Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00310/14.0BEAVR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:06/09/2021
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:MAIS-VALIAS, ALIENAÇÃO DE IMÓVEL INTEGRANTE DA MASSA INSOLVENTE, ERRO NA FORMA DO PROCESSO:
ANULAÇÃO TOTAL VERSUS ANULAÇÃO PARCIAL DA LIQUIDAÇÃO, IRS
Sumário:I – O erro na forma do processo, nulidade decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, afere-se pelo pedido e não pela causa de pedir, conquanto esta possa ser utilizada como elemento de interpretação daquele, quando a esse respeito existam dúvidas.

II - A circunstância de uma causa de pedir gizada não constituir, porventura, fundamento válido de impugnação judicial, não constitui motivo para dar por verificada uma nulidade processual, por erro na forma de processo, mas, ao invés, motivo para a improcedência do pedido com base nessa causa de pedir.

III - O acto tributário de liquidação é por natureza um acto divisível e, consequentemente, é susceptível de anulação parcial, no respectivo processo de impugnação.

IV - Não é, todavia, possível proceder-se à anulação parcial do acto se ela implicar uma nova liquidação.*
* Sumário elaborado pela relatora
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:A.
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

A Representação da Fazenda Pública interpôs recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, em 31/08/2015, que julgou procedente a Impugnação Judicial deduzida por A., NIF (…), com os demais sinais nos autos, tendo anulado a respectiva liquidação oficiosa de IRS n.º 2013 5005547603, do ano de 2012, no montante de €13.455,43, além do mais, relativa à tributação de mais-valias resultantes da venda do prédio urbano n.º 1482, da freguesia de (...), (...).

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as conclusões que se reproduzem de seguida:

I – O objecto do recurso
I. Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença proferida nos autos em epígrafe, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A. contra a liquidação de IRS, referente ao ano de 2012, pretendendo a recorrente Fazenda Pública a sua revogação e substituição por decisão que considere tal impugnação improcedente.
II. As questões decidendas a submeter ao julgamento do Tribunal ad quem consistem em saber se:
a) a douta sentença padece de erro de julgamento, por ter ordenado a anulação total da liquidação;
b) a douta sentença padece de erro de julgamento, por ter anulado a liquidação com fundamento na inexigibilidade da dívida ao insolvente.
II – A anulação total da liquidação
III. Foi ordenada a anulação da liquidação de IRS em causa nos autos, no montante de € 13.455,43.
IV. Porém, o impugnante não obteve apenas rendimentos de mais-valias, tendo igualmente auferido rendimentos de trabalho dependente, relativamente aos quais não foi imputada qualquer ilegalidade.
V. Por conseguinte, não poderia o douto Tribunal considerar a impugnação totalmente procedente e ordenar a anulação total da liquidação, por força do consagrado princípio da divisibilidade do acto tributário.
VI. Assim, incorreu em erro de julgamento, traduzido numa errada não aplicação do princípio do dispositivo, consagrado no n.º 1 do artigo 3.º e no n.º 1 do artigo 5.º, ambos do Código de Processo Civil.
III – O erro de julgamento – a exigibilidade do pagamento
VII. De acordo com o Tribunal a quo, a “questão fulcral” em dissídio consistia em “determinar a quem deve ser exigido o pagamento de mais-valias relativas à venda, pelo Administrador de Insolvência, de um imóvel, integrado na massa insolvente por força da declaração de insolvência, do proprietário/insolvente”.
VIII. Neste seguimento, considerou que o imposto devido pela mais-valia gerada pela alienação de um prédio integrante da massa insolvente é “uma dívida da massa insolvente”, centrando a sua abordagem na questão da exigibilidade do pagamento de tais mais-valias.
IX. Acompanhando o entendimento vertido no acórdão do TR do Porto de 02-07-2015 (processo n.º 8729/12.4TBVNG-G.P1), o douto Tribunal desatendeu os demais pedidos formulados pelo impugnante, anulando apenas a liquidação com fundamento na responsabilidade pelo pagamento da dívida.
X. Sendo o insolvente o sujeito passivo do imposto – a quem competia apresentar a declaração de rendimentos com inclusão dos rendimentos de mais-valias – temos aqui uma nítida separação entre quem preenche os pressupostos do facto tributário e tem o dever de cumprir uma obrigação declarativa acessória (a entrega da declaração, nos termos do n.º 2 do artigo 31.º da LGT), i.e., o sujeito passivo stricto sensu e quem deve satisfazer perante o credor tributário a obrigação principal (o pagamento do imposto, nos termos do n.º 1 do artigo 31.º da LGT), i.e., o devedor do imposto.
XI. Logo, se inexiste qualquer ilegalidade que afecte a validade ou existência do acto tributário, mas apenas a sua eventual exigibilidade àquele sujeito passivo, entramos já no domínio da eficácia do acto, pelo que
XII. O meio processual adequado para dirimir esta questão seria a oposição à execução e não a impugnação judicial, por força disposto nos artigos 99.º a contrario e 204.º n.º 1 alínea b), ambos do CPPT.
XIII. Por conseguinte, verificando-se um erro na forma de processo e não sendo possível in casu a convolação no meio processual adequado, a declaração de tal erro importaria a anulação de todos os actos que não pudessem ser aproveitados, com a consequente absolvição da instância da Fazenda Pública.
XIV. Nestes termos, incorreu o douto Tribunal em erro de julgamento de direito, por:
a) ter ordenado a anulação total da liquidação, traduzindo-se numa errada não aplicação do princípio do dispositivo, consagrado no n.º 1 do artigo 3.º e no n.º 1 do artigo 5.º, ambos do CPC;
b) ter ordenado a anulação da liquidação com fundamento na sua inexigibilidade, violando o disposto nos artigos 99.º a contrario e 204.º n.º 1 alínea b), ambos do CPPT;
c) não ter declarado a ocorrência de erro na forma de processo, sem possibilidade de convolação, com a necessária absolvição da instância por parte da Fazenda Pública, violando o disposto artigos 193.º, 278.º alínea e) e 576.º n.º 2, todos do CPC.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se a decisão ora posta em crise, assim se fazendo JUSTIÇA.”

O Recorrido contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso deverá improceder por falta de fundamento, porquanto quando se verifique que haja erro sob a forma do processo adotada quanto a alguns fundamentos, designadamente quanto à ilegitimidade passiva para a liquidação, mas não quanto a outros, a regra da convolação, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 98.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e n.º 3 do artigo 97.º da Lei Geral Tributária (LGT), para a forma do processo adequada será de afastar.
2. Perante um erro parcial sobre a forma do processo, por aplicação do disposto nos artigos 193.º e 130.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), a solução é a de considerar sem efeito o pedido para o qual o processo não é adequado e cujos atos não podem ser aproveitados, prosseguindo o processo quanto ao(s) restante(s) pedido(s), o que se verificou no caso em apreço.
3. Caso assim não se entenda, a petição de impugnação ainda está em tempo de ser convolada, de harmonia com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 203.º do CPPT, porque não foi o aqui recorrido citado pessoalmente na execução.
Termos em que,
Com o Douto suprimento que se invoca, deverá improceder o douto recurso interposto pela Recorrente.”
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
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Com dispensa dos vistos legais, tendo-se obtido a concordância dos Meritíssimos Juízes-adjuntos, nos termos do artigo 657.º, n.º 4 do CPC; submete-se o processo à Conferência para julgamento.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento, por ter anulado a liquidação com fundamento na inexigibilidade da dívida ao insolvente, sem que tenha declarado a ocorrência de erro na forma de processo, sem possibilidade de convolação, e por ter ordenado a anulação total da liquidação.

III. Fundamentação

1. Matéria de facto

Na sentença prolatada em primeira instância foi proferida decisão da matéria de facto com o seguinte teor:

“Com relevância para a decisão da causa, consideram-se provados, os seguintes factos:
1. Em 04/01/2011, foi proferida sentença no âmbito do processo n.º 2161/10.1T2AVR, que correu termos no Juízo de Comércio de Aveiro, na qual se declarou a insolvência de A. e E., e ainda se determinou a nomeação do administrador de insolvência Sr. Dr. P., bem como a apreensão para imediata entrega ao administrador de insolvência de todos os bens dos insolventes ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos [cfr. doc fls. 11/12verso do p.f., cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido];
2. Os insolventes eram (anteriormente à declaração de insolvência) proprietários do prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar com área de 175m2; dependência com área de 43m2; alpendre e currais com 72m2 e logradouros com 230m2, sito em (…), concelho de (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…), sob o número 2042/19950504 e inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 1482, com o valor patrimonial de €27.378,87 [cfr. auto de apreensão de bem imóveis, fls. 16/verso do p.f.];
3. Em 15/02/2012, na Conservatória do Registo Predial de (...), foi lavrado título de compra e venda, no âmbito do processo casa pronta n.º 7340/2012, cfr. fls. 17/19verso do p.f., nos seguintes termos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)

4. Em 20/05/2013, a AT, remeteu notificação dirigida ao Impugnante, com o seguinte teor:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

[cfr. fls 20 do p.f., cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido];
5. O Impugnante exerceu direito de audição prévia [facto não controvertido];
6. Em 03/12/2013, a AT notificou o Impugnante mediante ofício 7330/, cfr. fls. 21 do p.f.,
com o seguinte teor:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

7. Em 12/12/2013, foi emitida a liquidação n.º 2013 5005547603, no montante de €13.455,43 [cfr. fls. 22 do p.f.];
8. Em 20/03/2014, foi intentada a presente Impugnação [cfr. fls. 3 do p.f.].
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III. 2 FACTOS NÃO PROVADOS
Da que era relevante para a discussão da causa não há matéria de facto que importe registar como não provada.
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III. 3 MOTIVAÇÃO
O Tribunal julgou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados, e bem assim na parte dos factos alegados pelas partes que não tendo sido impugnados – art. 74º da LGT - também são corroborados pelos documentos juntos aos autos – art. 76º nº 1 da LGT e arts. 362º e ss. do Código Civil (CC) – identificados em cada um dos factos provados.
* *

Pela sua pertinência para o conhecimento do presente recurso e uma vez que consta do processo administrativo a correspondente prova documental, adita-se ao probatório a seguinte matéria de facto, nos termos do artigo 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil:
9 - A declaração oficiosa, modelo 3, que deu origem à liquidação impugnada e referida em 7, respeita ao sujeito passivo A, aqui Recorrido, ao seu agregado familiar (cônjuge e dependentes) e tinha anexos o Anexo A, o Anexo G e o Anexo H, ou seja, integra rendimentos do trabalho dependente do sujeito passivo A, no montante de €5.369,50, rendimentos de mais-valias e outros incrementos patrimoniais (do titular C?) e deduções com despesas de saúde do titular A no Anexo H – cfr. documento de correcção, elaborado pela AT, de fls. 18 a 22 do processo administrativo apenso aos autos.

2. O Direito

Assaca a Recorrente erro de julgamento à sentença recorrida, por não ter declarado a ocorrência de erro na forma de processo, sem possibilidade de convolação, com a necessária absolvição da instância da Fazenda Pública, violando o disposto nos artigos 193.º, 278.º, alínea e) e 576.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).

O erro na forma do processo, nulidade decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, afere-se pelo pedido e não pela causa de pedir, conquanto esta possa ser utilizada como elemento de interpretação daquele, quando a esse respeito existam dúvidas.

Observando o pedido nos presentes autos, verificamos que o Recorrido deduziu impugnação judicial contra acto de liquidação de IRS, do ano de 2012, no montante de €13.455,43, pedindo a anulação do acto de liquidação do imposto.

De facto, a impugnação judicial assenta na ilegalidade do acto de liquidação de IRS concretamente praticado, quer por ter sido liquidado imposto a quem a ele não está sujeito, quer por não ser devido na totalidade.

A questão de saber se o imposto “existe ou não”, em concreto, para o ora Recorrido – ou seja, se lhe foi ou não legalmente liquidado – constitui fundamento de impugnação judicial.

Assim, no presente processo é preciso atentar no pedido que foi formulado, na concreta pretensão de tutela jurisdicional que o contribuinte visa obter, que é “a anulação do acto de liquidação”. Poderá alguma causa de pedir não ser apta a alcançar tal pretensão. Mas, saber se as causas de pedir aduzidas podem ou não suportar esse pedido é matéria que se situa no âmbito da procedência. Por isso, com o fundamento de que as causas de pedir invocadas não são adequadas ao pedido formulado poderá decidir-se no sentido da improcedência da acção (eventualmente, até do indeferimento liminar da petição inicial), mas não no sentido da verificação do erro na forma do processo.” - cfr. Acórdão do STA, de 28/05/2014, proferido no âmbito do recurso n.º 01086/13.

Aquilo que é decisivo para individualizar a pretensão é o fundamento de facto, real, em que o impugnante alicerça a sua pretensão, mas fundamento de facto no sentido de facto jurídico, porque subsumível a uma norma material associada à pretensão do impugnante.

Primeiramente, o aqui Recorrido, enquanto insolvente, pretende que o tribunal o declare parte ilegítima para a liquidação e, em consequência, o absolva da instância. Desde logo, não podemos realizar um enquadramento literal deste pedido, na medida em que o impugnante é autor nos presentes autos, não fazendo qualquer sentido solicitar o seu próprio afastamento do processo de impugnação judicial, pois que foi ele, revelando interesse em agir, que deduziu a acção. Nestes termos, devemos entender que o Recorrido quis que o tribunal não o considerasse sujeito passivo de IRS com a expressão “é parte ilegítima para a liquidação”, aludindo a um património separado na massa insolvente, o que entronca, na perfeição, na discussão da ilegalidade do acto de liquidação.

Nesta sequência, o impugnante, salvaguardando não ser sujeito passivo de imposto, solicitou, quando assim não se entenda, a anulação do acto de liquidação, em virtude de não existirem mais-valias a apurar, isto é, apontou para a inexistência do facto tributário que subjaz à liquidação, colocando, mais uma vez, a análise ao nível da legalidade intrínseca do acto.

Por último, ainda se assim não se entender, solicitou a correcção do valor apurado das mais-valias, em função da diminuição do passivo. Isto significa que, quando muito, o montante das mais-valias não seria devido na totalidade, recolocando a discussão na legalidade do acto, no que tange à sua quantificação.

Na apreciação dos termos da impugnação judicial, observamos, a dado passo, alguma equiparação ou equivalência entre “a quem pode ser exigido o imposto” e “a quem pode ser exigida a dívida”, chamando à colação, indiferentemente, normas de incidência objectiva e subjectiva e normas contendentes com a responsabilidade pelas dívidas da massa insolvente. De facto, na primeira situação, estamos perante causa de pedir consentânea com a legalidade concreta da liquidação e com o pedido da sua anulação, enquanto na segunda situação poderá somente estar colocada questão relativa à eficácia do acto e à exigibilidade da dívida, cujo meio processual de eleição é a oposição judicial a processo de execução fiscal.

Conjugando as regras expostas supra com o pedido de anulação do acto de liquidação formulado pelo Recorrido, constata-se que, com os fundamentos que evidenciam a inexigibilidade da dívida ao impugnante/insolvente, poderá a presente impugnação ser julgada improcedente, uma vez que essa causa de pedir será mais eficaz num processo de oposição judicial.

Nesta conformidade, não vislumbramos a existência de erro na forma do processo que devesse ter sido declarado pelo tribunal recorrido. Ora, se não há erro na forma do processo, não existe fundamento para convolação, na medida em que a ponderação/efectivação desta pressupõe a existência do erro – cfr. artigo 98.º, n.º 4 do CPPT.

Pelo exposto, as conclusões VII a XIII das alegações do recurso improcedem, tanto mais que as ilações aí retiradas assentam no julgamento recorrido e não no pedido subjacente aos autos. Reiteramos que o erro na forma do processo se afere pelo pedido e não pela forma como o tribunal julgou ou como interpretou/identificou as questões a decidir. É, portanto, notório inexistir erro na forma do processo.

Importa, então, avançar para o conhecimento do invocado erro de julgamento, por a sentença recorrida, alegadamente, ter ordenado a anulação da liquidação com fundamento na sua inexigibilidade – cfr. conclusão XIV, alínea b), das alegações do recurso.

A sentença recorrida acolhe jurisprudência dos tribunais superiores, que não se mostra questionada no presente recurso, concluindo:
“(…) Ora, quando, no decurso da liquidação dos bens que integram a massa insolvente de uma pessoa singular, o administrador da insolvência procede à alienação de bens por valor superior àquele pelo qual tinham sido adquiridos pelo insolvente, o imposto devido pela mais-valia gerada por essa alienação [art. 10/1 a) do CIRS] é uma dívida da massa insolvente [art. 51/1c) do CIRE].

Propugnamos, assim, o referido no Acórdão supracitado, cuja interpretação não altera a qualidade de sujeito passivo do imposto, prevista no artigo 10.º, n.º 1, a) do CIRS, mas valoriza, a responsabilidade da massa pela dívida em causa, que decorre directamente do artigo. 51.º, n.º 1, al. c) do CIRE. (…)”

De facto, a sentença recorrida parece colocar a tónica na exigibilidade da dívida: “(…) Assim, em consonância com o supra exposto e revertendo estes considerandos para o caso sub juditio, verifica-se que está a ser exigido ao Insolvente A., ora Impugnante, o montante de €13.455,43, como correcção à declaração de IRS, relativa a 2012, e respeitante à tributação de mais-valias resultantes da venda do prédio urbano nº 1482, da freguesia de (...), (...). Sendo certo que, a referida venda foi realizada pelo Administrador de Insolvência, após a declaração de falência de A. e E. (cfr. pontos 1. e 3. do probatório), ou seja, respeitam a dívidas reportadas a períodos de imposto em que o imóvel era já parte integrante da massa insolvente e relativamente ao qual os poderes de administração e de disposição competiam ao liquidatário judicial (cfr. ponto 1. e 3. do probatório). (…)”

Resulta, portanto, claro que o Recorrido é sujeito passivo de imposto (IRS), não perdendo de vista que na impugnação judicial está apenas em causa a legalidade da liquidação e não a exigibilidade da dívida liquidada. Questão diversa, mas que não cumpriria aqui tratar, é a de saber que bens respondem pela dívida de IRS gerada, questão esta a apreciar, se for o caso, no âmbito do processo executivo, e que não caberia aqui antecipar, pois que a anulação não pode ter por fundamento a inexigibilidade da dívida exequenda, antes a ilegalidade destacfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 06/05/2020, proferido no âmbito do processo n.º 03357/16.8BELRS.

Nem sempre é totalmente claro na petição de impugnação, mas cuidou-se distinguir patrimónios, acentuando que o bem foi alienado quando já era parte integrante da massa insolvente. Tendo sido a sentença recorrida, por aderir ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02/07/2015, proferido no âmbito do processo n.º 8729/12.4TBVNG-G.P1, que elevou pertinência a “quem deve pagar o imposto”, pois aí se decidiu que quem deve pagar o imposto daí decorrente (mais valias devidas pela alienação do imóvel) não é o insolvente, com o seu património remanescente, mas sim a massa de bens separada para o efeito, isto é, a massa insolvente.

Nos processos anulatórios, como a impugnação judicial, cada um dos vícios imputados ao acto impugnado constitui uma causa de pedir, como decorre do estatuído no artigo 581.º, n.º 4, in fine do Código do Processo Civil ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT e tem de haver identidade entre o pedido e o julgado e entre a causa de pedir e causa de julgar, o que quer dizer que se for pedida a anulação de determinado acto de liquidação com base em determinado vício não pode o tribunal anulá-lo com fundamento em vício diferente não invocado pelo impugnante (cfr. Cons. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, 6ª edição, 2011, II volume, pág. 319) – cfr. Acórdão do TCA Norte, de 14/09/2017, proferido no âmbito do processo n.º 454/15.0BEAVR.

Resultou do julgamento que a realização de mais-valias com a alienação de bens imóveis integrantes da massa insolvente entra na determinação da matéria tributável do sujeito passivo insolvente e que a massa insolvente é apenas parte separada do património, in casu, da pessoa singular aqui Recorrida.

Sem entrar na questão de “quem é que responde pela dívida de imposto”, importaria analisar se existem reflexos na liquidação do imposto pela existência de um património separado na massa insolvente, uma vez que o impugnante evidencia essa separação patrimonial (mesmo não tornando a massa autónoma um novo ente, distinto daquele a quem o património autónomo continua a pertencer).

Com efeito, a sentença recorrida deslocou um pouco a causa de pedir, mas não poderemos deixar de realizar essa análise, principalmente porque tal questão entronca com o último fundamento do recurso – cfr. conclusões III a VI e XIV, alínea a) – o invocado erro de julgamento, pela anulação total da liquidação, determinada na decisão da primeira instância.

Vem, agora, a Recorrente alertar que não poderia ter sido ordenada a anulação da liquidação de IRS em causa nos autos, no montante de €13.455,43, na totalidade, dado que o impugnante não obteve apenas rendimentos de mais-valias, tendo igualmente auferido rendimentos de trabalho dependente, relativamente aos quais não foi imputada qualquer ilegalidade. Entendendo, portanto, que o acto de liquidação seria divisível.

Em face desta alegação, considerámos pertinente aditar ao probatório alguns aspectos da declaração oficiosa realizada pela AT e que deu origem à liquidação impugnada. De facto, do documento de correcção elaborada pela AT, podemos retirar que respeita ao sujeito passivo A, aqui Recorrido, ao seu agregado familiar (cônjuge e dependentes) e que tinha anexos o Anexo A, o Anexo G e o Anexo H, ou seja, integra rendimentos do trabalho dependente do sujeito passivo A, no montante de €5.369,50, rendimentos de mais-valias e outros incrementos patrimoniais (do titular C?) e deduções com despesas de saúde do titular A no Anexo H.

Verificamos, então, que está em causa liquidação de IRS, em que são sujeitos passivos de imposto o impugnante (sujeito passivo A) e a mulher (sujeito passivo B).

Nos termos do artigo 13.º, n.º 1, do CIRS (na redacção aplicável – cfr. versão que vigorou até Dezembro de 2012), são sujeitos passivos do IRS as pessoas singulares residentes e as não residentes que no território português obtenham rendimentos. Todavia, existindo agregado familiar, são sujeitos passivos as pessoas a quem incumbe a direcção do mesmo, sendo neste caso, o imposto devido pelo conjunto dos rendimentos desse agregado [artigo 13.º, n.º 2 do CIRS], consagrando-se, assim, a tributação conjunta ou cumulada dos rendimentos auferidos pelos componentes do agregado familiar.

Por conseguinte, a existência de agregado familiar determina que a obrigação do imposto seja calculada em função do conjunto dos rendimentos das pessoas que o constituem [podendo não existir qualquer relação entre a titularidade dos rendimentos e a obrigação do imposto], sendo considerados como sujeitos passivos aquelas a quem incumbe a sua direcção [e nos termos do artigo 1671.º, n.º 2, do Código Civil, a direcção da família pertence a ambos os cônjuges].

Por outro lado, o rendimento colectável em IRS é o que resulta do englobamento dos rendimentos das várias categorias auferidos em cada ano, depois de efectuadas as deduções e os abatimentos previstos na lei (artigo 22.º do CIRS), e que vai ser objecto de liquidação (artigo 76.º do CIRS).

Como resulta dos documentos ínsitos nos autos e do aditamento à decisão da matéria de facto, a liquidação impugnada não incluiu apenas o valor das mais-valias resultante da correcção em apreço. Com efeito, a par desta quantia reflectida no Anexo G foram ainda incluídas no rendimento tributável dos impugnantes rendimentos de trabalho dependente do impugnante marido (Anexo A).

Na impugnação judicial, deduzida contra a liquidação impugnada, somente se encontra em discussão a mais-valia realizada com a alienação de um imóvel integrante da massa insolvente.

É por isso que a AT defende que o tribunal recorrido devia ter anulado a liquidação impugnada apenas na parte que se mostrava influenciada pela correcção respeitante às mais-valias, mantendo-a na parte não impugnada.

Na verdade, a anulação parcial do acto tributário tem sido admitida, de forma consensual, pela jurisprudência e pela doutrina fiscal - cfr., entre outros, acórdãos do STA de 09/07/1997, no processo n.º 5874; em 22/09/1999, no processo n.º 24101; em 16/05/2001, no processo n.º 25532; em 26/03/2003, no processo n.º 1973/02; em 27/09/2005, no processo n.º 287/05; em 12/01/2011, no processo n.º 583/10; e em 12/01/2012, no processo n.º 965/10, Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, Vol. II, 6ª edição p. 342, José Casalta Nabais, ob. cit., p.415; J.L. Saldanha Sanches, O contencioso tributário como contencioso de plena jurisdição, Fiscalidade, nº.7/8, Julho/Outubro de 2001, p. 63 e ss.

Tal posição tem assentado, essencialmente, em dois argumentos: (i) no carácter divisível, por natureza, do acto tributário, por definir uma quantia e (ii) na natureza de plena jurisdição da sentença de anulação parcial do acto tributário.

Aliás, para o carácter divisível do acto tributário aponta também a nossa legislação, designadamente os artigos 79.º, n.º 1 e 100.º da LGT e 112.º, n.º 3 do CPPT.

Como se deixou referido no Acórdão do STA, de 12/01/2011, Processo n.º 0583/10 e que aqui nos limitamos a reproduzir parcialmente: “(…) a admissibilidade da anulação parcial do acto tributário de liquidação do imposto vem sendo aceite consensualmente pela jurisprudência do STA e pela doutrina, quer apelando à divisibilidade, por natureza, do acto de liquidação (…), quer apelando à natureza de sentença de plena jurisdição da sentença de anulação parcial do acto, invocando-se, quanto a este aspecto, quer razões que se prendem com os princípios processuais, como o princípio da economia processual ou o princípio da oficialidade, para que da sentença ou acórdão do tribunal saia logo uma definição da situação que não careça de qualquer nova pronúncia da administração tributária (cfr. Saldanha Sanches, anotação ao citado ac. do STA, de 16/05/2001, rec. n.º 25532, in Fiscalidade, 7/8, Julho-Outubro de 2001, págs. 63 e ss.) quer, ainda, fazendo apelo a razões ligadas ao próprio âmbito do contencioso de mera anulação, num sistema de administração executiva como o nosso, no qual os limites à plena jurisdição de um tal contencioso só serão de aceitar em relação àqueles domínios ou aspectos da acção administrativa em que a plena jurisdição implique para o juiz tributário, enquanto juiz administrativo, a prática de actos que afrontem o núcleo essencial da função administrativa (cfr. Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2ª ed., pag. 397). Assim, se o juiz reconhecer que o acto tributário está inquinado de ilegalidade que só em parte o invalida, deve anulá-lo só nessa parte, deixando-o subsistente no segmento em que nenhuma ilegalidade o fira.”

Tem sido também entendimento jurisprudencial pacífico que o acto só pode ser parcialmente anulado quando o fundamento da anulação apenas contender com uma parte do acto tributário e não quando a ilegalidade afectar o acto no seu todo. Por conseguinte, o tribunal tem poder não só para anular a parte ilegal do acto tributário, mas também para fixar a parte não ilegal do mesmo, desde que tal fixação não colida com o núcleo essencial da função administrativa, concedendo, assim, uma tutela judicial efectiva aos interesses legítimos dos contribuintes e, ao resolver tudo aquilo que é legítimo ao tribunal resolver, assegurar um contencioso de plena jurisdição.

Conclui-se, assim, que existem casos em que a anulação parcial da liquidação não é possível, designadamente nas situações em que, como é o caso dos autos, a anulação parcial, interferindo com a incidência objectiva e até subjectiva dos próprios rendimentos e com as taxas aplicáveis (quer por efeito da alteração de escalões, quer da consequente alteração dos montantes para aplicação do coeficiente conjugal), implique, necessariamente, uma nova liquidação – cfr. Acórdão do STA, de 27/11/2013, proferido no âmbito do processo n.º 079/13 e Acórdão do TCA Norte, de 28/04/2016, processo n.º 4858/04 – Viseu.
In casu, não podemos afirmar “que a anulação parcial da liquidação apenas produzirá um efeito constitutivo traduzido na eliminação de determinada matéria colectável e implicando apenas uma pronúncia administrativa meramente declarativa destinada a certificar o montante em que ficou reduzida a liquidação por força da anulação”. Com efeito, a existir ilegalidade da liquidação na parte respeitante às mais-valias, afectará, necessariamente, o apuramento global do rendimento e, consequentemente, da tributação do agregado familiar no ano de 2012.
Façamos, então, a análise que nos propusemos quanto aos reflexos na liquidação do imposto da existência de um património separado do Recorrido - apreendido na massa insolvente.

Na sentença recorrida, acompanhando o acórdão da Relação do Porto citado, aborda-se, também, o valor do imposto que será devido pelas mais-valias (cfr. artigo 34.º da petição inicial – erro na quantificação), mencionando que o valor apurado diz respeito a todos os rendimentos e acréscimos patrimoniais do insolvente. Fica claro que o IRS que o insolvente tenha de pagar com base nos rendimentos que auferiu pelo seu trabalho não tem de ser pago pela massa insolvente. Ou, de outra perspectiva, aquilo que a massa insolvente tem de pagar é apenas aquilo que, no valor total da liquidação de €13.455,43, diga respeito ao imposto que seja devido pelas mais-valias geradas com a alienação do imóvel. E como esse valor não está apurado, tem de ser determinado em liquidação posterior (atenta a situação concreta de indivisibilidade que explicámos supra).

Efectivamente, não residem dúvidas que o Recorrido é o sujeito passivo do imposto, mas, como afirma o digníssimo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, o conceito de sujeito passivo, na sua plenitude, deve integrar a obrigação de pagamento do tributo. Sabendo-se, de ante mão, que a alienação do imóvel foi realizada quando o bem já estava apreendido na massa insolvente, que existe uma parte do património separada por via da insolvência e outra parte do património, eventualmente remanescente, que pagará o imposto devido pelos rendimentos do trabalho dependente auferidos pelo Recorrido, não vislumbramos como possa a liquidação, qua tale, permanecer na ordem jurídica, dada a impossibilidade de ser paga (num mesmo apuramento global) por patrimónios “distintos” do mesmo sujeito passivo.

Como vimos, o imposto que seja devido pelas mais-valias geradas com a alienação do imóvel terá que ser apurado em liquidação posterior, numa nova liquidação, tanto basta para que a presente liquidação impugnada não possa manter-se. O problema não é só extrínseco ao acto de liquidação, nem contende apenas com a sua eficácia, pois, se assim fosse, a liquidação oficiosa permaneceria como foi determinada, sem necessidade de operar uma liquidação posterior. O que realça é que a forma como foi efectuada a liquidação gera uma iliquidez, em concreto, ou seja, é intrínseco à liquidação a impossibilidade do seu pagamento “fraccionado”/separado, pois desconhece-se que parte do valor global de €13.455,43 deve constituir obrigação de pagamento pelo património que integra a massa insolvente (mais-valias) e que parte quantificada é obrigação do património remanescente (trabalho dependente). Por outras palavras, a situação conhecida do património do sujeito passivo insolvente, da sua capacidade contributiva, afecta intrinsecamente a legalidade da liquidação - tal como foi apurado (quantificado) o respectivo valor devido de imposto.

Nesta conformidade, urge negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida, sendo que a liquidação impugnada deve ser eliminada da ordem jurídica com a presente fundamentação.

Conclusões/Sumário

I – O erro na forma do processo, nulidade decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, afere-se pelo pedido e não pela causa de pedir, conquanto esta possa ser utilizada como elemento de interpretação daquele, quando a esse respeito existam dúvidas.

II - A circunstância de uma causa de pedir gizada não constituir, porventura, fundamento válido de impugnação judicial, não constitui motivo para dar por verificada uma nulidade processual, por erro na forma de processo, mas, ao invés, motivo para a improcedência do pedido com base nessa causa de pedir.

III - O acto tributário de liquidação é por natureza um acto divisível e, consequentemente, é susceptível de anulação parcial, no respectivo processo de impugnação.

IV - Não é, todavia, possível proceder-se à anulação parcial do acto se ela implicar uma nova liquidação.

IV Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida, com a presente fundamentação.
Custas a cargo da Recorrente, nos termos da tabela I-B – cfr. artigos 6.º, n.º 2, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais.
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Porto, 09 de Junho de 2021


Ana Patrocínio
Cristina Travassos Bento
Celeste Oliveira