evidenciado, a enquadrar na Categoria G.
O Contribuinte discordou dessa fixação e dela recorreu judicialmente, nos termos previstos no art. 89.º-A, n.ºs 7 e 8 (() Dispõem os referidos n.ºs 7 e 8 do art. 89.º-A da LGT, na redacção da referida Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro:
«7 - Da decisão de avaliação da matéria colectável pelo método indirecto constante deste artigo cabe recurso para o tribunal tributário, com efeito suspensivo, a tramitar como processo urgente, não sendo aplicável o procedimento constante do artigo 91.º e seguintes.
8 - Ao recurso referido no número anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, a tramitação prevista no artigo 146.º-B do Código de Procedimento e de Processo Tributário».), para o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
A Juíza daquele Tribunal julgou o recurso improcedente. Para tanto, em síntese, considerou legal a actuação da AT, de enquadrar a situação fáctica na alínea f) do art. 87.º, e que o Contribuinte não logrou fazer prova, nem no procedimento tributário nem no presente recurso judicial, de que os rendimentos por ele declarados no ano de 2006 correspondiam à realidade e que era outra a fonte responsável pelo acréscimo patrimonial evidenciado, como lhe impunha o n.º 3 do art. 89.º-A (() Diz o n.º 3 do art. 89.º-A da LGT, na redacção da referida Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro:
«Verificadas as situações previstas no n.º 1 deste artigo, bem como na alínea f) do artigo 87.º, cabe ao sujeito passivo a comprovação de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna ou o acréscimo de património ou o consumo evidenciados».). Isto, porque, apesar de alegar que foi o pai dele quem suportou as despesas relativas à aquisição dos imóveis, não juntou qualquer elemento comprovativo dessa alegação, motivo por que devia conceder-se relevância às declarações efectuadas nas escrituras de compra e venda.
Discordando dessa sentença, o Contribuinte dela interpôs recurso para este Tribunal Central Administrativo Norte.
Os motivos da sua discordância, se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões, assentam, essencialmente, no seguinte:
a sentença recorrida fez uma incorrecta apreciação da prova, concedendo à escritura pública um relevo que ela não tem, não ponderando devidamente os elementos de prova trazidos ao processo pelo Contribuinte e não diligenciando oficiosamente pela produção em sede judicial da prova que já a AT deveria ter produzido em sede do procedimento administrativo-tributário, sobretudo atendendo a que estava em causa a prova de factos negativos;
a sentença fez incorrecto julgamento de direito quando considerou que a AT andou bem ao subsumir a situação fáctica de desproporção entre o rendimento declarado e valor dos bens adquiridos aos arts. 87.º, alínea f), e 89.º-A, n.º 5, ou seja, ao proceder à avaliação da matéria colectável por método indirecto nos termos daqueles preceitos legais, ao invés de, como devia, e como constava do primeiro projecto de decisão que remeteu ao Contribuinte, fazê-lo nos termos dos arts. 87.º, alínea d), e 89.º-A, n.ºs 1 e 4 (() Note-se que o Contribuinte deixou cair em sede de alegações de recurso a tese que sustentou no último parágrafo do item 8.º da petição inicial, de que o n.º 1 do art. 89.º-A era inaplicável porque nenhum dos imóveis atingia o valor de € 250.000,00, aceitando agora expressamente, no item 77. das alegações de recurso e na alínea AA) das respectivas conclusões, que a referida norma logra aplicação às situações em que «está em causa a aquisição de um ou de vários imóveis».);
a AT não fundamentou os motivos por que alterou o seu entendimento quanto à subsunção jurídica dos factos do primeiro para o segundo projecto de decisão que remeteu ao Contribuinte (comunicados pelos ofícios da Direcção de Finanças do Porto com o n.º 14969, de 25 de Fevereiro de 2008, e com o n.º 40403, de 27 de Maio de 2008, respectivamente), sendo que tal alteração, implicando um agravamento significativo da situação tributária do Contribuinte, exigiria um acrescido dever de fundamentação;
a avaliação da matéria colectável por método indirecto prevista art. 87.º, alínea f), enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio da tributação do rendimento real e da capacidade contributiva e por deixar à AT a competência para preencher os conceitos de “consumo” e de “acréscimo de património”, sendo que tal competência parece estar reservada ao Governo, nos termos do disposto no art. 198.º, n.º 1, alínea c), da Lei Fundamental.

Desde logo, cumpre salientar que não podemos agora, enquanto Tribunal ad quem, conhecer da questão relativa à arguida falta de motivação da mudança de entendimento da AT quanto aos fundamentos legais da decisão administrativa de avaliação da matéria colectável por método indirecto, mudança essa revelada pelo teor das duas propostas de decisão que a AT remeteu, sucessivamente, ao Contribuinte. Isto, porque o Contribuinte não suscitou oportunamente essa questão junto do Tribunal a quo, este não conheceu dela, nem a mesma é do conhecimento oficioso.
Ora, como é sabido, os recursos jurisdicionais não servem para proferir novas decisões nem para apreciar questões que não tenham nem devessem ter sido apreciadas, mas para aferir da legalidade das decisões já proferidas. Os poderes de cognição dos tribunais de recurso limitam-se ao reexame da decisão recorrida, confirmando-a ou alterando-a de acordo com a lei, não podendo criar decisões sobre questões novas, salvo se forem de conhecimento oficioso (() Sobre a questão, vide JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, 5.ª edição, II volume, anotação 21. ao art. 279.º, págs. 712 e segs, e anotação 15. ao art. 282.º, pág. 786. ).
Daí que tenhamos deixado enunciadas as questões a apreciar e decidir nos termos que o fizemos em 1.9.
No entanto, pese embora a ordem por que aí enunciámos as questões ser a que foi indicada pelo Recorrente, afigura-se-nos dever conhecer prioritariamente da questão relativa ao erro de julgamento relativamente ao vício de violação de lei por erro no enquadramento jurídico dos factos para efeitos de possibilidade de avaliação da matéria tributável por método indirecto. Isto, porque o Contribuinte não sujeitou a invocação dos vícios que imputou ao acto recorrido a relação subsidiária e porque, a nosso ver, o conhecimento prioritário daquele vício de violação de lei, na medida em que a sua procedência impedirá a renovação do acto recorrido ao abrigo do mesmo fundamento jurídico, determina uma mais eficaz tutela dos direitos do Contribuinte (cf. art. 124.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do CPPT) (() Para maior desenvolvimento sobre a ordem de conhecimento dos vícios, vide JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., I volume, anotações 16. a 20. ao art. 124.º, págs. 892 a 896. ).
Por outro lado, a resposta que tal questão vier a merecer pode repercutir-se na solução a dar às demais, prejudicando-as, quer a relativa à apreciação da prova, quer a relativa à apreciação da conformidade constitucional da avaliação por método indirecto ao abrigo da alínea f) do art. 87.º.

*
2.2.2 DO ERRO DO JULGAMENTO DE DIREITO
Segundo o Recorrente, a sentença fez incorrecto julgamento quando considerou legal a actuação da AT, de proceder à avaliação da matéria tributável por método indirecto nos termos dos arts. 87.º, alínea f), e 89.º-A, n.º 5, sendo que apenas poderia fazê-lo nos termos dos arts. 87.º, alínea d), e 89.º-A, n.ºs 1e 4. Aliás, era esta a subsunção jurídica que a AT tinha feito no primeiro projecto de decisão que comunicou ao Contribuinte.
Vejamos:
De acordo com o disposto no art. 89.º-A, n.º 1, disposição legal introduzida na LGT pela denominada Lei de Reforma da Tributação do Rendimento – Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro (() Lei que, no capítulo relativo às medidas de combate à evasão e fraude fiscais, veio introduzir uma importante alteração nas regras relativas ao ónus da prova e à possibilidade de recurso a métodos indirectos na determinação da matéria tributável. Com interesse sobre esta tema, A Reforma Fiscal Inadiável, de JOAQUIM PINA MOURA e RICARDO SÁ FERNANDES, com excerto publicado na revista Fisco, nºs 95/96, Abril de 2001, ano XII, págs. 23 a 25.-() Dispõe esta norma, na redacção da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro:
«Há lugar a avaliação indirecta da matéria colectável quando falte a declaração de rendimentos e o contribuinte evidencie as manifestações de fortuna constantes da tabela prevista no n.º 4 ou quando o rendimento líquido declarado mostre uma desproporção superior a 50%, para menos, em relação ao rendimento padrão resultante da referida tabela». Na redacção inicial, em vez de quando o rendimento líquido declarado mostre, dizia quando declare rendimentos que mostrem.) –, no caso de o sujeito passivo evidenciar as manifestações de fortuna constantes da tabela do n.º 4 daquele artigo e não ter apresentado declaração de rendimentos ou ter declarado rendimentos inferiores em mais de 50% ao rendimento padrão constante da mesma tabela, o n.º 3 (() O n.º 3 do art. 89.º-A da LGT, na sua redacção inicial, dispunha:
«Verificadas as situações previstas no n.º 1, cabe ao sujeito passivo a prova de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna evidenciadas, nomeadamente herança ou doação, rendimentos que não esteja obrigado a declarar, utilização do seu capital ou recurso ao crédito».), ainda do mesmo artigo, impõe-lhe o ónus de comprovar que as manifestações de fortuna evidenciadas têm outra fonte que não rendimentos sujeitos a declaração para efeitos de IRS (() No caso de ter sido apresentada declaração de rendimentos, cessa a presunção de veracidade da declaração decorrente do art. 75.º, n.º 1, da LGT, como expressamente refere a alínea d) do n.º 2 do mesmo preceito legal.).
Não o fazendo, ou seja, se o contribuinte não justificar (por facilidade de exposição, vamos usar a expressão justificar com o sentido de demonstração da origem ou fonte dos valores aplicados na aquisição dos bens que constituem as manifestações de fortuna e da não obrigatoriedade da declaração desses valores como rendimentos para efeitos de tributação em IRS) os valores que permitiram evidenciar as manifestações de fortuna, a AT, nos termos dos arts. 89.º-A, n.º 1, e 87.º, alínea d), fica autorizada a proceder à avaliação indirecta do rendimento tributável, podendo, nos termos do n.º 4 do referido art. 89.º-A, fixá-lo em montante igual ao rendimento padrão constante daquela tabela ou mesmo, se existirem «indícios fundados, de acordo com os critérios previstos no artigo 90º» que o permitam, em montante superior, a enquadrar na categoria G do IRS.
Ou seja, os arts. 87.º, alínea d), e 89.º-A, n.ºs 1 e 4, vieram criar um regime especial de avaliação indirecta, que o legislador justificou com a necessidade de combate à evasão e fraude fiscais, que assume algumas características particulares:
desde logo, face a uma manifestação de fortuna prevista como tal na lei e na ausência de declaração de rendimentos ou face à desproporção entre o rendimento padrão que a lei lhe faz corresponder e o rendimento declarado, inicia-se o procedimento de fixação da matéria tributável, sendo que, se tiver havido declaração de rendimentos, deixa de valer a presunção de veracidade da mesma;
depois, a menos que o contribuinte demonstre que os valores que possibilitaram a manifestação de fortuna não constituem rendimentos sujeitos a declaração para efeitos de IRS, ou seja, designadamente, que tiveram origem em capital próprio, recurso ao crédito, herança ou doação, rendimentos sujeitos a tributação autónoma ou que, por outro motivo, não esteja obrigado a declarar, etc., a AT fica, sem mais, autorizada a fixar, de forma indirecta, como rendimento tributável em sede de IRS, categoria G, um montante igual ao do rendimento padrão revelado pela manifestação de fortuna em causa.

Mais tarde, e dentro do mesmo espírito de combate à fraude e evasão fiscais, o legislador entendeu sujeitar a regime idêntico ao das manifestações de fortuna os acréscimos patrimoniais e consumos, assim suprindo as deficiências daquele regime, que deixou fora da previsão legal as situações em que os contribuintes utilizam os rendimentos não declarados, não na aquisição dos bens duradouros ou investimentos referidos na tabela do n.º 4 do art. 89.º-A, mas na aquisição doutros bens ou em consumos. O legislador entendeu, pois, alargar as possibilidades de avaliação indirecta a outros casos em se verificasse uma desproporção injustificada entre os acréscimos patrimoniais ou os consumos evidenciados e o rendimento declarado, fazendo cessar a presunção de que este corresponde à realidade.
Assim, pela Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro – Lei de Orçamento do Estado para 2005 – foi introduzida no art. 87.º, que prevê taxativamente os casos em que é admissível a avaliação indirecta, a alínea f), do seguinte teor: «Existência de uma divergência não justificada de, pelo menos, um terço entre os rendimentos declarados e o acréscimo de património ou o consumo evidenciados pelo sujeito passivo no mesmo período de tributação».
Ou seja, nos casos em que o sujeito passivo evidencie num determinado ano um acréscimo de património ou um consumo que divirja não justificadamente dos rendimentos declarados nesse ano em, pelo menos, um terço, o n.º 3 do art. 89.º-A, agora na sua nova redacção, introduzida por forma a incluir estes casos (() A Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro, deu-lhe uma nova redacção, do seguinte teor:
«Verificadas as situações previstas no n.º 1 deste artigo, bem como na alínea f) do artigo 87.º, cabe ao sujeito passivo a comprovação de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna ou o acréscimo de património ou o consumo evidenciados».), impõe-lhe o ónus de comprovar que os acréscimos patrimoniais ou os consumos evidenciados têm outra fonte que não rendimentos sujeitos a declaração para efeitos de IRS.
Se o contribuinte não justificar os valores que permitiram evidenciar os acréscimos patrimoniais ou consumos evidenciados, a AT, fica autorizada a proceder à avaliação indirecta do rendimento tributável, nos termos da referida alínea f) do art. 87.º. Nesse caso, a AT pode, nos termos do n.º 5 do referido art. 89.º-A, fixar o rendimento tributável em sede de IRS em montante igual ao da diferença entre o acréscimo de património ou o consumo evidenciados, ou mesmo em montante superior, se existirem «indícios fundados, de acordo com os critérios previstos no artigo 90º» que lho permitam, a enquadrar na categoria G do IRS.
Ou seja, os arts. 87.º, alínea f), e 89.º-A, n.º 5, vieram criar mais uma possibilidade de avaliação da matéria tributável por método indirecto, com as seguintes características:
face a um acréscimo patrimonial ou a uma manifestação de consumo que divirja em, pelo menos, um terço do rendimento declarado no ano, cessa a presunção de veracidade da declaração e inicia-se o procedimento de fixação da matéria tributável;
depois, a menos que o contribuinte demonstre que os valores que possibilitaram o acréscimo patrimonial ou o consumo evidenciados não constituem rendimentos sujeitos a declaração para efeitos de IRS, ou seja, designadamente, que tiveram origem em capital próprio, recurso ao crédito, herança ou doação, rendimentos sujeitos a tributação autónoma, etc., a AT fica, sem mais, autorizada a fixar, de forma indirecta, como rendimento tributável em sede de IRS, categoria G, um montante igual ao da diferença entre o rendimento declarado e o valor do acréscimo patrimonial ou do consumo evidenciados.

Assim, verificando-se uma fattispecie subsumível à previsão do n.º 1 do art. 89.º-A, ou uma uma fattispecie subsumível à previsão da alínea f) do art. 87.º, fica legitimado o recurso à avaliação indirecta do rendimento tributável nos termos referidos, o que significa que, nessas situações, a AT, por um lado, fica dispensada de demonstrar os requisitos gerais de recurso ao método indirecto de avaliação, designadamente, a impossibilidade de determinação da matéria tributável por métodos directos (cf. art. 88.º), e, por outro lado, as exigências de fundamentação, particularmente exigentes em sede da avaliação indirecta e compreendendo quer os pressupostos para o recurso à avaliação indirecta quer o método utilizado na avaliação, satisfazem-se com a mera «descrição dos bens cuja propriedade ou fruição a lei considerar manifestações de fortuna relevantes» e, quanto à quantificação da matéria tributável, com a referência ao critério legal (cf. arts. 77.º, n.º 4, e 84.º, n.º 3).
Por outro lado, para esses casos, o n.º 7 do art. 89.º-A, ao arrepio da regra geral dos n.ºs 3 a 5 do art. 84.º, prevê a impugnabilidade contenciosa directa da avaliação da matéria colectável por método indirecto, afastando também expressamente a possibilidade de pedir a revisão administrativa da matéria tributável, que constitui a regra geral prevista no art. 91.º da LGT.
Dito isto, cumpre-nos passar a averiguar se a situação apurada nos autos é, em abstracto, subsumível à previsão dos arts. 87.º, alínea d), e 89.º-A, n.º 1, ou à previsão da alínea f) do art. 87.º.
Prima facie, poderíamos ser levados a afirmar que a situação é subsumível à previsão de ambas as normas, pois a compra de imóveis de valor de aquisição igual ou superior a € 250.000,00 quando o rendimento declarado seja inferior a 50% do rendimento padrão, sendo este igual a 20% do valor de aquisição (ou seja, quando o rendimento for inferior a 10% do preço de aquisição), integrará sempre uma divergência superior a um terço entre os rendimentos declarados e o acréscimo de património evidenciado.
No entanto, apesar das inegáveis semelhanças dos regimes (() Como procurámos demonstrar, ambos têm como origem situações de desvio relativamente à normalidade (não é normal que quem evidencia manifestações de fortuna referidas como tal na lei aufira rendimento tão desproporcionadamente baixo, como não é normal que se evidenciem acréscimos patrimoniais ou consumos em tão flagrante desproporção com os rendimentos declarados) que fazem desencadear a avaliação por método indirecto, ambos afastam a presunção de veracidade da declaração, invertendo o ónus da prova, bem como ambos autorizam a AT a proceder à fixação da matéria tributável por método indirecto e estabelecem mesmo a possibilidade de esta ser fixada num valor (mínimo) fixado a forfait.), uma reflexão mais cuidada, imposta, desde logo, pelos resultados bem diferentes a que um e outro conduzem (() Essa diferença ficou bem patente nos projectos de decisão que a AT remeteu, sucessivamente, ao Contribuinte, através dos ofícios com o n.º 14969, datado de 25-02-2008, e com o n.º 40403, datado de 27 de Maio de 2008 (cf., respectivamente, as alíneas 8)/9) e 3) dos factos provados em 2.1.1 e 2.1.2). Enquanto no primeiro a correcção proposta era de € 45.985,71, no segundo essa correcção já ascendia a € 360.785,11, ou seja, esta é quase oito vezes superior àquela.), permitir-nos-á concluir que os mesmos se destinam a regular situações diversas, que não há coincidência entre as fattispecies dos arts. 87.º, alínea d), e 89.º-A, n.º 1, por um lado, e da alínea f) do art. 87.º, por outro.
Como bem salientou o Recorrente, a alínea d) do art. 87.º, conjugada com o n.º 1 do art. 89.º-A, relativamente à alínea f) do art. 87.º, surge com a natureza de lei especial. Significa isto que aquela se destina a regular casos mais restritos do que esta, casos que, na opção do legislador, dadas as suas especiais características demandam tratamento diverso e, por isso, uma disciplina diferente.
Na verdade, para os efeitos que vimos a considerar, a lei não relevou todas as situações que revelam desproporção entre o rendimento declarado e as manifestações de fortuna, acréscimos patrimoniais ou consumos evidenciados. Ao invés, entendeu só conceder relevância a determinadas situações e na medida em que essa proporção atinja determinado valor. E, de igual modo, relativamente às situações que entendeu relevar, não lhes conferiu o mesmo índice para o cálculo da matéria tributável que presumiu omitida à declaração. Que assim é, resulta da mera leitura do quadro do n.º 4 do art. 89.º-A e da alínea f) do art. 87.º.
Ou seja, a lei não valora de igual modo todos os desvios relativamente à normalidade. Apenas concede relevância a alguns e quando estes atingem uma determinada proporção, que varia em função do tipo concreto de situações que considerou merecedoras de figurarem como índices da existência de rendimento não declarado.
Assim, embora as aquisições de imóveis constituam acréscimos patrimoniais, a lei só lhes quis conferir relevo, para os referidos efeitos (() De afastar a presunção de veracidade da declaração, autorizar a avaliação indirecta do rendimento tributável e até permitir a quantificação deste num montante mínimo pré-fixado.), quando o valor dessas aquisições (() Note-se que o legislador, para estes efeitos, faz equivaler às aquisições pelo próprio contribuinte as efectuadas por familiares, bem como faz equivaler à aquisição a fruição, no ano em causa, pelo sujeito passivo ou por qualquer elemento do agregado familiar dele, dos bens «adquiridos, nesse ano ou nos três anos anteriores, por sociedade na qual detenham, directa ou indirectamente, participação maioritária, ou por entidade sediada em território de fiscalidade privilegiada ou cujo regime não permita identificar o titular respectivo» (cf. art. 89.º-A, n.º 2, alíneas a) e b)).), durante o ano em causa ou nos três anos anteriores, ascenda a € 250.000,00 ou mais, e o contribuinte declare nesse ano rendimentos inferiores em mais de 50% ao rendimento padrão, que estabeleceu em 20% do valor de aquisição.
Ou seja, as aquisições de imóveis (como aliás outras manifestações de fortuna) mereceram do legislador tratamento diverso do que ele entendeu conceder à generalidade dos acréscimos patrimoniais. Enquanto para estas entendeu ser suficiente, como facto revelador do afastamento da normalidade e da existência de rendimentos não declarados, uma desproporção de, pelo menos, um terço entre o valor do acréscimo patrimonial e o rendimento declarado nesse ano, já relativamente à aquisição de imóveis de valor superior a € 250.000,00, efectuados nesse ano ou em qualquer dos três anos anteriores, entendeu como revelador dessa anormalidade o facto de o rendimento declarado (() Note-se que, para as manifestações de fortuna, o regime funciona mesmo na ausência de declaração, o que se justifica pela necessidade de não conceder tratamento privilegiado a quem mais gravemente incumpre com as suas obrigações declarativas.) revelar uma desproporção superior a metade do rendimento padrão, que entendeu fixar em 20% do valor da aquisição.
Este especial tratamento das aquisições de imóveis justificar-se-á pelas especificidades que reveste este tipo de negócio, assim se explicando quer a fixação do montante de € 250.000,00 como limite a partir do qual se considera evidenciada uma manifestação de fortuna, quer a fixação dos índices que o legislador entendeu justificarem a presunção da existência de rendimento não declarado e dos montantes mínimos deste (() Isto não significa, obviamente, que a AT, no âmbito dos poderes de fiscalização que lhe incumbem, não possa concluir que o rendimento declarado pelo contribuinte não corresponde à realidade, nem que não possa recorrer ao método indirecto para avaliar o rendimento tributável do contribuinte. Exige-se-lhe, no entanto, que suporte essas conclusão e decisão nos termos gerais, ou seja, nesse caso, competirá à AT afastar a presunção da veracidade da declaração, justificar o recurso à avaliação indirecta (designadamente, a impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação daquela) e indicar o critério utilizado na quantificação da matéria tributável.).
O Recorrente avança desde logo com a razão justificativa dessa especialidade: em regra, a aquisição de imóveis representa um esforço financeiro que requer uma mobilização de recursos muito superior ao rendimento auferido num só ano. Por isso, o legislador entendeu adequado, relativamente à aquisição desses bens, considerar que o esforço financeiro exigido corresponderá a cinco anos de rendimentos, presumindo este constante e aferindo-o pelo do ano da aquisição.
Face ao que vimos de dizer, fácil se torna concluir que a alínea d) do art. 87.º se assume como lei especial relativamente à alínea f) do mesmo artigo. O que basta para dar como verificado o erro de violação de lei em que incorreu a DGCI ao proceder à avaliação indirecta do rendimento tributável do ora Recorrente ao abrigo e nos termos desta última alínea.
Poderá, eventualmente, argumentar-se que, porque a alínea f) do art. 87.º foi introduzida na LGT ulteriormente à alínea d) do mesmo artigo (() A primeira foi introduzida na LGT pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, e a segunda pela Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro.), esta deve ter-se por derrogada (parcialmente revogada) tacitamente por aquela. A posição assumida pela AT parece arrancar desse entendimento, se bem que nunca tenha sido apresentada qualquer justificação para a mudança de entendimento revelada pela DGCI através das duas propostas de decisão que remeteu ao Contribuinte (() Como deixámos dito em 2.2.1 e pelos motivos que aí consignámos, não podemos conhecer agora desse vício.).
A nosso ver, tal argumento não procede. Na verdade, como resulta do que deixámos dito, a alínea d) do art. 87.º (conjugada com os n.ºs 1 e 4 do art. 89.º-A), destina-se a regular especialmente uma gama mais restrita de situações do que a alínea f) (() Cf. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pág. 94.). Esta terá surgido, não com qualquer intuito revogatório, mas para contemplar situações que, não estando abrangidas por aquela, o legislador entendeu deverem ficar sujeitas a um regime semelhante. Aliás, caso houvesse qualquer intuito revogatório, por certo que a técnica utilizada pelo legislador seria outra: bastar-lhe-ia, v.g., ter dado à alínea d) uma nova redacção, de teor idêntico à da alínea f).
Por outro lado, dado o carácter de lei especial que a alínea d) assume relativamente à alínea f), nunca poderia sustentar-se a revogação daquela (ainda que parcial, ou seja, derrogação) por esta. Trata-se de um princípio de carácter geral relativamente à vigência da lei, que se encontra consagrado no art. 7.º, n.º 3, do Código Civil (CC): «A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador» (() Princípio que, na sua formulação mais conhecida, é traduzido pelo brocardo lex specialis derrogat legi generali.).
A não ser assim, como bem salientou o Recorrente, a alínea d) do art. 87.º teria sido esvaziada de conteúdo útil, pelo menos, no que se refere à manifestação de fortuna evidenciada pelas aquisições de imóveis. Na verdade, como deixámos já dito, esta manifestação de fortuna representará sempre «uma divergência não justificada de, pelo menos, um terço entre os rendimentos declarados e o acréscimo de património» evidenciado.
É certo que o legislador, na Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2009) veio dar resposta expressa a esta situação de concorrência dos pressupostos das alíneas d) e f) do art. 87.º, aditando a este preceito um n.º 2, do seguinte teor: «No caso de verificação simultânea dos pressupostos de aplicação da alínea d) e da alínea f) do número anterior, a avaliação indirecta deve ser efectuada nos termos dos n.os 3 e 5 do artigo 89.º-A».
Tal preceito, porque ulterior à situação de que nos ocupamos, só poderá relevar directamente na solução do litígio suscitado pela mesma caso se possa considerar como tendo carácter interpretativo e, consequentemente, efeitos retroactivos (() Nos termos do disposto no art. 13.°, n.º 1, do Código Civil, «A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza».-() A lei interpretativa «retroage os seus efeitos até à data da entrada em vigor da antiga lei, tudo ocorrendo como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada» (PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, 2.ª edição, anotação ao art. 13.º).). Entendemos que não, por várias razões:
Desde logo, porque o legislador não lhe concedeu expressamente essa natureza (() E, mesmo que o tivesse feito, sempre haveríamos de indagar se a lei tinha realmente essa natureza.).
Depois, porque não temos conhecimento de que, a propósito da aplicação da lei no caso de concorrência dos pressupostos das referidas alíneas d) e f) do art. 87.º houvesse controvérsia na comunidade jurídica a justificar a intervenção aclaradora do legislador. No estudo do processo e na preparação do presente acórdão, em vão procuramos jurisprudência sobre a questão e também na doutrina não lhe encontramos referência.
No entanto, não devemos ignorar o subsídio que esta nova norma traz à discussão, devendo ponderar a mesma enquanto elemento interpretativo das referidas alíneas d) e f) do art. 87.º. A introdução do n.º 2 no art. 87.º pode ter uma de duas leituras: ou o legislador considerou que não foi inequívoco e quis clarificar, ou entendeu que se impunha regular a questão em termos diversos dos que resultavam da lei. No primeiro caso, é o próprio legislador que, frequentemente, atribui à norma carácter interpretativo, tendo em vista assegurar a retroactividade da aplicação da disciplina normativa que entende, agora como antes, ser a mais ajustada; no segundo caso, a norma tem carácter inovatório e pode ter várias explicações, designadamente, a experiência resultante da aplicação da norma original, a alteração das circunstâncias em que a mesma foi produzida, a modificação das opções políticas.
In casu, nada permite concluir pela natureza interpretativa da nova redacção. Nada nos permite concluir que, antes da introdução do n.º 2 do art. 87.º, o legislador pretendia que as situações fácticas que simultaneamente se integrassem na previsão da alínea d) e na alínea f) daquele artigo fossem tratadas nos termos do n.º 5 do art. 89.º-A (() A nosso ver, a referência ao n.º 3 do art. 89.º-A que é feita no n.º 2 do art. 87.º, na redacção introduzida pela Lei de Orçamento do Estado para 2009, é de todo dispensável, pois resultava já daquele normativo a sua aplicação às situações «previstas no n.º 1 deste artigo [que são as da alínea d) do art. 87.º], bem como na alínea f) do artigo 87.º»). Aliás, se essa era essa a sua intenção, só podemos concluir que a mesma não logrou a mínima expressão na letra da lei. Ora, como sabemos, não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei o mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (art. 9.º, n.º 2, do CC). Por outro lado, como resulta da tarefa hermenêutica que desenvolvemos supra, a interpretação dos preceitos em causa leva mesmo a conclusão diversa.
Assim, porque não vislumbramos razões que nos permitam concluir pelo carácter interpretativo do n.º 2 do art. 87.º, introduzido pelo Lei de Orçamento do Estado para 2009, havemos de considerar que o mesmo é inovatório e, por isso, não aplicável à situação sub judice.
Em conclusão, como sustenta o Recorrente, a AT não respeitou a lei ao proceder à avaliação da matéria tributável por método indirecto nos termos do disposto no art. 87.º, alínea f), da LGT, pelo que o recurso judicial por ele interposto da respectiva decisão deveria ter sido julgado procedente.
A sentença recorrida, que entendeu em sentido diverso, não pode manter-se, motivo por que a revogaremos a final, assim dando por prejudicadas as demais questões suscitadas no presente recurso.

*
2.2.3 CONCLUSÕES
Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Ainda que a compra de imóveis no ano de 2006 por um preço global de € 393.500,00, quando o contribuinte declarou nesse ano um rendimento de € 32.714,29, revele a divergência superior a um terço entre o acréscimo patrimonial evidenciado e o rendimento declarado, tal divergência não permite à AT proceder à avaliação do rendimento tributável para efeitos de IRS por método indirecto ao abrigo do disposto na alínea f) do art. 87.º da LGT.
II - Isto porque, para as situações de compra de imóveis, a lei prevê um regime especial para as situações em que considera que o valor da aquisição faz presumir determinado rendimento: o da alínea d) do art. 87.º da LGT, conjugado com os n.ºs 1 e 4 do art. 89.º-A, da LGT.
III - Face a este regime, especial porque destinado a regular um número mais restrito de casos e justificado pelo particular esforço financeiro que a aquisição de imóveis, normalmente, representa para os particulares, não pode a AT aplicar a estas situações o regime referido em I, que se configura como regime regra (note-se que à situação não é aplicável o n.º 2 que o Orçamento do Estado para 2009 veio aditar ao art. 87.º e que tem carácter inovatório).
IV - Nem se diga que o regime legal da alínea f) do art. 87.º, porque ulterior ao da alínea d) do mesmo preceito, o derrogou tacitamente: desde logo porque mal se compreenderia, à luz da técnica legislativa, que tal revogação não fosse expressa (designadamente, consubstanciando-se numa nova redacção dada à alínea d), substituindo a sua redacção original pela que foi dada à alínea f)); depois porque a lei geral não derroga a lei especial (cf. art. 7.º, n.º 3, do CC).
V - A não ser assim, a alínea f) do art. 87.º da LGT teria esvaziado de qualquer sentido útil a alínea d) do mesmo preceito conjugada com o n.º 1 do art. 89.º-A, pelo menos no que respeita às manifestações de fortuna que constituem acréscimos patrimoniais.

* * *
3. DECISÃO
Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte acordam, em conferência,
a) conceder provimento ao recurso;
b) revogar a sentença recorrida;
c) anular a decisão administrativa de avaliação da matéria colectável por métodos indirectos.

Custas pela Entidade recorrida, mas apenas em 1.ª instância, uma vez que não contra alegou o recurso jurisdicional.


*

Porto, 22 de Janeiro de 2009

(Francisco Rothes)

(Fernanda Brandão)

(Moisés Rodrigues)