Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00204/08.8BEMDL
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:03/25/2021
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Rosário Pais
Descritores:IRS; AJUDAS DE CUSTO; ÓNUS DA PROVA;
Sumário:I - De acordo com o entendimento atual do princípio da legalidade administrativa, incumbe à AT o ónus de prova da verificação dos requisitos legais das decisões positivas e desfavoráveis ao destinatário, como sejam a existência dos factos tributários e a respetiva quantificação, isto quando o ato por ela praticado tem por fundamento a existência do facto tributário e a sua quantificação.

II - Assim, incumbe à AT, em sede do procedimento administrativo-tributário de liquidação, indagar sobre a verificação do facto tributável e demais elementos pertinentes à liquidação do imposto, fazendo todas as diligências pertinentes para o efeito, e tal procedimento só pode culminar com a liquidação em sentido estrito quando, face aos elementos constantes do processo administrativo, estiver adquirida a convicção da existência e conteúdo do facto tributário (princípio da verdade material).*
* Sumário elaborado pela relatora
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:A.
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.
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Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
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1. RELATÓRIO

1.1. O Exm.º Representante da Fazenda Pública vem recorrer da sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, em 22.09.2009, pela qual foi julgada procedente a impugnação judicial deduzida por A. contra a liquidação de IRS do ano de 2004, considerando que ficou por demonstrar que os pagamentos regulares, efetuados pela entidade patronal do Impugnante, a título de ajudas de custo, não tinham qualquer fim compensatório.

1.2. A Recorrente Fazenda Pública terminou as respetivas alegações formulando as seguintes conclusões:
«A-) Questão controvertida- determinação do enquadramento fiscal e da natureza tributária da verba – €14.881,68 – atribuída pela entidade patronal ao Impugnante;
Recorrente- natureza remuneratória, enquadrável na Categoria A de rendimentos, decorrente da prestação de trabalho por conta de outrém e sujeita a tributação nos termos do nº 2 do artº 2º do CIRS;
Recorrido/Impugnante- natureza compensatória, a título de Ajudas de Custo, excluída da tributação em sede de IRS.
B-) O recorrente, na contestação, cumpriu o ónus de alegar/fornecer factualidade indiciária – artigo 5º do presente recurso – de que os abonos recebidos a título de ajudas de custo, não tinham qualquer fim compensatório, e devidamente explicitada e fundamentada, com base no relatório de inspecção tributário, o que contraria o juízo judicativo, expresso na douta sentença recorrida, da falta de explicação, pelo RFP, da relevância jurídica/processual dos factos-índices.
C-) A fim de consolidar e confirmar a factualidade indiciária constante do art. 5º do presente recurso, bem como, acrescentar demais factualidade indicativa, o recorrente requereu ao Tribunal, em sede de Contestação, diligência de produção de prova nos termos do nº1 do art. 110º do CPPT, conjugado com o disposto nos arts. 58º e 99º da LGT
D-) Com tal diligência vem o RFP ao encontro do Juízo expresso na Douta sentença recorrida, segundo o qual, e cita-se “As acções são julgadas procedentes/não procedentes, considerando, geralmente, os factos alegados pelas partes e a respectiva prova, ou as regras relativas ao ónus da prova, que sobre eles se faça.” cfr. pág.7 da Sentença (sublinhado e negrito nosso)
E-) Vem, também, tal questão, entroncar no objecto e fundamentação do antecedente recurso interposto do Douto despacho interlocutório, proferido pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, que Julgou dispensável, por desnecessário, ou inútil, a inquirição de testemunhas, por suficiência dos elementos para conhecer do pedido, nos termos do art.113º n.1 do CPPT
F-) Pedido de produção de prova, traduzível na notificação ao Recorrido/Impugnante e à sua entidade patronal, no sentido de juntar aos autos elementos de natureza documental e de prestação de informação, cujo objecto de incidência se reporta a matéria já solicitada pela Inspecção Tributária (IT) em sede de acção de fiscalização, e elencada e identificada no relatório de inspecção, e para o qual o pedido de produção de prova remete, com identificação respectiva, e que se encontra descrita na página 6 do relatório da IT, no seu nº2.1 – itens 1 a 9, quanto à entidade patronal do Impugnante e na página 7 do relatório da IT, no seu nº2.2 – itens 1 a 5, quanto ao Impugnante
G-) Nomeadamente, quanto a indagar sobre a natureza das verbas atribuídas a título de ajudas de custo; aferir ou não do direito à atribuição de ajudas de custo; Controlar os valores atribuídos a título de ajudas de custo; controlar as diferenças entre os valores a receber constantes do recibo e os valores efectivamente recebidos; confirmar, ou não, a existência de cantinas, dormitórios e clínicas com utilização destas pelo impugnante; confirmar da natureza, tipo, finalidade, e montante das despesas que teve que suportar a favor da sua entidade patronal, por motivo da deslocação
H-) Pedido de prova já inviabilizado, em sede de procedimento inspectivo tributário, por atitude, senão, parcialmente impeditiva, claramente obstaculizadora e nada cooperante, da recorrida/Impugnante e entidade patronal, face à não entrega, após notificação (Of. nº5611 de 24.10.2007), dos elementos e informação solicitados
I-) Incumprido foi o dever geral de cooperação e colaboração vinculativo da actuação do contribuinte, com correspectiva violação normativa constante dos arts. 31º n.2, 59ºn.3 al.c) e d) e nº4, 63ºn.1, todos da LGT, art.48ºn.2 do CPPT, e art.9º do RCPIT
J-) O que importa, quanto ao ónus de prova previsto no art.74º da LGT, (que recai na IT, e que depende da sua actividade inspectiva-investigatória, que, por sua vez, exige a colaboração da entidade fiscalizada) a imputação da não produção de prova, não à IT, mas antes à entidade fiscalizada, na parte (factos) em que este dever foi violado, devendo o ónus de prova ser invertido e passar a pender sobre o Impugnante/fiscalizado.
K-) E, na situação de dúvida sobre a verificação do facto tributável, nos termos do art.100º do CPPT, deve a mesma ser resolvida contra a parte que, no caso, violou o dever de colaboração na produção de prova solicitada,
L-) Pedido de prova referida a matéria de facto devidamente alegada em sede de Contestação e de relevância essencial e diferenciadora na questão a decidir
M-) Pedido de prova a que o Tribunal, se escusou, por, não só, falta de fundamentação, mas, mais além, falta de pronúncia e decisão expressa
N-) Constitui imperativo legal, no caso de não efectivação da diligência requerida, primeiro, a prolacção de decisão expressa nesse sentido, e, depois, que essa decisão seja dotada de um mínimo de fundamentação que tome perceptível as razões do decidido ambas, no caso presente, inverificadas
O-) Do que decorre, a violação normativa dos arts. 13º, 110º, 113º, 114º e 115º, todos do CPPT, e correspectiva violação dos princípios jurídico-tributários da oficialidade e da investigação/inquisitório
Q-) E violação do exercício do direito do contraditório, ao legitimar-se o conhecimento imediato do pedido sem apuramento da verdade material quanto a factos essenciais na questão a decidir
R-) O que importa, verificação de nulidade processual na parte da não pronúncia sobre a diligência probatória requerida, nos termos do art. 201º do CPC
Termos em que, e nos melhores de Direito aplicáveis, deve:
Ser concedido provimento ao Recurso, e, em consequência, Ser revogada a Douta Sentença, proferida pelo Meritíssimo Juíz do Tribunal “a quo”, que julgou a Impugnação procedente
Ser ordenada a reforma da Sentença no sentido de Julgar o seguinte:
Declarar-se a nulidade do despacho recorrido, na parte da não pronúncia sobre a diligência probatória requerida, nos termos do art. 201º do CPC
Ser proferido novo Despacho que tome em conta a ajuíze sobre a diligência probatória requerida
Ser, a verba de € 14.881,68, atribuída pela entidade patronal ao Recorrido/Impugnante, enquadrável fiscalmente na Categoria A de rendimentos, decorrente da prestação de trabalho por conta de outrém e sujeita a tributação nos termos do nº 2 do artº 2º do CIRS, e, portanto, atribuir-se-lhe a natureza tributária de verdadeiras remunerações acessórias, sujeitas a tributação, nos termos do nº2 do artº 2º do CIRS
· Ser julgada válida, por regular e legal, a liquidação de IRS, ora impugnada, no montante de €3.694,25, resultante de correcções meramente aritméticas à matéria tributável, referente ao exercício de 2004, devidamente notificada ao Recorrido/Impugnante
Assim se fazendo inteira, JUSTIÇA».
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1.3. O Recorrido A. apresentou contra-alegações, que concluiu nos seguintes termos:

«1ª – A douta sentença recorrida mostra-se conforme à factualidade provada e ao Direito, pelo que deve ser mantida na íntegra.
2ª – Também o Ministério Público sustenta a procedência da impugnação.
3ª – Como entende a douta decisão recorrida e tem decidido de forma pacífica a Jurisprudência, é à Administração Tributária que compete demonstrar a existência dos factos constitutivos dos seus direitos, ou seja, que ocorreram situações susceptíveis de serem tributadas, designadamente ao abrigo do artigo 2º do Código do IRS.
4ª – No fundo, do que se trata é de que cabe à AT dar satisfação ao ónus que lhe incumbe de “apontar elementos factuais demonstrativos ou seriamente indiciastes de que os abonos recebidos (pelo Impugnante, aqui recorrente) não tinham qualquer fim compensatório.” (Cfr. Ac. nº 0063/01, do TCANORTE, de 06-04-2006, in www.dgsi.pt, Acs. do STA, de 06.03.2008 e 06.03.2008, e Sentenças do TAF de Braga, de 22.05.2007, e do TAF de Penafiel, de 07-02-2007, que se juntam – Docs. 1, 2, 3 e 4).
5ª – A AT não alegou, nem obviamente provou, quaisquer factos que demonstrem que as quantias pagas pela S. ao Impugnante tinham carácter remuneratório ou integrante da sua retribuição.
6ª – E não se olvide que o acto tributário impugnado – liquidação adicional de IRS ao Impugnante – assentou única e exclusivamente na consideração pelo Fisco de que as quantias em causa constituíram remuneração do Impugnante e não ajudas de custo.
7ª – É sobre a AT que recai o ónus da prova dos factos constitutivos do acto tributário sub judice, isto é, da liquidação adicional de IRS ao Impugnante (cfr., Artº 74º da LGT).
8ª – As declarações feitas pelos contribuintes, no caso a declaração de IRS apresentada pelo Impugnante, beneficiam da presunção de verdade e de boa fé (cfr. Artº 75º da LGT)!
9ª – O Meritíssimo Sr. Dr. Juiz a quo não violou o princípio do inquisitório plasmado nos artigos 515º do CPC, 13º do CPPT e 99º da LGT.
10ª – A AT, aqui Recorrente, é que não alegou os factos fundamentadores ou enformadores do acto tributário e, por conseguinte, não os podia provar.
11ª – O Impugnante nem é funcionário público nem está subordinado às disposições do Dec. Lei nº 106/98, 24-04, mas apenas ao DL 192/95, de 28/07, uma vez que se trata de trabalhador deslocado em país estrangeiro (cfr. cit. Sentença do TAF de Braga, de 22.05.2007, e Sentenças do TAF de Mirandela, de 29.12.2006 e de 26.03.2007, em questão absolutamente igual à dos presentes autos – cit. Doc. 3 e Docs. 5 e 6).
12ª – Logo pelo preâmbulo daquele primeiro diploma legal se evidencia que a intenção do legislador foi a de introduzir um conjunto de alterações pontuais ao precedente DL nº 519-M/79, de 28/12 (então com quase 20 anos), “de molde a adequá-lo à nova realidade económica e social”. (Sic.).
13ª – Ora, o referido DL 519-M/79 estabelecia o regime jurídico do abono de ajudas de custo e transporte ao pessoal da Administração Pública, quando deslocado em serviço público em território nacional.
14ª – Esse diploma legal não se aplica ao abono de ajudas de custo e transporte ao pessoal da Administração Pública quando deslocado em serviço público no estrangeiro.
15ª – De resto, o Artº 15º desse DL corrobora inequivocamente este entendimento ao dispor que “O abono de ajudas de custo por deslocações ao estrangeiro e no estrangeiro é regulado por diploma próprio.” (Sic., com sublinhado nosso).
16ª – “Pois bem, o próprio Decreto-Lei n.º 106/98, exclui da sua regulamentação as ajudas de custo atribuídas em deslocação ao estrangeiro e no estrangeiro, conforme expressamente refere o seu artigo 15º.” (passagem da sentença do TAF de Braga, de 22-05-2007, supra citado).
17ª – “Assim, o DL 106/98 é inaplicável à situação em apreço, pelo que qualquer acto praticado e fundamentado nos pressupostos deste diploma enferma do vício de violação de lei, ...” (idem).
18ª – Posteriormente à entrada em vigor daquele DL não foi ainda publicado diploma próprio, pelo será aplicável tão-somente o DL 192/95, como acima se referiu.
19ª – “Desta forma aplicar uma norma que ao caso não pode ser aplicada por não reger sobre ajudas de custo ao estrangeiro é facto deveras original, gravoso e ilegal” (idem).
20ª – E sendo aplicável este último diploma legal, resulta dos autos (concretamente da inspecção tributária), em primeiro lugar, que não foram ultrapassados os limites da tabela a que se refere a alínea a) do nº 1 do seu Artº 20.
21ª – Por conseguinte, a questão ou fundamento precedente – não aplicabilidade ao caso sub judice das disposições gerais do DL 106/98, de 24-04 – em que o Recorrido decaiu é invocado a coberto do nº 1 do Artº 684º-A do CPC (Ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido), ou seja, a título subsidiário, prevenindo a necessidade da sua apreciação.
22ª – Por outro lado, mesmo que se pretendesse que ao caso sub judice se aplicam as “Disposições gerais” do DL 106/98, isto é, o 1º e o 2º Artigos, o que se não admite nem aceita, a situação em análise preenche os pressupostos de incidência dessas normas, pois que se trata de trabalhadores deslocados do seu domicílio necessário (Artº 1º, nº 1), este tal como considerado no Artº 2º.
23ª – Trata-se de trabalhador deslocado em serviço para local diferente do seu domicílio necessário.
24ª – O Recorrido, embora deslocado temporariamente em País estrangeiro, celebrou com a sua entidade patronal (S.) um contrato de trabalho em Portugal e para exercer a sua actividade profissional em território nacional.
25ª – Simplesmente, como se trata de empresa com actividade em países estrangeiros, tem necessidade de fazer deslocar temporariamente para aí trabalhadores nacionais e a prestar serviço em Portugal para suprir necessidades locais, designadamente, cumprimento de contratos de maior complexidade técnica e de prazo fixo e improrrogável, que foi o que se verificou na situação em apreço.
26ª – É justamente para situações deste tipo que o CCT para o sector da construção civil e obras públicas estabelece que as deslocações para fora do continente são sempre objecto de acordo escrito entre o trabalhador e a entidade patronal, podendo acordar-se o pagamento de ajudas de custo (Artº 31º).
27ª – Foi exactamente o que se passou na presente situação, em que a entidade patronal do impugnante celebrou com este um adicional ao contrato de trabalho pré-existente prevendo a sua deslocação para País estrangeiro, por um período de seis meses, embora renovável.
28ª – Todavia, apesar do pontual acordo para a deslocação, a obrigação originária foi para prestar trabalho em Portugal, obrigação que permanece válida, sendo aliás, obrigação principal!
29ª – O adicional ao contrato de trabalho começa por estabelecer que o contrato originário se mantém e dá por reproduzido e integrado (Cláusula 1ª), prevendo a obrigação do trabalhador regressar de imediato a Portugal logo que terminado o período de tempo acordado (claúsula 8ª, nº 1), e mesmo a possibilidade de a entidade patronal mandar regressar de imediato o impugnante a Portugal, fazendo cessar a deslocação (cláusula 8ª, nº 2).
30ª – Para efeitos dos ares 1º e 2º do DL 106/98, o domicílio necessário do impugnante é Portugal, por ser esse o local onde aceitou o lugar ou cargo e aí ficou a prestar serviço.
31ª – O facto de, ulteriormente, ter aceite ser deslocado para país estrangeiro para aí temporariamente prestar o concurso do seu trabalho não retira a Portugal o carácter de domicílio necessário.
32ª – A entidade patronal do impugnante, e as empresas portuguesas de maior dimensão do sector, sempre assim procedeu, tendo sido alvo, ao longo dos últimos anos, de diversas acções de fiscalização e/ou inspecção e nunca os serviços da DGCI puseram em causa tal procedimento.
33ª – O que não pode deixar de significar que sempre tiveram como bom e correcto esse procedimento!
34ª – Pôr agora em causa esse mesmo procedimento, depois de dezenas de anos de prática constante e reiterada, consubstanciaria uma violação do princípio da tutela da confiança dos administrados na actuação da Administração Pública.
35ª – Atitude que é fortemente lesiva e penalizadora quer dos interesses da empresa quer do ora impugnante e dos demais trabalhadores, pois ter-se-iam alterado procedimentos caso a DGCI nas diversas inspecções e acções de fiscalização a que procedeu tivesse sancionado o procedimento seguido.
36ª – Por isso, sempre a obrigação agora preconizada de enquadrar as ajudas de custo como rendimento do trabalho dependente também constituiria violação do princípio da boa-fé, na vertente do venire contra factum proprium!
TERMOS EM QUE,
deve ser negado provimento ao Recurso, mantendo-se integralmente a douta sentença recorrida.
ASSIM SE FARÁ
JUSTIÇA!».
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1.4. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu o parecer com o seguinte teor:
«Vem interposto recurso jurisdicional da sentença do TAF de Mirandela que julgou procedente a impugnação judicial deduzida pelo ora recorrido contra a liquidação de IRS, relativo ao ano de 2004, a qual resultou do entendimento da AT segundo o qual os rendimentos pagos pela entidade patronal a título de ajudas de custo, e que não fez constar a sua declaração de rendimentos, mais não eram que rendimentos do trabalho dependente, sujeitos à incidência do IRS nos termos do art. 2.º do respectivo Código.
Inconformada com o decidido na sentença, dela vem recorrer a FP, fundamentando-se, em síntese, no seguinte:
1. A sentença recorrida enferma da nulidade decorrente de omissão de pronúncia, consignada no art. 668.º, n.º1, al. d) do CPC, porque não se pronunciou sobre o pedido de inversão do ónus da prova, requerido nos termos dos art.s 344.º, n.º 2 do C. Civil e 519.º do CPC, relativamente à confirmação da existência de dormitórios e cantinas nas instalações da entidade patronal, bem como à confirmação da efectiva utilização dessas estruturas por parte do impugnante, durante o período em que esteve deslocado.
2. Impunha-se, portanto, que se decidisse pela inversão do ónus da prova relativamente à referida factualidade e se procedesse à inquirição das testemunhas arroladas pelas partes para apurar a verdade material dos factos relevantes para a boa decisão da causa.
A nosso ver o recurso não merece provimento.
Nos termos do art. 2.º do CIRS o imposto incide sobre qualquer tipo de rendimento de trabalho, com exclusão das ajudas de custo que não excedam os limites legais.
Como “in casu” não se questiona que os valores em causa não correspondem ao excesso legal de ajudas de custo, a controvérsia cinge-se à questão de saber se há uma descaracterização desses valores como ajudas de custo.
O conceito de ajudas de custo vem definido no art. 87.º do DL 49408 (Regime jurídico do contrato individual de trabalho), nos termos do qual: “Não se consideram retribuições as importâncias recebidas a título de ajudas de custo, abonos de viagem, despesas de transporte e outras equivalentes, devidas ao trabalhador por deslocações ou novas instalações feitas em serviço da entidade patronal, salvo quando, sendo tais deslocações frequentes, essas importâncias, na parte em que excedam as despesas normais tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da remuneração do trabalhador”.
Assim, partindo da definição legal supra referida, as ajudas de custo visam compensar o trabalhador por despesas efectuadas ao seu serviço e em favor da entidade patronal e que, por razões de conveniência, foram suportadas pelo próprio trabalhador, não constituindo uma contraprestação do trabalho realizado e daí que não sejam tributadas em sede de IRS.
Por isso, o art. 2.º do CIRS que define os rendimentos de trabalho tem de ser interpretado no sentido de que a respectiva incidência se faz sobre o rendimento efectivo dos contribuintes, abrangendo apenas hipóteses em que as atribuições pecuniárias feitas aos trabalhadores por conta de outrem visam proporcionar-lhe um acréscimo patrimonial, afastando a incidência relativamente a atribuições patrimoniais que visam apenas compensar o trabalhador das despesas que teve de suportar para assegurar o exercício adequado da função.
Como no caso concreto, os montantes sobre os quais a AT fez incidir a tributação ora em apreço foram atribuídas a título de ajudas de custo, com vista a compensar o impugnante pelo acréscimo de despesas decorrente da sua deslocação do seu domicílio necessário, era sobre a AT que recaia o ónus de provar que tais verbas não se destinavam a cobrir o acréscimo de despesas suportadas pelo impugnante, em consequência da sua deslocação da sua residência habitual.
Daí que o pedido de inversão do ónus da prova, formulado pela AT nos autos, era ilegal, pois que esse ónus lhe cabia (ao invocar o direito à tributação efectuada), e não se verificava nenhuma das hipótese legais – as consignadas nos n.ºs 1 e 2 do art. 344.º do C. Civil – para a respectiva inversão, pois não ocorre presunção legal a favor da AT, nem disposição legal que a libere desse ónus, nem ocorre a hipótese de a parte contrária ter culposamente tomado impossível a prova ao onerado, até porque a prova da respectiva factualidade era acessível, em igualdade de modo, a ambas as partes.
E sendo ilegal o pedido d inversão do ónus da prova, estava o tribunal “a quo” dispensado de sobre ele se pronunciar.».
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Dispensados os vistos legais, nos termos do artigo 657.º, n.º 4, do CPC, cumpre apreciar e decidir, pois que a tanto nada obsta.
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2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Uma vez que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, cumpre apreciar e decidir se ocorre nulidade processual, decorrente da não pronúncia do Tribunal a quo sobre a diligência probatória requerida pela Fazenda Pública, com a consequente violação dos princípios do inquisitório/ investigação e do contraditório. Mais importa analisar se, na falta desta prova, por omissão do dever de colaboração pelo Recorrido e sua entidade patronal, deve considerar-se invertido o ónus da prova e se a liquidação deve ser mantida, por força do artigo 100.º do CPPT, por subsistir dúvida sobre a verificação do facto tributável, a qual há de ser resolvida contra a parte que violou tal dever.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. DE FACTO
A decisão recorrida contém a seguinte fundamentação de facto:
«Com interesse para a decisão considero provados os seguintes factos:
1. Na sequência de uma acção de inspecção externa ao exercício do ano de 2004 à firma “S., SA” contribuinte n.º (…), com sede na Rua (…), realizada pela AT, verificou que a sociedade identificada pagou ao A., a título de ajudas de custo, o montante de 14.881,68 €;
2. Nessa sequência, e para o que aqui importa, foi o Impugnante notificado da liquidação de IRS n.º 2008 4000038531 de 9/4/2008, no montante de 3.011,22 €, tendo contudo pago 3.694,25 €, conforme “Demonstração de Acerto de Contas” de fls. 13
3. Em 1/7/2002 entre a “S.” e o Impugnante foi celebrado um contrato de trabalho por tempo indeterminado, com as seguintes cláusulas, para o que interessa aos presentes autos, e cujo teor considero provado:
a. O primeiro contraente é uma empresa de construção civil e obras públicas que exerce a sua actividade em território Nacional e Estrangeiro;
b. O segundo contraente é pintor, com a categoria profissional de oficial de 1ª;
c. Pelo presente contrato, o segundo contraente obriga-se para com o primeiro contraente a dar-lhe, sob a direcção e autoridade deste, na profissão e com a categoria indicada na cláusula anterior (descrita na al. b) concurso do seu trabalho, mediante a remuneração de 458,00 €;
d. O local de trabalho do segundo contraente abrange toda a cidade do Porto, os concelhos de Vila Nova de Gaia, Gondomar, Maia, Matosinhos, Valongo e Macedo de Cavaleiros;
e. O segundo contraente aceita prestar, sem quaisquer reservas e de livre vontade, o concurso do seu trabalho fora desses locais de trabalho e em qualquer ponto do território Nacional ou no Estrangeiro, que lhe seja designado pelo primeiro contraente;
f. Nas deslocações para fora das zonas referidas na cláusula 4.ª (a que corresponde à al. d. destes factos provados) o segundo contraente tem direito, além da retribuição normal, às prestações e subsídios para tanto estabelecidos no contrato colectivo ou portaria de regulamentação de trabalho aplicável, a menos que as partes acordem noutro regime.
4. Em 24/10/ 2003 entre o Impugnante e a “S.” foi celebrado um acordo sob a epígrafe “Adicional ao Contrato de Trabalho (Condições especiais de deslocação)”, subordinado às seguintes cláusulas, relevantes para o presente processo, e cujo conteúdo considero provado:
a. Os contraentes celebraram um contrato de trabalho sem termo, que aqui se dá, para todos os efeitos, como reproduzido e integrado;
b. Pelo presente acordo o segundo contraente obriga-se a deslocar-se para a República Popular de Angola, onde prestará ao primeiro contraente, ou a quem este indicar, o concurso do seu trabalho nas obras que ali estão em curso, com a categoria que lhe compete;
c. O prazo de deslocação para Angola é de 6 meses com início a 4/11/2003; Caso o concurso do seu trabalho seja necessário por tempo superior ao prazo estipulado (de 6 meses), o segundo contraente obriga-se desde já a aceder à sua eventual prorrogação;
d. Atendendo às condições que rodeiam a prestação de trabalho em Angola, ambos os contraentes acordam num período normal de trabalho de 44 horas por semana;
e. Durante a vigência do presente acordo e enquanto o segundo contraente se mantiver deslocado em Angola terá direito ao pagamento das despesas de viagens de ida e regresso e a gozar férias em Portugal durante 15 dias consecutivos, por cada cinco meses e meio de efectiva prestação de trabalho, nas datas a fixar pelo primeiro contraente;
f. Durante o período de deslocação em Angola o segundo contraente, para além do vencimento base de 458,00 €, terá direito a um subsídio de deslocação equivalente a 25% sobre o vencimento base no montante de 117,00 €, quantias essas que serão pagas em Portugal mediante crédito em conta bancária;
g. Para fazer face ao acréscimo de despesas resultantes da deslocação o segundo contraente terá direito a uma ajuda de custo de 1.240,14 € paga em Portugal; As despesas efectuadas pelo segundo contraente, e que sejam da sua responsabilidade, serão deduzidas pelo primeiro contraente no montante das quantias mensais a pagar;
h. Uma vez cumprido o período de tempo acordado para a sua deslocação na República de Angola, o segundo contraente obriga-se a regressar de imediato a Portugal na data que lhe for determinada pelo primeiro contraente.
5. Desde 1/7/ 2002 até 23/10/ 2003 o Impugnante trabalhou nos concelhos de Vila Nova de Gaia, Gondomar, Maia, Matosinhos, Valongo e Macedo de Cavaleiros, ao serviço da sociedade “S.”, identificada em 1;
6. Desde 24/10/2003 até pelo menos 24/4/ 2004 o Impugnante trabalhou em Angola ao serviço da “S.”, identificada em 1.
Dou como provados estes factos considerando o alegado pelas partes sustentado pelos documentos juntos aos autos – art.º 264.º do CPC.».
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3.2. DE DIREITO

Sobre questão idêntica à que aqui nos ocupa a título principal, já se pronunciou este TCAN no acórdão de 03.05.2012, rec. 00209/08.9BEMDL, que, em face do paralelismo das situações de facto de ambos os processos e tendo em vista a aplicação uniforme do Direito, não podemos deixar de levar em consideração. Assim, e também por concordarmos com a jurisprudência que dimana daquele aresto, vamos, por economia de meios, proceder à respetiva transcrição, na parte aqui relevante:
«O Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), introduzido no sistema tributário português pelo Dec. Lei 442-A/88, de 30/11, pode definir-se como um imposto direto, dado que incide sobre manifestações diretas ou imediatas da capacidade contributiva como é o rendimento. É um imposto de características pessoais, visto levar em consideração as características que se verificam na pessoa do contribuinte. É, ainda, um tributo de características unitárias, no sentido de abranger todos os rendimentos, consagrando nove cédulas ou categorias diferentes dos mesmos. Encontramo-nos perante um imposto progressivo, que assenta, em princípio, na tributação do rendimento real ou efetivo, embora admita presunções de rendimento, assim como a sua fixação através de métodos indiciários.
Na construção do conceito de rendimento tributário o CIRS adota a conceção de rendimento-acréscimo, segundo a qual a base de incidência deste tributo abrange todo o aumento do poder aquisitivo do contribuinte, incluindo nela as mais-valias e, de um modo geral, as receitas irregulares e ganhos fortuitos (cfr.nº.5 do preâmbulo do CIRS; Paulo de Pitta e Cunha, A Fiscalidade dos Anos 90, O Novo Sistema de Tributação do Rendimento, Almedina, 1996, pág.20).
O ato tributário tem sempre na sua base uma situação de facto concreta, a qual se encontra prevista abstrata e tipicamente na lei fiscal como geradora do direito ao imposto. Essa situação factual e concreta define-se como facto tributário, o qual só existe desde que se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos para tal. As normas tributárias que contemplam o facto tributário são as relativas à incidência real, as quais definem os seus elementos objetivos. Só com a prática do facto tributário nasce a obrigação de imposto. A existência do facto tributário constitui, pois, uma condição “sine qua non” da fixação da matéria tributável e da liquidação efetuada.
É no art. 2º, do CIRS, que se englobam todos os rendimentos da categoria A - rendimentos do trabalho dependente - sujeitos ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, para o efeito se exigindo o caráter remuneratório dos mesmos, ou seja, que se trate de rendimentos obtidos como retribuição de trabalho prestado por conta de outrem.
O legislador, na redação dada ao referido art. 2º teve como objetivo a tipificação da forma mais ampla da incidência do imposto, nela se incluindo todos os rendimentos de alguma forma advindos do trabalho dependente. Há que salientar, desde logo, que este conceito de remuneração é mais lato que o acolhido pelo direito laboral, tal como que o relevante para efeitos de incidência das contribuições para a segurança social. Assim, é rendimento da categoria A tudo aquilo que o trabalhador receba em razão do seu trabalho, em dinheiro, em espécie ou sob a forma de quaisquer outras vantagens, salvo o expressamente excetuado pela lei. Tais remunerações, qualquer que seja a forma ou denominação sob que se apresentem (cfr. art. 2º, nº.2, do CIRS), poderão resultar, quer do cumprimento de obrigações contratuais da entidade patronal, quer de decisões a que esta não se encontra legalmente obrigada (a título de exemplo veja-se a concessão de prémios). Poderão resultar, ainda, de prestações feitas por terceiros, mesmo que espontaneamente. Por sua vez, o nº.3, do artº.2, do CIRS, pode entender-se como uma norma clarificadora, que mais não faz do que exemplificar ou concretizar o que resulta dos números anteriores do preceito (cfr. Prof. Rui Duarte Morais, Sobre o I.R.S., 2ª. edição, Almedina, 2010, pág.52).

Tecidas estas considerações gerais, em síntese retenha-se que, os pressupostos tributários substantivos do pagamento de ajudas de custo e da sua não tributação em sede fiscal eleitos pela lei são os seguintes:
- A realização de uma efetiva deslocação por parte de trabalhador ao serviço e portanto no interesse da sua entidade patronal;
- O pagamento de quantitativo diário que não exceda os limites anualmente fixados para os servidores do Estado.
E, aqui se levanta a questão dominante chamada a resolver por via do presente recurso jurisdicional, qual seja a do ónus da prova de que os montantes percebidos pelo trabalhador não têm finalidade compensatória, antes consubstanciando rendimentos que proporcionam um acréscimo de capacidade contributiva, assim sendo suscetíveis de tributação, ónus esse da competência da Administração Fiscal (cfr.artº.342, do Código Civil; artº.74, nº.1, da Lei Geral Tributária; neste sentido veja-se Acórdãos do STA de 04.05.2004, in proc. 832/2003, de 07.11.2006, in proc de 1099/06 e de 27.01.2009, in proc. 2690/2008 e Acórdãos do TCA Sul de 04.05.2004, in proc.832/03, de 07.11.2006, in proc.1099/06 e de 27.12.2009, in proc.2690/08).

Mais se diga, na esteira do entendimento jurisprudencial, designadamente do STA e TCA (veja-se a jurisprudência referenciada), a prova da factualidade caracterizadora de uma qualquer verba como ajuda de custo, atenta o preenchimento do respetivo conceito nos termos já referenciados, pode ser feita por qualquer dos meios probatórios admitidos em direito ou, o que é o mesmo que dizer que, não carece de ser feita exclusivamente por via documental.

No entanto, tudo o que se disse, não invalida uma outra conclusão a de que “ … é aos contribuintes que suportam tais importâncias e/ou aos que as recebem, quando entre eles exista uma relação laboral, e que delas se pretendem valer no âmbito fiscal enquanto ajudas de custo, que cabe demonstrar a respetiva aderência à realidade, por um qualquer daqueles meios de prova admitidos em direito uma vez colocado em crise o dever de colaboração com a AF e que sobre eles impende e por facto que lhes seja imputável, no sentido de facultar a esta última o cumprimento estrito do seu poder/dever de controlar a situação fiscal daqueles em obediência ao princípio da legalidade por aplicação do princípio declarativo vigente no nosso ordenamento jurídico nos termos do qual sempre que, mas também apenas quando, a conduta da AT se consubstancie na prática de atos positivos e constitutivos do direito a que se arrogue com consequências negativas na esfera dos direitos dos contribuintes, é a ela que cabe a obrigação de demonstrar da factualidade relevante ou dito de outra forma é à AT que cabe fazer a «...prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua atuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável)...» pertencendo, por contrapartida, «...ao administrado apresentar prova bastante da ilegitimidade do ato, quando se mostrem verificados esses pressupostos...»”(in ac. do TCA Sul de 07.11.2006, in proc. N.º 1099/06).

Assim, a tributação dos montantes em causa nos presentes autos em sede de IRS só pode ser sustentada se, porventura, se puder considerá-los como um complemento de remuneração, sem fim compensatório.

Dito isto, em conformidade com o expendido na sentença sob recurso, cumpre ter presente que no âmbito do procedimento administrativo-tributário incumbe à AT indagar sobre a verificação do facto tributável e demais elementos pertinentes à liquidação do imposto, só podendo culminar o procedimento com a liquidação em sentido estrito quando, face aos elementos apurados, estiver adquirida a convicção da existência e conteúdo do facto tributário (princípio da verdade material - cfr. arts. 50.º, do CPPT e 58.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo DL n.º 398/98, de 17 de dezembro), sem prejuízo da obrigação dos contribuintes colaborarem na produção de provas (art. 59.º da LGT).

Não pode a AT deixar de averiguar sobre a verificação dos factos suscetíveis de corresponder aos elementos do tipo legal, exceto nos casos em que a lei estabeleça presunções juris et de jure.

Ademais, não existe hoje a presunção da legalidade do ato administrativo, nem do ato tributário, presunção essa que não está, nem estava, expressamente prevista em norma legal alguma, antes constituindo um princípio de origem doutrinal e jurisprudencial que, face à atual compreensão do princípio da legalidade administrativa «o princípio da legalidade» deixou de surgir como um mero limite à atividade da Administração para passar a ser o fundamento de toda sua atividade. Assim, de acordo com o disposto no art. 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a Administração só pode agir nas condições em que a lei lho autoriza e nada poderá fazer contra a lei, surgindo a Administração, em termos de justiça administrativa e tributária, em situação de paridade com o particular. Assim, não pode hoje buscar-se qualquer apoio numa alegada presunção da legalidade do ato tributário para fazer recair sobre o contribuinte o ónus da prova da ilegalidade do ato tributário.

Vieira de Andrade, depois de salientar que o ónus da prova deve aqui entender-se, não como ónus da prova “subjetivo”, “formal” ou de “produção”, «que implicaria que o juiz só pudesse considerar os factos alegados e provados por cada uma das partes interessadas», mas antes como ónus da prova objetivo. No mesmo sentido, vide Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, pág. 287., «na medida em que pressupõe uma repartição adequada dos encargos de alegação, de modo a repartir os riscos da falta da prova», diz que o ónus da prova, assim entendido, «vai depender da posição processual das partes, mas – porque depende de valorações normativas e não de imperativos de pura lógica – terá de determinar-se, na ausência de norma expressa, de acordo com um quadro de normalidade concreto ou típico, construído com base nas regras específicas do domínio da vida em causa e nos princípios próprios do direito administrativo».

A regra geral, nos termos da qual quem invoca um direito tem o ónus da prova dos respetivos factos constitutivos, cabendo à contraparte a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos (artigo 342.º do Código Civil) pode entender-se aplicável, em princípio, no processo administrativo, mas aqui, como de resto no âmbito do direito civil, não é suficiente para a resolução de todos os tipos de situações – sobretudo porque não faz diferenciações conforme as posições das partes e os interesses e situações em jogo nos domínios específicos da realidade normativamente concebida.
Assim, não pode exigir-se ao recorrido prova dos factos constitutivos da sua pretensão de anulação (desde logo, e por exemplo, a prova da não verificação dos pressupostos legais da prática do ato), de modo a caber à Administração apenas provar as exceções invocadas – tal equivaleria na prática à pura e simples invocação da “presunção da legalidade do ato administrativo”, fazendo recair sobre o particular o ónus da prova (subjetivo) da ilegalidade do ato impugnado.

Deve, pelo contrário, levar-se em conta, em geral, para a construção do quadro de normalidade que há de servir de paradigma normativo para a distribuição das responsabilidades probatórias, a sujeição da Administração aos princípios da legalidade e da juridicidade e, pelo menos no que respeita aos atos desfavoráveis, o dever de fundamentação.
Isto é, parece que há de caber à Administração o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua atuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável); em contrapartida caberá ao administrado apresentar prova bastante da ilegitimidade do ato, quando se mostrem verificados esses pressupostos.
Neste sentindo, aderindo a argumentação constante do AC. do TCA Sul de 13.12.2005, in proc. 00287/04, diga-se, não pode exigir-se ao recorrido “… prova dos factos constitutivos da sua pretensão de anulação (desde logo, e por exemplo, a prova da não verificação dos pressupostos legais da prática do ato), de modo a caber à Administração apenas provar as exceções invocadas – tal equivaleria na prática à pura e simples invocação da “presunção da legalidade do ato administrativo”, fazendo recair sobre o particular o ónus da prova (subjetivo) da ilegalidade do ato impugnado. (…) Por outras palavras ainda, deve ser a Administração a suportar a desvantagem de não ter sido feita a prova (de o juiz não se ter convencido) da verificação dos pressupostos legais que permitem à Administração agir com autoridade (pelo menos, quando produza efeitos desfavoráveis para os particulares (…).
Assim, atualmente, em princípio, à AT cabe o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua atuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável) e, em contrapartida, cabe ao administrado apresentar prova bastante da ilegitimidade do ato, quando se mostrem verificados esses pressupostos, solução que corresponde à regra geral do art. 342.º do Código Civil, de que quem invoca um direito tem o ónus da prova dos factos constitutivos, cabendo à contraparte a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos (Já não será assim se não for a AT que está a afirmar a existência e dimensão do facto tributário, mas o Contribuinte) e que foi acolhida no art. 121.º, n.º 1, do CPT), no art. 100.º, n.º 1, do CPPT, disposição legal que reproduz aquela, e no art. 74.º da Lei Geral Tributária.”

Dito isto, e regressando ao caso sub judice, vejamos se a prova produzida nos autos permite concluir pela existência de facto tributário, ou seja, se permite concluir que os pagamentos em causa constituem rendimentos sujeitos a IRS.
Na perspetiva do Meritíssimo Juiz a quo, a resposta a esta questão deve ser negativa, com base no seguinte entendimento:
«(…)
Apesar do regime aplicável em relação às ajudas de custo por deslocação ao estrangeiro ser o DL 192/05, de 26/ 7, não obsta a que a parte geral do DL 106/98, de 24/4 (que rege sobre as ajudas de custo em território nacional – art.ºs 3.º a 14.º – e que remete para diploma próprio o abono por ajudas de custo por deslocações ao e no estrangeiro – art.º 15.º) se aplique ao caso em apreço: Os art.ºs 1.º e 2.º que definem o âmbito de aplicação pessoal e definem o domicilio necessário para efeitos de ajuda de custo. A não ser assim só se poderia sindicar, desde logo pela AT, estas ajudas na parte que excedessem os limites legais, mesmo que o trabalhador sempre residisse no local de trabalho e desde que entre este e o seu empregador se convencionasse que a remuneração paga o fosse a título de ajudas de custo.
Nos termos do art.º 1, os funcionários (neste caso trabalhador dependente) quando deslocados do seu domicílio necessário têm direito ao abono de ajudas de custo.
Por outro lado o art.º 2.º dispõe que se considera domicílio necessário a localidade onde o trabalhador aceitou o lugar, se aí ficar a prestar serviço (al. a), a localidade onde exerce funções, se for colocado em localidade diversa da referida na alínea anterior (al. b) e a localidade onde se situa o centro da sua actividade funcional, quando não haja local certo para o exercício de funções (al. c)
Ora, confrontando os factos provados com as disposições aplicáveis não podemos concluir como o faz o RFP.

Neste caso existiu deslocação do domicílio necessário porque, tendo o Impugnante sido contratado em 2002 para trabalhar nas áreas do distrito do Porto e no Concelho de Macedo de Cavaleiros, acima indicadas, deslocou-se, em 2003, para Angola, para aí trabalhar ao serviço da “S.”.

É certo que o Impugnante desde o início (contrato de trabalho de 2002) aceitava prestar, sem quaisquer reservas e de livre vontade, para além locais indicados, em qualquer ponto do território Nacional ou Estrangeiro, que lhe fosse designado pelo empregador. Contudo, mesmo assim, não deixa de haver deslocação do domicilio necessário a partir do momento em que vai trabalhar para Angola porque, nos termos do art.º 2, al. a) do DL 106/98, de 24/4, já citado, o seu domicílio necessário eram os concelhos de Vila Nova de Gaia, Gondomar, Maia, Matosinhos, Valongo e Macedo de Cavaleiros, onde, desde o 1/7/2002 até Outubro de 2003, prestou serviço.
Alude o RFP a “factos-Índice”, sem explicar a sua relevância jurídica, ou processual.

As acções são julgadas procedentes/não procedentes, considerando, geralmente, os factos alegados pelas partes e a respectiva prova, ou as regras relativas ao ónus da prova, que sobre eles se faça.

Contudo sempre se dirá que não se pode considerar que os montantes atribuídos não configuravam ajudas de custo porque os pagamentos eram regulares, a que acresceu o facto de o impugnante ter tido direito ao subsídio de deslocação equivalente a 25% sobre o vencimento base, não havendo razões para que simultaneamente lhe fossem atribuídas ajudas de custo.
Quanto à regularidade do pagamento.

Não se pode concluir que as prestações auferidas pelo Impugnante a título de ajudas de custo integram a respectiva retribuição ou remuneração de trabalho, constituindo um complemento desta, pelo facto de terem sido estipulados montantes de natureza fixa e regular por cada mês de trabalho porque, precisamente, essa quantia lhe foi atribuída apenas desde o momento em que o Impugnante se deslocou para Angola em serviço e a favor da entidade patronal. Ou seja, essa prestação não lhe foi atribuída independentemente da existência dessa mesma deslocação de 6 meses, que não deixa de ser ocasional, considerando o tempo de trabalho anteriormente prestado ao serviço do mesmo empregador, nas áreas acima enunciadas.
Relativamente ao subsídio de deslocação.

Não se provou, nem foi alegado, que este subsídio (o equivalente a 25% sobre o vencimento base) tivesse como finalidade acautelar o acréscimo de despesas que obrigatória e logicamente o Impugnante teria de suportar por ter de trabalhar fora do seu local habitual de trabalho. As causas deste acréscimo remuneratório poderão ser várias, designadamente as que dizem respeito ao facto do trabalhador ter de sair fora do pais, de estar afastado da família, ou de não ter acesso a bens e a serviços a que estava habituado etc. Ou seja, não se provou que este acréscimo de remuneração constituísse uma compensação paga pela “S.” ao Impugnante pelas despesas por este realizadas, nomeadamente com alojamento, alimentação e transportes, por ter de se deslocar ao serviço daquela para fora do seu local habitual de trabalho. Só assim é que ficaria esvaziada de sentido outras ajudas de custo pagas para compensar as mesmas despesas a que aquele subsídio estivesse adstrito.

Ora, seguindo o Ac. n.º 0063/01 de 6/4/2006, in www.dgsi.pt do TCAN, era a AT, e não o Impugnante ou terceiros, que tem o ónus de apontar elementos factuais demonstrativos ou seriamente indiciantes de que os abonos recebidos não tinham qualquer fim compensatório, designadamente porque não existiam deslocações do trabalhador ou, existindo, porque os abonos não tinham qualquer relação com essas deslocações ou, tendo-a, cobriam largamente as despesas normais que as deslocações provocam, fazendo, por isso, parte da retribuição – e isto em consideração ao princípio da não fundamentação posterior dos actos.
Neste caso ficou por demonstrar que os pagamentos regulares em causa, feitos pela “S.” ao Impugnante, não tivessem qualquer fim compensatório.».

E não vemos razão para divergir deste julgamento, importando apenas referir que, relativamente ao alegado costume de a entidade patronal providenciar pelo alojamento e alimentação dos trabalhadores deslocados no estrangeiro, logo a AT indicou um facto demonstrativo de que, no caso, tal não se verificava. É que, como alega no artigo 7.º da contestação, foi apurado «(…), com base nas cópias dos recibos do, e fornecidos pelo, Impugnante, de factualidade traduzível em serem descontados com o código 342-“Outros descontos”- a quantia mensal de €300,00, e descontados com o código 328-“Cantina Angola”- uma quantia variável.». Resulta, pois, patente que, não obstante a entidade empregadora colocar uma cantina à disposição do Recorrido, era ele, e não aquela entidade, quem suportava os custos com a sua alimentação. Tal conclusão mantém-se válida mesmo se aceitarmos que os “Outros descontos” respeitam a alojamento – é sempre o Recorrido quem suporta o respetivo custo.

Em suma, a AT não invocou nem reuniu elementos suficientes para abalar a presunção de veracidade da declaração do Recorrente no que tange às verbas que lhe foram abonadas a título de ajudas de custo.

E, por ser assim, inútil era proceder à produção da prova requerida por ambas as partes e, muito especialmente, pela AT, designadamente no que respeita aos elementos documentais na posse do Recorrido e da sua entidade patronal, na medida em que tais elementos, por um lado, não eram necessários para prova da factualidade invocada no RIT, nem nunca poderiam servir para sustentar com fundamento distinto a liquidação em crise e, por outro lado, porque os autos evidenciam que tais verbas eram efetivas ajudas de custo.

Nesta medida, não se mostram inobservados os princípios do inquisitório, da investigação e do contraditório, improcedendo in totum as conclusões do recurso, restando ainda prejudicado o conhecimento do recurso interposto pela Fazenda Pública contra o despacho interlocutório que julgou desnecessária a produção da prova testemunhal.

4. DECISÃO

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao presente recurso, mantendo a sentença recorrida.
*
Custas a cargo da Recorrente, que sai vencida neste recurso (artigo 527.º, n.º 1 e 2 do CPC).
*
Porto, 25 de março de 2021

Maria do Rosário Pais - Relatora
Tiago Afonso Lopes de Miranda - 1.º Adjunto
Cristina da Nova - 2.ª Adjunta