Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02292/10.8BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:07/02/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Paula Moura Teixeira
Descritores:EMBARGOS DE TERCEIRO; CONTRATO PROMESSA; PAGAMENTO DO PREÇO; POSSE;
Sumário:I. De acordo com o estatuído no artigo 237.º, n.º 1, do CPPT, “quando o arresto, a penhora ou qualquer outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, este pode fazê-lo por meio de embargos de terceiro”.

II. Desta norma decorre, portanto, serem pressupostos da procedência dos embargos de terceiro: (i) o embargante ter a qualidade de terceiro; (ii) haver um ato de apreensão ou entrega de bens (v.g. arresto, penhora, arrolamento); (iii) aquele ato ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência.

III "Posse" é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – art.º 1251.º do Código Civil.

IV. O contrato-promessa, só por si, não é suscetível de transferir a posse ao promitente-comprador.

V. Constituindo, por princípio, a tradição de imóvel, decorrente de contrato promessa de compra e venda, mera detenção precária, ela pode, no entanto, consubstanciar uma verdadeira posse se envolver a transmissão, não só do “corpus”, mas do “animus”, o que caberá ser, casuisticamente, averiguado.

VI. Nas situações excepcionais em que o promitente-comprador tem uma posse em nome próprio relativamente ao bem que lhe foi prometido vender e que, entretanto, foi penhorado em processo de execução fiscal, tal posse fundamentará a procedência dos embargos de terceiro que, com base nela, sejam deduzidos. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Autoridade Tributária e Aduaneira
Recorrido 1:L. e Outra.
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. RELATÓRIO
A Recorrente, Autoridade Tributária e Aduaneira interpôs recurso da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, nos embargos de terceiro intentados por L. contra o ato de penhora, efetuada no âmbito da execução fiscal nº 1783200801071521 e apensos que o Serviço de Finanças de (...) 1 move contra a sociedade A., Lda., que incidiu sobre a fração autónoma, tipo T3, designada pela letra “R”.

A Recorrente interpôs recurso jurisdicional da sentença que julgou procedente os embargos de terceiro, pelo que formulou nas respetivas alegações as seguintes conclusões que se reproduzem: “(…)

A. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou procedentes os embargos deduzidos contra a penhora, requerida e registada em 31.03.2010, da fração do prédio urbano em regime de propriedade horizontal destinado a habitação sito em (...), (...), correspondente a uma habitação de tipologia T3 no bloco 2, segundo andar esquerdo, e sua afetação aos fins do processo de execução fiscal onde foi ordenada, que corre termos no Serviço de Finanças de (...)-1.
B. Decidiu a final o Tribunal a quo pela procedência dos embargos declarando, sustentado nos factos que deu como provados, designadamente o pagamento do preço e que, com a celebração do contrato-promessa de 17.07.2002, a embargante teria entrado na posse pública, pacífica e contínua do imóvel em questão, na medida em que dele teria passado a ser proprietária, aí mantendo o seu domicílio e vivendo com a sua família, pagando as despesas de condomínio, gás, luz e água, aguardando que estivessem reunidas condições para a celebração da escritura pública do contrato prometido, que tais atos corresponderiam ao exercício do direito de propriedade por parte da embargante e que a posição jurídica da promitente-compradora preencheria todos os requisitos de uma verdadeira posse.
C. Com a ressalva do sempre devido respeito, não pode a Fazenda Pública conformar-se com o assim doutamente decidido, por entender estar afetado de erro de julgamento de facto e de direito, já que a douta sentença selecionou de modo erróneo e insuficiente a factualidade da prova produzida, da qual cumpria fazer a adequada qualificação jurídica, erro que a Fazenda Pública, em cumprimento do disposto no art. 640° do CPC, aplicável por via da al. e) do art. 2° do CPPT, identificou, nos pontos 10. a 13. do desenvolvimento destas alegações.
D. A Fazenda Pública propugnou, naqueles pontos, que deve ser dado como provado o registo predial, em 05.11.2010, do reconhecimento, por decisão judicial, da existência e da titularidade do direito de propriedade desse imóvel em nome da embargante, o acréscimo à matéria de facto provada do segundo o qual o promitente-vendedor, por sua vez, tinha celebrado, em 08.07.1995, contrato-promessa de compra e venda no qual ficou estipulado que este receberia em pagamento da venda de um seu terreno rústico, entretanto convertido em urbano, entre outras, a fração penhorada, e eliminando da matéria de facto provada o ponto em que se considera provado que com a assinatura do contrato promessa de compra e venda supra descrito o promitente vendedor tenha recebido da embargante, na íntegra, a quantia relativa ao preço global da fração prometida no valor de € 75.000,00.
E. Desde logo a sentença recorrida evidencia a inapropriada valoração do contrato-promessa celebrado em 17.07.2002, porquanto este documento, por si só, não prova o pagamento da totalidade do preço aquando da sua celebração.
F. Sucede que tal contrato-promessa é um escrito particular, que, não tendo as assinaturas dos contratantes reconhecidas, não é mais do que um documento em que intervieram os próprios interessados, o qual não basta para que se declare que “se mostra alegado e provado o pagamento da totalidade do preço” (sublinhado da própria sentença).
G. Tal como assinala o acórdão proferido em 16.10.2014 no processo n° 06785/14, pelo TCA Sul, “o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelos seus autores ou como objeto da sua perceção direta (art.°s 376º, nºs 1 e 2, do Código Civil – CC), e “não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provadas” louvando-se esse acórdão, especialmente, em acórdão do STJ de 09.12.2008, proc. 08A3665.
H. Para a prova desse pagamento exigiam-se meios de prova fiáveis do correspondente fluxo financeiro, como, por exemplo, os documentos relativos aos meios de pagamento utilizados, mormente se se tiver em conta que a quitação dada do pretenso pagamento integral respeita a uma quantia de € 75.000,00 que supostamente se encontraria paga (de uma vez ou parceladamente) em 17.07.2002.
I. Por outro lado, do exercício do poder de facto sobre variados modos, nos termos em que a sentença estritamente os enuncia, no ponto J) dos “Factos Provados”, e do facto de o promitente-vendedor não ser o proprietário da fração prometida vender na data de 17.07.2002,
J. só se retira que a promitente compradora aqui embargante não possuía em nome próprio mas mediante tolerância do proprietário da fração, com quem nem sequer chegou a estabelecer uma obrigação mútua de contratar a compra e venda da aludida fração.
K. Constata-se, afinal, que a sentença não dá como provado qualquer facto de que, objetivamente, se possa inferir que a embargante tenha atuado como se fosse já proprietária da fração penhorada, que tenha exercido sobre variados modos os poderes de facto inerentes ao exercício de um direito de propriedade sobre a coisa de que era detentora, na convicção de que titulava esse direito.
L. E, se cotejados com os factos que a Fazenda Pública propugna que sejam alterados e aditados à factualidade que resulta provada nestes embargos, o que resulta demonstrado é que a embargante exerceu a detenção ou fruição em nome do verdadeiro possuidor, porquanto indicam que a embargante nunca teve a convicção da titularidade do direito de propriedade a adquirir pela celebração do contrato definitivo com um promitente-vendedor que também não era, à data do contrato-promessa, proprietário da fração prometida vender, e que só esteve segura desse direito quando obteve o registo da propriedade na Conservatória competente, em consequência do vencimento da ação cível onde esse direito foi reconhecido.
M. A promitente-compradora ora embargante não podia atuar, na situação em apreço, uti dominus, porque também o promitente-vendedor não o podia fazer, na medida em que, à data da promessa de compra e venda de 17.07.2002, os autos só permitem afirmar que o promitente-vendedor tinha uma mera expectativa de aquisição da fração, que lhe fora prometida vender através de um contrato promessa anterior, de 08.07.1995.
N. E revelador de que a embargante, sabendo como ninguém que a fração só lhe pertenceria (e só então agiria convicta de ser proprietária) depois de realizado o contrato translativo prometido, é a circunstância de que pendia ação cível declarativa onde se discutia a transmissão do direito de propriedade, como se constata do registo predial da fração – circunstância que se afigura incompatível com a inversão do título de posse.
O. Só a partir do registo em 05.11.2010 da decisão judicial do reconhecimento da existência e da titularidade do direito de propriedade desse imóvel em nome da embargante é que se pode fundadamente afirmar que a embargante pôde, desde então, agir com a intenção de um titular da propriedade ou de outro qualquer direito real sobre a coisa.
P. A este propósito, cabe salientar que o facto de a embargante ter passado a ocupar a fração penhorada desde 2002, ininterruptamente, com a sua família, aí mantido o seu domicílio, tomando as suas refeições, pernoitando e recebendo amigos, pagando o condomínio e contas do fornecimento de água, eletricidade e gás, só por si, é manifestamente insuficiente para provar um comportamento de possuidor causal, sustentado numa atuação “animus sibi habendi”,
Q. porque a tradição do imóvel negociada no âmbito de um contrato-promessa de compra e venda, com o subsequente gozo e fruição das suas utilidades, acarreta os usuais encargos inerentes ao exercício desses poderes de facto sobre a coisa, em regra por tolerância do proprietário, mas como atos materiais nada revelam da intenção com que foram praticados, designadamente da intenção de agir como proprietária.
R. Diante das considerações supra expendidas, entende a Fazenda Pública que a sentença recorrida, no que toca à matéria de facto, não se apresenta como razoável, por que as conclusões que retira, da estreita factualidade fixada, não resultam de uma apreciação submetida a uma convicção prudente (art. 607º, nº5, do CPC), objetivada em raciocínios formulados de acordo com as regras da ciência, da lógica ou da experiência comum que nela tenham sido exteriorizados.
S. Em suma, por se concluir, da confrontação entre os meios de prova produzidos e os factos dados por provados ou não provados, segundo a configuração da matéria de facto dada como provada que a Fazenda Pública pretende que, na sequência deste recurso, seja corrigida, que o juízo feito está em desconformidade com a prova produzida, a sentença padece de erro de julgamento de facto.
T. Corrigido esse erro de julgamento de facto, corrigir-se-á também o erro de julgamento de direito, porquanto com a penhora requerida e registada em 31.03.2010 não se verificou a ofensa da posse titulada ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial que se traduza num ato de agressão na esfera patrimonial da embargante, não se verificando, assim, um dos requisitos da dedução dos embargos de terceiro, de acordo com a lei processual tributária (cfr.art.237º do CPPT).
U. Assim, ao decidir como decidiu, a Mma. Juíza a quo fez uma errada apreciação da prova produzida nos autos e consequentemente aplicação da lei, razão pela qual a Fazenda Pública defende que a douta sentença recorrida seja revogada e, julgando em substituição, esse Tribunal ad quem decida os presentes os embargos de terceiro procedentes, mantendo a penhora efetuada sobre a fração autónoma designada pela letra R do artigo 16.085 da matriz predial urbana de (...), (...).
Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se revogada a sentença recorrida e, em substituição, esse Tribunal ad quem decida procedentes os presentes os embargos de terceiro procedentes, mantendo a penhora efetuada.:

A Recorrida contra alegou tendo formulado as seguintes conclusões:
“(…) Assim, confiando no tão elevado quanto proficiente suprimento de Vossas Excelências, deverão improceder na totalidade as conclusões apresentadas pela Recorrente, pelo que deve ser negado provimento ao recurso e, em consequência, confirmar-se a douta Sentença recorrida, com o que será feita inteira e sã JUSTIÇA!

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso e manter-se a sentença na ordem jurídica.

Atenta à existência do processo em suporte informático e à conjuntura atual de pandemia, dispensa-se de vistos, nos termos do art.º 657.º, n. º4, do Código de Processo Civil, sendo o processo submetido à Conferência para julgamento.

2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que as questões suscitadas resumem-se, em saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto e de direito ao considerar os embargos de terceiro procedentes.
3. JULGAMENTO DE FACTO
Neste domínio, no Tribunal a quo, o julgamento da matéria de facto foi efetuado nos seguintes termos:
A). “O processo executivo 1783200801071521 e aps. foi instaurado em nome da sociedade A., Lda., por dívidas de IMI e Coimas fiscais, no montante de €15.587,09, cf. informação de fls. 55 dos autos.
B). No âmbito dessa execução foi autuada a penhora da fracção autónoma designada pela letra "R" correspondente a uma habitação de tipologia T3, no 2° andar com entrada pelo n" 74 do prédio urbano sito na Rua (…), freguesia de (…), concelho de (...), inscrito na matriz sob o artigo n" 16085 R e descrito na respectiva conservatória sob o n° 931/170987 R, cf. fls 55 dos autos.
C). Em 17/07/2002 a Embargante celebrou um contrato-promessa de compra e venda com M., onde este promete vender àquela, pela quantia de €75.000,00 a fracção autónoma designada pela letra "R" correspondente a uma habitação de tipologia T3, no 2° andar com entrada pelo n° 74 do prédio urbano sito na Rua (...), no Lugar da (...), freguesia de (...), concelho de (...) e Descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o registo 931, cf. fls. 14 a 16 dos autos cujo teor aqui se da por integralmente reproduzido.
D). Com a assinatura do contrato promessa de compra e venda supra descrito o promitente vendedor M., recebeu da Embargante a integralmente quantia relativa ao preço global da fracção prometida no valor de €75.000,00, tendo dado a respectiva quitação, cf. fls. 14 a 16 dos autos.
E). Os recibos de pagamento do condomínio relativos à fracção em causa foram passados em nome da Embargantes em 2008 e 2009, cf. fls. 17 dos autos.
F). Os recibos/factura relativos às contas da Portgás, EDP e Águas de (...) foram passados desde 2004 e 2005 em nome da aqui Embargante, cf. fls. 18 a 51 dos autos.
J). A Embargante passou a ocupar a fracção penhorada, e aqui em causa, desde 2002, ininterruptamente, com a sua família, aí mantido o seu domicílio, tomando as suas refeições, pernoitanto e recebendo amigos, cf. depoimento de testemunhas,
H). A Embargante tomou conhecimento da penhora em 10/07/2010, cf, fls. 52 dos autos.
I). Os presentes embargos de terceiro deram entrada no Serviço de Finanças de (...) em 30/07/2010, cf, fls. 6 dos autos.

FACTOS NÃO PROVADOS

Inexistem outros factos sobre que o Tribunal deva pronunciar-se já que as demais asserções insertas na douta petição constituem antes conclusões de facto e/ou direito ou são inócuas para a boa decisão da causa.
Resultou a convicção do Tribunal do teor dos documentos juntos aos autos os quais não foram impugnados e nos depoimentos das testemunhas arroladas que demonstraram um conhecimento directo e seguro dos factos… (…)”

3.2. A Recorrente nas conclusões C. e D. por remissão para os pontos n.º 10 a 13 das motivações das alegações, impugna a matéria de facto dada como provada. Se bem entendemos o recurso, pretende a Recorrente que seja dado como provado um facto no qual conste “Em 05.11.2010, por meio da apresentação n.º 3534, foi levado a registo predial do artigo 16.085-R de (...), (...), o reconhecimento, por decisão judicial, da existência e da titularidade do direito de propriedade desse imóvel em nome da embargante. “com base na certidão permanente da Conservatória do Registo Predial existente nos autos.
Propugna a alteração do facto da alínea C) no qual consteo promitente-vendedor (...), por sua vez, tinha celebrado, em 08.07.1995, com A., NIF (...), contrato-promessa de compra e venda no qual ficou estipulado que este receberia em pagamento da venda e do seu terreno rústico, entretanto convertido em urbano, entre outras as fração 18 LR, correspondente à referida habitação de tipologia T3, no bloco 2, segundo andar esquerdo, com entrada n.º (…) do prédio sito na Rua (...), no Lugar da (...), freguesia de (...), concelho de (...). Tendo por base preâmbulo do contrato promessa de junto com a petição inicial.
Requer ainda que seja eliminado da matéria provada o facto contante na alínea D) na medida em que não foi produzida prova que com assinatura do contrato promessa o promitente vendedor (...) tenha recebido da Embargante integralmente quantia relativo ao preço global da fração prometida no valor de 75 000,00 € tendo dado a respetiva quitação.
Vejamos:
Uma vez que vem impugnada a matéria de facto provada e a valoração da prova produzida importa fazer o seu enquadramento legal.
O tribunal de recurso deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (artigo 662. ° CPC).
Cumprido que seja o ónus de impugnação, nos termos do art.º 640.º do CPC, compete ao TCA reapreciar, não apenas se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova indicada e os restantes elementos constantes dos autos revelam, mas, também, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção, relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação.
E consequentemente modificar a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
O tribunal superior fica legitimado se esses meios de prova conduzirem e impuserem uma decisão diversa da proferida podendo concluir-se ter incorrido, a 1ª instância, em erro de apreciação das provas.
No entanto, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas previsto no n.º 5 do art.º 607.º do CPC.
Por força do referido princípio, as provas são apreciadas livremente, de acordo com a convicção que geram no julgador acerca da existência de cada facto, ficando afastadas as situações de prova legal que se verifiquem, por força do disposto nos artigos 350.º, nº 1, 358.º, 371.º e 376.º, todos do Código Civil, nomeadamente, da prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares quanto à materialidade das suas declarações e por presunções legais.
A modificabilidade da matéria de facto pressupõe uma clara distinção entre erro na apreciação da matéria de facto e a discordância do sentido em que se formou a convicção do julgador.
A tarefa de reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso está limitada aos casos em que ocorre erro manifesto em que os elementos documentais e testemunhais fornecem uma resposta inequívoca em sentido diferente daquele que foi considerado no tribunal a quo.
Na decisão sobre a matéria de facto, o tribunal de recurso aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sendo certo que na formação da convicção, intervêm vários factores, uns racionalmente demonstráveis, e outros não, nomeadamente as resultantes dos comportamentos e reações dos depoentes.
E tem a jurisprudência entendido, que “No caso de gravação da audiência de julgamento o tribunal superior deve agir com cautela já que se encontra privado da oralidade e da imediação que foram determinantes da decisão em 1.ª instância…” (cfr. acórdão STA de 27.1.10, proferido no recurso 358/09 e nº 967/11 de 09.02.2012).
Como bem refere Abrantes Geraldes em Recursos em Processo Civil. Novo Regime, pág. 268 e ss. a gravação dos depoimentos por registo áudio (…) não consegue traduzir tudo quando pôde ser observado no tribunal a quo. (…)
Com efeito o erro na apreciação das provas ocorre quando o tribunal dá como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido diferente, por força de uma incongruência lógica, por ofensa aos princípios e leis científicas, nomeadamente, das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum, ou quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, 334/07.3 TBASL.E1 de 05/05/11).
Destarte, o tribunal de recurso deve reservar a modificação da decisão de facto para os casos em que a mesma seja arbitrária por não se mostrar racionalmente fundada ou em que for evidente, segundo as regras da ciência, da lógica e ou da experiência que não é razoável a solução da 1ª instância.
Baixando ao caso dos autos, a Recorrente impugna a matéria de facto alegando que deve ser aditado um facto no qual conste: “ Em 05.11.2010, por meio da apresentação n.º 3534, foi levado a registo predial do artigo 16.085-R de (...), (...), o reconhecimento, por decisão judicial, da existência e da titularidade do direito de propriedade desse imóvel em nome da embargante. “.
Compulsada a certidão permanente da Conservatória do Registo Predial existente nos autos, junta aquando da inquirição de testemunhas (fls. 124 a 131 do processo em suporte físico) e admitida a sua junção, dela se pode retira o seguinte facto:
J) Em 05.11.2010, por meio da apresentação n.º 3534, de 05.11.2010, foi inscrito no registo 931/19870917-R Conservatória do Registo Predial de (...), que corresponde ao artigo 16.085-R de (...), (...), a inscrição como sujeito ativo L., por decisão judicial que reconheceu a existência e da titularidade do direito de propriedade Cfr. 121 a 134 dos autos.
Nesta conformidade procede-se ao aditamento do facto o qual será numerado com letra J).
Pretende a Recorrente que seja aditado um facto no qual consteo promitente-vendedor (...), por sua vez, tinha celebrado, em 08.07.1995, com A., NIF (...), contrato-promessa de compra e venda no qual ficou estipulado que este receberia em pagamento da venda e do seu terreno rústico, entretanto convertido em urbano, entre outras as fração 18 LR, correspondente à referida habitação de tipologia T3, no bloco 2, segundo andar esquerdo, com entrada n.º (...) do prédio sito na Rua (...), no Lugar da (...), freguesia de (...), concelho de (...). Tendo por base preâmbulo do contrato promessa de junto com a petição inicial.”
Da análise do contrato promessa de compra e venda, constante dos autos e junto com petição resulta com efeito a referência a negócio prévio efetuado com A. e esposa.
Nesta conformidade procede-se à reformulação da alínea C) a qual passará a constar o seguinte:

C) Em 17.07.2002 foi celebrado contrato de promessa de compra e venda entre M. com a Embargante L. onde consta o seguinte:
PREÂMBULO
O Primeiro Outorgante celebrou em 08 de julho de 1995, com o Dr. A., e esposa D. R., contrato promessa de compra e venda, através do qual ficou estipulado que este receberá em pagamento da venda e de um seu terreno rústico, entretanto convertido em urbano, entre outras as fração 18 LR, correspondente uma habitação no bloco 2, de tipo T3, 2ª andar esquerdo, com entrada n.º (...) do prédio sito na Rua (...), no Lugar da (...), freguesia de (...), concelho de (...) a confrontar………

PRIMEIRA: pelo presente contrato, o Primeiro Outorgante promete vender, livre de quaisquer ónus ou encargos e devoluto de pessoas e bens, à Segunda Outorgante, e esta promete comprar, a fração autónima identificada na cláusula anterior.

SEGUNDA: O preço global da ora prometida compra e venda é o de Eur. 75.000;00 (setenta e cinco mil euros), quantia esta que o Primeiro Outorgante declara já ter recebido integralmente da Segunda, dando aqui a respectiva quitação.

TERCEIRA: A escritura de compra e venda será celebrada no prazo de um ano, a contar da subscrição do presente contrato…

QUARTA: Os Outorgantes acordam igualmente em não submeter este contrato aos formalismos do reconhecimento presencial das respectivas assinaturas, e, bem assim, da existência de quaisquer licenças, mais renunciando à invocação da eventual nulidade. ---(…)”

Por fim a Recorrente pretende que seja eliminado da matéria provada na alínea D), no entanto, da prova testemunhal e documental produzida, nomeadamente do contrato promessa, não impugnado, não há motivos para proceder à sua eliminação. Uma vez que, da cláusula 2.ª do contrato promessa resulta o preço da venda de 75 000,00€, quantia essa que o promitente vendedor declarou “já ter recebido integralmente “dando quitação à Embargante. Analisada e reapreciada a prova testemunhal, tal facto é confirmado, pelo depoimento da testemunha Manuel Pereira da Silva, ao tempo trabalhador de uma agência de imobiliária, e que teve participação nos negócios.
Nesta conformidade, mantem-se a referida alínea.
4. JULGAMENTO DE DIREITO

4.1. Estabilizada a matéria de facto haverá que determinar se o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto incorreu em erro de julgamento facto e de direto ao considerar que a Embargante, promitente-comprador, não era um mero possuidor precário, mas sim uma verdadeira possuidor em nome próprio, que como ali se fundamentou.
Apreciemos.
Os embargos de terceiro são um dos incidentes da execução fiscal previstos na norma do artigo 166º, nº 1, alínea a) do CPPT, constituindo um meio específico de reação contra a penhora por parte de quem não é parte na execução, baseando-se na impenhorabilidade subjetiva dos bens – nestes termos, José Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 237.
Nos termos do artigo 237º, nº 1, do CPPT “quando o arresto, a penhora ou qualquer outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro”.
Desta norma decorre, serem pressupostos da procedência dos embargos de terceiro: (i) o embargante ter a qualidade de terceiro; (ii) haver um ato de apreensão ou entrega de bens (v.g. arresto, penhora, arrolamento); (iii) aquele ato ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência.
No processo sub judice é o exame do terceiro requisito que está em causa. No caso, fundam-se os embargos numa alegada ofensa da posse e propriedade de um imóvel (fração) objeto da penhora no âmbito da execução fiscal supra identificada.
A sentença recorrida julgou procedentes os embargos, sustentado nos factos que deu como provados, designadamente o pagamento do preço e que, com a celebração do contrato-promessa de 17.07.2002, a Embargante teria entrado na posse pública, pacífica e contínua do imóvel em questão, na medida em que dele teria passado a ser proprietária, aí mantendo o seu domicílio e vivendo com a sua família, pagando as despesas de condomínio, gás, luz e água, aguardando que estivessem reunidas condições para a celebração da escritura pública do contrato prometido, que tais atos corresponderiam ao exercício do direito de propriedade por parte da embargante e que a posição jurídica da promitente-compradora preencheria todos os requisitos de uma verdadeira posse.
E desde já se diga que a sentença recorrida, não nos merece censura. Como é sabido, a posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º CC), integrada por um elemento material (corpus) e por um elemento de índole psicológica (animus), traduzindo-se, o primeiro, na submissão da coisa à vontade do sujeito com continuada possibilidade de actuação material sobre ela” e o segundo na “intenção de agir como titular do direito” real a que corresponde “(…) o exercício do poder de facto sobre a coisa (…)” – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição revista e actualizada, pág. 5 e Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 122º, página 68.
O direito português aderiu, a uma conceção subjetivista da posse, na medida em que não basta o elemento empírico (a atuação de facto do possuidor), sendo também exigível o elemento psicológico (a intenção de exercer esse direito). Como afirmou o Prof Orlando de Carvalho “(n)ão existe corpus sem animus nem animus sem corpus. Há uma relação biunívoca. Corpus é o exercício de poderes de facto que intende para uma vontade de domínio, de poder jurídico-real. Animus é a intenção jurídico-real, a vontade de agir como titular de um direito real, que se exprime (e hoc sensu emerge ou é inferível) em (de) certa actuação de facto. É essa inferência ou correspondência que se acentua no artigo 1251.º. De resto, o artigo 1253.º, contrapondo posse a detenção, não deixa lugar a dúvidas». – in Introdução à Posse, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 122 (n.º 3780), pág. 66.
Do que se expôs, se infere que a posse defensável pelo presente meio processual, terá que ser a posse real e efetiva e, em princípio, será uma posse em nome próprio, distanciando-se, assim, de posse em nome de outrem, de natureza precária. No presente caso trata-se de saber qual a natureza da posse decorrente de contrato-promessa de compra e venda de imóvel, ou seja, se a mesma se há-de configurar como mera detenção ou posse precária ou, ao invés, como posse em nome próprio.
A ora Recorrente, fundamenta a sua discordância, com o decidido, por considerar que os atos praticados não foram atos materiais de posse, traduzidos na clara intenção de agir como titular do direito de propriedade, mas sim de mero detentor/utilizador do bem penhorado, pois na data da promessa de venda (17.02.2002) o promitente vendedor tinha uma mera expetativa de aquisição da fração que lhe foi prometida vender.
Como se diz no acórdão deste TCAN de 29.10.2015, in processo 00249/14.9BEBRG. com o qual concordamos e transcrevemos: ” (…) Trata-se de questão que, apesar de muito debatida, tem sido objecto de soluções divergentes por parte, quer da doutrina, quer da jurisprudência: saber se o promitente-comprador que obteve a tradição da coisa prometida vender e que, entretanto, foi objecto de penhora, pode, com êxito, deduzir embargos de terceiro em reacção a tal penhora.
Para parte da doutrina, secundada jurisprudencialmente, o contrato--promessa, não é susceptível de conferir uma posse digna de ser defendida através do presente meio processual, na medida em que, por força dele, o promitente-comprador, daqueles dois elementos caracterizadores da posse acima enunciados, apenas adquire o material, ou “corpus”, e não também o psicológico ou “animus” - Cfr. Código Civil anotado dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, vol. III, 2ª ed. e H. Mesquita in Direitos Reais, 1967, página 80. Vide, ainda, entre outros, os Acórdãos do STJ de 93.03.31 e 96.01.23, in CJ do Supremo de 1993, tomo II, 44 e de 1996, tomo I, 70, e, ainda, os Acórdãos do STA tirados, entre outros, nos Recursos 16.571 e 18.857, respectivamente, de 94.10.12 e 98.02.11.
Porém, outra corrente doutrinal e jurisprudencial entende que o promitente-comprador para quem se opere a transmissão do imóvel, objecto do projectado negócio de compra e venda, antes da formalização desta, passa a praticar sobre ele os actos próprios do proprietário, com a intenção de assim os exercer, adquirindo, nessa medida, aqueles dois elementos referenciados e legitimando, por consequência, o recurso aos meios de tutela judicial da posse, nomeadamente dos embargos de terceiro – cfr., entre outros, Vaz Serra, in RLJ 109, 347 e ss. e 114, 20 e ss.
Posição intermédia é a sustentada por Calvão da Silva, na medida em que, partindo do princípio da transmissão de ambos os citados elementos em hipóteses de contrato promessa de compra e venda com tradição e, por consequência da possibilidade de defesa da posse por meio de embargos de terceiro, na medida em que o beneficiário daquela promessa goze de direito de retenção, considerando o estatuído nos artºs 758º, 759º/3 e 670º/a, todos do Código Civil, admite, no entanto, que tal qualidade de possuidor não decorra, automaticamente, do contrato-promessa, tudo dependendo, do elemento psicológico que casuisticamente acompanhe o corpus, que, casuisticamente também, haverá que indagar - cfr. Sinal e Contrato-Promessa, 112 e BMJ, 349.º, 86, nota 55.
Posição próxima desta, ainda que em termos algo diversos quanto ao ponto de partida, é, também, admitida por Pires de Lima e Antunes Varela, que consideram, ainda que em excepção à regra, que o promitente-comprador pode actuar sobre a coisa prometida vender, logo que para ele se dê a tradição, como “uti dominus”, casos em que reuniriam os referidos dois elementos caracterizadores da posse legitimadores do recurso à respectiva defesa pelo processo de embargos de terceiro.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, no seguimento, sobretudo, da doutrina de Antunes Varela, tem vindo a decidir no sentido de que “são concebíveis (…) situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse”, dando-se como exemplo as situações em que, “havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo, (a fim de v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade” – cf. Acórdão do STA, de 10/02/2010, recurso n.º 1117/09, e que, nestas situações excepcionais em que o promitente-comprador tem uma posse em nome próprio relativamente ao bem que lhe foi prometido vender e que, entretanto, foi penhorado, tal posse fundamentará a procedência dos embargos de terceiro que, com base nela, sejam deduzidos – neste mesmo sentido, cfr. Acórdão do STA, de 10/04/2002, recurso n.º 26295 e Acórdão do STA, de 27/10/2010, processo n.º 0453/10.
É nossa convicção que, por princípio, o contrato-promessa não confere ao promitente-comprador do imóvel o animus sibi habendi, configurando-o, nessa medida, como um mero possuidor precário ou simples detentor. Contudo, excepcionalmente, pode ocorrer que se dê inversão do título de posse (cfr. artigo 1265.º do Código Civil), nomeadamente porque o promitente-vendedor se demita, para com o promitente-comprador, de exercer os actos correspondentes ao direito real de propriedade, ao mesmo tempo que este assuma tal intenção e do que constituirá, sem dúvida, um sinal forte e, eventualmente, bastante, a circunstância do último passar a dispor do imóvel, com pagamento integral do preço de aquisição acordado para a transmissão da propriedade.
No entanto, temos por certo, igualmente, que a circunstância de tais “sinais factuais” se reunirem nas pessoas dos promitentes-compradores, se bem que possa constituir uma presunção natural de passarem a actuar como se donos fossem do imóvel em causa, ainda assim, não implica que, inelutavelmente, se tenha de concluir em tal sentido, podendo tal presunção mostrar-se fundadamente abalada por outros quaisquer condicionalismos de sinal contrário. (…)” Cfr. Acórdãos 00249/14 de 29.10.2015, 00468/04 de 26.04.2006 ambos do TCAN e 09492/16 de 10.05.20016 do TCA Sul.
Em síntese, a posse conferida pela traditio da coisa para o promitente-comprador será, em regra, meramente precária, sem excluir, todavia, que face à factualidade apurada no caso concreto, se possa concluir ter o promitente comprador exercido a posse sobre o imóvel de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade e, dessa forma, configurada uma verdadeira situação possessória.
No entanto, recorde-se que, estamos no âmbito de um processo de embargos de terceiro, pelo que a prova de que a Embargante tinha a posse e propriedade do imóvel, em data anterior ao registo da penhora, cabe-lhe a si, nos termos do disposto no art.º 237.º do CPPT e n.º 1 do art.º 74.º da LGT e 342.º do CC, como facto constitutivo do direito que se arroga.
A sentença recorrida defendeu a tese sustentada no acórdão do STA n.º 0453/10., de 27.10.2010 no qual se sumariou que:
I - O contrato-promessa, só por si, não é suscetível de transferir a posse ao promitente comprador.
II - Há situações, no entanto, em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche os requisitos de uma verdadeira posse.
III - Por exemplo, quando, havendo sido paga já a totalidade do preço da coisa, o promitente-comprador pratica sobre ela diversos atos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
IV - A posse correspondente ao exercício do direito de propriedade, reunidos os demais requisitos, fundamenta a procedência de embargos de terceiro à penhora realizada em execução fiscal.”
Da conjugação dos factos provados nas alíneas C) e D) resulta que a promitente-compradora celebrou um contrato promessa de compra e venda da fração em questão na qual pagou o preço total convencionado, (75 000,00 €) tendo o promitente vendedor lhe dado quitação.
A Recorrente alega que o contrato promessa, é um documento particular, logo sem força probatória plena não devendo ser dado como provado o pagamento do preço e quitação.
Quanto à sua força probatória dispõe o n.º 1 do artigo 376º do Código Civil que: “O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.”
Como bem refere a Recorrente, citando jurisprudência do STJ, a força probatória do documento particular circunscreve-se, assim, no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respetivos subscritores. Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Com efeito, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objeto da sua perceção direta. O âmbito da sua força probatória é, pois, bem mais restrito (José Lebre de Freitas, "A Falsidade no Direito Probatório", Coimbra, 248 e 249).
A força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do artigo 376º do Código Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exatidão das mesmas.
Com tudo isto queremos dizer que, sendo certo que foi a Embargante que apresentou o documento, o qual não foi impugnado, nem pela Embargada nem pela executada, nada impedia o tribunal de conhecer da veracidade do seu teor, auxiliada com a prova testemunhal produzida.
No que concerne ao argumento da Recorrente da falta das assinaturas reconhecidas, no referido contrato, na cláusula quarta os intervenientes acordaram em não submeter o contrato aos formalismos do reconhecimento presencial das respetivas assinaturas, e, bem assim, da existência de quaisquer licenças, mais renunciando à invocação da eventual nulidade.
Resulta ainda da factualidade provada que a Embargante passou a ocupar a fração penhorada, e aqui em causa, desde 2002, ininterruptamente, com a sua família, aí mantido o seu domicílio, tomando as suas refeições, pernoitando e recebendo amigos.
E que os recibos/factura relativos às contas da P., E. e Á. de (...) foram passados desde 2004 e 2005 em nome da aqui Embargante. E ainda que os recibos de pagamento do condomínio relativos à fração em causa foram passados em nome da Embargantes em 2008 e 2009.
Há que realçar, o facto que foi dado como provado e neste acórdão aditado, na alínea J), sendo revelador e incontornável, de uma posse condizente com o seu direito de propriedade.
Em 05.11.2010, por meio da apresentação n.º 3534, de 05.11.2010, foi inscrito no registo 931/19870917-R da Conservatória do Registo Predial de (...), que corresponde ao artigo 16.085-R de (...), a inscrição como sujeito ativo L., por decisão judicial que reconheceu a existência e da titularidade do direito de propriedade.
Pese embora a inscrição na qualidade de proprietária seja efetuada em data posterior à penhora (31.03.2010) decorridos 4 meses indicia que a Embargante aqui Recorrida, se arrogava à muito tempo, ao direito de propriedade do imóvel direito que lhe foi reconhecido por sentença judicial e que foi levada ao registo predial.
Nesta conformidade é legitimo que a Embargante à data da penhora realizada na execução fiscal, tenha posse real e efetiva sobre a fração penhorada de molde a justificar a procedência dos Embargos.
4.2. E assim formulamos as seguintes conclusões/Sumário:
I. De acordo com o estatuído no artigo 237.º, n.º 1, do CPPT, “quando o arresto, a penhora ou qualquer outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, este pode fazê-lo por meio de embargos de terceiro”.
II. Desta norma decorre, portanto, serem pressupostos da procedência dos embargos de terceiro: (i) o embargante ter a qualidade de terceiro; (ii) haver um ato de apreensão ou entrega de bens (v.g. arresto, penhora, arrolamento); (iii) aquele ato ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência.
III "Posse" é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – art.º 1251.º do Código Civil.
IV. O contrato-promessa, só por si, não é suscetível de transferir a posse ao promitente-comprador.
V. Constituindo, por princípio, a tradição de imóvel, decorrente de contrato promessa de compra e venda, mera detenção precária, ela pode, no entanto, consubstanciar uma verdadeira posse se envolver a transmissão, não só do “corpus”, mas do “animus”, o que caberá ser, casuisticamente, averiguado.
VI. Nas situações excepcionais em que o promitente-comprador tem uma posse em nome próprio relativamente ao bem que lhe foi prometido vender e que, entretanto, foi penhorado em processo de execução fiscal, tal posse fundamentará a procedência dos embargos de terceiro que, com base nela, sejam deduzidos.

5. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Recorrente, mantendo-se a decisão judicial recorrida, na ordem jurídica, com a presente fundamentação.

Custas pela Recorrente, nos termos do art.º 527.º do CPC.

Porto, 2 de julho de 2020


Paula Maria Dias de Moura Teixeira
Maria da Conceição Soares
Carlos Alexandre Morais de Castro Fernandes