Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01432/12.7BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/17/2015
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:PEDIDO DE REIVINDICAÇÃO; COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS;
QUESTÃO PRÉVIA; CAUSA DE PEDIR; PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO; ORDEM DE DEMOLIÇÃO; VALOR DO PRÉDIO; INDEMNIZAÇÃO POR DAMOS MORAIS E DESPESAS; CUMULAÇÃO DE PEDIDOS; ARTIGO 15.º DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS; ARTIGO 91.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; NULIDADE DA SENTENÇA; OMISSÃO DE PRONÚNCIA; FUNDAMENTAÇÃO DO ACTO ADMINISTRATIVO; FALTA DE AUDIÊNCIA PRÉVIA DE UM DOS INTERESSADOS; FORMALIDADE NÃO ESSENCIAL; ACTO VINCULADO; PRESSUPOSTOS DE FACTO; SOLIDEZ DO TERRENO; PERÍCIA; DEFICIT INSTRUTÓRIO; NULIDADE PROCESSUAL.
Sumário:1. É da competência dos tribunais judiciais, e não dos administrativos, o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinado prédio.

2. Não constitui questão prévia no âmbito de uma acção de impugnação de acto administrativo, para efeitos do disposto no artigo 15.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e no artigo 91.º do Código de Processo Civil o reconhecimento do direito de propriedade se este direito não foi posto em causa pela entidade demandada e não se mostra necessário esse reconhecimento para apreciar a validade do acto impugnado.

3. O pedido de indemnização pelo valor de um edifício cuja demolição foi ordenada pelo acto impugnado mas não foi executada, carece de causa de pedir, determinante da absolvição da instância por ineptidão da petição inicial nessa parte, dado inexistir o facto gerador do alegado prejuízo, a destruição do prédio, e, consequentemente, o prejuízo.

4. É legalmente admissível a cumulação do pedido de impugnação do acto administrativo que ordenou a demolição de um prédio dos autores e do acto que determinou a posse administrativa desse prédio com o pedido de indemnização por danos morais ocasionados com a simples eminência de execução desses actos e com o pedido de indemnização por danos patrimoniais, como as despesas em deslocações, aquisição de documentos e honorários para impedir a demolição e posse administrativa tidas por ilegais, face ao disposto nos artigos 4.º e 47.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

5. Só se verifica nulidade por omissão de pronúncia quando a sentença ou acórdão não aprecie questões suscitadas e não quando não considere os argumentos apresentados no âmbito de cada questão.

6. O erro no enquadramento jurídico leva à revogação da sentença e não à declaração de nulidade.

7. Se o Tribunal não indagou sobre a existência ou não de condições de solidez, segurança ou salubridade do terreno onde se encontra o imóvel a demolir sustentando que se trata de uma matéria no âmbito da actividade discricionária da Administração e que, como tal, apenas pode ser invalidado o acto com base em erro grosseiro ou manifesto, o que não é o caso por estar apoiado num parecer técnico.

8. Está suficientemente fundamentado o acto que ordena a demolição de um prédio com a indicação de que a construção, de acordo com os relatórios do L.N.E.C. não oferece condições de segurança por estar assente em terreno não consolidado, pelo que, face ao disposto no artigo 18º do R.G.E.U., não pode ser licenciado.

9. A omissão da audiência prévia da autora mulher degrada-se em irregularidade não essencial, não se impondo cumprir essa formalidade, quando se conclui, no caso, que a decisão da Administração terá de ser, imperativamente, uma de duas, consoante a matéria de facto a apurar: se o terreno onde se encontra o edifício a demolir está consolidado, não pode ter lugar a demolição; caso contrário, impõe-se a demolição.

10. A firmeza (ou não) do solo é um pressuposto de facto que assenta num juízo de ordem técnica, mas vinculado, o que resulta de um conceito técnico, neste caso adoptado pela engenharia civil. O solo ou é firme ou não, ou está ou não devidamente compactado, ou é ou não susceptível de compactação artificial, de acordo com as legis artis da engenharia civil. Não existe aqui a possibilidade de escolha entre várias soluções possíveis. Só existe uma que corresponde à realidade.

11. Mostrando-se tal matéria controvertida e não sendo seguro que a perícia efectuada e em que se baseou a ordem de demolição impugnada se tenha reportado ao terreno onde está implantado o prédio dos autores ou de características idênticas, impunha-se produzir prova sobre a mesma, de forma a decidir se o pressuposto de facto essencial em que se baseia a ordem de demolição, a falta de firmeza do terreno, se verifica ou não.

12. Não tendo sido produzida esta prova, verifica-se um deficit instrutório que determina uma nulidade processual, a omissão de acto que devia ser praticado, omissão esta susceptível de influir no exame ou decisão da causa, com a reflexa declaração de nulidade de todos os actos praticados posteriormente à verificação da invocada omissão, incluindo o acórdão final, embora não totalmente, apenas na parte em que não pode ser aproveitado sem o resultado das diligências instrutórias a realizar, ou seja, no que diz respeito à apreciação do vício de erro nos pressupostos do acto impugnado – n.ºs 1 e 2, do artigo 201º do Código de Processo Civil. *
*Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:JMMS
Recorrido 1:Município de VNG
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer do sentido da procedência do recurso quanto ao acórdão por insuficiência da matéria de facto.
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Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

JMMS e FCRSS vieram interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL do despacho saneador, de 31.01.2014, e do acórdão, de 06.06.2014, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, o primeiro na parte em que julgou verificada a excepção de incompetência material para apreciar o pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos autores e absolveu o demandado do pedido de indemnização, e o segundo a julgar totalmente improcedente a acção interposta pelos ora recorrentes contra o Município de VNG, para impugnação dos actos praticados por dois Vereadores daquela edilidade, de 27.02.2008 e de 16.04.2012, que ordenaram, o primeiro, a demolição de uma edificação dos autores na Escarpa da SP, e o segundo o prosseguimento das acções de fiscalização da Câmara Municipal naquele local.

Invocaram para tanto, em síntese, que: o despacho saneador recorrido violou o preceituado no art.º 15.º do CPTA e no art.º 91.º do CPC ao declarar o Tribunal Administrativo e Fiscal incompetente para o conhecimento incidental da questão do reconhecimento do direito de propriedade dos ora recorrentes, e bem assim violou o disposto nos artigos 4.º e 47.º do CPTA ao declarar ilegal a cumulação dos pedidos formulados pelos recorrentes, no que toca ao pedido indemnizatório; quanto ao acórdão, defendem que ao recusar-se a decidir sobre existência ou não de condições de solidez, segurança ou salubridade do imóvel, com perigo para os recorrentes ou para terceiros, sob a alegação de que se trata de matéria da competência do recorrido enquanto entidade administrativa, deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, sendo, consequentemente, nulo por omissão de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC); finalmente, assentando a doutamente decidida improcedência da acção no pressuposto da violação do art.º 18.º do RGEU, isto é, na consideração de que as fundações do edifício não estão estabelecidas sobre terreno estável e suficientemente firme, sem a adequada prova, o douto acórdão recorrido padece de deficit instrutório, insuficiência de matéria de facto para a decisão e falta de especificação de fundamentos de facto que justifiquem a decisão.

O recorrido contra-alegou defendendo a manutenção de ambas as decisões recorridas.

O Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer do sentido da procedência do recurso quanto ao acórdão por insuficiência da matéria de facto.

*
Cumpre, pois, decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto dos recursos jurisdicionais:

- Do despacho saneador:

A) O douto despacho saneador viola o preceituado no art.º 15.º do CPTA e no art.º 91.º do CPC ao declarar o Tribunal Administrativo e Fiscal incompetente para o conhecimento incidental da questão do reconhecimento do direito de propriedade dos ora recorrentes.

B) O mesmo douto despacho viola o disposto nos art.ºs 4.º e 47.º do CPTA ao declarar ilegal a cumulação dos pedidos formulados pelos recorrentes, no que toca ao pedido indemnizatório.

C) O Tribunal a quo deveria, por conseguinte, ter conhecido da questão do direito de propriedade, embora incidentalmente e com as legais restrições dos efeitos da decisão, e dos formulados pedidos indemnizatórios.

- do acórdão:

D) Por sua vez, o douto acórdão recorrido incorre em erro de julgamento ao não julgar procedente a acção com base na alegada falta de adequada fundamentação dos actos impugnados, em especial do despacho de 27 de Fevereiro de 2008, do Senhor Vereador AGB.

E) O mesmo douto acórdão incorreu igualmente em erro de julgamento ao não ter como procedente e invalidante o alegado vício da falta de audição da recorrente mulher.

F) O douto acórdão recorrido, acompanhando acriticamente e sem provas a posição do Réu, assenta no errado pressuposto de o edifício dos recorrentes viola o art.º 18.º do RGEU.

G) Não existe em qualquer relatório do LNEC que conste dos autos (ou de qualquer outro que se conheça) uma qualquer afirmação ou, muito menos, demonstração de que as fundações do edifício dos recorrentes não estejam estabelecidas sobre terreno estável e suficientemente firme.

H) Ao recusar-se a decidir sobre existência ou não de condições de solidez, segurança ou salubridade do imóvel, com perigo para os recorrentes ou para terceiros, sob a alegação de que se trata de matéria da competência do recorrido enquanto entidade administrativa, o douto acórdão deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, sendo, consequentemente, nulo por omissão de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC).

I) Assentando a doutamente decidida improcedência da acção no pressuposto da violação do art.º 18.º do RGEU, isto é, na consideração de que as fundações do edifício não estão estabelecidas sobre terreno estável e suficientemente firme, sem a adequada prova, o douto acórdão recorrido padece de deficit instrutório, insuficiência de matéria de facto para a decisão e falta de especificação de fundamentos de facto que justifiquem a decisão.
*

II – Matéria de facto.

Julgaram-se provados os seguintes factos:

1. Através do ofício n.º 136/2008, datado de 23/01/2008, da Câmara Municipal de VNG, subscrito pelo Vereador AGB, o autor marido foi notificado para se pronunciar, querendo, sobre a intenção de ordenar a cessação da utilização indevida do edifício em questão no prazo de 15 dias “(…) nos termos do disposto nos artigos 100.º e segs. e 149.º do Código de Procedimento Administrativo e nos artigos 100.º e 109.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, bem como de ordenar a demolição total do edifício e consequente reposição do terreno nas condições em que se encontrava antes da data de início da respectiva construção, demolição essa que deverá ser executada no prazo de 30 dias, sendo que, no caso de tal ordem não ser acatada, o presidente da Câmara determinará a respectiva demolição por conta do infractor” (cf. doc. nº 1 junto com a p.i. e que aqui se dá por integralmente reproduzido).

2. De seguida, o autor marido foi notificado, através de ofício de 10/04/2008, do despacho do Vice-Presidente da Câmara, MAC, datado de 19 de Março de 2008, que, com base em diferentes considerandos sobre a Escarpa da SP, determina "a suspensão de todas as iniciativas municipais para aquele local, nomeadamente as respeitantes aos procedimentos administrativos de tutela da legalidade urbanística em curso, com vista a colaborar, coordenadamente, com o Ministério da Administração Interna na intervenção que lá venha a ser produzida" (cf. doc. nº 3 junto com a p.i. e que aqui se dá por integralmente reproduzido).

3. O autor marido foi notificado no dia 23/04/2012 do conteúdo do ofício n.º 3380/2012, datado de 17/04/2012, do Município de VNG, do qual consta que (…) por despacho de 16 de Abril de 2012 da Senhora Vereadora do Pelouro da Fiscalização, foi determinado notificar o autor do "levantamento da suspensão das iniciativas municipais para a Escarpa da SP, ordenada por despacho da Senhora Vereadora, de 21/03/2011, uma vez que, atento o teor do despacho n.º 17/2009, de 30/04/2009, proferido pela Senhora Governadora Civil do Distrito do Porto, estão reunidas as condições necessárias ao levantamento da suspensão ordenada, retomando-se os procedimentos de fiscalização urbanística desencadeados para aquele local"

(…) "deverá dar cumprimento ao despacho do Senhor Vereador AGB, de 27/02/2008 que ordenou a cessação da utilização e demolição total da edificação sita na Rua…, freguesia de Santa Marinha, bem como a reposição do terreno nas condições em que se encontrava antes da data de início da respectiva construção, em cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 106.º do citado diploma legal, no prazo anteriormente concedido, ao qual deve acrescer um prazo adicional de 10 dias, perfazendo um total de 30 dias (…).

A decisão notificada foi devidamente fundamentada, nos termos do disposto nos artigos 124.º e 125.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), porquanto foram indicados os factos que motivaram a comunicação de intenção de cessação da utilização e subsequente demolição do edifício, a saber, o acidente ocorrido em 24 de Setembro de 2006 na Escarpa da SP a um conjunto de edificações localizadas na mesma Escarpa, o relatório elaborado pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), e a inexistência de licença administrativa da edificação".

(…) decorrido o mencionado prazo, sem que se verifique o cumprimento voluntário das mencionadas ordens, foi já determinado, por despacho de 16 de Abril de 2012, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 107.º do D. L. n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na sua atual redação, a posse administrativa do imóvel sito no local acima identificado, no dia 5 de Junho de 2012, a partir das 10:00 horas e pelo período estritamente necessário ao cumprimento da ordem de demolição total da edificação referida e reposição do terreno nas condições em que se encontrava antes da data de início das respectivas construções, sitas na Rua…, freguesia de Santa Marinha deste município, por terem sido realizadas ilegalmente, em violação do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 4.º do citado diploma, com custos a v/cargo" (cf. doc. nº 1 junto com a p. i. e que aqui se dá por integralmente reproduzido).

III - Enquadramento jurídico.

1. O recurso do despacho saneador.

1.1. A competência do tribunal administrativo para conhecer do pedido incidental do direito de propriedade – o artigo 15.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos; o artigo 91.º do Código de Processo Civil.

Determina o artigo 15.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“Extensão da competência à decisão de questões prejudiciais”).

1 - Quando o conhecimento do objecto da acção dependa, no todo ou em parte, da decisão de uma ou mais questões da competência de tribunal pertencente a outra jurisdição, pode o juiz sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie.

2 - A suspensão fica sem efeito se a acção da competência do tribunal pertencente a outra jurisdição não for proposta no prazo de dois meses ou se ao respectivo processo não for dado andamento, por negligência das partes, durante o mesmo prazo.

3 - No caso previsto no número anterior, deve prosseguir o processo do contencioso administrativo, sendo a questão prejudicial decidida com efeitos a ele restritos.”

Disposição idêntica vamos encontrar no artigo 96º do Código de Processo Civil de 1995 (Competência do tribunal em relação às questões incidentais) diploma que seria aplicável a este litígio se houvesse caso omisso na lei de processual administrativa – e não há –, dado a acção ter sido proposta antes da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2013 – artigo 24º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 52/2008, de 28.08) e artigo 8º da Lei 41/2013, de 26.06.

Consagra-se no citado preceito do Código de Processo nos Tribunais Administrativos o “princípio da devolução facultativa”: “Quando, para conhecer do objecto da acção perante ele proposta, da competência dos tribunais administrativos, o juiz administrativo se depara com a necessidade de previamente serem decididas uma ou mais questões da competência de tribunal pertencente a outra jurisdição, a lei consente-lhe a liberdade de tomar uma de duas atitudes: ou sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie, ou decidir a questão prejudicial com base em elementos disponíveis no processo administrativo, hipótese em que os efeitos da decisão da questão prejudicial ficariam restritos ao âmbito do processo contencioso administrativo. A opção por um ou por outro dos termos da alternativa depende do juízo a formular pelo juiz face às características do caso em concreto, ponderando designadamente a simplicidade ou complexidade da questão prejudicial a decidir e a maior ou menor dificuldade de recolha, no processo administrativo, dos elementos necessários a uma decisão conscienciosa” Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2005, página 105.

No caso em apreciação, o pedido é o da reivindicação de um terreno e do prédio aí construído, por força da sua posse durante cerca de trinta anos, pelos autores.

No despacho saneador aqui em recurso decidiu-se:

“Determina o art. 212º nº 3 da Constituição da República Portuguesa que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

De acordo com o art. 13º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, «o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria».

Por seu turno o nº 1 do art. 1º do ETAF estatui que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Na sequência deste normativo, as diferentes alíneas do nº 1 do art. 4º do ETAF, estatuem, de forma exemplificativa, os tipos de litígios sujeitos à apreciação dos tribunais administrativos e fiscais. Já os nºs 2 e 3 do referido art. 4º do ETAF estabelecem, nas suas diferentes alíneas, situações em que determinado tipo de litígios é excluído da competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

A questão que se coloca é a de saber o que constituem relações jurídicas administrativas.

Concretizando o que se entende por «relação jurídica administrativa sustenta Freitas do Amaral que é «…aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração» (in Direito Administrativo», vol III, Lisboa, 1985, pág. 423).

Já para J.M. Sérvulo Correia tal conceito é entendido como a relação jurídica «…disciplinada em termos específicos do sujeito administrativo, entre pessoas colectivas da Administração ou entre a Administração e os particulares…” (in: «Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos», pág. 397).

A competência (ou jurisdição) de um tribunal determina-se pela forma como o autor configura a acção, definida pelo pedido e pela causa de pedir, isto é pelos objectivos com ela prosseguidos (cfr. v.g. o acórdão do Tribunal de Conflitos de 17/05/2007, processo 05/07, publicado em www.dgsi.pt).

Ora, no caso sub judice, o que está em causa é a “reivindicação” de um terreno alegadamente pertencente ao domínio público, por força da posse durante cerca de 30 (trinta) anos.

Com efeito do concreto litígio em causa, nesta parte, não se descortina a existência de qualquer relação jurídico-administrativa.

Está, sim, em discussão a propriedade de um terreno, discussão essa que se estabelece entre duas pessoas que se arrogam da sua titularidade, questão essa regulada nos termos do direito privado.

Sendo claramente esta a questão central que, nesta parte, é colocada à apreciação deste Tribunal e que subjaz ao pedido e à causa de pedir expostos na petição inicial.

Ora a incompetência em razão da matéria integra a incompetência absoluta (art. 101º do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), podendo ser arguida pelas partes e devendo ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da questão.”

Mostra-se acertada esta decisão, no essencial.

Para apreciação da questão do direito de propriedade, como se decidiu no saneador recorrido, são inquestionavelmente incompetentes os tribunais administrativos, por se tratar de uma questão do foro comum, civil, não integrando uma matéria que exija a intervenção especializada dos tribunais administrativos.

Neste sentido se pronunciou o acórdão do Tribunal de Conflitos de 19.01.2011, no processo n.º 014/11 (sumário):

“ I - É da competência dos tribunais judiciais, e não dos administrativos, a acção declarativa intentada contra o Estado em que se pede, em súmula, o reconhecimento do direito de propriedade do Autor sobre um prédio e a anulação do respectivo registo a favor do Estado.

II - A tanto não obsta que, na petição da acção, se invoque que o Estado funda o seu pretenso direito de propriedade numa relação expropriativa cuja existência o autor nega.”

Invocam os recorrentes, para contestar a decisão contida no saneador - a declarar os tribunais incompetentes para conhecer deste pedido - que se trata de uma questão incidental, logo coberta pela previsão do artigo 15º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Mas sem razão.

Em primeiro lugar porque o reconhecimento do direito de propriedade não reveste aqui a natureza sequer de uma “questão” a resolver porque o demandado em momento algum questionou esse direito.

Por outro lado ainda que se tratasse de uma questão a resolver, não reveste a natureza prejudicial à decisão da questão nuclear dos autos, a validade do acto impugnado, bem como ao pedido de indemnização.

Pode decidir-se qualquer das questões aqui em causa, saber se os actos estão fundamentados, se foi ilegalmente preterida a audiência dos interessados ou se existe erro nos pressupostos de facto, em concreto, se o edifício construído pelos autores tem condições solidez, segurança, para os próprios ou para terceiros, sem averiguar quem é o proprietário; ou se resultaram prejuízos para os recorrentes, e quais, da conduta do recorrido, sem determinar se os autores são ou não donos da construção a demolir e do terreno onde este se encontra implantado.

Isto sendo certo que esse tema, o da propriedade - que seria de uma questão de legitimidade dos ora recorrentes para o procedimento administrativo -, não foi suscitado em sede administrativa.

Numa situação com contornos semelhantes e neste mesmo sentido se pronunciou o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, no processo nº 00083/12.0BEPRT, de 20.11.2014 (sumário):

“ (…)

II – “Uma expropriação cuja DUP foi judicialmente declarada nula, daí advindo efeitos erga omnes, não pode erigir-se como causa prejudicial a acto que determinou ao abrigo do art. 106º do RJUE a cessação de utilização e demolição do que se encontra edificado.

III- Este acto, contendo razões perceptíveis, e estando apuradas e não refutadas razões que inviabilizam legalização das construções, encontra-se fundamentado, formal e intrinsecamente.

IV – E convive sem conflito com o disposto nos artºs 41º e 42º da Lei dos Solos, quando a situação ao abrigo da qual vem convocado se distingue daquelas aí pressupostas.

No mesmo sentido, embora em contextos algo distintos, se pronunciam também os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 21.05.2014, no processo nº 0663/12, de 21.05.2014 e do Tribunal Central Administrativo Norte, de 15.06.2012, no proc. nº 00325/11.0 BECBR.

Sendo o pedido de reconhecimento do direito de propriedade do terreno e da construção um pedido deduzido em forma principal e autónoma, formulado em cumulação com pedido de anulação e com o pedido de indemnização e não existindo qualquer relação jurídico-administrativa no pretendido reconhecimento do direito de propriedade, com base na aquisição por usucapião, impõe-se decidir pela incompetência dos tribunais administrativos para apreciar a questão, como bem salientou o recorrido nas suas contra-alegações.

Assim, decidiu com acerto a primeira instância, quando declarou o Tribunal Administrativo incompetente em razão da matéria para decidir este pedido.

Termos em que se julga improcedente o recurso nesta parte.

1.2. A cumulação de pedidos - artigos 4.º e 47.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos; a causa de pedir.

Determina o artigo 4º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, sob a epígrafe “cumulação de pedidos” o seguinte, na parte que aqui releva:

“1- É permitida a cumulação de pedidos sempre que:

a) A causa de pedir seja a mesma e única ou os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência, nomeadamente por se inscreverem no âmbito da mesma relação jurídica material;

b) Sendo diferente a causa de pedir, a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.

2 - É, designadamente, possível cumular:

a) O pedido de anulação ou declaração de nulidade ou inexistência de um acto administrativo com o pedido de condenação da Administração ao restabelecimento da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado;

(…)

f) O pedido de condenação da Administração à reparação de danos causados com qualquer dos pedidos mencionados nas alíneas anteriores;

(…)”

Para a acção administrativa especial regula especificamente o artigo 47.º do mesmo diploma, sob a mesma epígrafe:

“1 - Com qualquer dos pedidos principais enunciados no n.º 2 do artigo anterior podem ser cumulados outros que com aqueles apresentem uma relação material de conexão, segundo o disposto no artigo 4.º, e, designadamente, o pedido de condenação da Administração à reparação dos danos resultantes da actuação ou omissão administrativa ilegal.

(…)”.

No caso concreto foram deduzidos os seguintes pedidos:

- Pedido de anulação do despacho de 27.02.2008, que determinou a cessação da utilização e a demolição do prédio dos autores e do despacho de 16.04.2012, que determinou, além do mais, a tomada de posse administrativa do mesmo prédio no dia 05/06/2012, tendo em vista a sua demolição.

- Pedido de condenação do município demandado a pagar aos autores uma indemnização por danos morais face à “ameaça” ou eminência da demolição do prédio dos autores.

- Pedido de indemnização por danos patrimoniais pelas despesas realizadas e a realizar pelos autores, nomeadamente em deslocações, aquisição e cópia de documentos e honorários, por virtude da decisão de demolir, a liquidar em execução de sentença.

- Finalmente, uma indemnização pelo valor do edifício.

Aquilo que serve de apoio ao pedido indemnizatório apresenta-se aqui como uma causa pedir complexa.

Como já ensinava Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. II, pág. 375 “... a causa de pedir em qualquer acção não é o facto jurídico abstracto, mas o facto jurídico concreto de que emerge o direito que o autor se propõe fazer declarar. O facto jurídico abstracto não pode gerar o direito, pela simples razão de que é uma pura e mera abstracção, sem existência real”.

Ou como dizem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, no “Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1985, página 245: “A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido.”

Este conceito de causa de pedir encontra-se nos artigos 264º, n.º1, e 498.º, n.º4, do Código de Processo Civil, que acolhe a denominada teoria da substanciação, segundo a qual a causa de pedir é “o próprio facto jurídico genético do direito, o acontecimento concreto, correspondente a qualquer “fattispecie” jurídica que a lei admita como criadora de direitos, abstracção feita da relação jurídica que lhe corresponda”, autonomizando o objecto do litígio em relação ao direito material (Anselmo de Castro, “Lições de Processo Civil”, volume I, reimpressão, página 358).

Com efeito dispõe o n.º1 do artigo 264º do Código de Processo Civil (Princípio dispositivo)

“1. Às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir…”

E estabelece n.º 4 do artigo 498º (Requisitos da litispendência e do caso julgado):

“Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico…”

Assim, a causa de pedir será o conjunto de factos concretos - a invocar pelo autor - que subsumidos a normas de direito substantivo, devem ser aptos à produção do efeito que pretende fazer valer.

Se a petição não contiver a causa de pedir, diz-se inepta, o que conduz à nulidade de todo o correspondente processado e à absolvição da instância – artigos 193º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 288º, n.º1, alínea b), e 494º, alínea b), todos do Código de Processo Civil.

Tem-se entendido que no caso de causa de pedir complexa, como aqui sucede, a falta de um dos elementos essenciais em que ela se decompõe basta para produzir a ineptidão da petição inicial.

Assim, no acórdão da Relação de Lisboa de 08.06.2004, processo 2614/2003-7, o entendimento que sufragamos (sumário):

“ (…)

A deficiência radical da petição no que respeita a um dos elementos em que se decompõe a causa de pedir complexa gera a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.

(…)

E no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.09.2013, processo n.º 500/08.4TBMNC.G1.S1.

“(…)

Assim, perante uma causa de pedir complexa, como é próprio do exercício do direito a indemnização, a abranger o dano, o evento danoso e os factos juridicamente relevantes que devem servir de substrato material à pretensão, ou seja, que subsumidos à norma produzam um direito de indemnização – direito este que a factualidade alegada manifestamente não é, em qualquer caso, adequado a suportar -, o articulado oferecido pela A. contém lacunas de alegação que não poderiam deixar de integrar-se na previsão legal de falta ou ininteligibilidade da causa de pedir e, consequentemente, da ineptidão.

(…)“

Por outro lado, também se entende, como no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.09.2006, no processo 06B2772 (Sumário):

“1. O princípio da cooperação deve ser conjugado com o princípio da auto-responsabilidade das partes, que não comporta o suprimento por iniciativa do juiz da omissão de articulação de factos estruturantes da causa.

2. O convite ao aperfeiçoamento dos articulados previsto no nº 3 do artigo 508º do Código de Processo Civil não comporta o suprir de omissões do núcleo de facto essencialmente estruturante da causa de pedir.

(…)”

Fazendo a aproximação ao caso concreto, para além da anulação do acto que ordenou a demolição pretendiam ainda os recorrentes receber uma indemnização desdobrada nos seguintes itens: danos não patrimoniais; despesas ocasionadas com o procedimento em apreço; o valor do edifício.

Na decisão recorrida decidiu-se ser inadmissível a cumulação destes pedidos por, em síntese:

“No entanto, a procedência do pedido anulatório, com a consequente condenação à prática do acto devido (se for esse o caso), verdadeiro objecto da presente acção administrativa especial, preclude a apreciação do pedido indemnizatório, incompatível, por isso, com os demais pedidos/causas de pedir.

Note-se que em sede de acção administrativa especial de pretensão conexa com actos administrativos sindica-se a legalidade de um acto administrativo e o pedido indemnizatório está estritamente dependente da constatação da ilegalidade da actuação administrativa.

É justamente isso que não sucede neste caso. Aqui, a única forma de poder ser procedente o pedido indemnizatório era se avançasse a demolição ordenada porque fossem considerados improcedentes os demais pedidos formulados nesta acção e o Réu avançasse com a execução do acto. Ou seja, se o acto fosse considerado legal (pelo menos “não ilegal”) por este tribunal.

Quanto aos danos morais e despesas efectuadas com o procedimento, assentam na mesma causa de pedir: a decisão de demolir, ou seja, os actos impugnados a que acrescem os factos de os autores terem pago despesas e sofrido moralmente com o procedimento em que tais actos foram praticados.”

Antes de mais a afirmação de que o pedido anulatório tem como consequência a “condenação à prática do acto devido” não é exacta.

Em primeiro lugar porque não foi deduzido pedido de condenação à prática do acto devido em cumulação com o pedido de anulação e o tribunal não pode conhecer de pedido que não foi formulado nem condenar em objecto diverso do pedido sob pena de nulidade da decisão – artigo 95º, n.º1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e artigo 668º, n.º1, alíneas d) e) do Código de Processos Civil de 1995 (artigo 615º, n.º1, alíneas d) e e) do Código de Processo Civil de 2013).

Nem poderia ter sido deduzido esse pedido por não se configurar, no caso, uma qualquer das hipóteses previstas no artigo 67.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos:

1 - A condenação à prática de acto administrativo legalmente devido pode ser pedida quando:

a) Tendo sido apresentado requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir, não tenha sido proferida decisão dentro do prazo legalmente estabelecido;

b) Tenha sido recusada a prática do acto devido; ou

c) Tenha sido recusada a apreciação de requerimento dirigido à prática do acto.

(…)”

Depois porque a anulação do acto na situação presente não tem como consequência necessária a prática de qualquer acto por parte do município demandado.

Não tendo o prédio sido demolido até ao momento, a anulação do acto tem apenas como consequência imposta ao Município não o demolir, e não um qualquer acto positivo.

E mesmo que tivesse ocorrido a demolição, a consequência necessária poderia não ser a reconstrução do edifício, caso fosse invocada, e provada, causa legítima de inexecução do julgado anulatório.

Também não é correcto afirmar-se que o pedido de indemnização “está estritamente dependente da constatação da ilegalidade da actuação administrativa”.

No caso concreto é precisamente a ilegalidade da ordem de demolição que é invocada e com base na ilegalidade dessa conduta do município - apontada como causadora dos prejuízos que se querem ver ressarcidos - é deduzido o pedido de indemnização.

De todo o modo, pode chegar-se à conclusão que o acto foi lícito e mesmo assim haver lugar à indemnização se o dano provocado com o acto, lícito, tiver sido anormal ou especial.

Como de sustenta no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19.12.2012, no processo 01101/12 (sumário):

I - Os pressupostos em que assenta a responsabilidade civil do Estado por actos lícitos são os seguintes:(i) a prática de um acto lícito;(ii) para satisfação de um interesse público;(iii) causador de um prejuízo "especial" e "anormal";(iv) existência de nexo de causalidade entre o acto e o prejuízo.

II - Prejuízo especial é aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma relativa posição específica; prejuízo anormal o que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração.

III - É especial e anormal, nos termos referidos, o prejuízo decorrente da construção de um viaduto por cima e ao lado de um prédio dos autores, com casa de habitação onde vivem, se o seu valor desceu para cerca de metade e viu diminuído o tempo de incidência dos raios solares e aumentado o ruído e poluição.”

No caso concreto, ainda que se viesse a apurar que a demolição tinha sido decretada com observância de todas as formalidades e garantias legais e que assentava em pressupostos, de facto e de direito, válidos, poderia concluir-se que tinham sido provocados prejuízos anormais aos autores, designadamente se fosse considerado elevado o valor das despesas efectuadas ou dos danos morais.

E, na hipótese do prédio ter sido demolido, se fosse considerado elevado o valor do prédio.

Num contexto de passividade da Administração quer face à construção em si mesma quer face a manutenção da construção durante décadas.

Finalmente, é incorrecto fazer-se a ligação lógica, como se faz na decisão recorrida, entre a consideração da legalidade do acto pelo tribunal e a demolição do prédio.

A suspensão da demolição apenas pode resultar da decisão de suspensão da eficácia do acto por parte do tribunal e não da decisão sobre a validade do acto.

Sem a decisão de suspensão da eficácia do acto, o município pode demolir o prédio independentemente de o tribunal decidir que o acto é válido ou inválido.

Em suma: fundando-se os pedidos numa complexa causa de pedir que abrange a invalidade do acto impugnado, ou seja, a ilegalidade da ordem de demolição (bem como a eminência da sua execução) e os prejuízos daí decorrentes, é lícita a cumulação de pedidos, face ao preceituado nos artigos 4º e 47º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Ao contrário do decidido.

No entanto relativamente ao terceiro pedido, o saneador recorrido acaba por se mostrar acertada a decisão de absolvição da instância mas por um fundamento diverso.

A invocada demolição do imóvel dos autores não ocorreu, tanto quanto resulta alegado.

Inexiste assim o facto gerador do dano e, por isso, do dano, relativamente ao pedido de indemnização pelo valor do prédio.

Se o prédio se mantém intacto, os autores não sofreram, nessa parte, o prejuízo que invocam, a perda total do prédio ou a perda total do seu valor.

A inexistência de um dos elementos da causa de pedir, complexa e que abrange o facto gerador do dano é no caso insuprível porque não se trata de uma omissão que possa ser suprida mas pura e simplesmente da sua inexistência.

O que conduz à ineptidão da petição inicial e, em consequência, à nulidade de todo o processado quanto a esse pedido, com absolvição dos réus da instância - artigos 193º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 288º, n.º1, alínea b), e 494º, alínea b), todos do Código de Processo Civil de 1995.

Pelo exposto impõe-se manter o despacho saneador na parte em que absolveu da instância do pedido de indemnização pelo valor do prédio, embora por fundamento diverso, não a ilegal cumulação de pedidos mas por falta da causa de pedir.

E deve revogar-se o despacho saneador quanto aos restantes pedidos de indemnização (danos morais e por despesas realizadas e a realizar).

Com a consequente necessidade de diligências instrutórias desde logo para decisão destes pedidos.

2. O recurso do acórdão.

2.1. A nulidade da decisão recorrida; a insuficiência da matéria de facto para concluir pela violação do disposto no artigo 18º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, face à implantação do prédio a demolir.

Determina a alínea d) do n.º1, do artigo 668º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 1º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que a sentença é nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Este preceito deve ser compaginado com a primeira parte do n.º2, do artigo 660º: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

Conforme é entendimento pacífico na nossa jurisprudência e na doutrina, só se verifica nulidade da sentença por omissão de pronúncia, a que aludem os citados preceitos, quando o juiz se absteve de conhecer de questão suscitada pelas partes e de que devesse conhecer (cfr. Alberto Reis, Código de Processo Civil anotado, volume V, Coimbra 1984 (reimpressão), p.140; e acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 11.9.2007, recurso 059/07, de 10.09.2008, recurso 0812/07, de 28.01.2009, recurso 0667/08, e de 28.10.2009, recurso 098/09).

O erro de direito não se integra no conceito de falta de fundamentação ou omissão de pronúncia.

O erro no enquadramento jurídico leva à revogação da sentença e não à declaração de nulidade, nos termos da invocada norma da alínea d), do n.º1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.

A nulidade só ocorre quando a sentença ou acórdão não aprecie questões suscitadas e não argumentos apresentados no âmbito de cada questão, face ao disposto nos artigos 659º e 660º do Código de Processo Civil.

Efectivamente, o tribunal não tem de se pronunciar sobre todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes, mas apenas fundamentar suficientemente em termos de facto e de direito a solução do litígio.

Questões para este efeito são todas as pretensões processuais formuladas pelas partes, que requerem a decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os específicos de qualquer acto especial, quando realmente debatidos entre as partes (Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 122º, página 112), não podendo confundir-se as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões, argumentos e pressupostos em que fundam a respectiva posição na questão (Alberto dos Reis, obra citada, 143, e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, volume III, 1972, página 228).

No mesmo sentido se orientou a jurisprudência conhecida, em particular os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09.10.2003, processo n.º 03B1816, e de 12.05.2005, processo n.º 05B840; os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 21.02.2002, processo n.º 034852 (Pleno), de 02.06.2004, processo n.º 046570, e de 10.03.2005, processo n.º 046862.

Referem os recorrentes que a decisão recorrida padece de nulidade por não se ter pronunciado sobre a existência ou não de condições de solidez, segurança ou salubridade do imóvel a demolir.

Vejamos.

Transcreve-se o excerto do acórdão da 1ª instância a que se imputa a referida nulidade:

Alegam ainda os AA. não estar comprovado qualquer perigo, para si ou para terceiros, por carência de condições de solidez, segurança ou salubridade do imóvel. Juntam, para o sustentar, um relatório elaborado por perito contratado por si, no intuito de rebater as conclusões constantes do relatório elaborado pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), no qual se estriba o acto agora em crise.

No entanto, não pode o tribunal, pura e simplesmente avocar a si uma decisão que se inscreve no domínio das competências da entidade administrativa em questão, quando não esteja, sequer, alegada a existência de erro grosseiro ou manifesto na apreciação que esta fez de determinado condicionalismo fático-jurídico. Não se pode «optar» por dar razão aos AA., com base na sua simples discordância, com toda a subjectividade que tal juízo acarreta, considerando um relatório elaborado por perito contratado por aqueles, à revelia das considerações, tendencialmente objectivas e credíveis de uma entidade como o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC). Improcede, pois, nesta parte também, a pretensão dos AA.”

Concluem os recorrentes que o que este excerto revela é uma ilegítima recusa de apreciação de matéria de que tem o dever de conhecer e que invocando-se como um determinante motivo do acto contenciosamente impugnado a violação do artigo 18º do RGEU, isto é, que as fundações do edifício não estão estabelecidas sobre terreno estável e suficientemente firme e alegando os recorrentes na sua petição que o edifício está construído em terreno estável e suficientemente firme, não pode o Tribunal recusar o conhecimento desta questão com a invocação de uma qualquer hipotética invasão da esfera de competências do Réu enquanto entidade administrativa, porque tal configura uma omissão de pronúncia.

Mais dizem os recorrentes nas suas alegações de recurso que o acórdão recorrido concluiu acriticamente pela violação pelos recorrentes do artigo 18º do RGEU sem proceder às necessárias diligências instrutórias e sem o apoio de factos que sustentassem tal conclusão, padecendo tal acórdão de deficit instrutório e não especificando os fundamentos de facto que justifiquem a decisão.

O recorrido responde que o relatório do LNEC foi junto como doc. 9 com a petição inicial, dele resultando que o terreno da escarpa da SP é instável e inadequado para a construção e inseguro porque o maciço se encontra diaclasado e descomprimido, seja porque as construções ocasionaram a realização de escavações e aterros que ainda mais agravaram a insegurança e que tais conclusões são aplicáveis ao terreno onde se encontra a habitação dos recorrentes, que padece dos mesmos males que a demais escarpa.

Dúvidas não subsistem de que a matéria sobre a existência ou não de condições de solidez, segurança ou salubridade do terreno onde se encontra o imóvel a demolir, é objecto de litígio entre as partes.

Simplesmente o Tribunal pronunciou-se sobre essa questão: sustentando que se trata de uma matéria no âmbito da actividade discricionária da Administração e que, como tal, apenas pode ser invalidado o acto com base em erro grosseiro ou manifesto, o que não é o caso por estar apoiado num parecer técnico.

Entendimento que pode ser certo ou errado mas não deixa de ser uma pronúncia sobre a questão.

Por outro lado o eventual deficit instrutório – questão a apreciar adiante – não conduz à nulidade do acórdão em si mesmo.

Apenas padece de nulidade a decisão que careça, em absoluto, de fundamentação de facto ou de direito; a simples deficiência, mediocridade ou erro de fundamentação afecta o valor doutrinal da decisão que, por isso, poderá ser revogada ou alterada, mas não produz nulidade (art.ºs 666º, n.º 3, e 668º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil; Alberto Reis, Código de Processo Civil anotado, volume V, Coimbra 1984 (reimpressão), p.140; acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11.9.2007, recurso 059/07).

No caso o tribunal entendeu que não havia lugar a produção de prova sobre a eventual a existência ou não de condições de solidez, segurança ou salubridade do imóvel a demolir porque já existia um parecer técnico nesse sentido e que assim estaria afastada a hipótese de erro grosseiro ou evidente, única situação em que se imporia invalidar o acto impugnado.

Pode ser certo ou errado este entendimento, como veremos, mas não existe absoluta falta de fundamentação de facto ou de direito no acórdão recorrido, única hipótese em que se poderia ter por verificada a nulidade do acórdão em si mesmo.

O invocado deficit instrutório – a existir, como existe – determina antes uma nulidade processual, a omissão de um acto que devia ser praticado e não foi, omissão esta susceptível de influir no exame ou decisão da causa, com a reflexa declaração de nulidade de todos os actos praticados posteriormente à verificação da invocada omissão, incluindo o acórdão, na parte em que este não puder ser aproveitado – n.ºs 1 e 2, do artigo 201º do Código de Processo Civil.

2.2. O erro na apreciação da falta de fundamentação do despacho impugnado.

Invocaram os recorrentes no seu articulado inicial e mantiveram em alegações a tese de que a ordem de demolição e cessação da utilização do seu prédio, contida no acto impugnado, não está devidamente fundamentada.

Em concreto invocam que “os fugidios e não sustentados motivos apontados pelo Município de VNG para a insusceptibilidade de legalização não são adequados nem suficientes para tal conclusão”.

Mais acrescentam que “a fundamentação da insusceptibilidade de legalização é feita por remissão para relatórios elaborados pelo LNEC, que não são dados a conhecer aos recorrentes.

17. Ora, como também se alegava na p. i., apesar de o Réu não ter disponibilizado o teor dos relatórios do LNEC, tanto quanto foi possível colher do texto disponibilizado no site que manteve o extinto Governo Civil do Porto (http://www.govcivilporto.gov.pt/p.noticias.g/nid/66), o relatório daquele Instituto de Novembro de 2006 refere-se a potencial instabilidade de um aterro no topo poente da Rua … (precisamente o extremo da Rua, muito afastado da casa dos AA.) sem que, em ponto algum, se refira ao prédio dos AA. e sua envolvente, de tal modo que indicie (e muito menos conclua) no sentido de as fundações deste prédio não estarem estabelecidas sobre terreno estável e suficientemente firme, juntando-se cópia desse relatório.

18.Fica patente que, apesar de haver, no plano estritamente formal, a invocação de motivos para a apontada insusceptibilidade de legalização, tais motivos, no plano substancial, são inadequados e insuficientes.”

Apreciemos pois este vício e se houve ou não erro de julgamento neste ponto.

Antes de mais há que referir que a falta de notificação dos relatórios do L.N.E.C. que serviram de base ao acto impugnado em nada afecta a sua validade.

A notificação de um acto administrativo - destinada a levar o acto ao conhecimento do seu destinatário - é uma formalidade que constitui um requisito de eficácia do acto (art.º 268º, n.º 3, 1.ª parte, da Constituição da República Portuguesa, artigos 66º a 70º e 132º do Código do Procedimento Administrativo, e artigo 60º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), pelo que a sua falta tem apenas como consequência a inoponibilidade do acto, em particular para efeitos de impugnação contenciosa.

Daí que a omissão de notificação do acto não integre vício desse acto, por lhe ser algo externo e posterior (neste sentido, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 02.03.2005, processo n.º 0716/04).

Se os ora recorrentes entendiam que a notificação do acto não tinha sido suficiente, podiam ter solicitado os elementos em falta ao município demandado ou, na falta de satisfação deste pedido, interposto em tribunal um pedido de intimação para o efeito, nos termos do disposto no artigo 60º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Não tendo os autores seguido este caminho e não estando aqui em causa a tempestividade da acção, mostra-se irrelevante do deficiente conhecimento por parte dos autores da fundamentação do acto.

Dito isto, prossigamos na análise deste vício e invocado erro de julgamento.

No caso concreto a fundamentação do acto consistiu na invocação de que a edificação violava “o disposto no art. 18º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, uma vez que conforme explicado pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) em relatórios elaborados, o maciço adjacente à escarpa se encontra fortemente diaclasado e descomprimido, tendo o processo de diaclasamento conduzido à fragmentação em grandes blocos, alguns praticamente soltos e muitos em condições de equilíbrio extremamente precários, pelo que o terreno não se apresenta estável e suficientemente firme, por natureza ou consolidação artificial, não apresentando assim as condições mínimas exigíveis nos termos do referido artigo 18º do [Regulamento Geral das Edificações Urbanas]”.

Esta fundamentação, sendo embora muito sintética, é inteligível e feita de forma a que os seus destinatários possam entender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pela entidade administrativa na sua decisão: a construção dos autores, de acordo com os relatórios do L.N.E.C. não oferece condições de segurança pelo que, face ao disposto no artigo 18º do R.G.E.U., não pode ser licenciado.

Mostra-se perfeitamente clara e suficiente a fundamentação.

Concluímos, assim, como o faz o acórdão proferido em primeira instância que “o acto em crise cumpre tal desiderato, uma vez que do mesmo é perfeitamente perceptível o raciocínio, o percurso lógico seguido pelo réu para decidir como decidiu. Tanto assim é que os AA. logram impugnar contenciosamente o acto, procurando convencer o tribunal a divergir do entendimento propugnado no acto em crise, juntando até aos autos um relatório de um perito por eles contratado para sustentar a solidez da construção por si erigida.”

Improcede, em suma, o vício de falta de fundamentação do acto impugnado e, consequentemente, o recurso nesta parte.

Questões diversas são saber se: 1º os referidos pareceres apoiam esta fundamentação, em concreto, se se referem à construção dos autores ou a outras; 2º se apesar de não se referirem expressamente ao prédio dos autores estes pareceres lhe são aplicáveis por o terreno onde foi construído ter as características apontadas nos pareceres; 3º se os pareceres do L.N.E.C. reproduzem a realidade ou padecem de um erro de apreciação, eventualmente grosseiro.

Mas estas questões não têm a ver com a falta ou deficiência da fundamentação mas com o eventual erro nos pressupostos de facto do acto impugnado, em concreto, o pressuposto de o terreno em que foi construído o prédio dos autores não ser firme e estável e, por isso, o edifício não oferecer mínimas condições de segurança.

Ligada a esta surge ainda uma outra questão, igualmente distinta e diversa da falta de fundamentação: a invocada falta de deficit instrutório, ou seja, saber se foram feitas todas as diligências necessárias e suficientes para analisar com rigor a verificação ou não, do invocado erro nos pressupostos de facto e de direito da aplicação do artigo 18º do R.G.E.U.

Questões que mais à frente iremos apreciar.

2.3. A omissão de audição da recorrente-mulher.

Consta do acórdão recorrido, sobre este vício:

“Os AA. têm razão num ponto: a A. mulher tinha de ser notificada da ordem de demolição em questão. Tendo esta a qualidade de «interessada», nos termos do nº 3 do art. 106º do RJUE, teria de ser ouvida e, portanto, notificada expressamente para tal, pelo que não poderia o réu não a notificar e, pura e simplesmente, presumir que existiria “comunhão de mesa e habitação”. Houve uma formalidade que não foi cumprida. A questão aqui será saber se se trata de uma formalidade susceptível de ser degradada caso se conclua que a sua eventual pronúncia em nada alteraria o conteúdo do acto, neste caso a ordem de demolição, sobretudo se tivermos em consideração os argumentos já trazidos pelo seu marido ao procedimento, à data.

É cada vez mais corrente o entendimento de que a preterição de formalidades apenas poderá redundar na anulabilidade do acto quando não seja susceptível de ser degradada (cfr. neste sentido Rui Machete em “A relevância processual dos vícios procedimentais no novo paradigma da justiça administrativa” in: separata da “Revista de Direito do Ambiente e Ordenamento do Território” editada pela Associação Portuguesa para o Direito do Ambiente, 2006, nº 13, págs. 30 e seg”). Tratar-se-á da assunção do princípio segundo o qual “utile per inutile non vitiatur”, o que ocorrerá, fundamentalmente, quando se possa concluir que o exercício de uma formalidade, como por exemplo o direito de audiência, em nada alteraria a decisão em questão, uma vez que os argumentos que a A. pudesse trazer à colação não lograriam alterar o sentido da decisão, atentas as conclusões a que as inspectoras haviam chegado, no seguimento de deslocação/inspecção do local em questão (e que haviam transmitido superiormente), condicionando inelutavelmente o desfecho de todo o procedimento, de cariz praticamente vinculado.

É este o sentido, de resto, do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 22.06.2011, susceptível de consulta em www.dgsi.pt e que, de resto, encerra exegese relevante, também para o que infra se exporá, no tocante ao (suposto) vício de falta de fundamentação:

I- O princípio geral de direito que se exprime pela fórmula latina “utile per inutile non vitiatur”, princípio que também tem merecido outras formulações e designações (como a de princípio da inoperância dos vícios, a de princípio anti-formalista, a de princípio da economia dos actos públicos e a de princípio do aproveitamento do acto administrativo), vem sendo reconhecido quanto à sua existência e valia/relevância pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, admitindo-se o seu operar em certas e determinadas circunstâncias.

II- Tal princípio habilita o julgador, mormente o juiz administrativo a poder negar relevância anulatória ao erro da Administração [seja por ilegalidades formais ou materiais], mesmo no domínio dos actos proferidos no exercício de um poder discricionário, quando, pelo conteúdo do acto e pela incidência da sindicação que foi chamado a fazer, possa afirmar, com inteira segurança, que a representação errónea dos factos ou do direito aplicável não interferiu com o conteúdo da decisão administrativa, nomeadamente, ou porque não afectou as ponderações ou as opções compreendidas (efectuadas ou potenciais) nesse espaço discricionário, ou porque subsistem fundamentos exactos bastantes para suportar a validade do acto [v.g., derivados da natureza vinculada dos actos praticados conforme à lei], ou seja ainda porque inexiste em concreto utilidade prática e efectiva para o impugnante do operar daquela anulação visto os vícios existentes não inquinarem a substância do conteúdo da decisão administrativa em questão, não possuindo a anulação qualquer sentido ou alcance.

III - Comprovado e demonstrado que as ilegalidades cometidas não influenciam os resultados do concurso, por não darem lugar à alteração da ordenação dos candidatos a ponto da recorrente ficar posicionada em lugar que a habilite a ser admitida, tornam-se as mesmas irrelevantes ou inoperantes para efeitos de anulação do acto recorrido.

Igualmente neste sentido, se pronunciou o Tribunal Central Administrativo Sul, no acórdão nº 00977/05, de 30/04/2009, em caso de demolição de barracas/construções não licenciadas no âmbito do Programa Especial de Realojamento. Aí se disse, em síntese, que: (…) o que ficou dito, importa apenas determinar se ao acórdão recorrido ajuizou bem quando decidiu atribuir efeito invalidante à falta de cumprimento da formalidade prevista no nº 3 do art. 106º do DL nº 555/99, de 16/12, na redacção que lhe foi dada pelo DL nº 177/2001, de 4/6, que dispunha que “a ordem de demolição ou de reposição a que se refere o nº 1 é antecedida de audição do interessado, que dispõe de 15 dias a contar da data da sua notificação para se pronunciar sobre o conteúdo da mesma”.

O acórdão recorrido entendeu que, no caso dos autos, era possível concluir com segurança que a demolição não podia ser evitada e, consequentemente, afastou o efeito invalidante da omissão da audiência de interessados.

(…)

A questão controvertida consiste, assim, em saber se, neste caso, o incumprimento do artigo 106º nº 3 do DL nº 555/99, de 16/12, implicava ou não a anulação do acto impugnado.

Importa em primeiro lugar referir que a Jurisprudência do STA se tem pronunciado no sentido do afastamento de efeito invalidante, no tocante à preterição do direito de audiência, quando seja possível concluir através de um juízo de prognose que a decisão acertada e a única possível – cfr. neste sentido, os acórdãos do Pleno do STA, de 21-05-98, proferido no âmbito do recurso nº 40.962, de 9-2-99, proferido no âmbito do recurso nº 39.379, de 27-9-2000, proferido no âmbito do recurso nº 41.191, de 1-2-2001, proferido no âmbito do recurso nº 46.825, de 8-2-2001, proferido no âmbito do recurso nº 46.660, e de 25-2-2009, proferido no âmbito do recurso nº 0974/08.

E neste particular, o acórdão recorrido concluiu o seguinte:

“[…] o afastamento do efeito invalidante exige que o tribunal, no âmbito dos seus poderes de cognição e num juízo de prognose póstuma, conclua, sem margem para dúvidas que a decisão proferida era a única concretamente possível, de tal modo que com ou sem audiência prévia, sempre a Demandada tinha de praticar o acto como praticou [cfr. Acórdão do STA, de 19-6-2001 [Pleno], processo nº 39.128; acórdão de 2-3-2000, processo nº 43.390, acórdão de 18-05-2000, processo nº 45.965, e acórdão de 21-9-2000, processo nº 46.508].

(…)

Mesmo que os Autores tivessem sido ouvidos, o tribunal pode concluir que tal não poderia provocar a reponderação da situação, em relação à decisão de demolição.

Pode-se, pois, concluir, que no caso sub judice, o fim que a formalidade omitida via foi alcançado, ou, como pretende a Entidade Demandada, que a decisão final seria necessariamente a mesma quer o interessado usasse do direito de audiência prévia ou não, pelo que o incumprimento do disposto no art. 100º do Código de Procedimento Administrativo não tem, no caso em apreço, efeitos invalidantes”.

(…)

Nada podia evitar a demolição do prédio em causa, visto que a construção da CRIL, cujo traçado passa na zona onde aquele se encontrava implantado, era incompatível com a sua manutenção, independentemente do facto de se saber se, face às normas aplicáveis, nomeadamente as do DL nº 555/99, de 16/12, a respectiva legislação era ou não possível.

Nestas condições, a degradação da formalidade imposta no nº 3 do art. 106º do DL nº 555/99, de 16/12, era perfeitamente concebível, dado que o Tribunal podia, desde logo, antecipar um juízo sobre a inevitabilidade jurídica da ordem de demolição, dado que se verificava a prova clara e inequívoca de todos os factos dos quais decorria não só a ilegalidade, mas também a impossibilidade da legalização da construção em causa.

Ora, tal ocorre manifestamente no presente caso, visto que perante os elementos constantes do processo, era patente não só a ilegalidade da construção, como também a conclusão da impossibilidade da sua legalização, sendo totalmente insubsistente a invocação da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 106º, 107º e 109º do DL nº 555/99 de 16/12, por violação dos artºs 13º nº 3, 30º e 62º da CRP, na medida em que o acórdão recorrido, embora reconhecendo que a audiência prévia era uma formalidade a observar, e que no caso não havia ocorrido, apenas recusou efeito invalidante por aplicação do princípio do aproveitamento do acto.”

O acórdão recorrido entendeu, em suma, que no caso dos autos, era possível concluir com segurança que a demolição não podia ser evitada e, consequentemente, afastou o efeito invalidante da omissão da audiência de interessados.

O ponto de partida desta decisão não está correcto, como veremos no próximo ponto, mas a decisão em si mesma acaba por se mostrar acertada quando aos efeitos do vício, face à Jurisprudência hoje uniforme nele citada.

Na verdade, das duas, uma: ou, depois de realizadas as necessárias diligências instrutórias – o que se impõe, como veremos adiante - se conclui que existem condições de solidez no terreno onde está implantado o prédio dos autores ou se conclui pela inversa.

Isto sendo certo que a segurança e salubridade da construção apenas foi posta em causa por se ter concluído que o terreno em que assentou não está devidamente compactado.

Em qualquer das hipóteses apenas se impõe uma solução possível: se o edifício tiver condições de segurança e salubridade porque o terreno onde está implantado é sólido, o acto que ordena a demolição é ilegal, por erro nos pressupostos de facto; ou o terreno não é sólido e o acto é válido.

Não se justificaria, em qualquer caso, repetir o procedimento com a audiência preterida quando a solução já estava pré-determinada e era só uma de duas, de acordo com os factos apurados em sede de julgamento.

Justifica-se, pelo exposto, negar efeitos invalidantes a este vício formal, tal como decidido embora por fundamentos diversos.

Termos em que se julga nesta parte improcedente a acção e, por esta via, o recurso jurisdicional.

2.4. O erro de julgamento na apreciação dos pressupostos de facto e de direito na aplicação ao caso do artigo 18º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas; o deficit instrutório.

Determina o artigo 18º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas:

“As fundações dos edifícios serão estabelecidas sobre terreno estável e suficientemente firme, por natureza ou por consolidação artificial, para suportar com segurança as cargas que lhe são transmitidas pelos elementos da construção, nas condições de utilização mais desfavoráveis”.

No caso concreto o pressuposto essencial de que partiu o acto recorrido foi precisamente o da falta de firmeza do solo onde foi construído o prédio dos autores. Invocando pareceres do L.N.E.C. que apontariam nesse sentido.

Mas, como acima se referiu suscitam-se a propósito as seguintes questões, dada a controvérsia suscitada pelos autores a esse propósito:

1º Determinar se os referidos pareceres apoiam esta fundamentação, em concreto, se se referem à construção dos autores ou a outras.

2º Apreciar se apesar de não se referirem expressamente ao prédio dos autores estes pareceres lhe são aplicáveis por o terreno onde foi construído ter as características apontadas nos pareceres.

3º Determinar se os pareceres do L.N.E.C. reproduzem a realidade ou padecem de um erro de apreciação, eventualmente grosseiro.

Surge, na apreciação destas questões, um tema comum, o da chamada discricionariedade técnica e dos limites do controle jurisdicional neste âmbito.

Diz-nos, a propósito, Mário Esteves de Oliveira, em Lições de Direito Administrativo, 1980, págs. 349, 352 a 355, citado no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 06.06.2007, no processo n.º 02517/07:

“Não é fácil encontrar na doutrina quem defenda que a determinação do conteúdo dos conceitos técnicos possa ficar na dependência do poder discricionário da Administração, embora este fenómeno seja conhecido, generalizadamente, por discricionariedade técnica (...) as questões resultantes da utilização de conceitos técnicos pela lei, resolvem-se através de critérios exclusivamente técnicos, não tendo o órgão administrativo a liberdade de repudiar o conteúdo que lhes é imputado nos respectivos ramos da ciência e optar por qualquer outro.

(...)

Posta a questão nestes termos, rejeitando que a utilização de um conceito técnico seja por si só tradução duma vontade legislativa de conferir à Administração o poder de optar discricionariamente por um qualquer conteúdo ou comportamento, dir-se-á que, também aqui, tudo passa pela mesma interpretação da lei.

Assim, há conceitos técnicos cuja utilização deve ter-se como significando a imposição de uma vinculação à Administração: é o que acontecerá sempre que a remissão da lei administrativa seja feita para conceitos ou noções exactas de outros ramos da ciência e da técnica.

(...)

Quando o legislador se serve de conceitos ou noções não exactas haverá, segundo A. Queiró que distinguir conforme sobre eles existe ou não um consenso generalizado ou, pelo menos, prevalecente: em caso afirmativo, tudo se deverá passar como se se tratasse dum conceito técnico exacto; no caso negativo, é que o legislador terá querido deixar à Administração, de forma incontrolável pelo tribunal, a possibilidade de formular com liberdade os juízos técnicos correspondentes [sem prejuízo de] no caso de a interpretação do conceito técnico não exacto, ou de a correspondente qualificação dos factos da vida real padecer de erro manifesto o tribunal deverá controlar e, consequentemente, anular o acto em que se reflectiu esse erro.

(...)

Há, porém, outros casos, em que a aplicação da lei passa, não só pela qualificação técnica duma situação da vida real, como também pela sua valoração ou qualificação com base em critérios ou juízos administrativos de natureza discricionária (...) Ali [ruína - critério de ordem técnica], há, segundo a posição que aqui adoptámos, vinculação; aqui [segurança – ponderação do interesse público administrativo], discricionariedade.

(…)”

Encontramos aqui já um subsídio importante para o caso concreto:

A firmeza (ou não) do solo é um pressuposto de facto que assenta num juízo de ordem técnica, mas vinculado, o que resulta de um conceito técnico, neste caso adoptado pela engenharia civil. O solo ou é firme ou não, ou está ou não devidamente compactado, ou é ou não susceptível de compactação artificial, de acordo com as legis artis da engenharia civil. Não existe aqui a possibilidade de escolha entre várias soluções possíveis. Só existe uma que corresponde à realidade.

Existindo este pressuposto terá de se concluir que o edifício oferece condições de segurança e salubridade, pois estas condições – cuja análise abrangeria uma margem de discricionariedade técnica -, apenas foram postas em causa no acto impugnado face à conclusão de o terreno não ser firme, não estar devidamente compactado.

No caso concreto os autores põem esse pressuposto de facto que assenta num juízo técnico vinculado: invocam que, ao contrário do afirmado no acto impugnado, o solo é firme.

Invocam também, sem pôr sequer em causa o valor técnico dos pareceres do L.N.E.C., que estes não tiveram por objecto o terreno onde está implantado o seu prédio e que o seu terreno tem características distintas dos terrenos analisados por aquele laboratório.

Mostrando-se tal matéria controvertida e não sendo seguro que a perícia efectuada se tenha reportado ao terreno onde está implantado o prédio dos autores ou de características idênticas, impunha-se produzir prova sobre a mesma, de forma a decidir se o pressuposto de facto essencial em que se baseia a ordem de demolição, a falta de firmeza do terreno, se verifica ou não.

Como refere Carla Amado Gomes, em «Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente», Coimbra Editora, 2007, p. 488.

«A submissão da Administração ao princípio da legalidade (artigos 266.º/2 da CRP e 3.º do CPA) e a consagração do direito de acesso à justiça administrativa com vista ao controlo da legalidade das decisões do Executivo (artigos 268.º/4 da CRP e 2.º do CPTA) não podem ceder perante o alto grau de complexidade técnica das decisões sobre o risco. É verdade que o julgador não está funcionalmente habilitado a controlar a verosimilhança de uma explicação científica, nem a avaliar da operacionalidade de uma solução técnica, mas tal incapacidade funcional, na medida em que possa ser suprida, não deve afastar aquelas decisões da susceptibilidade de revisão judicial».

E, no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 03.04.2008, no processo 01041/04.4 BEBRG, cujo entendimento sufragamos integralmente:

“(…)

Preceitua-se no n.º 3 do art. 265.º do CPC que incumbe “… ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer …”, sendo que nos termos do art. 513.º do mesmo Código a “… instrução tem por objecto os factos relevantes paro o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova …”.

Decorre, por sua vez, do art. 515.º que o “… tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado …”, sendo que, por força do regime decorrente do art. 655.º, sob a epígrafe de “liberdade de julgamento”, o tribunal “… aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto ...” salvo quando a “… lei exija, para a existência ou prova de facto jurídico, qualquer formalidade especial …” a qual então não pode ser dispensada.

Deriva, ainda, do art. 388.º do CC que a “… prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial …”, sendo que a “… força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal …” (art. 389.º do CC).

Presente o quadro legal transcrito e analisados os autos, mormente, a matéria factual controvertida inserta no item 35.º da BI, sua resposta totalmente negativa e respectiva fundamentação e enquadramento havido na sentença, temos que o Mm.º Juiz “a quo” não observou devidamente seus poderes-deveres, fazendo inclusive errada interpretação e aplicação dos arts. 388.º e 389.º do CC, 513.º, 515.º e 655.º do CPC, ao considerar que se estava perante factualidade controvertida a provar única e exclusivamente por prova pericial, afastando por completo o valor probatório de prova documental que tinha nos autos, que é livremente apreciada e de que poderia se socorrer para motivar seu julgamento (cfr. não apenas a cópia do relatório do exame médico/perícia médico-legal junta em sede de audiência de julgamento, mas também as próprias decisões judiciais que se mostram insertas nos autos que tomaram posição sobre aquela factualidade), o que manifestamente não é correcto à luz do regime legal vigente quer em matéria de julgamento de facto, como em matéria de provas e do seu respectivo valor.

Por outro lado, temos de ter presentes os princípios fixados nos arts. 264.º e 265.º, n.º 3 do CPC, em que se consagra o poder do juiz realizar diligências probatória necessárias à demonstração dos factos de que lhe é lícito conhecer, poder este que deixou de ser encarado como discricionário e passou a constituir mesmo um poder-dever, sendo que inclusive o julgador não se poderia escudar no facto de haver terminado a fase de instrução e se estar em sede da fase de audiência de julgamento porquanto o art. 653.º, n.º 1 daquele Código permite que, mesmo encerrada a discussão, possa o tribunal, se não se julgar suficientemente esclarecido, ouvir pessoas que entender e/ou ordenar mesmo diligências necessárias.

Como refere Rodrigues Bastos neste preceito estão incluídos os poderes instrutórios do tribunal, de âmbito alargado, competindo-lhe averiguar não só os factos instrutórios como os factos principais articulados pelas partes, constituindo mais um dos poderes de iniciativa do tribunal que se encontram dispersos em vários artigos do CPC, como seja o art. 653.º, n.º 1 (in: Notas ao Código Processo Civil, vol. II, pág. 15).

Daí que, no seguimento deste raciocínio, ao julgador, confrontado com a aquela factualidade controvertida sobre a qual tinha de emitir seu prudente e justo julgamento e presentes os elementos probatórios produzidos dos quais resultava, no mínimo, um princípio de prova que apontava eventualmente para a veracidade daquela factualidade, se impunha o poder-dever de ordenar todas as diligências tidas por necessárias para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, requisitando todos os documentos que considerasse importantes para a decisão, determinando a realização de prova pericial ou a oficiosa inquirição de testemunhas (cfr. arts. 265.º, n.º3, 645.º, 652.º, 653.º e 655.º todos do CPC “ex vi” art. 01.º do CPTA).

(…) ”

Deveria, portanto, o Tribunal ter ordenado a produção de prova requerida e a que entendesse necessárias para apurar a matéria de facto controvertida que existe e acima foi indicada, ao contrário do decidido no despacho saneador.

Este deficit instrutório determina, como acima se adiantou, uma nulidade processual, a omissão de acto que devia ser praticado, a produção de prova, e não foi, omissão esta susceptível de influir no exame ou decisão da causa, com a reflexa declaração de nulidade de todos os actos praticados posteriormente à verificação da invocada omissão, incluindo o acórdão, embora não totalmente, apenas na parte em que não pode ser aproveitado sem o resultado das diligências instrutórias a realizar, ou seja, no que diz respeito à apreciação do vício de erro nos pressupostos do acto impugnado – n.ºs 1 e 2, do artigo 201º do Código de Processo Civil.

Na verdade determina este preceito, sob a epígrafe “Regras gerais sobre a nulidade dos actos”

“(…)

1. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

2. Quando um acto tenha de ser anulado, anular-se-ão também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente. A nulidade de uma parte do acto não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.

(…)”

No caso concreto a validade do acórdão face ao apontado deficit instrutório não fica prejudicada na parte em que conheceu, com acerto, sobre os vícios da falta de fundamentação do acto e da preterição da audiência prévia, julgando-os improcedentes, pelo que nessa parte se impõe mantê-lo.

3. Conclusão

Assim, devem os autos baixar à primeira instância para produção da prova necessária ao julgamento, de facto e de direito, apenas das questões de facto controversas, acima indicadas, relativas ao vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de aplicação do artigo 18º do R.G.E.U. e para apreciação dos pedidos de indemnização por danos morais e por despesas realizadas e a realizar.


*

IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. Julgam parcialmente procedente o recurso do despacho saneador e:

1.1. Mantêm esta decisão na parte em que absolveu da instância quanto ao pedido de indemnização pelo valor do prédio.

1.2. Revogam a decisão quanto aos restantes pedidos de indemnização, devendo os autos baixar à primeira instância para instrução e decisão destes pedidos.

2. Julgam parcialmente procedente o recurso do acórdão pelo que:

2.1. Declaram nulo todo o processado posterior ao despacho saneador, incluindo o acórdão recorrido na parte em que conheceu do vício de violação de lei, por deficiência de instrução.

2.2. Ordenam a baixa dos autos à primeira instância, a fim de que seja produzida prova sobre a matéria de facto controvertida para o conhecimento deste vício bem como do pedido de indemnização por danos morais e despesas, seguindo-se os ulteriores termos processuais regulados nos artigos 90º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

2.3. Mantém no restante o acórdão recorrido.

Custas em partes iguais pelos recorrentes e pelo recorrido.


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Porto, 17.04.2015
Ass.: Rogério Martins
Ass.: Helena Ribeiro
Ass.: Esperança Mealha