Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00050/09.1BECBR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:01/11/2013
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Catarina Almeida e Sousa
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
REVERSÃO
NULIDADES DA SENTENÇA
ERRO DE JULGAMENTO
APRECIAÇÃO PRIORITÁRIA
FUNDAMENTAÇÃO A POSTERIORI
Sumário:I. Muito embora, em regra, o conhecimento das nulidades da sentença preceda a apreciação dos restantes vícios, casos há em que um juízo de procedência ou improcedência do recurso por erro de julgamento pode deixar prejudicado, por inútil, a apreciação de tais nulidades, isto porque “é ilógico exigir essa apreciação, quando qualquer que seja o seu resultado, o Tribunal superior tem de revogar ou confirmar (ou anular) a decisão recorrida”.
II. Não é permitido à Administração fundamentar a posteriori um acto administrativo, alterando a fundamentação expressa no mesmo, tal como, também, o Tribunal não pode, substituir-se à Administração, formulando uma nova fundamentação do acto impugnado, na medida em que tal conduta configura a prática de administração activa, a qual, obviamente, lhe está subtraída.
III. Assim, estando em causa um despacho de reversão com fundamento na al. b) do nº 1 do 24º da LGT, não pode o Tribunal substituir-se à Administração Tributária, sem que nenhuma das partes suscite tal questão, e considerar que o acto se deve fundar na al. a) do mesmo normativo.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:A...
Decisão:Concedido provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

A fazenda Pública (Recorrente), não se conformando com a sentença de 21 de Dezembro de 2011 proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que julgou procedente a oposição deduzida por A… à execução fiscal n.º 0728200601001728 e apensos, instaurada inicialmente contra a sociedade G… Hardware e Software, Lda, para cobrança coerciva de dívidas de IVA do ano de 2001, no valor de € 1.687.722,15 (e acrescidos), dela veio interpor o presente recurso.

A culminar as suas alegações de recurso, a Recorrente formulou as seguintes conclusões:

1. A Fazenda Pública invocou na contestação, nos artigos 7.° e 8.° o facto de o oponente reconhecer que assinava documentos que vinculavam a empresa e nessa medida devia ter sido considerado gerente de facto, não tendo a douta sentença se pronunciado sobre este facto alegado.

2. A sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao ter considerado que o responsável subsidiário cessou as suas funções de gerência em 23/08/2002, por constar da certidão do registo comercial, sem questionar a razão do próprio oponente ter definido a cessação de funções em 06 de Março de 2003 e tão-pouco, o oponente, pôs em causa os pressupostos definidos no disposto no art.° 24.° n°1 alínea b) da Lei Geral Tributária.

3. O Tribunal “a quo” ao ter definido como prazo legal de pagamento das dívidas, a data de 22 de Dezembro de 2005, alicerçando para o efeito o facto dessas datas constarem nas referidas certidões de dívidas, entendemos, também, que neste caso, o tribunal errou igualmente, fazendo uma incorrecta apreciação da prova constante dos autos e uma errada interpretação do art° 24.° da Lei Geral Tributária.

4. A expressão “prazo legal de pagamento” diz respeito a dívidas que deviam ter sido pagas no período compreendido pela responsabilidade, independentemente de terem sido efectivamente liquidadas ou postas à cobrança nesse espaço de tempo, enquanto que o “pagamento voluntário” incluído nas referidas certidões diz respeito ao prazo de pagamento voluntário permitido na notificação da liquidação (adicional).

5. Por outro lado, o Tribunal “a quo” olvidou-se quanto às datas de entrega do imposto em causa, que seriam ainda durante o ano de 2001 e parte de 2002 (até 10 de Fevereiro).

6. Na realidade, a execução fiscal contra qual se dirigiu a oposição e na parte que interessa à decisão do presente recurso, tem em vista a cobrança coerciva de dívidas respeitantes ao imposto sobre o valor acrescentado e relativo ao exercício de 2001 e também a dívida de juros compensatórios.

7. O então art°40.° do Código de Imposto Sobre Valor Acrescentado (CIVA) refere que os prazos para entrega das declarações periódicas de IVA devem ser enviadas até ao dia 10 do segundo mês seguintes àquele a que respeitam as operações, por se tratar de um sujeito passivo com um volume de negócios igual ou superior a 40.000.000$00 no ano civil anterior.

8. Estabelecendo, ainda, o então art° 26.° do CIVA que os prazos de pagamento e entrega do imposto são os mesmos para as entregas das declarações.

9. Assim, independentemente de estarem em causa liquidações adicionais, apuradas no âmbito de um acto inspectivo é facto inequívoco que o prazo legal de entrega do imposto em causa nestes autos ocorreu no período do exercício do cargo do oponente, ou seja, desde Março de 2001 até Fevereiro de 2002.

10. Por outro lado, estabelece o disposto no art°35.° da LGT que “São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou totalidade do imposto devido...”.

11. E o n°3 do já referido art°35.° refere que “ Os juros compensatórios contam-se dia a dia desde o termo do prazo de apresentação da declaração, do termo do prazo de entrega do imposto a pagar antecipadamente ou retido ou a reter, até ao suprimento, correcção ou detecção da falta que motivou o retardamento da liquidação”.

12. No caso em concreto, esses juros compensatórios “retroagem” ao período de gerência efectiva do oponente porque são calculados desde o termo do prazo de apresentação da respectiva declaração, ou seja, ainda no exercício de 2001 e parte de 2002.

13. Assim, as dívidas são enquadráveis na alínea b) do referido art°24.° da LGT porquanto o prazo legal de entrega de imposto terminou no período de exercício do cargo do oponente e, como tal presume-se a sua culpa.

14. Considera, ainda, esta Representação da Fazenda, que o Tribunal errou igualmente ao não ter apreciado os factos invocados na contestação, bem com os documentos juntos aos autos, nomeadamente a cópia do relatório da inspecção para os exercícios em análise do tributo, donde se constata que os fluxos financeiros saídos da empresa para contas pessoais suas (o oponente tinha elevados montantes em dívida, não explicados, para com a executada originária) aos meios artificiosos montados pela empresa para obter vantagens financeiras indevidas, bem como o pagamento de despesas de pessoas estranhas à empresa, entre outras situações reprováveis.

15. O que significa que o oponente, enquanto gerente, terá tido mesmo culpa na insuficiência no património da executada.

16. Assim, o tribunal” a quo” ao não se ter pronunciado sobre os factos invocados na contestação e sobre as provas carreadas para o processo, padece do vício de omissão de pronúncia, constituindo uma nulidade da sentença, conforme o previsto no art° 125.º do C.P.P.T.

17. Em conclusão, e face às razões de facto e de direito acima expostos, a douta sentença recorrida padece de vício de omissão de pronúncia, enferma, ainda, de nulidade por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, violando o disposto no art°24.° da Lei Geral Tributária, ao não decidir a causa de acordo com os factos e o direito aplicável.

Pelo exposto e com mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida como é de inteira JUSTIÇA.


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Por despacho de fls. 406 dos autos, transitado em julgado, foi considerada intempestiva a apresentação das contra-alegações apresentadas pelo Recorrido e, por conseguinte, não foram as mesmas admitidas.

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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Foram colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Adjuntos, pelo que importa apreciar e decidir, ao que nada obsta.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões [artigos 660º, n.º 2, 664º e 684.º, n.º s 3 e 4 todos do CPC ex vi artigo 2.º, al. e), e artigo 281.º do CPPT], traduzem-se em apreciar se:

(i) - a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia por, em síntese, o Tribunal a quo não se ter pronunciado sobre os factos alegados pela FP e sobre as provas carreadas para o processo pertinentes para a análise da gerência de facto e a culpa do oponente – conclusões 1, 14 a 17;

(ii) - a sentença errou no julgamento de facto ao ter considerado que o responsável subsidiário cessou as suas funções de gerência em 23/08/2002, por constar da certidão do registo comercial, sem questionar a razão do próprio oponente ter definido a cessação de funções em 06 de Março de 2003 – conclusão 2;

(iii) - a sentença errou no julgamento efectuado ao ter enquadrado e analisado a reversão sub judice ao abrigo do disposto no artigo 24º, nº 1, al. a) da LGT, sendo certo que o oponente não pôs em causa os pressupostos definidos no artigo 24º, nº 1, al. b) da LGT - conclusões 2 (2ª parte), 3 a 13 e 17).


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II. Fundamentação

II.1. De facto

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos, os quais se transcrevem ipsis verbis:

“A) Com base nas certidões de dívida de fls. 63 a 86, foi instaurada contra G… Hardware e Software, Lda, a execução fiscal n.º 0728200601001728, para cobrança das dívidas provenientes de IVA e juros compensatórios do ano de 2001.

B) De acordo com as referidas certidões de dívida, a data limite de pagamento voluntário das liquidações exequendas expirou em 22/12/2005 – fls. 63 a 86.

C) Por despacho de fls. 94 a 95, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, a execução foi revertida contra o ora oponente.

D) De acordo com a certidão do registo comercial de fls. 10 a 18, o oponente foi nomeado gerente da sociedade devedora principal em 19/10/99.

E) De acordo com a certidão do registo comercial da devedora principal, o oponente cessou as funções de gerente, por destituição, em 23/08/2002 – fls. 10 a 18.


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Com interesse para a decisão não se provaram outros factos.

*

A convicção do Tribunal baseou-se nos documentos referidos em cada uma das alíneas antecedentes”.

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II.2. De direito

As questões suscitadas no presente recurso já as deixámos enunciadas supra: nulidade por omissão de pronúncia, erro no julgamento da matéria de facto e erro de julgamento traduzido na violação do artigo 24º, nº 1, al. b) da LGT.

Com efeito, a Fazenda Pública não se conforma com a sentença do TAF de Coimbra que, julgando procedente a oposição deduzida por A…, determinou a extinção da execução fiscal na parte revertida contra o oponente.

Muito embora, em regra, o conhecimento das nulidades da sentença preceda a apreciação dos restantes vícios, casos há em que um juízo de procedência ou improcedência do recurso por erro de julgamento pode deixar prejudicado, por inútil, a apreciação de tais nulidades, isto porque “é ilógico exigir essa apreciação, quando qualquer que seja o seu resultado, o Tribunal superior tem de revogar ou confirmar (ou anular) a decisão recorrida” - cfr. acórdão do STA, de 18/10/06, processo 611/06; vide, também, Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 1997, págs. 470 a 472, e Jorge Lopes de Sousa, in CPPT anotado e comentado, Vol. II, 6ª Edição, Áreas Editora, págs. 373 e 374.

É o que sucede no caso dos autos, como tentaremos demonstrar seguidamente.

Antes, porém, o concreto circunstancialismo dos autos, tal como nos é apresentado, impõe-nos que nos detenhamos sobre conteúdo do despacho de reversão da execução fiscal nº 0728200601001728 e apensos, instaurada inicialmente contra a sociedade G… Hardware e Software, Lda, despacho este a que alude o ponto C) da matéria de facto e cujo teor foi dado por integralmente reproduzido.

Com efeito, e por razões que ao longo da exposição que se segue se tornarão mais explícitas, é imperioso atentarmos no teor do aludido despacho para que possamos determinar o seu exacto conteúdo e a interpretação que desse acto foi feita pelo Tribunal. É que, em boa verdade, as questões que nos vêm suscitadas dependem inexoravelmente desta análise a montante.

Vejamos, então.

Em tal despacho pode ler-se, além do mais, mas naquilo que para o caso interessa, o seguinte:

“(…)

G… Hardware e Software Lda (…) possui vários processos de execução fiscal que contra esta correm termos neste serviço de Finanças.

Até à presente data a firma devedora não procedeu ao pagamento das dívidas constantes do processo principal e seus apensos supra indicados.

A firma executada iniciou a actividade em 01 de Junho de 1998, não tendo havido cessação da actividade.

Face ao não pagamento das dívidas em causa iniciou-se o processo de reversão contra os responsáveis subsidiários da firma devedora originária, ou seja, contra o responsável A… (…), com base nos fundamentos prescritos no projecto de decisão proferido em 19 de Abril de 2007.

Face ao projecto de decisão acima referido, e para efeitos de audição prévia, procedeu-se ao seguinte:

(…)

Os responsáveis subsidiários acima identificados não vieram exercer o seu direito de audição prévia.

Assim, face ao exposto e verificando-se que os responsáveis subsidiários em causa não vieram contrariar os factos invocados no projecto de decisão, nem solicitaram outras diligências capazes de abalarem o referido projecto, decide-se manter os pressupostos em que se de apoiou o projecto de decisão datado de 19 de Abril de 2007.

Assim, reverto a execução, nos termos do disposto no artº 24º nº1 b) da LGT e com os fundamentos acima indicados, contra os identificados responsáveis: A… (…) – o sublinhado é nosso.

Atenta a fundamentação supra, a qual tem de constar da citação, proceda-se à citação dos executados por reversão, nos termos do artº 160º do C.P.P.T. para pagar no prazo de 30 dias, a quantia que contra si reverteu sem juros de mora nem custas (artº 22º e nº5 do artº 23º da Lei Geral Tributária).

Coimbra, 29 de Agosto de 2008

(…)”

Ora, foi contra a reversão assim efectuada, operada com base na invocada alínea b) do nº1 do artigo 24º da LGT, que o oponente apresentou oposição à execução fiscal, não pondo em causa aquele enquadramento legal e defendendo, em síntese, que, apesar de ter sido gerente de direito, nunca exerceu a gerência de facto da devedora originária. Com efeito, lê-se na p.i, entre o mais, que: durante o ano de 1998, o oponente foi sócio fundador, e nomeado gerente da sociedade comercial G… Hardware e Software, Lda,; que não era o oponente que representava habitualmente as referidas sociedades, nomeadamente a G… Hardware e Software, Lda.; que desde a nomeação do oponente como gerente da G... Hardware e Software, Lda, os actos de administração desta sociedade foram, praticamente, todos planeados, decididos e executados, pelo sócio-gerente, M…; que o oponente, desde aquela data (leia-se, meados de 2001), deixou inclusive de ter contacto regular com qualquer membro da G... Hardware e Software, Lda, deslocando-se à sede da executada esporadicamente, com o único objectivo de assinar documentos que lhe eram apresentados pelo outro sócio-gerente M…, por ser alegadamente necessário a assinatura dos dois gerentes; que o oponente, no exercício da sua função de gerente, nunca praticou, conscientemente, qualquer acto doloso que interferisse com a administração da executada, ou importasse a diminuição ou insuficiência do seu património.

Foi, aliás, para prova do assim alegado que arrolou três testemunhas e que se procedeu à diligência de prova requerida.

Foi, também, na mesma linha que se orientou a contestação apresentada pela Fazenda Pública, ou seja, apelando ao disposto na alínea b) do nº1 do artigo 24º da LGT e, como tal, defendendo-se aí que o oponente era, não apenas gerente de direito, mas também de facto e, bem assim, que o mesmo não tinha logrado provar a sua falta de culpa no não pagamento dos impostos em dívida. Para prova dos factos alegados na contestação foi junto um documento.

Há que dizer que no relatório da sentença recorrida se fez constar que a oposição havia sido deduzida com fundamento na sua ilegitimidade (leia-se do oponente), por não ter exercido a gerência da sociedade devedora principal.

Isto dito, foquemo-nos na sentença recorrida que, na parte reservada à aplicação do direito, após expor o regime legal da responsabilidade dos membros de corpos sociais e responsáveis técnicos, previsto no artigo 24º da LGT, em concreto, nas alíneas a) e b) do nº1, concluiu do seguinte modo:

“(…)

Neste regime da alínea a) não há presunção de culpa e, à semelhança do regime imposto pelo DL n.º 68/87, recai sobre a Administração Fiscal o ónus da prova da culpa do administrador na insuficiência do património. É a Administração Tributária que deve fazer a prova da identificação do responsável subsidiário e da sua culpa pela insuficiência patrimonial da pessoa colectiva sua gerida, mesmo quando o fundamento da responsabilidade for a falta de pagamento dos tributos vencidos no período de administração ou gerência, aplicando-se para o efeito, a regra geral do ónus da prova do Art. 342.º, n.º 1 do Código Civil.

No caso vertente, resulta da matéria de facto provada que o oponente iniciou as funções de gerente da sociedade devedora principal em 19/10/1999 e cessou-as, por destituição, em 23/08/2002; mais se provou que as dívidas exequendas respeitam ao ano de 2001, portanto, ao período do exercício do seu cargo; provou-se, ainda, que o prazo legal de pagamento voluntário de tais dívidas se verificou em 22/12/2005, ou seja, já depois de terminado o exercício do cargo de gerente.

Deste modo, a responsabilidade do oponente pelo pagamento das dívidas exequendas cai na previsão da alínea a) do n.º 1, do Art. 24.º da LGT, incumbindo, pois, à AT o ónus da prova da culpa do oponente pela insuficiência patrimonial da executada principal, geradora da falta de pagamento dos tributos exequendos.

Porém, compulsado o despacho de reversão, de fls. 94 a 95, verifica-se que ali nada se alude e, muito menos, prova, no que concerne à culpa do oponente.

Assim, por falta da prova necessária da verificação dos pressupostos de que depende a reversão da dívida exequenda contra o oponente e sem necessidade de outras considerações, deve a presente oposição ser julgada procedente.

(…)”.

Da leitura do excerto transcrito da sentença, resulta claro que o Tribunal não se ateve à fundamentação do acto ou, pelo menos, errou na interpretação do mesmo. Na verdade, onde o despacho de reversão – bem ou mal, para o caso é irrelevante - refere e aponta como fundamento legal da responsabilidade subsidiária o disposto no artigo 24º, nº1, al. b) da LGT, o Tribunal entendeu, face aos factos que considerou provados, que daquilo que se tratava era, antes, da aplicação do artigo 24º, nº1, al. a) da LGT.
Por assim entender, fez notar que o ónus da prova da culpa do oponente pela insuficiência patrimonial da executada principal, geradora da falta de pagamento dos tributos exequendos cabia à Fazenda Pública, a qual, contudo, não havia cumprido com tal encargo probatório que sobre si impendia. Por conseguinte, e como na sentença se refere, sem necessidade de outras considerações, a oposição foi julgada procedente.

Ora, a invocada desnecessidade de outras considerações, traduziu-se, no caso, na circunstância de a sentença não ter apreciado, afinal, aquele que foi o fundamento de oposição esgrimido pelo oponente - a sua ilegitimidade, por não ter exercido a gerência da sociedade devedora principal – nem ponderado a prova testemunhal produzida a requerimento do oponente, nem tão-pouco foi tida em conta a contra-argumentação da Fazenda Pública e o documento por esta junto, em sede de contestação.

Apesar de este Tribunal alcançar as razões do assim entendido pelo Tribunal a quo, não pode acompanhar este raciocínio. Ou seja, porque a 1ª instância entendeu que a reversão, no caso, devia efectivar-se ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 24º da LGT, acabou por deixar subentendida a irrelevância da apreciação sobre o exercício efectivo da gerência e sobre a prova da falta de culpa no não pagamento das dívidas tributárias, já que, concluiu, desde logo, que não vinha provada, pela Administração Tributária, a culpa do oponente no facto de o património societário se ter tornado insuficiente para a satisfação da dívida exequenda. Repete-se, porém, este raciocínio não é aceitável e, entendemos, aliás, que o Tribunal estava impedido, no caso, de o fazer.

É que, como se entende daquilo que vimos de dizer, esta argumentação do Tribunal a quo, parte de uma errada interpretação do despacho de reversão que, no fundo, se traduziu numa alteração dessa mesma fundamentação. O despacho foi proferido com base na alínea b) do nº 1 do 24º da LGT; o Tribunal a quo entendeu que, face ao circunstancialismo fáctico, o normativo aplicável era, antes, a alínea a) do nº 1 do 24º da LGT.

Esta actuação por banda do Tribunal, repete-se, não pode ser aceite. Com efeito, com esta actuação o Tribunal a quo está a substituir-se à Administração Tributária, a praticar administração activa, o que, obviamente, lhe está vedado.

De resto, o assim entendido por este Tribunal, e que justificou que tivéssemos iniciado a análise deste recurso precisamente pela interpretação da fundamentação do despacho de reversão, encontra eco nas alegações de recurso, quando aí se refere (cfr. ponto 7) que o oponente não questiona na petição inicial que a reversão não devia ter-se efectivado nos termos do disposto no artigo 24º, nº1, alínea b) da Lei Geral Tributária, apenas refere “… no exercício da sua função de gerente, nunca praticou, conscientemente, qualquer acto doloso que interferisse com a administração da executada (…)” ou nas respectivas conclusões quando aí se menciona que tão-pouco, o oponente, pôs em causa os pressupostos definidos no disposto no art.° 24.° n°1 alínea b) da Lei Geral Tributária (cfr. conclusão 2ª) ou, também, quando se reitera o enquadramento do circunstancialismo em causa na alínea b) do nº 1 do artigo 24º da LGT (cfr. conclusão 13ª). Estamos, afinal, no âmbito da 3º questão que foi colocada neste recurso e que deixamos devidamente autonomizada – saber se a sentença errou no julgamento efectuado ao ter enquadrado e analisado a reversão sub judice ao abrigo do disposto no artigo 24º, nº 1, al. a) da LGT e não da alínea b) do mesmo nº1.

Ora, se é verdade que não é permitido à Administração fundamentar a posteriori um acto administrativo, alterando a fundamentação expressa no mesmo, também o Tribunal não pode, como vimos, substituir-se à Administração, formulando uma nova fundamentação a qual, de resto, nunca foi posta em causa pela parte interessada. Ou seja, no caso, o oponente jamais argumentou que a reversão contra si só poderia ter operado pela alínea a) e não pela alínea b) do nº1 do artigo 24º da LGT, designadamente pelas razões avançadas pelo Tribunal ou por outras, nem tem pouco que a Administração não tinha cumprido o ónus probatório que lhe competia [ao abrigo da referida alínea a)], como decidiu o Tribunal. Nada disso. Como já dissemos, o oponente defendeu-se contrariando, no essencial, o exercício da gerência de facto, sem colocar em causa o enquadramento legal avançado no despacho de reversão, ou seja, a aplicação da alínea b) do nº1 do artigo 24º da LGT.

Coisa diferente, como é óbvio, seria se, na oposição deduzida, o responsável subsidiário tivesse posto em causa a sua legitimidade defendendo que ao caso concreto era aplicável a alínea a) do nº1 do artigo 24º da LGT [que não a b)] e que nessa medida recaía sobre a Administração o ónus da prova da culpa do responsável subsidiário. Aí sim, a decisão do Tribunal teria, pelo menos em abstracto, razão de ser, justificando-se a consideração de um errado enquadramento legal em que havia assentado o despacho de reversão.

Mas, como vimos e para concluir nesta parte, não é esse o caso.

Ora, aqui chegados, uma conclusão podemos, desde já, retirar: a de que a sentença, nos termos em que decidiu, não se pode manter, devendo ser revogada, com o consequente provimento do recurso interposto pela Fazenda Pública.

E, revogada a sentença recorrida, pelas razões expostas, caberia a este Tribunal, em substituição, ao abrigo do disposto no artigo 715 º, n º2 do Código de Processo Civil [aplicável por força do disposto no artigo 2º alínea e) do CPPT], conhecer as questões efectivamente colocadas na p.i de oposição para aferir da legitimidade do oponente, cujo conhecimento, atenta a solução dada ao litígio pela sentença recorrida, ficou prejudicado – concretamente quanto ao (não) exercício efectivo da gerência e à culpa pelo não pagamento das dívidas em cobrança coerciva – se para tanto os autos fornecessem os necessários elementos.

Acontece que os autos não fornecem tais elementos.

Expliquemos em detalhe.

Desde logo, a questão do exercício em concreto da gerência por parte do oponente.

Já vimos, anteriormente, que, se bem interpretamos a sentença, esta análise ficou prejudicada pelo facto de aí se ter dado outro enquadramento legal à reversão operada. Como dissemos, porque a 1ª instância entendeu que a reversão, no caso, devia efectivar-se ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 24º da LGT, acabou por não relevar a apreciação do exercício (ou não) efectivo da gerência e, bem assim, a prova da falta de culpa no não pagamento das dívidas tributárias, já que, concluiu, desde logo, que não vinha provada, pela Administração Tributária, a culpa do oponente no facto de o património societário se ter tornado insuficiente para a satisfação da dívida exequenda.

Como dissemos, esta linha decisória é errada, não sendo de sufragar, o que, porém, diga-se, não equivale a, no caso, ver aqui uma nulidade por omissão de pronúncia, como pretende a Recorrente na conclusão 1ª da alegação de recurso. O que acontece é que a análise de determinada questão – exercício efectivo da gerência – ficou prejudicada pela solução que foi dada ao litígio [para mais, a omissão de pronúncia, a que se reporta o artigo 125º do CPPT e, bem assim, a alínea d), 1ª parte, do nº1 do artigo 668º do CPC, refere-se, como é genericamente entendido, ao não conhecimento de questões que deviam ser apreciadas e não à apreciação de todos os argumentos ou de todos os factos alegados que os suportam].

Ora, para prova do alegado pelo oponente na p.i foi produzida prova testemunhal que, porém, não foi objecto de qualquer apreciação crítica e contemplada na decisão sobre a matéria de facto. O mesmo se diga quanto à prova documental junta em sede de contestação.

Portanto, face à omissão pelo tribunal a quo da fixação da matéria de facto pertinente para a apreciação do mérito das questões suscitadas nos autos e que deixaram de ser apreciadas pela solução dada ao litígio pela sentença recorrida, não é possível a este Tribunal conhecer de tais questões, uma vez que a selecção da matéria de facto para esse efeito deve ser feita pelo juiz da 1ª instância, o que significa que inexiste julgamento da matéria de facto para conhecer das questões colocadas na p.i.

Neste sentido, escreveu-se no acórdão deste TCAN, de 29/03/12, proferido no recurso nº 78/11.1, que “Como resulta do artigo 712º do CPC, o tribunal de recurso, quando esteja em causa a matéria de facto, pode proceder à alteração da matéria, desde que se mostrem preenchidas as condições previstas nas respectivas alíneas a), b) e c). Ainda, do nº 4 deste normativo resulta a possibilidade de ser anulada oficiosamente a decisão proferida na 1ª instância, desde que o processo não disponibilize todos os elementos probatórios que, em conformidade com o disposto na alínea a) do nº 1, permitam a reapreciação da matéria de facto.

Portanto, o tribunal de recurso, com vista a uma eventual alteração da matéria de facto, pode reapreciar ou reexaminar a decisão do tribunal recorrido sobre essa matéria, mas não pode efectuar esse julgamento de facto sem que na 1ª instância o mesmo tenha sido efetuado, uma vez que tal implicaria o inviabilizar da garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto. Ou seja, o tribunal ad quem só pode efectuar um novo julgamento de facto e de direito se a decisão proferida pelo tribunal a quo contiver o enquadramento de facto e de direito e a competente decisão, o que não se verifica in casu - neste sentido, entre outros, acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17/10/2001, no Processo nº 26193, acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 19/10/2006, Processo 00081/02 (supra citado), de 9/11/2006, Processo 00345/04 e de 9/2/2012, Processo 01552/08 e do Tribunal Central Administrativo Sul de 16/11/2010, Processo 03922/10”.

Em reforço deste entendimento, e tendo presente a questão suscitada pela Recorrente quanto ao erro de julgamento da matéria de facto – a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao ter considerado que o responsável subsidiário cessou as suas funções de gerência em 23/08/2002, por constar da certidão do registo comercial, sem questionar a razão do próprio oponente ter definido a cessação de funções em 06 de Março de 2003 – importa esclarecer o que se segue.

Efectivamente, do ponto E) dos factos provados consta que de acordo com a certidão do registo comercial da devedora principal, o oponente cessou as funções de gerente, por destituição, em 23/08/2002 – fls. 10 a 18. Por seu turno, na p.i o oponente afirma que em 6 de Março renunciou à gerência da executada (cfr. artigo 29º da p.i).

Sucede que a certidão a que alude a sentença, nos factos provados, concretamente o documento junto a fls. 10 a 18, reporta-se a uma certidão do registo comercial da sociedade Classe 86 – Formação e Serviços, Lda e não da sociedade G... Hardware e Software, Lda. Por outro lado, a certidão junta, como doc. 3 junto à p.i respeitante à sociedade G... Hardware e Software, Lda, emitida em 2008, reproduz o teor da matrícula e todas as inscrições em vigor, daí não constando, pois, quaisquer inscrições, averbamentos ou anotações respeitantes à qualidade de sócio e de gerente do ora Recorrido, A…. Assim sendo, não é sequer possível a este Tribunal conhecer e aferir da exactidão quanto à data da cessação da gerência.

Conclui-se, pois, não ser exequível o conhecimento em substituição do tribunal a quo, atenta a falta de elementos necessários, nos termos supra expostos.

Nesta conformidade, há que conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, devendo os autos baixar ao tribunal a quo para que, após a devida aquisição processual, se conheça dos fundamentos da oposição tal como foram expendidos pelo oponente, se entretanto, não ocorrerem outras circunstâncias que a tal obstem.


*
III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em:

- conceder provimento ao recurso;

- revogar a sentença recorrida:

-ordenar a baixa dos autos para que, após a devida aquisição processual, se conheçam os fundamentos da oposição tal como invocados pelo oponente, se a tal nada mais obstar.

Sem custas

Porto, 11 de Janeiro de 2013

Ass. Catarina Almeida e Sousa

Ass. Nuno Bastos

Ass. Irene Neves