Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02357/18.8BEBRG-R1
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/21/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:NULIDADE DE SENTENÇA; ININTELIGIBILIDADE;
NULIDADE PROCESSUAL;
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO;
Sumário:I- A nulidade prevista no alínea c) do nº1. do artigo 615º do CPC só pode ser atendida no caso de se tratar de vício que prejudique a compreensão da decisão judicial [despacho/sentença/acórdão] e de se apontar concretamente a obscuridade ou ambiguidade cuja nulidade se pretende ver declarada.

II- Visto o teor do primeiro despacho recorrido, não se descortina a existência de qualquer obscuridade ou ambiguidade no discurso que o Mmº. Juiz a quo ali expendeu, o qual é perfeitamente inteligível, não se verificando, portanto, a nulidade de sentença prevista no art. 615º n.º 1 al. c) do CPC.

III- Como decorrência do princípio do contraditório, que constitui uma das traves mestras do direito processual, é proibida a decisão surpresa, ou seja, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.

IV- Legitimando os autos a aquisição processual da falha de notificação do despacho judicial editado em 07.10.2020 - que determinou a audição do Recorrente para se pronunciar, no prazo de cinco dias, se pronunciar quanto à questão prévia de intempestividade do recurso suscitada nas contra-alegações -, deparamos com um desvio processual que, sendo suscetível de influir no exame e na decisão da causa, conduz à anulação dos termos processuais praticados desde então
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO
1. AA, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga a presente Ação Administrativa contra a ORDEM DOS ADVOGADOS, peticionando a declaração de nulidade “(…) ex tunc da deliberação do CG da Ordem dos Advogados que, ilicitamente, suspendeu a inscrição do advogado portador da cédula profissional nº. ...13-P, abaixo assinado, com todos os devidos efeitos legais (…)”.
2. Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, datada de 14.05.2020, foi absolvida a Ordem dos Advogados, por intempestividade da prática do ato processual.
3. Discordando dessa decisão, o Autor deduziu recurso jurisdicional, que, através do despacho de 01.11.2020, não foi admitido pelo Tribunal a quo.
4. O Autor reclamou para este Tribunal Central Administrativo Norte do (i) despacho do Tribunal Administrativo de Braga, datado de 01.11.2020, que não admitiu a interposição de recurso jurisdicional por si interposto contra a sentença promanada nos autos, bem como do (ii) despacho do mesmo Tribunal, datado de 17.11.2020, que, em face da informação da secção no sentido da ausência de notificação do despacho de 07.10.2020, entendeu nada ser de ordenar, nomeadamente no sentido de anular o despacho anterior, por o Recorrente já ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre a questão de intempestividade suscitada pelo Recorrido nas suas contra-alegações.
5. Por decisão sumária do Relator, datada de 01.03.2021, foi a apontada reclamação rejeitada quanto a ambos os despachos com as devidas e legais consequências.
6. O Autor reclamou desta decisão sumária para a Conferência, que, por aresto datado 18.06.2021, indeferiu a reclamação apresentada e manteve o despacho reclamado.
7. Irresignado com este Acórdão, o Autor interpôs recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por aresto datado de 12.01.2023, concedeu provimento ao recurso, revogou a decisão deste T.C.A.N e ordenou a baixa dos autos com vista à convolação da reclamação do despacho de 17.11.2020 em recurso, no mais considerando prejudicado o conhecimento do recurso na parte respeitante aos restantes fundamentos de invalidade da decisão recorrida, incluindo as respetivas nulidades.
8. Remetidos os autos a este T.C.A.N., foi operada, por ser tempestiva e admissível, a convolação da reclamação do despacho editado em 17.11.2020 em recurso jurisdicional.
9. Na reclamação apresentada do despacho de 17.11.2020 [ora convolada em recurso], o Reclamante, ora Recorrente, alegou o seguinte: “(…)
A. O ITER PROCESSUAL RELEVANTE
1. Desde a prolação, em 14 de maio último, da douta Sentença recorrida, sucederam-se nos presentes autos os seguintes actos processuais importando agora aqui considerar:
a) Por ofício datado de 15 de maio mas apresentado nos CTT para efeitos de registo (N.° ...) e expedição pelas 18:36 horas da segunda-feira dia 18 seguinte, foi aquele aresto notificado ao ora reclamando Autor;
b) A partir das 8:54 horas do dia seguinte, 19 de maio, ficou essa correspondência «[d]isponível para levantamento no apartado» (Doc. A), ou seja: no Apartado ...3 da estação central dos Correios de ..., tendo sido o «[d]estinatário notificado para levantar objecto no apartado» (ibid.),
c) o que significa que foi colocado naquele apartado um aviso no formato dos bilhetes postais, reutilizável, com a indicação de haver correio registado para lhe ser entregue (Doc. B, em baixo), do qual, obviamente, o utente só tomará conhecimento quando ali se deslocar;
d) Só no dia 8 de junho seguinte o notificando, ora reclamando, se deslocou àquela estação postal, tendo então recebido aquela notificação;
e) Em 8 de julho seguinte, o signatário expediu por correio eletrónico o seu recurso alegado e anexos a impugnar a sentença notificada, do que deu conhecimento simultâneo à senhora Mandatária da contraparte (Doc. C),
f) suscitando nesse peticionado, a título prévio, a vertente questão do justo impedimento verificado na sua notificação da decisão recorrida;
g) Em 28 de setembro seguinte, também por correio eletrónico, foi o signatário notificado das contra-alegações da banda do CSOA,
h) peça essa em que, quanto à referida “questão prévia”, se propugna a rejeição do presente recurso, «por extemporâneo»;
i) Em 5 de outubro seguinte, o signatário remeteu para o apenso “A” aos presentes autos cópia do requerimento que nessa mesma data enviara para o processo do Tribunal Constitucional com origem nesse processado conexo, ambos por correio eletrónico, dando conhecimento simultâneo à contraparte (Doc. D),
j) requerimento esse suscitando, precisamente, a questão também do justo impedimento verificado na notificação duma decisão singular daquele Tribunal supremo;
k) Em 1 de novembro em curso, o senhor Juiz a quo proferiu decisão - o 1.° Despacho reclamado - indeferindo o requerimento de interposição do pendente recurso e, em consequência, a «não admit(ir) o recurso interposto»,
l) assim tendo decidido - declarando, formalmente, «Cumpre decidir» - imediatamente após relatar que fora no dia 7 de outubro proferido despacho «no sentido de permitir ao recorrente/autor pronúncia sobre essa questão prévia [da «intempestividade do recurso apresentado», suscitada pela entidade recorrida]», e este nada disse;
m) Expedida por via postal registada no dia seguinte, 2 do corrente, foi a respectiva notificação recebida na segunda-feira imediata, dia 9, pelo destinatário abaixo-assinado, que, todavia, só no dia 16 teve possibilidade de impulsionar o processo, telefonando à Secretaria do Tribunal a quo a pedir informação sobre qual o número do registo postal do ofício de notificação do referido despacho de 7 de outubro, pois que não fora notificado do mesmo;
n) Foi então informado pela senhora Funcionária que o atendeu de que, compulsando o processo, acabara de verificar que, por lapso, os dois ofícios de notificação tinham sido remetidos ao Conselho Superior recorrido, pelo que iriam os autos ser conclusos ao senhor Juiz, com essa precisa informação;
o) Em 17 do corrente, o senhor Juiz proferiu nova decisão – o 2.° Despacho reclamado - declarando, epilogativamente, que «nada há a determinar em face da informação prestada» e recusando assim, expressamente, «anular o despacho anterior».
B. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICO-FÁCTICA DO DECIDIDO
2. O Despacho de 1 de novembro assenta, basicamente, no seguinte argumentário:
i) A sentença foi notificada ao Recorrente mediante carta registada expedida em (sic) 15-05-2020; no entanto, por estar provado que apenas foi depositada no apartado em 20-05-2020, deve-se considerar que o Autor foi notificado nesta data;
ii) Todavia, os prazos processuais estavam então legalmente suspensos, suspensão essa que só cessou em 3-06-2020;
iii) Por consequência, o prazo de 30 dias para recorrer terminou em 2-07-2020 e, podendo embora ter praticado esse acto até ao dia 7-07-2020, o Autor não o fez, já que o requerimento de interposição de recurso só foi remetido ao Tribunal em 8-07-2020;
iv) Forçoso é concluir, portanto, que o recurso foi intempestivo;
v) Nas suas alegações, o Recorrente invoca justo impedimento, porque, em função do estado de emergência e, depois, do estado de calamidade, somente em 8-06-2020 foi notificado da sentença, mais afirmando ser dispensável fundamentar de facto essa ocorrência;
vi) Mas não tem o Autor razão, porquanto a missiva de notificação esteve desde 20-05-2020 à sua disposição para levantamento e se só a levantou em 8-05-2020 não foi por qualquer impedimento decorrente da declaração da situação de estado de emergência ou de estado de calamidade,
vii) quer porque o estado de emergência terminou em 2-06¬-2020, em nada influenciando, por isso, a possibilidade de levantar a missiva de imediato nos Correios,
viii) quer porque o estado de calamidade também nunca impediu qualquer deslocação ao serviço de correios para levantamento de correspondência, recaindo sobre o Autor o ónus de levantar o correio depositado no apartado onde optou por receber o que lhe é destinado;
ix) Neste caso concreto, a notificação tem de considerar-se feita logo que a carta ficou ao dispor do notificando, em 20-05-2020, não podendo admitir-se que, no caso de este dispor de um apartado, somente com o levantamento da carta se consideraria notificado; ora,
x) tal permitiria a completa deturpação dos prazos processuais estabelecidos;
xi) Não ocorre, por isso, qualquer justo impedimento.
3. O Despacho de 17 de novembro baseia-se nesta singela argumentação entrosada:
i) O Recorrente foi notificado das contra-alegações apresentadas, tendo tido, por isso, a possibilidade de se pronunciar sobre a questão suscitada;
ii) Assim sendo, o despacho em causa constitui um mero reforço da possibilidade de contraditório,
iii) pelo que a ausência de notificação do mesmo não tem qualquer influência no desenvolvimento do processo, in concreto, não gera qualquer nulidade.
II. FUNDAMENTO DA PRESENTE RECLAMAÇÃO
4. Começando, precisamente, por este insólito decisum, de todo ininteligível: como é, na verdade, possível compreender que um despacho judicial reconhecendo a um recorrente o direito ao exercício do contraditório seja tacitamente anulado porque, devido a um lapso do próprio Tribunal, a sua notificação foi enviada unicamente ao recorrido?!
5. Mas este autêntico, salvo o devido respeito, absurdo jurídico não surge sozinho: algo até mais grave, na realidade, sucede: a afirmação de que o interessado teve a possibilidade de se pronunciar sobre a questão suscitada conflitua de modo frontal com o que sobre a matéria manda a lei: efectivamente, nos exatos termos do n.° 8 do artigo 638.° do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável por remissão do n.° 3 do artigo 140.° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), o recorrente pode apenas «responder à matéria da ampliação [do objecto do recurso]», o que não é, patentemente, o caso neste processo.
6. Por consequência, é este segundo Despacho reclamado nulo, por força do disposto na alínea c) do n.° 1 do artigo 615.° do CPC: resulta numa decisão ininteligível face ao comando legal que implicitamente aplica.
7. Tem o signatário - que, congruentemente, passa em seguida a expressar-se na primeira pessoa gramatical - assim repristinado, portanto, o direito ao contraditório, integrante do direito processual fundamental ao processo judicial equitativo.
8. Entrando então, necessariamente, na análise do principal Despacho reclamado, o primeiro, será de ponderar in limine que, preceituando o n.° 1 do artigo 144.° do CPTA que o prazo para a interposição do recurso «conta-se a partir da notificação da decisão recorrida» e estando documentalmente provado nos autos que eu fui notificado da sentença recorrida no dia 8 de junho de 2020, o prazo para esse efeito terminava no dia 8 de julho seguinte, data em que o recurso foi outrossim comprovadamente interposto, pelo que a conclusão a extrair é, forçosamente, a de que o recurso sub judice foi tempestivamente interposto.
9. Efetivamente, é este o entendimento prevalecente no Supremo Tribunal Administrativo, conforme comprovei através do Despacho-sentença de 2-03-2010 de que juntei cópia referenciada como Doc. A e reconfirmo agora através do Doc. E anexo, reproduzindo um Despacho-sentença de 4-10-2018, revogando Acórdão do Tribunal Central Administrativo em sentido contrário: lê-se, com efeito, nesse aresto singular que foi «ilidida a presunção pelo reclamante, face àquela informação dos CTT de que a carta apenas foi entregue ao destinatário no referido dia (...)».
10. Ora, contra esta doutrina jurisprudencial, o que é que o Recorrido argumenta? Louva-se em três acórdãos postulando, cada um de per si, a negligência da parte processual notificanda através de ofício endereçado a um apartado postal... no quadro de situações ocorrendo, todas as três, num estado da sociedade perfeitamente normal, para concluir que o presente recurso é extemporâneo, essencialmente, porque o Recorrente «não justificou os motivos pelos quais se viu impedido de proceder ao levantamento da carta no hiato de tempo que mediou entre 20 de maio e 8 de junho de 2020», no pressuposto de que 0 «decretamento do estado de calamidade pública não justifica, per si (sic), e desacompanhado de qualquer outra circunstância concreta, o impedimento» alegado.
11. Não tem, porém, razão no que afirma. Antes do mais, entre 20 de maio e 2 de junho deste ano, como é obrigatoriamente sabido, esteve em vigor o regime excecional e temporário em matéria de prazos e diligências decretado pelo n.° 1 do pelo artigo 7.° da Lei n.° 1-A/2020, na redação introduzida pelo artigo 2.° da Lei n.° 4-A/2020, mais precisa e concretamente, a suspensão dos prazos processuais nos autos correndo, inclusivamente, na jurisdição administrativa, pelo que, particularmente no caso deste processo não urgente, nenhuma eventual notificação de decisão judicial causaria efeito imediato, ou seja: nenhuma diligência pró-notificação nos trâmites deste processo se me impunha.
12. E entre 3 e 5 de junho (6 e 7 foram sábado e domingo, respectivamente), a minha situação pessoal foi ainda muito essa. Com efeito, a Lei n.° 16/2020, de 29 de maio, que decretou o desconfinamento da actividade dos tribunais e o fim da suspensão dos prazos judiciais, aditou no artigo 2.° o artigo 6.°-A à Lei n.° 1-A/2020, cujo n.° 4 estabeleceu, inovatoriamente, o direito de não deslocação ao tribunal relativamente às partes ou seus mandatários maiores de 70 anos, como é, consabidamente, o meu caso: além de que a Ordem dos Advogados e, por conseguinte, toda e qualquer um dos seus conselhos, têm desse facto pleno conhecimento, o Doc. F que anexei às alegações do recurso - e que, brevitatis causa, vai de novo junto - atesta a minha data de nascimento, em 1944.
13. Não tem também razão, consequentemente, o senhor Juiz a quo ao afirmar que nem o estado de emergência nem, sobretudo, o estado de calamidade foram impeditivos da minha deslocação aos CTT para levantar correspondência registada de que eventualmente tivesse algum aviso no apartado. Então, se a lei me reconhece o direito a não me deslocar fisicamente ao Tribunal, por que fundada razão se me imporia a obrigação de me deslocar aos Correios logo nos primeiros dois ou três dias do desconfinamento dos tribunais?! Na verdade, porém, eu desloquei-me à estação local dos CTT na sexta-feira dia 5 do junho, só que não entrei, por razões de que o Tribunal e, primeiramente, o Conselho recorrido tiveram oportuno conhecimento.
14. Efetivamente, no meu supramencionado requerimento de 5 de outubro ao Tribunal Constitucional, a justificar a mesma situação de impedimento, exponho o seguinte (transcrição ipsis verbis, apenas com redenominação dos documentos anexos):
«7. (...) Em súmula, adiantar-se-á desde já que se trata de provar o alegando justo impedimento do abaixo-assinado destinatário para proceder ao levantamento da peça de correspondência controvertida.
8. A situação tem diretamente a ver com o estado de emergência nacional em vigor desde 9 de março até 2 de maio e o subsequente estado de calamidade pública declarado em 4 de maio e que duraria até 3 de junho, provocados, em sucessão, pela pandemia do coronavírus covid-19 em curso, e, principalmente, nesse quadro, com o meu próprio - passando agora, congruentemente, a expressar-me na primeira pessoa gramatical - estado de saúde.
9. Com efeito, septuagenário avançado, padeço, no que aqui releva, de hipertensão (Doc. G) e duma doença do foro pneumológico que conjuga a apneia de sono (durmo com máscara ligada a um equipamento de ventiloterapia, auto-CPAP) e um tipo de asma associado a uma alergia com origem em fatores ambientais não rigorosamente identificados mas que o fumo de tabaco agrava extremamente; após várias séries de tratamentos diferenciados, actualmente são dois os medicamentos anti-asmáticos (Doc. H) que me vêm sendo receitados para prevenir os episódios recorrentes de tosse, cada vez com menos êxito.
10. Em junho do ano passado foi-me marcada uma consulta regular de pneumologia no Hospital local para 16 de março último (Doc. I). No dia 11 anterior recebi uma SMS do Hospital sobre «Plano de contingência COVID-19» a dizer-me para não me dirigir ao hospital para a consulta. «Será contactado por carta ou telefone. Serão disponibilizadas formas de contacto não presencial rapidamente». E, de facto, no dia 16 telefonou-me a pneumologista para me informar de que (o mais importante, do resto mal me lembro) a patologia de que sofro constitui um factor de alto risco em caso de infeção pelo covid-19, acuso uma probabilidade de terapêutica eficaz «muito fraca» em relação a esta pandemia. Depois, renovou-me a medicação anterior por SMS.
11. Assim, precisamente quando sentia que o tratamento actual começava a perder efeito, não efetuei as provas de broncodilatação, a espirometria e o estudo de resistência das vias aéreas que estavam programados e servem normalmente para atualizar a medicação; foi-me então marcada nova consulta para novembro, ainda não confirmada. Por meados de abril senti agravarem-se os sintomas; saía à rua para me abastecer de bens alimentares (os dois cafés-restaurantes perto da minha residência onde habitualmente adquiria em take-away as refeições, especialmente cuidadas para um cliente que sofre também de gota, fecharam em março e reabriram um em julho e o outro em agosto), tossindo alto com frequência, o que muito incomodava as pessoas, além de que eu próprio me sentia mal com a máscara ao fim dalgum tempo. Tentei mudar a medicação na farmácia mas foi-me isso desaconselhado.
12. Senti-me a piorar. Desde 24 de abril e todo o mês de maio fiquei confinado em casa, donde me ausentei apenas no segundo domingo e nos quatro sábados seguintes para ir ao hipermercado, a horas mortas. Em 6 de maio tive de comunicar à delegação local da Ordem dos Advogados que, pela terceira vez, não podia deslocar-me lá a recolher o kit de protecção individual (Doc. J); para combater o stress, pois vivo só, entretive-me a compor um artigo sobre matemática, em inglês, que coloquei online no dia 24 (Doc. K). Em 27 desse mês houve uma nova convocatória da parte da Ordem para levantamento do kit (Doc. L), mas voltei a não poder deslocar-me lá.
13. No dia 2 de junho 29 recebi o boletim informativo da Ordem (Doc. M) sobre o desconfinamento dos tribunais e o descongelamento dos prazos judiciais (Lei n.° 16/2020), salientando que tal ocorreria no dia seguinte, quarta-feira 3 de junho. Tendo resolvido deslocar-me aos Correios apenas uma vez por semana, por razões de protecção da saúde, optei então por fazê-lo na sexta-feira: naquela semana, mesmo que no dia 3 estivesse disponível para levantamento algum mandado para cumprir em cinco dias (altamente improvável, pois não tinha pendente qualquer processo urgente), recebendo-o no dia 5 poderia preparar a resposta para o dia 8, segunda-feira; sucedeu naquele dia, porém, um imprevisto (o qual viria a repetir-se no dia 29: Doc. N), que me motivou a desistir: a porta tinha de ser aberta por quem entrava, sem condições mínimas de protecção antiviral (em março e abril havia uma funcionária a franquear a entrada individualmente). Só na segunda-feira, dia 8 de junho (Doc. A), por consequência, pude receber o correio entretanto distribuído ao meu apartado».
15. Numa síntese dolorida desta narração probatória, impõe-se-me afirmar que o presente processo é para mim muitíssimo importante: trata-se, no fundo, da minha defesa da honra contra uma deliberação de suspensão do exercício profissional da advocacia durante sete anos por me ter recusado a acatar o acto absolutamente ignóbil que foi a suspensão durante mais de vinte anos sob o pretexto da incompatibilidade de funções relativamente à actividade de revisor oficial de contas... enquanto um colega meu, inscrito no mesmo ano e já também advogado em 1994 (Doc. O), se veio sempre afirmando como tal até ao seu falecimento em 2016, apresentando-se publicamente, a partir de certa altura, como «Ex-Bastonário da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas/ROC/Advogado» (Doc. P)!? Mas, é claro, o vencimento desta causa só tem sentido se eu me mantiver vivo! Não posso, como não podia então, arriscar-me a contrair uma doença pandémica desta envergadura, demais a mais num município onde a unidade hospitalar local, o Hospital ..., já em finais de maio acusava um reduzidíssimo número de vagas nos cuidados intensivos, ficando-se hoje a saber, aliás, aquilo de que já se suspeitava: para as autoridades da Saúde, os maiores de 75 anos não são um grupo prioritário para tratamento, nem mesmo para vacinação.
16. Voltando ao tema. O senhor Juiz a quo tomou, portanto, conhecimento do teor daquele requerimento, assim como a senhora Mandatária da contraparte, que sobre o mesmo nada disse. Deveria o Tribunal, consequentemente, ter considerado esta alegação e respetivas provas, na justa medida em que demonstram factos complementares concretizando os «que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar», conforme expressamente previsto na alínea b) do n.° 2 do artigo 5.° do CPC. Mais: não podia o Tribunal decidente deixar de ter em consideração essa factualidade complementarmente invocada, em virtude do ali preceituado na alínea c): trata-se de factos de que o Tribunal teve conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
17. Visto tudo quanto antecede, forçoso será concluir que o principal Despacho reclamado, ao julgar não verificada in casu a situação de justo impedimento prontamente invocada, aplica a norma do n.° 1 do artigo 140º. do CPC segundo uma interpretação inconstitucional, porquanto em violação do princípio fundamental do processo equitativo.
18. Tal qualmente, ao julgar que o recurso em pendência foi interposto fora do prazo, decidindo por isso não o admitir, o Tribunal da causa aplica a norma conjugada do n.° 1 do artigo 144.0, implicitamente, e, explicitamente do n.° 2, alínea á), do artigo 145º., ambos do CPTA, segundo uma dimensão material inconstitucional, por ofensa outrossim ao princípio da tutela jurisdicional efectiva.
19. Resulta tal julgado, por consequência, nulo de pleno direito, pelo que não pode, em absoluto, proceder (…)”.
10. Devidamente notificada da convolação da reclamação inicialmente em recurso jurisdicional e para contra-alegar, a Recorrida nada disse.
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11. Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
12. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
13. Neste pressuposto, e atento o alcance decisório do aresto promanado pelo S.T.A. sede de recurso do revista, as questões essenciais a dirimir são as seguintes: (i) nulidade de sentença [despacho de 17.11.2020], “(…) por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC: resulta numa decisão ininteligível face ao comando legal que implicitamente aplica (…)”;(ii) nulidade processual por violação do princípio do contraditório em relação à matéria excetiva suscitada nas contra-alegações; e (iii) erro de julgamento de direito do despacho de 01.11.2020, por “(…) aplica[r] a norma do n.° 1 do artigo 140º. do CPC segundo uma interpretação inconstitucional, porquanto em violação do princípio fundamental do processo equitativo (…)”, tal como por “(…) aplica[r] a norma conjugada do n.° 1 do artigo 144.0, implicitamente, e, explicitamente, do n.° 2, alínea a), do artigo 145º., ambos do CPTA, segundo uma dimensão material inconstitucional, por ofensa outrossim ao princípio da tutela jurisdicional efectiva (…)”.
14. E na resolução de tais questões que consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO
15. Com interesse para a decisão sobre as questões ora elencadas, e por facilidade de análise, convoca-se [na parte pertinente] o quadro fáctico fixado no aresto promanado pelo S.T.A. no recurso de revista “(…):
1. Nos presentes autos foi proferida sentença em 14.05.2020;
2. O autor/recorrente deduziu recurso de apelação da sentença proferida nos autos em 08.07.2020;
3. Em 28.09.2020, foram produzidas contra-alegações pela recorrida Ordem dos Advogados, em que, de início, como questão prévia, foi suscitada a extemporaneidade da interposição do recurso;
4. Em 28.09.2020 a contraparte notificou o autor/recorrente das suas contra- alegações;
5. Em 07.10.2020 foi proferido o seguinte despacho:
“Em sede de contra-alegações, vem suscitada a rejeição do recurso, por intempestividade. Oiça-se o autor/recorrente sobre essa questão, em 5 dias.
Notifique.”
6. Não há registo nos autos de que este Despacho tenha sido notificado ao autor/recorrente;
7. Em 01.11.2020 foi proferido o seguinte despacho:
“Do recurso interposto em 08.07.2020
Notificado da sentença proferida em 14.05.2020, o autor dela veio interpor o respetivo recurso de apelação.
A recorrida/entidade demandada, notificada para apresentar as suas contra-alegações, veio desde logo suscitar a intempestividade do recurso apresentado.
Foi proferido despacho, em 07.10.2020, no sentido de, antes de mais, permitir ao recorrente/autor pronúncia sobre essa questão prévia. Nada veio dizer.
Cumpre decidir.
Com relevo para apreciar a tempestividade do recurso apresentado, resulta dos autos o seguinte:
A) Em 14.05.2020 foi proferida sentença, a final da qual se decidiu julgar "procedente, por provada, a exceção dilatória de intempestividade da prática do acto processual e, em consequência, absolve-se a Entidade Demandada da instância" - cf. sentença de ref.a ...23 junta aos autos;
B) Esta sentença foi comunicada ao autor mediante ofício de notificação de ref.a ...37, expedido por correio registado em 15.05.2020, para o endereço "Apartado ...3 - Rua ..., ... ..." - cf. o respetivo ofício junto aos autos;
C) O qual ficou disponível para levantamento naquele apartado em 20.05.2020, tendo-o sido apenas em 08.06.2020 - cf. documento junto com as alegações de recurso sob a ref.a ...75;
D) Por mensagem de correio eletrónico de 08.07.2020, o autor/recorrente remeteu a este TAF requerimento em que declara interpor recurso da sentença referida em A), juntando as respetivas alegações - cf. expedientes de refª. ...73 e ss. juntos aos autos.
Assente este acervo factual, vejamos então da tempestividade do recurso.
Ora, como é sabido, no âmbito do CPTA é de 30 dias o prazo para a interposição de recurso no âmbito dos processos de natureza não urgente, como é o caso dos autos - cf. artº.144.°, n.° 1, do referido código.
Trata-se, naturalmente, de um prazo processual, a cuja contagem se aplica o disposto no CPC, por remissão do artº. 1º. do CPTA.
Ou seja, o prazo em causa é contínuo, não se suspendendo em feriados ou dias de fim de semana, em conformidade com o artº. 138º. do CPC. Tal prazo só ficará suspenso no período de férias judiciais, e se terminar em dia em que os tribunais estiverem encerrados, o seu termo transfere-se para o dia útil seguinte.
Em todo o caso, é concedida à parte a possibilidade de praticar o ato em algum dos três dias úteis subsequentes ao seu termo, mas sujeitando-se, neste caso, ao pagamento de uma multa - cf. artº. 139º., nº. 5, do CPC.
Cumpre ainda assinalar que, in casu, a sentença foi diretamente notificada à parte, pelo que tem aplicação o disposto no artº. 249º., nº. 1, do CPC, nos termos do qual a notificação é efetuada mediante carta registada, presumindo-se a mesma efetuada no 3.0 dia posterior à data da expedição, ou no dia útil imediatamente seguinte, quando esse 3.0 dia o não seja.
Aqui chegados, vejamos se, em concreto, o prazo fixado na lei foi respeitado.
Como resulta da factualidade assente, a sentença foi notificada ao autor/recorrente mediante carta registada expedida em 15.05.2020. Logo, à luz do art. 249º, nº. 1 do CPC, acima referido, considera-se o autor notificado em 18.05.2020; no entanto, por estar provado que apenas foi depositada a carta no apartado em 20.05.2020, deve ser essa a data a considerar.
Todavia, esta diferença é irrelevante, dado que, como é sabido, nessa data os prazos processuais estavam suspensos, por força do artº. 7º, nº. 1, da Lei nº. 1-A/2020, de 19.03. Essa suspensão manteve-se até 02.06.2020, e só cessou no dia imediato (03.06.2020), com a entrada em vigor da Lei nº. 16/2020, de 29.05.
Portanto, o primeiro dia de prazo foi esse dia 03.06.2020.
Feita a respetiva contagem do prazo de 30 dias acima referido, temos que o mesmo terminou em 02.07.2020 (quarta-feira). Tinha ainda o autor/recorrente a possibilidade praticar o ato nos dias 3, 6 e 7 de julho de 2020 (os três dias úteis após a cessação do prazo previsto na Lei), mas não o fez, dado que, como está demonstrado, o requerimento de interposição de recurso apenas foi remetido ao Tribunal em 08.07.2020.
Logo, forçoso é concluir que, efetivamente, o recurso é intempestivo.
Nas suas alegações o recorrente vem invocar justo impedimento, porque em função do estado de emergência e, depois, do estado de calamidade, somente em 08.06.2020 foi notificado da sentença; mais afirma que, remetendo para um despacho do colendo STA, é dispensável fundamentar de facto essa ocorrência.
Não tem razão, segundo cremos.
Note-se que, como está provado, a missiva de notificação foi entregue no apartado do autor em 20.05.2020, e desde essa data ficou à disposição para levantamento por parte do autor. O que apenas terá feito em 08.06.2020, segundo se apurou.
Mas se assim o fez não foi por qualquer impedimento decorrente da declaração da situação de estado de emergência ou de estado de calamidade.
Desde logo, porque o estado de emergência terminou em 02.05.2020, em nada influenciando, por isso, a possibilidade de levantar a missiva de imediato nos correios. Depois, o estado de calamidade também nunca impediu qualquer deslocação ao serviço de correios para levantamento de correspondência. E se o autor optou, legitimamente, por rececionar a sua correspondência num apartado, em vez de o receber no domicílio, é sobre si que recai o ónus de levantar o correio aí depositado.
É que, como resulta provado, desde 20.05.2020 que a missiva estava depositada e pronta para levantamento.
Não pode, assim, admitir-se a invocação de um justo impedimento com base na alegação de existência de declaração de estado de emergência (que já não vigorava sequer no momento em que a notificação ocorreu), ou de estado de calamidade pública, quando este nunca foi impeditivo de deslocações ao serviço de correios (que, como se sabe, por ser público, manteve sempre a sua atividade em qualquer daquelas situações).
Além do mais, não pode admitir-se que, no caso de o notificado dispor de apartado, somente com o levantamento da carta se consideraria notificado; tal conduziria a uma situação distorcida das regras de notificação, permitindo a completa deturpação dos prazos processuais estabelecidos. Sem prejuízo de se dizer que, neste caso concreto, a notificação tem de considerar-se feita logo que a carta fica ao dispor do notificado no apartado, conforme aliás resulta da jurisprudência citada em contra-alegações, e que não podemos deixar de subscrever. Além de que o autor beneficiou da suspensão do prazo até 02.06.2020, ou seja, só no período de suspensão a carta esteve 13 dias à disposição para ser levantada.
Não ocorre, por isso, qualquer justo impedimento, pelo que, e nestes termos, é então de manter a conclusão segundo a qual o recurso é intempestivo.
Como decorre do disposto no artº. 145° n.° 2, al. a), do CPTA o requerimento de interposição de recurso deve ser indeferido quando se entenda que a decisão não admite recurso, que este foi interposto fora do prazo ou que o requerente não tem as condições necessárias para recorrer.
É o que, in casu, sucede, na medida em que, como visto, o aqui autor/recorrente interpôs o recurso fora de prazo. Por isso, deve o requerimento ser indeferido.
***
Nos termos e pelos fundamentos expostos, indefiro o requerimento de interposição de recurso em análise, com fundamento na sua intempestividade, pelo que, em consequência, não admito o recurso interposto.”
8. Este despacho foi notificado ao autor por ofício datado de 02.11.2020;
9. Em 16.11.2020 foi aberta conclusão com a seguinte informação:
“CONCLUSÃO, com informação de que aquando do cumprimento do despacho de 07-10-2020, por lapso não assumiu a notificação do autor/recorrente pelo que o mesmo não foi notificado”
10. Sob esta conclusão foi proferido o seguinte despacho em 17.11.2020:
“Vista a informação que antecede.
Como se colhe dos autos, independentemente da notificação daquele despacho, o recorrente foi notificado das contra-alegações apresentadas - cf. refª. ...03.
Teve, por isso, a possibilidade de se pronunciar sobre a questão suscitada, constituindo o despacho em causa um mero reforço da possibilidade de contraditório.
Assim sendo, a ausência de notificação do mesmo não tem qualquer influência no desenvolvimento do processo, pelo que não gera qualquer nulidade. Aliás, esta questão da tempestividade vinha avançada pelo próprio recorrente nas alegações de recurso.
Neste sentido, nada há a determinar em face da informação prestada, nomeadamente no sentido de anular o despacho anterior”;
11. Em 02.12.2020 o autor/recorrente apresentou Reclamação daquele despacho datado de 01.11.2020, complementado pelo despacho proferido a 17.11.2020, ao abrigo do disposto no artigo 145.°, n.° 3 do CPTA que dirigiu ao T.C.A. Norte (…)”.
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III.2 - DO DIREITO
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16. As questões decidendas, como se colhe textualmente do ponto II) do presente Acórdão, traduzem-se em determinar se nos presentes autos se (i) o despacho recorrido de 17.11.2020 é nulo, “(…) por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC: resulta numa decisão ininteligível face ao comando legal que implicitamente aplica (…)”; (ii) se ocorre nulidade processual por violação do princípio do contraditório em relação à matéria excetiva suscitada nas contra-alegações; e ainda (iii) se o despacho de 01.11.2020 incorreu em erro de julgamento de direito, por “(…) aplica[r] a norma do n.° 1 do artigo 140º. do CPC segundo uma interpretação inconstitucional, porquanto em violação do princípio fundamental do processo equitativo (…)”, tal como por “(…) aplica[r] a norma conjugada do n.° 1 do artigo 144.0, implicitamente, e, explicitamente, do n.° 2, alínea á), do artigo 145º., ambos do CPTA, segundo uma dimensão material inconstitucional, por ofensa outrossim ao princípio da tutela jurisdicional efectiva (…)”.
17. Vejamo-las especificadamente.
18. Assim, e quanto à primeira questão decidenda eleita nos autos, importa que se comece por sublinhar que, nos termos da alínea c) do nº. 1 do artigo 615º do CPC: ” É nula a sentença quando (…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; (...)”.
19. Os fundamentos desta nulidade são, portanto, a (i) eventual falta de encadeamento da conclusão decisória com a respetiva motivação fáctico-jurídica ou (ii) a eventual ambiguidade ou obscuridade da decisão que tornem ininteligível.
20. A respeito da obscuridade e ambiguidade da sentença - cujo fundamento integra a alegação recursiva -, doutrinava o Professor Alberto dos Reis, que a “… sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível: é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz ...” [in: “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V., págs. 151 e 152].
21. Pois bem, visto o teor do despacho de 17.11.2020, melhor evidenciado no ponto do 10) do probatório, não se descortina a existência de qualquer obscuridade ou ambiguidade no discurso que o Mmº. Juiz a quo ali expendeu, o qual é perfeitamente inteligível.
22. De facto, a matéria da “ausência de notificação do Autor do despacho emanado em 07.10.2020” foi ali abordada de forma clara, não se vislumbrando em que medida o juízo decisório ali contido se pode qualificar de ininteligível.
23. Naturalmente, em face de tal juízo decisório, poder-se-á equacionar a utilidade processual do despacho emanado em 07.10.2020, que determinou a audição do Recorrente para se pronunciar, no prazo de cinco dias, se pronunciar quanto à questão prévia de intempestividade do recurso suscitada nas contra-alegações.
24. Contudo, em momento algum se poderá afirmar que o despacho de 17.11.2020 não é claro ou mesmo que é susceptível de diferentes interpretações.
25. Por conseguinte, em consonância com a lógica que se vem supra de expor, falece inteiramente o argumentário do Recorrente em torno da existência de uma nulidade de sentença [in casu, despacho], fundada na ininteligibilidade dos seus termos.
26. Idêntica conclusão, porém, já não é atingível quanto à segunda questão decidenda convocada no presente recurso, e que se prende com a eventual violação do princípio do contraditório.
27. Para explicitação do juízo que se vem de expor, mostra-se útil começar por deixar um breve enquadramento teórico necessário para a apreciação da questão.
28. O princípio do contraditório constitui, a par do princípio do dispositivo, a trave mestra do direito processual, sem o qual dificilmente as decisões seriam substancialmente justas.
29. Como decorrência deste princípio, é proibida a decisão surpresa, ou seja, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.
30. Assim, antes de decidir com base em factos ou questões de direito que as partes não tiveram oportunidade de se pronunciar sobre a mesma, o juiz deve convidá-las a pronunciarem-se sobre tal questão, independentemente da fase do processo em que tal ocorra.
31. Tudo isto para concluir que a não observância do dever pelo juiz que se vem de expor, no sentido de ser concedido às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão, constitui violação do princípio do contraditório plasmado no artigo 3º, nº3 do CPC, incluindo-se tal violação na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do artº 201º, nº1 do C.P.C., que, na medida que possa influir no exame e decisão da causa, a sua verificação determina a procedência de tal nulidade.
32. Volvendo ao caso recursivo em análise, caber notar que o probatório coligido nos autos é inequívoco na afirmação da “falha de notificação” do despacho judicial editado em 07.10.2020, que determinou a audição do Recorrente para se pronunciar, no prazo de cinco dias, se pronunciar quanto à questão prévia de intempestividade do recurso suscitada nas contra-alegações.
33. A questão que se coloca, no seguimento, é a de saber se a irregularidade processual assim patenteada é suscetível [ou não] de gerar ou poder influir no exame ou na apreciação do requerimento do recurso – tal como delineada no nº.1 do artigo 145º do C.P.T.A - , designadamente, por violação do princípio do contraditório plasmados no artº 3º, nº3 do CPC, conduzindo à nulidade da decisão judicial recorrida.
34. A resposta é claramente favorável às pretensões do Recorrente, por duas ordens de razão, a saber:
35. A primeira ordem de razão prende-se com a circunstância de se tratar de matéria que desempenhou manifesto relevo na apreciação do requerimento do recurso jurisdicional sobre a qual o Recorrente não teve a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.
36. Acresce que, e entrando já na segunda ordem de razões, não é possível formular um qualquer juízo de que a eventual resposta do Recorrente no que tange à invocada questão prévia intempestividade do recurso não possa influir no exame ou na apreciação de tal recurso, de modo a que se possa considerar sem relevo no contexto da causa.
37. Em todo o caso, saliente-se que o princípio do contraditório não implica um juízo do juiz quanto à necessidade de ouvir as partes, nomeadamente por considerar que elas ainda têm algo a dizer-lhe com relevo para o que tem a decidir.
38. Implica, antes, que as partes têm o direito de dizerem ao juiz aquilo que naquele momento ainda entendem ser relevante.
39. Essa é, pelo menos, uma oportunidade relevante cerceada, não podendo presumir-se que, mesmo sendo exercida, a decisão seria a mesma, pela simples razão de que não foi exercida.
40. Desta feita, na medida em que o Recorrente viu defraudada essa expectativa que a lei lhes assegurava, e não podendo presumir-se que, mesmo sendo exercida, a decisão seria a mesma, impõe-se reconhecer a razão do Recorrente na invocação da nulidade processual em análise.
41. Nestes termos, o referido desvio processual - na medida em que é suscetível de influir no exame e na decisão da causa -, face ao disposto no art. 195º n.º 1, do CPC de 2013, conduz à anulação dos termos processuais subsequentes.
42. Consequentemente, deve ser concedido provimento ao recurso do despacho de 17.112020, anulado todo o processado praticado desde sua prolação para que se proceda à notificação do Recorrente do teor do despacho de 07.10.2020, seguida da oportuna prolação do juízo decisório previsto no artigo 145º do C.P.T.A.
43. Ao que se provirá no dispositivo, o que determina a prejudicialidade no conhecimento das demais questões objeto de recurso [artigo 95º, nº. 1 in fine do C.P.T.A. e 608º nº.2 do CPC].
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IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso jurisdicional do despacho judicial editado em 17.11.2020, e, em consequência, anular todo o processado praticado desde a sua prolação para que se proceda à notificação do Recorrente do teor do despacho de 07.10.2020, seguida da oportuna prolação do juízo decisório previsto no artigo 145º do C.P.T.A.
Custas a cargo da Recorrida.
Notifique e registe.
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Porto, 21 de abril de 2023,

Ricardo de Oliveira e Sousa
Rogério Martins
Luís Migueis Garcia