Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00647/11.0BEAVR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:01/12/2012
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Catarina Almeida e Sousa
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
DÍVIDAS DOS CÔNJUGES
EXERCÍCIO DO COMÉRCIO
DÍVIDAS CONTRAÍDAS NA CONSTÂNCIA DO MATRIMÓNIO
Sumário:I - As dívidas tributárias são da responsabilidade de ambos os cônjuges, nos casos em que estão em causa actividades lucrativas, atento o exercício do comércio que essas actividades pressupõem e pela presunção de proveito comum das dívidas contraídas nesse exercício.
II - Sendo a dívida exequenda da responsabilidade comum do casal, já que contraída no exercício do comércio (al. d) do nº 1 do art. 1691º do CCivil) e na constância do matrimónio, pelo seu pagamento respondem os bens comuns do casal e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges (nº 1 do art. 1695º do CCivil).*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:C...
Recorrido 1:Fazenda Pública
Votação:Maioria
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte
1- RELATÓRIO
C…, inconformada com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, datada de 27 de Setembro de 2011, que julgou improcedente a presente reclamação de actos do órgão de execução fiscal, interposta a coberto do disposto nos artigos 276º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que teve por objecto a penhora do imóvel correspondente ao artigo urbano nº … Fracção D, da freguesia de P…, concelho de A…, efectuada no processo de execução fiscal n.º 0094200601048228, do Serviço de Finanças da Feira 1, dela veio interpor o presente recurso jurisdicional, formulando as seguintes conclusões:
a) Com o presente recurso a ora recorrente pretende clarificar duas situações jurídicas: em primeiro lugar, quais as dívidas que podem ou não responsabilizar ex-cônjuge do executado e, em segundo lugar, quais são os requisitos essenciais do titulo executivo.
b) A decisão recorrida deve ser alterada no que toca à matéria de facto dada como provada, uma vez que, os factos alegados no art° 12 da petição inicial, são essenciais para a boa decisão da causa, e não foram impugnados, pelo que, deveriam ter sido dado como assentes.
c) A decisão recorrida encontra-se, pois, ferida de nulidade nos termos dos art°s 668º n°1 alínea b) e art° 712º alínea b), ambos do CPC, o que se alega e para os devidos efeitos legais.
d) Entende a recorrente que no caso “sub judice” e atenta a matéria de facto dada como provada o direito teria que ter tido uma melhor e diferente aplicação e que a decisão recorrida teria que ter sido diferente – art. 1692º alínea b) do C. Civil, art° 163º n° 1 alínea d) e art°. 165 n°1 alínea b), ambos do CPPT.
e) A decisão recorrida está, ainda, em oposição com a melhor jurisprudência anterior do Supremo Tribunal Administrativo, e que aqui se indica a título meramente informativo e que não colide directamente com a oposição de acórdão anteriormente referida, nomeadamente, nos seguintes casos: Ac. STA de 15-1-97, recurso n°21053, AP DR de 14-5-99, página 88; e Ac. STA de 5-12-2001: AD 484ª641, cit. por Abílio Neto – C. Civil Anotado - 14ª edição, pág. 1515.
f) Ao contrário do decidido pelo “Tribunal a quo” no caso concreto, e atenta a matéria de facto dada como provada e o referido nas alíneas b) e e) do ponto IX - não tem aplicação, no caso concreto, o disposto no art° 1691º n°1 alínea d) do C. Civil.
g) Não tem aplicação, no caso concreto o disposto no art° 1691 n°1 alínea d) do C.Civil, uma vez que, na génese de toda a dívida da presente execução está a liquidação adicional de IVA referente aos anos de 2002 a 2004 ao sujeito passivo, V… em resultado de uma actividade ilícita - fraude fiscal art°s 103º e 104º do RGIT - segundo a fundamentação do relatório fiscal junto ao autos com a petição inicial - V. docs. 1 e 2.
h) A dívida emerge de um acto tributário de liquidação da administração fiscal (aliás como são todas!), mas, subjacente a esse acto de liquidação, segundo o relatório da administração fiscal, encontra-se uma actividade ilícita p.p pelos art°s 103º e 104º, ambos do RGIT - utilização na contabilidade do executado, V…, de facturas “falsas”.
i) Foi a suposta utilização destas “facturas falsas” por parte do executado, V…, na sua contabilidade que deram lugar ao apuramento do imposto liquidado, e não existe outra causa ou qualquer outro motivo!!!
j) Discorda, ainda, a recorrente da decisão proferida pelo Tribunal “a quo” no que toca à aplicação do direito, porque, o seu nome, nem o seu domicílio não constam das certidões de dívida da presente execução (sendo certo que são diferentes do executado - matéria de facto assente B e C) e esta só aparece na execução dois anos e meio após a mesma ter sido instaurada contra o verdadeiro executado, e quando já encontrava divorciado deste desde 3-11-2005.
k) Os títulos dados à execução carecem de força executiva em relação à ora recorrente, porque se encontram feridos de nulidade - art°s 163º n°1 alínea d) e art° 165º n°1 alínea b), ambos do CPTT.
l) Sendo a ora recorrente parte ilegítima nos presentes autos de execução, porque a dívida não lhe é comunicável, não podiam os seus bens próprios ser penhorados, para responder por uma divida de terceiro.
m) A penhora efectuada pela 1ª Repartição de Finanças de Santa Maria da Feira é ilegal e nula, pelo que, se impõe a revisão da decisão proferida pelo Tribunal recorrido, por erro de julgamento e consequente violação da lei substantiva e processual.
n) A decisão recorrida violou entre outros preceitos legais, o disposto nos art°s 163º n° 1 alínea d) e art° 165 alínea b), ambos do CPPT, art. 1692º alínea b) do C. Civil e art° 26º do CPC, e os art°s 668º n°1 e 712 n°1, ambos do CPC.
o) A decisão recorrida, violou, ainda, como supra se referiu a jurisprudência anterior do Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente, o AC do STA de 22-04-2009, sobre a mesma matéria de facto e de direito.
TERMOS EM QUE, deve ser admitido o presente recurso, nos termos do art° 283º do CPPT, e em consequência, ser anulada a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, e a final ser julgada procedente a reclamação apresentada pela recorrente nos termos do art° 276º do CPPT”.
Não foram produzidas contra-alegações.
Neste Tribunal, o Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.
Com dispensa dos vistos legais, atenta a natureza urgente do processo (artigo 707º, nº 4 do Código de Processo Civil (CPC) e artigo 278º, nº 5 do CPPT), cumpre agora apreciar e decidir, visto que nada a tal obsta.
As questões suscitadas pela Recorrente e delimitadas pela alegação de recurso e respectivas conclusões [nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º e 684º, nºs 3 e 4, todos do CPC, ex vi artigo 2º, alínea e) e artigo 281º do CPPT] são as seguintes:
(i) da nulidade da sentença que a Recorrente subsume aos artigos 668º, nº1, al. b) e 712º, nº1, al. b) do CPC – conclusões a) a c);
(ii) do erro de julgamento da sentença recorrida ao ter decidido que ao caso em análise era aplicável o disposto no artigo 1691º, nº1, alínea d) do Código Civil (CC) - conclusões d) a i), l), m), n) e o);
(iii) do erro de julgamento da sentença recorrida porquanto “os títulos dados à execução carecem de força executiva em relação à recorrente, porque se encontram feridos de nulidade – artºs 163º, nº1 alínea d) e artº 165º, nº1, alínea b), ambos do CPPT” - conclusões j), k) e n).
2 - FUNDAMENTAÇÃO
É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida, a qual se transcreve:
“1. O processo de execução fiscal nº 0094200601048228 foi instaurado a 11 de Setembro de 2006 pelo Serviço de Finanças de Feira 1, contra V… para cobrança coerciva de IVA referente aos anos de 2002, 2003 e 2004, no montante global de € 1.845.009,71 (um milhão e oitocentos e quarenta e cinco mil e nove euros e setenta e um cêntimos);
2. V… e C… contraíram casamento a 06 de Janeiro de 2002, o qual foi dissolvido a 03 de Novembro de 2005;
3. C… foi citada a 03 de Fevereiro de 2009;
4. C… foi notificada a 04 de Julho de 2011, da penhora efectuada sobre o imóvel inscrito na matriz urbana sob o nº … da freguesia de P…, A…;
5. A presente reclamação foi apresentada a 15 de Julho de 2011;
6. As liquidações de IVA de onde emergem as dívidas exequendas tiveram por base uma acção inspectiva levada a cabo pelos serviços de inspecção tributária à actividade de comércio por grosso de sucatas de metal e desperdícios metálicos desenvolvida pelo executado nos exercícios de 2002, 2003 e 2004, sendo sujeito de IVA no regime normal de tributação com periodicidade mensal, acção inspectiva que permitiu concluir que as compras escrituradas e declaradas para efeitos fiscais por V… – pelo facto de não corresponderem às transacções efectivamente realizadas, ou por não corresponderem, pura e simplesmente, a qualquer transacção real – o que levou a Administração Fiscal a não reconhecer o direito à dedução do IVA que aquele havia efectuado e a proceder à liquidação adicional de IVA.
Factos não provados
Dos demais factos alegados, nenhum mais tem interesse para a boa decisão da causa.
Motivação da decisão de facto
A decisão da matéria de facto, consonante ao que acima ficou exposto, efectuou-se com base nos documentos e informações constantes do processo, nomeadamente, assento de casamento – fls. 1080 – RIT – fls. 902 e ss.”
De acordo com as alegações de recurso, em concreto nos termos das conclusões a) a c), defende a Recorrente que a sentença recorrida é nula, invocando, para tanto, os artigos 668º, nº1, al. b) e 712º, nº1, al. b) do CPC.
Para sustentar este seu entendimento, defende a Recorrente que “a decisão deve ser alterada no que toca à matéria de facto dada como provada, uma vez que, os factos alegados no artº 12º da p.i, são essenciais para a boa decisão da causa, e não foram impugnados, pelo que deveriam ter sido dados como assentes”.
No aludido artigo 12º da p.i, a Reclamante, ora Recorrente, fez constar que “Na sequência do referido relatório da Administração Fiscal foi instaurado ao sujeito passivo V… processo-crime que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas sob o Proc. nº 6/06/6 IDSTR, precisamente por causa do IVA que é reclamado nos presentes autos de execução fiscal (Doc. 2 adiante junto e aqui dado por reproduzido para os devidos efeitos legais)”.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 125º, nº1 do CPPT, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (nulidade esta igualmente prevista no artigo 668º, nº1, al. b) do CPC).
Como tem sido uniforme e reiteradamente entendido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA), só se verifica tal nulidade quando ocorra falta absoluta de fundamentação, o que não se confunde com a motivação insuficiente, medíocre ou até errada Entre muitos, os acórdãos do STA, de 16/11/11, 16/11/11, 17/03/11, 01/09/10 e 17/12/08, proferidos nos processos 0526/11, 0802/10, 0716/10, 0653/10 o 01003/05, respectivamente..
No que toca à matéria de facto, a nulidade em causa refere-se, não apenas à falta de discriminação dos factos provados e não provados, imposta pelo artigo 123º, nº2 do CPPT, mas também à falta do exame crítico das provas, previsto no artigo 659º, nº3 do CPC.
Ora, analisando a sentença recorrida, está bem de ver que a mesma discriminou os factos provados dos não provados (ainda que, quanto a estes, para considerar que “dos demais factos alegados, nenhum mais tem interesse para a boa decisão da causa”), como expressamente se referiu à motivação da decisão de facto, considerando que a mesma tem na sua base os documentos e informações constantes do processo, nomeadamente o assento de casamento – fls. 1080 – RIT – fls. 902 e ss.
Portanto, e sem necessidade de mais amplas considerações, fácil é concluir que a sentença recorrida não padece da invocada nulidade (artigos 125º, nº1 do CPPT e artigo 668º, nº1, alínea b) do CPC), a qual, repete-se, só ocorre quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto (ou a indicação dos fundamentos de direito), o que, manifestamente, não é o caso.
Contudo, do teor das alegações de recurso e correspondentes conclusões a) a c) percebe-se que o que a Recorrente pretende questionar é o julgamento da matéria de facto, em concreto não ter sido levado ao probatório um facto por si alegado e que, do seu ponto de vista, é essencial à correcta decisão da causa. Aliás, assim se entende a invocação do artigo 712º, nº1, alínea b) do CPC.
Vejamos, então, se, como pretende a Recorrente, deve ser aditado ao probatório o facto alegado no artigo 12º da p.i, cujo teor se deixou já transcrito, e que se refere ao processo que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas sob o nº 6/06/6 IDSTR.
Como se retira das alegações de recurso, pretende a Recorrente que, a partir de tal facto, o Tribunal possa concluir que subjacente às dívidas em execução fiscal está uma actividade que consubstancia a prática de um crime (no caso, o crime de fraude fiscal), donde, em face do disposto no artigo 1692º, alínea b) do CC, as referidas dívidas deveriam ser consideradas da exclusiva responsabilidade do cônjuge a que respeitam (que não da ora Recorrente).
Vejamos.
Nos termos do artigo 511º, nº 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 2º, alínea e) do CPPT, o juiz selecciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida.
Quer isto dizer, pois, que relativamente à matéria de facto o juiz não tem o dever de tomar posição sobre toda a matéria alegada, impondo-se-lhe, ao invés, o dever de seleccionar unicamente a matéria de facto que interessa para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis de direito (vide, além do artigo 511º, os artigos 508º-A, nº1, al. e) e 659º do CPC).
A consideração das várias soluções plausíveis da questão de direito, impõe ao juiz que a selecção dos factos não seja limitada “aos factos essenciais, ou relevantes, para a solução daquelas questões que, no seu entendimento, são pertinentes: seja qual for a sua visão da que deva ser a solução jurídica da causa e o caminho para a atingir, o juiz tem de seleccionar também os factos que interessem a outras vias de solução possível do litígio, tidas em conta as posições assumidas pelas partes quanto à fundamentação jurídica das pretensões e excepções e as correntes doutrinárias e jurisprudenciais formadas em torno dos tipos de questão que se levantem. Assim, desde que ambas as teses (jurídicas) sejam compreensivelmente defensáveis, (a base instrutória) deve abranger, entre os factos articulados, todos os que interessam às duas posições”. Vide, José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, Anotado, Volume 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 381.
Assim sendo, independentemente do acerto, ou não, da posição defendida pela Recorrente, entende-se que, efectivamente, a mesma pretende retirar, na sua perspectiva, relevantes efeitos jurídicos do apontado facto.
Merece, pois, acolhimento a pretensão da Recorrente, aditando-se ao probatório fixado na sentença recorrida o seguinte ponto:
7 – Na sequência do relatório de inspecção a que se reporta o ponto 6 supra, foi instaurado no Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas o processo nº 6/06.6IDSTR, no âmbito do qual, em 14/05/08, foi deduzida acusação contra, entre outros, V…, pela prática de um crime de fraude fiscal, p.p pelos artigos 6º, 103º e 104º, nº2 do Regime Geral das Infracções Tributárias – cfr. fls. 1028 a 1078 dos autos;

Ao abrigo do disposto no artigo 712º do CPC, dada a sua relevância para a decisão da causa, adita-se a seguinte matéria de facto, que também resulta provada documentalmente:

8 – A citação a que alude o ponto 3 supra foi efectuada nos seguintes termos:
“Nos termos do nº 2 do artigo 193º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e do artigo 864º do Código de Processo Civil (CPC), pela presente fica notificado/citado da penhora do bem abaixo identificado, efectuada por este Serviço de Finanças no processo de execução fiscal em epígrafe em que é co-executada, instaurado por dívidas de IVA dos anos de 2002 a 2004, no montante de € 1.647.071,53 e respectivo acrescido constituído por juros de mora e custas, que corre termos para cobrança da respectiva dívida, ficando nomeado na qualidade de fiel depositário (233º CPPT e 843º do CPC).
Poderá, querendo, apresentar reclamação para o Tribunal Administrativo e Fiscal (276º CPPT) no prazo de 10 dias a contar da presente notificação/citação.
Caso ainda não tenha sido anteriormente citado, deverá, no prazo de 30 dias a contar da presente citação, proceder ao pagamento da dívida exequenda e acrescido, nos termos acima indicados, ou, querendo, requerer o pagamento em prestações se legalmente aplicável (196º CPPT), a dação em pagamento (201º CPPT) ou ainda deduzir oposição judicial (204º CPPT).
Decorrido aquele prazo, sem que tenha sido efectuado o referido pagamento, nem tenha sido deduzida oposição judicial com prestação de garantia (196º CPPT), proceder-se-á à venda coerciva, sendo o montante resultante da mesma, aplicado no processo de execução fiscal em causa, podendo vir a ser incluída na lista de contribuinte devedores sujeita a divulgação pública (64º/5 LGT).
(…)” – cfr. fls. 210 dos autos.
9 - O casamento da Recorrente com V… foi celebrado no regime da comunhão de adquiridos – cfr. fls. 1080 e 1081 dos autos;
10 – Na sequência da dissolução do matrimónio que a Recorrente havia celebrado com V…s, em 12/12/05, foi efectuada a partilha dos bens comuns do casal, tendo sido adjudicada à Recorrente a fracção autónoma designada pela letra D, destinada a habitação, do prédio urbano sito na L…, freguesia de P…, concelho de A…, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo … e descrita na CRP de Alcobaça sob o nº … – cfr. escritura de partilha, a fls. 1083 a 1087 dos autos.
Passemos a analisar o invocado erro de julgamento da sentença recorrida ao ter decidido que ao caso em análise era aplicável o disposto no artigo 1691º, nº1, alínea d) do Código Civil.
Considerou-se na sentença recorrida, que acolheu na íntegra a fundamentação do acórdão deste TCAN, de 24/09/09, proferido no processo nº 661/09.5BEVIS, o qual se pronunciou sobre a mesma questão e em que as partes e a execução fiscal são as mesmas (apenas diferindo os bens objecto de penhora), o seguinte:
“(…) dado que estamos em presença de dívidas tributárias contraídas em função e por motivo da actividade comercial desenvolvida pelo executado durante o período de tempo em que se encontrava casado com a Reclamante, há que imputar a responsabilidade pelo pagamento dessas dívidas a ambos os cônjuges, salvo se a Reclamante provar que as dívidas não foram assumidas em proveito comum do casal. O que ela não fez, pois que nem sequer alegou esse facto”.
Contra este entendimento, defende a Recorrente que, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, no caso concreto não tem aplicação o disposto no art° 1691º, n°1, alínea d) do CC, uma vez que na génese de toda a dívida da presente execução está a liquidação adicional de IVA referente aos anos de 2002 a 2004 ao sujeito passivo, V…, em resultado de uma actividade ilícita - fraude fiscal - art°s 103º e 104º do RGIT.
Com efeito, prossegue a Recorrente, foi a suposta utilização destas “facturas falsas” por parte do executado, V…, na sua contabilidade, que deram lugar ao apuramento do imposto liquidado, e não existe outra causa ou qualquer outro motivo. Assim sendo, a dívida exequenda não lhe é comunicável (leia-se, à ora Recorrente), pelo que não podiam os seus bens próprios ser penhorados para responder por uma dívida de terceiro.
Vejamos, então, tendo presente que Reclamante foi chamada à execução nos termos previstos no artigo 239º do CPPT, citação esta feita obrigatoriamente quando são penhorados bens imóveis ou móveis sujeitos a registo e que visa conferir ao cônjuge a qualidade de executado, com a possibilidade de exercer, a partir daí, todos os direitos processuais que são atribuídos ao executado.
Recentrando a questão a decidir, importa saber se a execução fiscal instaurada por dívidas de IVA dos anos de 2002 a 2004, as quais foram contraídas pelo ex-marido da Recorrente na constância do matrimónio (de acordo com o ponto 2 dos factos provados, o casamento só foi dissolvido em 3/11/05), pode prosseguir sobre bens próprios da Recorrente ou se, contrariamente, é ilegal a penhora efectuada, devendo ser ordenado o levantamento da mesma.
Como decorre do acervo factual assente, as dívidas em cobrança coerciva respeitam a liquidações adicionais de IVA resultantes do exercício da actividade comercial do executado – comércio por grosso de sucatas de metal e desperdícios metálicos, desenvolvida pelo executado nos anos de 2002, 2003 e 2004 e indevida dedução do IVA efectuada no âmbito dessa actividade – as quais foram contraídas na constância do matrimónio com a ora Recorrente. Com efeito, o matrimónio só foi dissolvido em 3/11/05.
Nos termos do disposto no artigo 1691º, al. d) do CC, são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas por qualquer deles no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens.
Por seu turno, dispõe o artigo 1695º, nº1 do CC que pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges respondem os bens comuns do casal, e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges.
Quer isto dizer, pois, que “as dívidas de impostos emergentes de actividades lucrativas pressupõem o exercício do comércio e o proveito comum das dívidas contraídas na actividade comercial” – vide acórdão do STA, de 25/05/04, proferido no processo nº 476/06. No mesmo sentido, os acórdãos do STA de 12/11/97, processo nº 21507, de 14/10/09, processo nº 0502/09; do TCA Sul, de 16/06/05, processo nº 00591/03 e TCA Norte de 05/05/05, no processo 00062/03.
No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do STA, de 15/10/03, proferido no processo nº 1845/02, segundo o qual “As dívidas tributárias são da responsabilidade de ambos os cônjuges, nos casos em que estão em causa actividades lucrativas, atento o exercício do comércio que essas actividades pressupõem e pela presunção de proveito comum das dívidas contraídas nesse exercício”.
De resto, no que respeita aos impostos incidentes sobre actividades lucrativas, diversos autores têm defendido a responsabilidade de ambos os cônjuges (R. Carvalho e F. Pardal, Código de Processo das Contribuições e Impostos, Anotado e Comentado, p. 204, Baptista Lopes, A Penhora, p. 117, L. Araújo, Processo de Execução Fiscal, p. 293 e Lopes Cardoso, em Administração dos Bens do casal, pp. 227 e segs.), justificada pelo exercício do comércio que as referidas actividades pressupõem e pela presunção de proveito comum das dívidas contraídas no seu curso.
No caso em apreciação, as dívidas exequendas respeitam a IVA devido em resultado da actividade comercial do sujeito passivo ex-marido da Recorrente; tais dívidas são relativas a período de imposto anterior à dissolução do matrimónio; vigorava entre os cônjuges o regime da comunhão de adquiridos.
Porque assim é, há que concluir, nos termos das disposições legais citadas, que as dívidas em causa são da responsabilidade de ambos os cônjuges, respondendo por elas os bens do casal e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer um deles. Só assim não seria se se tivesse provado que as dívidas não foram contraídas em proveito comum do casal Neste sentido, e em situação idêntica àquela que aqui se discute, veja-se o acórdão do TCAN, de 13/11/08, no processo nº 00470/05.0 BEBRG, nos termos do qual “tendo-se apurado que os processos de execução fiscal n.º (…), por dívidas de IVA e juros compensatórios dos anos de 1997, 1998 e 1999, foram autuados, apenas, contra o executado José, em sintonia com o supra expendido, só podemos, legal e legitimamente, imputar à executada Maria de Lurdes responsabilidade pelo pagamento coercivo das mesmas no pressuposto de que se mostre possível, seja viável, concluir pela existência de uma dívida susceptível, capaz, de responsabilizar ambos os cônjuges, a coberto do estatuído no art. 1691.º n.º 1 al. d) Cód. Civil (…) Noutros termos, estando-se em presença de dívidas tributárias contraídas em função e por motivo do exercício, por parte do, então, marido da Rte, da indústria/comércio de construção civil, a responsabilidade do respectivo pagamento é de imputar a ambos, salvo se a executada Maria de Lurdes provar que os visados débitos não foram assumidos em proveito conjunto do casal. Descartada a hipótese, nunca aventada, de entre os cônjuges ter vigorado o regime matrimonial da separação de bens”., o que não é o caso.
Vejamos.
É certo, e o Tribunal não desconsidera, que a Recorrente invoca que está subjacente ao IVA adicionalmente liquidado (e em cobrança coerciva) a consideração da sua dedução indevida por o mesmo assentar em facturas que não titulam reais transacções. É certo, igualmente, e o Tribunal não desconsidera, que, na sequência do relatório de inspecção a que se reporta o ponto 6 do probatório, foi instaurado o processo nº 6/06.6IDSTR, que corre termos junto do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas, no âmbito do qual foi o executado, V…, acusado da prática de um crime de fraude fiscal, p.p pelos artigos 6º, 103º e 104º, nº 2 do RGIT.
Contudo, este Tribunal não pode acompanhar a conclusão que daí pretende retirar a Recorrente, no sentido de se tratar de uma dívida proveniente de um crime e, como tal, nos termos previstos no artigo 1692º, alínea b) do CC, ser uma dívida da exclusiva responsabilidade do cônjuge a que a mesma respeita.
A dívida exequenda, contrariamente ao que defende a Recorrente, não é proveniente de um crime de fraude fiscal; a dívida exequenda foi liquidada pela Administração Tributária, no uso das suas competências legais de liquidação de impostos. Ou, como se refere no citado acórdão do TCAN de 24/09/09, “(…) não se diga, como pretende a Recorrida, que a dívida é proveniente de crime de fraude fiscal atenta a acusação que o Ministério Público contra ele deduziu no Tribunal Judicial da Comarca de Torres na sequência da actividade ilícita descrita no relatório da inspecção tributária. A dívida emerge de um acto de liquidação de imposto efectuada pela Administração Fiscal e não de qualquer condenação criminal que, porventura, tenha recaído ou venha a recair sobre o sujeito passivo do imposto por força daquela acusação”.
Portanto, afastada que está, em definitivo, a possibilidade de a dívida em causa ser considerada como proveniente de crime, cai por terra a argumentação da Recorrente no sentido de que tais dívidas não admitem a prova de que contribuíram ou puderam ter contribuído para o proveito comum do casal.
Não tem razão a Recorrente, como vimos.
As dívidas em causa, provenientes de impostos devidos pelo exercício de uma actividade comercial exercida pelo executado Valdemar, na constância do matrimónio, não podem deixar de se incluir no âmbito do disposto no artigo 1691º, nº 1, al. d) do CC. Como tal, a responsabilidade que a lei atribui a ambos os cônjuges só seria de afastar, repete-se, se se provasse que as dívidas não foram contraídas em proveito comum do casal (ou se vigorasse entre os cônjuges o regime de separação de bens).
Ora, como atrás se deixou referido, a Recorrente, a este propósito, e por entender que as dívidas são provenientes de crime (e já vimos que não o são), defende que as mesmas não se podem considerar contraídas em proveito comum do casal, pelo que a Recorrente acabou por não alegar (e provar) factos que permitissem retirar a conclusão de que, no caso, as dívidas exequendas não foram contraídas em proveito de ambos os cônjuges. Quer isto dizer, pois, que a Recorrente não ilidiu, como lhe competia, a presunção de proveito comum a que se refere o artigo 1691º, alínea d) do CC.
Portanto, no caso, a dívida de IVA é da responsabilidade de ambos os cônjuges, respondendo por tais dívidas, nos termos do artigo 1695º, nº1 do CC, os bens comuns do casal, e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges.
A Recorrente “é também responsável pela dívida exequenda, sendo irrelevante que os bens em causa tenham sido adquiridos e registados após a dissolução do casamento, porquanto os seus bens próprios respondem também pela mencionada dívida” – vide, o citado acórdão do TCAN, de 24/09/09.
De resto, deve tomar-se em consideração que, nos termos do nº 2 do art. 1690º do CC, para a determinação da responsabilidade dos cônjuges, as dívidas por eles contraídas têm a data do facto que lhes deu origem Neste sentido, o acórdão do TCA Sul, de 15/06/05, processo 00591/03. , sendo certo que, no caso, entre 2002 e 2004, a Reclamante estava casada com o executado V…, no regime de comunhão de adquiridos A responsabilidade dos cônjuges perante terceiros não é afectada pelo divórcio, de modo que não existindo bens comuns a partilhar, responderão pelas dívidas os bens próprios de cada cônjuge e ainda os bens que cada um vier a adquirir posteriormente ao divórcio – vide, ac. da Rel. de Lisboa, de 1/6/10, proc. 2104/09..
Refira-se, por último e com respeito à conclusão transcrita na alínea o), que, contrariamente ao defendido pela Recorrente, não tem aplicação à situação sub judice, a jurisprudência emanada do acórdão do STA, de 22/04/09 (processo 0324/08), pois que aí se tratou de uma situação diferente daquela que aqui se discute. Com efeito, ao invés daquilo que aqui se verifica, tratou-se ali da penhora de bens de “outro responsável terceiro em relação ao processo executivo, que não foi chamado através de citação”, o que, logo se vê, nos afasta do caso em apreço.
Improcedem, pois, as conclusões da alegação de recurso que vínhamos analisando, relativas ao erro de julgamento da sentença recorrida ao ter decidido que ao caso em análise era aplicável o disposto no artigo 1691º, nº1, alínea d) do Código Civil.
Apreciemos seguidamente o alegado erro de julgamento da sentença recorrida porquanto “os títulos dados à execução carecem de força executiva em relação à recorrente, porque se encontram feridos de nulidade – artºs 163º, nº1 alínea d) e artº 165º, nº1, alínea b), ambos do CPPT”.
Defende a Recorrente, a este propósito, que “o seu nome, nem o seu domicílio não constam das certidões de divida da presente execução (sendo certo que são diferentes do executado (…) e esta só aparece na execução dois anos e meio após a mesma ter sido instaurada contra o verdadeiro executado, e quando já encontrava divorciado deste desde 3-11-2005”.
Vejamos, desde já, em que termos se pronunciou a sentença recorrida quanto a este fundamento invocado na reclamação – nulidade decorrente da falta de requisitos essenciais do título executivo.
“Ora, quanto à matéria em causa, a arguição de nulidades no processo de execução fiscal derivada da falta de citação e da falta de requisitos essenciais do título executivo, devem ser arguidas perante o órgão de execução fiscal e, só depois da decisão que recair sobre tal arguição, se for desfavorável, é que poderá ser deduzida reclamação nos termos dos artigos 276º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 21 de Maio de 2008, recurso nº 220/08, de 25 de Março de 2009, recurso nº 923/09 e de 01 de Janeiro de 2009, recurso nº 1050/08. Nesse sentido, cfr. Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, Volume II, 2007, pág. 270).
Não sendo usado o meio processual adequado segundo a lei, de acordo com o disposto no artigo 97º, nº 3 da Lei geral Tributária (LGT), em caso de erro na forma do processo, este será convolado na forma de processo adequada.
Porém, nos presentes autos, a Reclamante reage da penhora sobre um imóvel, sendo que o meio processual utilizado é o adequado nos termos do artigo 276º do CPPT.
Existindo cumulação de pedidos e ocorrendo erro na forma do processo, de acordo com Jorge Lopes de Sousa (Nesse sentido, cfr. Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, Volume II, 2007, pág. 116), é de considerar sem efeito o pedido para o qual o processo não é adequado”.
Ora, como está bem de ver em resultado da transcrição feita, o Mmo. Juiz a quo, não apreciou a invocada nulidade decorrente da falta de requisitos essenciais do título executivo. E não o fez porque, como justificou, tal nulidade deveria ter sido, antes de tudo, invocada junto do órgão da execução fiscal e só posteriormente, caso não fosse atendida tal pretensão, é que a executada deveria reclamar ao abrigo do artigo 276º do CPPT.
Entendeu, pois, o Mmo. Juiz que, quanto a este fundamento, havia um erro na forma processual, sem possibilidade de correcção através de convolação para a forma de processo adequada.
Diga-se, desde já, que o Mmo. Juiz andou bem ao assim ter decidido.
Com efeito, no que respeita à falta de requisitos do título executivo, a jurisprudência do STA, embora inicialmente tenha afirmado a possibilidade de arguição desta nulidade e seu conhecimento em processo de oposição, tem entendido, mais recentemente que tal nulidade só pode conhecer-se no processo de execução fiscal. Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos: do Pleno da Secção Tributária do STA de 23-2-2005, processo n.º 574/04, da Secção de Contencioso Tributário do STA, de 28-2-2007, processo n.º 1178/06, de 14-3-2008, processo n.º 950/06, de 23-10-2007, processo n.º 26762 e do Pleno de 19-11-2008, processo n.º 430/08. Vide, Jorge Lopes de Sousa, obra citada, III Volume, pág. 145.
Portanto, tal nulidade deveria ter sido arguida em requerimento dirigido à execução fiscal para aí ser apreciada e decidida e, após, da decisão aí proferida caberia reclamação a apresentar nos termos previstos no artigo 276º do CPPT.
Em suma, nada há, pois, a apontar à sentença recorrida quanto à apreciação que fez no que respeita à nulidade decorrente da falta de requisitos essenciais do título executivo.
3 - CONCLUSÃO
Termos em que, improcedendo todas as conclusões da alegação da Recorrente, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TCAN em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Porto, 12 de Janeiro de 2012
Ass. Catarina Almeida e Sousa
Ass. Irene Neves
Ass. Nuno Bastos (Voto vencido porque entendo que o recurso merece provimento, com a fundamentação que, de seguida, exponho resumidamente:
I. Nas relações patrimoniais entre os cônjuges e terceiros credores colocam-se dois problemas distintos, que merecem tratamento diferenciado: o primeiro é o problema da comunicabilidade da dívida; o segundo é o problema de saber se (e de que modo), sendo a dívida incomunicável, o credor pode aceder aos bens comuns dos cônjuges ou aos bens do cônjuge não devedor. E que, por razões de simplificação aqui designarei (à falta de melhor expressão) de comunicação de patrimónios.
Vejamos primeiro o problema da comunicabilidade da dívida: ele só se coloca quando a dívida tenha sido contraída por um dos cônjuges. Se a dívida foi contraída por ambos (ou por um deles com o consentimento do outro) a dívida é, obviamente, comum. Mas quando a dívida é contraída por apenas um deles, não é comum, mas diz-se «comunicável», se tiver revertido em proveito comum do casal.
O proveito comum do casal (expressão que aqui é utilizada em sentido lato) pode, basicamente, advir do facto de a dívida ter sido destinada aos encargos normais da vida familiar (proveito comum directo) o de ter sido destinada a enfrentar outras despesas, mas tendo ainda em vista um «fim comum» (proveito comum indirecto). Ocorrendo este proveito comum, a dívida diz-se então comunicável. Entendeu o legislador que as acções dos cônjuges dirigidas a um objectivo comum devem ser assumidas por ambos (no bem e no mal, na saúde e na doença, na pobreza e na riqueza e, agora, nos benefícios e nos prejuízos).
A questão adjectiva que anda associada ao problema da comunicabilidade da dívida é a de saber se o proveito comum pode ser discutido em fase executiva (e, por conseguinte, se a questão da comunicabilidade da dívida pode ser levada à execução).
Sobre esta questão se formaram no passado três correntes essenciais: para a primeira, a questão do proveito comum nunca poderia ser colocada em fase executiva, porque a comunicabilidade da dívida deve resultar do título; para a segunda, a questão da comunicabilidade da dívida podia ser sempre colocada em fase executiva, quando o exequente pretendesse accionar também o património comum ou o património do outro cônjuge; para a terceira, a questão da comunicabilidade da dívida podia ser colocada em fase executiva quando o credor beneficiasse da presunção a que alude o artigo 15.º do Código Comercial (sobre estas três posições, vd. a obra do Prof. Alberto dos Reis, «Processos Especiais», vol. I, pág.s 423 e seguintes).
Vingou a tese de que a questão da comunicabilidade da dívida só pode ser colocada em fase declarativa, como decorria do artigo 825.º do Código de Processo Civil (na redacção anterior à que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março). O que significa que, até à reforma que lhe foi introduzida por este último diploma, a questão da comunicabilidade da dívida não podia ser colocada em fase executiva. O que, de resto, até era mais consentâneo com a função primordial do processo executivo, que não é, seguramente, a de declarar direitos e deveres (nomeadamente a comunicabilidade das obrigações a quem não se obrigou), mas a de os executar.
O Decreto-Lei n.º 38/2003 citado veio dar nova redacção ao artigo 825.º do Código de Processo Civil, permitindo que a questão da comunicabilidade da dívida fosse suscitada pela primeira vez em fase executiva, desde que o exequente tivesse alegado, no requerimento inicial, que a dívida é comum.
Mas este regime não é transponível para a execução fiscal, onde o impulso é oficioso. De resto, a Administração Tributária norteia-se, nas suas relações com os contribuintes, por critérios de legalidade estrita, não havendo espaço para uma opção entre accionar os dois cônjuges ou um deles apenas. Razões de coerência lógica imporiam também que a execução contra o cônjuge do devedor (quando não figure no título) com base na comunicabilidade da dívida fosse promovida através do instituto da reversão, à semelhança do que se prescreve para a reversão contra terceiros mencionada nos artigos 157.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário. É que o instituto da reversão é precisamente o instrumento procedimental de natureza declarativa destinado a viabilizar a reorientação da pretensão executiva contra quem não figura no título.
De todo o exposto decorre que o novo regime, introduzido no artigo 825.º do Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, não é aplicável à execução fiscal (neste sentido, vd. a obra do Sr. Conselheiro Dr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Volume II (2007), pág. 452). E que, por conseguinte, a questão da comunicabilidade da dívida não pode ser colocada em fase executiva. A Administração Tributária, querendo assegurar a responsabilização do cônjuge do devedor, deve também contra ele dirigir o procedimento respectivo.
É diferente o problema designado da comunicação de patrimónios: consiste em saber se, respondendo, em princípio, e de acordo com os artigos 601.º do Código Civil e 50.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária apenas o património comum (quando a dívida é comunicável) ou apenas o património do cônjuge devedor (quando a dívida é incomunicável) o credor pode aceder ao património do outro cônjuge ou ao património comum, conforme o caso.
É precisamente sobre este problema que rege o artigo 220.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Dele decorre que pelas dívidas que são da responsabilidade de cada um dos cônjuges, também responde o património comum, desde que se dê ao outro cônjuge a oportunidade de requerer a separação de patrimónios (separação judicial de bens) e este não tenha usado de tal faculdade.
II. Resulta dos autos que o processo de execução fiscal foi instaurado apenas contra o ex-cônjuge marido por dívida de I.V.A. contraída na vigência do casamento no exercício da sua actividade de comércio de sucatas. O proveito comum presume-se, mas nunca foi invocado em sede procedimental, visto que a certidão de dívida foi emitida só em nome do ex-cônjuge. Assim sendo, e não sendo aqui aplicável o artigo 825.º do Código de Processo Civil, na redacção que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003 citado, também não pode ser suscitado em sede executiva.
Resolvido ficaria, assim, o problema da comunicabilidade da dívida. Restaria a questão de saber se, não sendo a dívida comunicável, poderia o credor Estado aceder ao património do ex-cônjuge (visto que, à data da penhora, já se tinha dissolvido o património e o imóvel penhorado já tinha sido adjudicado à Recorrente).
Decorre, ademais, do artigo 220.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário que o credor Estado só poderia aceder ao património do cônjuge devedor e ao património comum. Fazendo o imóvel parte do acervo dos bens próprios do cônjuge não devedor, a penhora é ilegal.
Por maioria de razão, será ilegal a penhora de bem próprio do ex-cônjuge do devedor que não é, ele próprio, devedor.
III. Poderia contrapor-se que, tendo a ora Recorrente sido citada como executada (nos termos do artigo 239.º do C.P.P.T.) lhe restaria reagir contra a pretensão executiva no seu todo invocando a incomunicabilidade da dívida. E aceita-se que, se a oposição à penhora é o meio processual adequado para reagir contra o acto da penhora, só a oposição à execução será meio processual para obstar ao seu prosseguimento.
Mas a incomunicabilidade da dívida não afecta apenas a legalidade da pretensão executiva contra o cônjuge ou ex-cônjuge do executado; afecta também – e directamente – a legalidade do acto de penhora se se tratar de um bem próprio dele. Acto que, no caso, até é anterior à sua citação.
Pondera-se, por outro lado, que a citação a que alude o artigo 239.º do C.P.P.T. é efectuada sempre que forem penhorados bens imóveis ou móveis sujeitos a registo (sejam eles bens próprios de qualquer dos cônjuges ou comuns) e não tem finalidade específica. E nem sempre será fácil ao cônjuge do executado saber se está a ser chamado por ter sido penhorado um imóvel ou porque o Órgão de Execução Fiscal entende que é responsável pelo pagamento da dívida.
Pelo que também não se veria fundamento para negar provimento à Recorrente por aqui.)