Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00279/07.7BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/17/2015
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Luís Migueis Garcia
Descritores:RESPONSABILIDADE. CADÁVER EM MORGUE.
DEVER DE CUIDADO
Sumário:I) – Em caso de óbito verificado em instituição pública de saúde, cabe, antes de ulteriores trâmites, aassegurar a permanência do corpo em local apropriado.
II) – Da inobservância desse dever de cuidado pode advir responsabilidade.
Recorrente:Centro Hospitalar TM e AD, EPE
Recorrido 1:MABCS
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Centro Hospitalar de VR/PR, E.P.E. (Avª…), interpõe recurso jurisdicional de decisão do TAF de Mirandela, que julgou parcialmente procedente acção administrativa comum ordinária intentada por MABCS , RDPBCS, RMPBCS (…), e MAPBCS (…).

O recorrente formula as seguintes conclusões:

1ª – A douta sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito, pois os factos dados como provados não permitem a conclusão jurídica a que o tribunal chegou.

2ª – O tribunal a quo, na sentença recorrida, fez uma errada subsunção da factualidade provada ao direito aplicável, mormente no que concerne à interpretação e aplicação, ao caso concreto dos autos, do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 51º e artigos 53º e 54º, todos do Decreto-Lei n.º 11/98, de 24 de janeiro.

3ª – Decorre das disposições conjugadas do n.ºs 1, 2 e 3, do artigo 54º, do DL n.º 11/98, de 24/01 (em vigor à data dos factos a que se reportam os presentes autos) que há lugar à autópsia médico-legal em situações de morte por causa ignorada, como foi o caso da morte de JMPS, competindo, nestes casos, à autoridade judiciária a autorização para a remoção do corpo, com vista à realização da autópsia, a qual deve ser realizada com a brevidade possível, após a constatação de sinais de certeza de morte.

4ª – Aliás, nos termos da lei, o transporte do cadáver, nestes casos, é sempre requisitado pela autoridade judiciária (Ministério público) e nunca pelo Hospital em cuja Morgue está depositado o corpo.

5ª – Desta forma, ao contrário do decidido na sentença recorrida, o Réu/Recorrente cumpriu integralmente com disposto nas alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 51º, do DL n.º 11/98, de 24/01, porquanto, tal como resulta da matéria de facto provada vertida na sentença recorrida, os serviços administrativos do Hospital de D. L..., em PR, aturam da seguinte forma:

a) No dia 14.08.2004, comunicaram o óbito de JMPS ao Delegado do Ministério Público do Tribunal Judicial de PR (cfr. ponto 3 dos factos provados da sentença);

b) O cadáver foi mantido na Morgue Hospital de D. L..., em PR, único local daquele Hospital apropriado à permanência do cadáveres, e que, aquela data, detinha condições análogas a outras morgues do País, sendo incompetente, quer a autoridade policial ou outra que não a autoridade de saúde, quanto à avaliação de tais condições;

c) No dia 16.08.2004, após o Magistrado do Ministério Público ter comunicado ao Hospital D. L..., via fax, a decisão de que havia sido dispensada a realização de autópsia ao falecido, os elementos dos Bombeiros e da GNR procederam ao transporte do cadáver, para efeitos de inumação (vide pontos 4 e 7 dos factos provados da sentença)

6ª – Ao Réu, aqui Recorrente, não pode ser assacada qualquer culpa na produção do evento/facto gerador dos danos (permanência do corpo na Morgue do Hospital de PR entre o dia 14 e o dia 16 de agosto de 2004), visto que este facto foi causado por circunstâncias anormais e imprevisíveis (atinentes ao mau funcionamento dos serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de PR, por não ter á data dos factos um Magistrado de turno no fim de semana) que escapam, de todo, ao domínio do Recorrente, à luz de um critério de previsibilidade razoável.

7ª – Assim sendo, está afastada a culpa do Réu/Recorrente na produção do facto gerador dos danos, cuja indemnização se peticiona nos presentes autos.

8º - Considerando que os requisitos da responsabilidade civil são de verificação cumulativa é forçoso concluir que não estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil do Réu/Recorrente.

9ª – Decidindo como decidiu, o Tribunal “a quo” violou, entre outros, os comandos dos artigos 2º, 4º e 6º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de novembro, e os artigos 483º e 487º do Código Civil.

Os recorridos contra-alegaram, concluindo.

1 - Vem o Centro Hospitalar de TM e AD..., EPE, interpor recurso da sentença proferida, por não concordar com a sua condenação em sede da 1ª instância.

Contudo, é completamente a sua falta de razão.

2 - Desde logo não compreendem os recorridos o motivo pelo qual a recorrente entende que houve uma incorrecta aplicação da Lei.

3- Com efeito, temos de ter em conta que quem praticou os actos conducentes à responsabilidade civil da recorrente não foi o Hospital D. L..., no PR, mas sim o Centro Hospitalar VR/PR EFE.

4 - Significa isto que, não sendo uma instituição autónoma, o Hospital D. L... está incorporado, juntamente com o Hospital de VR…, numa única entidade que faz a gestão dos dois Hospitais.

5 - Ora, face á matéria dada como provada, certo é que, dado o calor que se fazia sentir e o facto da morgue do Hospital D. L... não ter refrigeração (nem tampouco um ar condicionado) nem arca frigorífica, a direcção do Centro Hospitalar sabia que a decomposição do corpo seria rápida e severa.

6 - Face a estes factos, que não podiam ser desconhecidos da Direcção do Centro Hospitalar, certo é que deviam ter providenciado o transporte do corpo para a morgue do Hospital de VR…, o qual dispunha de todas as condições de conservação do cadáver.

7- E não se pode falar, neste caso, de remoção do corpo, uma vez que este nunca deixaria de estar sobre a alçada do Centro Hospitalar de VR/PR.

8 - Isto é, nunca se poderia considerar que com o transporte do cadáver para o Hospital de VR… haveria remoção do corpo tal como a lei o define, uma vez que o corpo estaria sempre sob a alçada da mesma entidade, o Centro Hospitalar de VR/PR.

9 - O que houve foi uma negligência grosseira no desrespeito pela vida humana e dos mais elementares deveres de cuidado a que o Centro Hospitalar estava obrigado.

10 - Não é admissível que uma entidade pública com as responsabilidades do Centro Hospitalar deixou um corpo (não era só um, mas sim dois) entrar em decomposição ao pontos dos bombeiros terem de entrar na morgue de máscara de oxigénio, depararem-se com líquidos a sair do corpo e terem de efectuar o transporte do corpo com máscara de oxigénio. Pura e simplesmente não é possível.

11 -É imperdoável.

12 - Assim, entendem os recorridos que a douta sentença de fls, não violou qualquer norma legal, devendo ser confirmada a decisão já proferida.



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A Exmª Procuradora-Geral Adjunta, notificada para efeitos do art.º 146º do CPTA, deu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Dispensando vistos, cumpre decidir.
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A apreciação quanto ao mérito da apelação, sob delimitação das suas conclusões, versa imputado erro no julgamento de direito na afirmação de responsabilidade extracontratual do réu, particularizado na percepção de um juízo de culpa, na envolvente dos factos apurados e regime do DL n.º 11/98, de 24/01.
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Os factos, que a decisão recorrida consignou como provados:
1. Em 14.08.2004, pelas 18.39horas, faleceu o marido e pai dos Autores, JMPS, em PR – cfr. doc. 1 junto com a petição inicial;

2. O corpo do falecido foi transportado, já cadáver, para o Hospital D. L..., em PR;

3. Aquando da chegada ao Hospital, foi comunicado o falecimento ao Delegado do Ministério Público do Tribunal Judicial da Comarca do PR – cfr. doc. 2 junto com a contestação;

4. Em 16.08.2004, foi comunicado ao Hospital, pelo Magistrado do Ministério Público, que havia sido dispensada a realização de autópsia ao falecido – cfr. doc. 3 junto com a contestação;

5. O falecido não fez testamento nem qualquer disposição de última vontade, deixando como únicos e universais herdeiros a sua mulher e filhos, ora Autores – cfr. doc. 2 junto com a petição inicial;

6. A Morgue do Hospital D. L... não possuía câmaras frigoríficas;

7. Em 16.08.2004, quando o corpo do falecido iria ser transportado, os bombeiros e elementos da GNR, que iam proceder ao transporte, depararam-se com o corpo em estado de decomposição;

8. O corpo do falecido exalava cheiro intenso e nauseabundo;

9. Tal cheiro era percetível fora da morgue, num espaço de 7 a 8 metros;

10. A Autora MA… viu o corpo do seu falecido marido inchado e em estado de decomposição;

11. O corpo do falecido foi de imediato transportado e enterrado sem cerimónias fúnebres;

12. Devido a tal situação, os Autores sofreram grande dor;

13. A Autora MA… teve acompanhamento psiquiátrico – cfr. doc. 4 junto com a petição inicial;

14. A petição inicial que motiva os presentes autos deu entrada neste Tribunal, em 01.08.2007 – cfr. carimbo aposto a fls. 1 dos autos em suporte físico.

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O Direito :
A decisão recorrida julgou a causa à luz do regime de responsabilidade civil extracontratual constante do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, dissertando sobre o enquadramento geral na matéria e vertendo depois sobre a factualidade supra provada, não deixando de cuidar das objecções do réu/recorrido face à normatividade constante do DL n.º 11/98, de 24/01.
O seu discurso fundamentador guiou-se pelas seguintes reflexões:
A questão a decidir no presente processo prende-se com a responsabilidade extracontratual do Réu Centro Hospitalar por não ter transportado ou mandado transportar o corpo do falecido para local com câmara frigorífica.
Os Autores sustentam a sua tese na circunstância de ser verão, época de calor, e o Réu dever ter assegurado que o corpo do falecido seria acondicionado em local com câmaras frigoríficas, de molde a evitar o acelerar do processo de decomposição.
Por seu lado, o Réu invoca que não podia transportar o corpo até ordem judiciária, que o corpo ficou armazenado no local adequado e que o que sucedeu não deriva de culpa sua.
Tendo em consideração a data em que se produziram os factos supra, em agosto de 2004, a eventual responsabilidade civil extracontratual do Réu deverá ser apurada nos termos do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de novembro de 1967.
Nos termos do artigo 2º, n.º 1 do referido Decreto-Lei “o Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos respetivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.”.
É jurisprudência assente que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas pública, no âmbito do artigo 2º do diploma mencionado, pressupõe a verificação dos mesmos pressupostos previstos no Código Civil, pelo que importa recorrer ao artigo 483º do C.C. – cfr. Acórdãos do STA de 11.03.2010, Proc. 070/10 e de 19.04.2005, Proc. 046339.
Assim, o Réu será responsável na medida em que se encontrem verificados os seguintes pressupostos – cfr. Acórdão do STA de 18.11.2009, Proc. 01046/08: facto, ou seja, comportamento voluntário do lesante, que pode revestir a forma de ação ou omissão; ilicitude, advinda da ofensa de direito de terceiros ou disposições legais emitidas com vista à proteção de interesses alheios, não bastando a mera ilegalidade; culpa, isto é, nexo de imputação ético-jurídica que traduza a censura dirigida ao autor do facto por não ter usado da diligência que teria um homem médio colocado perante as circunstâncias do caso concreto; dano, lesão de ordem patrimonial ou não patrimonial, só havendo direito a indemnização, no caso desta última, quando o dano, pela sua gravidade, avaliada segundo um padrão objetivo e não à luz de fatores subjetivos, mereça a tutela do direito; e nexo de causalidade entre a conduta e o dano, apurado segundo um juízo de causalidade adequada.
O artigo 6º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de novembro de 1967 estabelece que se consideram “ilícitos os atos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os atos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.”.
Na interpretação desta norma, a jurisprudência dos tribunais superiores refere que não é suficiente a existência de uma qualquer ilegalidade para estarmos perante um ato ilícito gerador de responsabilidade civil, sendo “necessário que a Administração tenha lesado direitos e interesses legalmente protegidos do particular, fora dos limites do ordenamento jurídico, ou seja, é necessário que a norma violada revele a intenção normativa de protecção do interesse material do particular, não bastando uma protecção meramente reflexa ou ocasional. (…) Ou seja, o conceito de ilicitude não se reconduz, sem mais, ao conceito de ilegalidade, antes pressupõe a violação de uma posição jurídica substantiva (direito subjectivo ou interesse legalmente protegido) do particular, pois nem todas as normas têm por finalidade a protecção de direitos e interesses individuais dos particulares, sendo que é necessário para que a ilegalidade gere ilicitude que a norma violada revele uma intenção normativa de protecção do interesse cuja lesão o particular invoca, ou, como refere Gomes Canotilho, é necessário existir uma «conexão de ilicitude entre a norma e princípio violado e a posição juridicamente protegida do particular.»” – Acórdão do STA de 27.01.2010, Proc. 0358/09.
De salientar ainda que “o juízo de ilicitude necessário à emergência da responsabilidade civil é um juízo emitido sobre o concreto comportamento do agente que assenta na consideração de que este violou as normas legais ou as regras de ordem técnica e de prudência comum que tinha de observar e que foi essa inobservância a determinar o facto danoso” – cfr. Acórdão do STA de 20.01.2010, Proc. 0302/09.
Trata-se, portanto, de um juízo objetivo.
É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (cf. artigo 487º do Código Civil).
A indemnização deve ser fixada de acordo com os princípios estabelecidos nos artigos 562º a 566º do Código Civil. Quando fixada em dinheiro, por ser impossível a restauração natural, a indemnização deve medir-se pela diferença entre a situação actual do lesado e a situação hipotética em que se encontraria se não fosse o dano, atenta a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal.
Vertendo sobre a factualidade supra dada como assente, importa trazer, para aqui, o regime legal vigente à data dos factos. Assim, dispunha o Decreto-lei 11/98, de 24 de janeiro o seguinte:
Artigo 51º
Óbito verificado em instituições públicas de saúde e em instituições privadas de saúde com internamento
1 — Nas situações de morte violenta ou devida a causa ignorada e quando o óbito for verificado em instituições públicas de saúde ou em instituições privadas de saúde com internamento, deve o seu director:
a) Comunicar o facto, no mais curto prazo, à autoridade judiciária competente, remetendo-lhe informação clínica que inclua todos os dados relevantes para a averiguação da causa e das circunstâncias da morte;
b) Assegurar a permanência do corpo em local apropriado e providenciar pela preservação dos vestígios que importe examinar.
[…]
Artigo 54.º
Autópsia médico-legal
[…]
3 — Compete à autoridade judiciária autorizar a remoção do corpo com vista à realização da autópsia médico-legal. [sublinhado próprio].
Ora, tendo-se verificado o óbito do marido e pai dos Autores, pelos serviços do Réu, incumbia-lhes, nos termos do artigo 51º, n.º 1, al. b) supra transcrito, assegurar a permanência do corpo em local apropriado. O Réu sustenta-se na circunstância de ter armazenado o corpo na sua morgue, que era o local adequado e que fazia parte do procedimento habitual de armazenamento de corpos.
Sucede que os factos ocorreram no verão, época de calor, e sendo o Réu uma entidade que tem como função tudo o que seja relacionado com o corpo humano, é-lhe exigível que saiba qual o melhor modo de conservação do corpo de pessoa falecida. Daí que lhe seja exigível que equacionasse que, dada a época do ano em que estavam, o corpo do marido e pai dos Autores entrasse em decomposição mais rápido que o normal. E daí que se impusesse que, verificado tal condicionalismo, não procedesse como habitualmente (pelo menos como vem alegado, mas não provado) mandando o corpo para uma morgue que sabia não ter câmaras frigoríficas, mas antes tivesse diligenciado pelo transporte para um outro local devidamente equipado.
Não se ignora que, em geral, as morgues, naquela data, não estivessem munidas de câmaras frigoríficas. No entanto, havia morgues equipadas com tais objetos e para as quais deviam ser encaminhados os corpos que necessitassem de tal. E, legalmente, nada obstava a tal.
Ou seja, atendendo à obrigação que impendia sobre o Réu de assegurar a permanência do corpo em local apropriado, não se encontra justificação para que o Réu não tivesse agido em conformidade, tendo, com a sua conduta, violado a norma referida.
Note-se que a invocação do Réu concernente ao artigo 54º, n.º 3 não pode justificar a sua atuação. É que tal dispositivo refere-se, apenas e só, ao transporte para realização de autópsia médico-legal, obrigação que sucederá, em termos temporais, ao dever acondicionamento adequado do corpo e que cabe ao Réu.
No que diz respeito às consequências de tal atuação, e como já ficou explanado acima, porque a ilicitude se afere em função da violação de direitos e interesses legalmente protegidos do particular, os Autores invocam que tal violação causou danos não patrimoniais ao falecido (tuteláveis pelo artigo 71º do C.C.) e sofrimento neles próprios, requerendo o arbitramento de indemnização para cada uma das situações.
Neste conspecto, pode trazer-se, para aqui, parte do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.11.2011, proferido no processo 912-B/2002:
Importa, em todo o caso, sublinhar que no quadro jurídico contemporâneo, o cadáver não é titular de direitos, já que a titularidade de direitos e de obrigações pressupõe a personalidade jurídica que, como é sabido, é a susceptibilidade de tal titularidade, no sentido técnico-jurídico do conceito (não no domínio filosófico ou jusnaturalista).
Ora, nos termos do artº 68º, nº 1 do Código Civil, a personalidade cessa com a morte (mors omnia solvit).
Do exposto deflui, com meridiana clareza, que o cadáver não pode ser titular de quaisquer direitos ou obrigações, justamente por não ter personalidade jurídica.
Como decidiu o Tribunal Constitucional no seu Acórdão de 8-06-1988 «A afirmação do artº 68º do Código Civil, segundo a qual «a personalidade cessa com a morte», vale igualmente no campo do direito constitucional, em conformidade com o carácter eminentemente subjectivo dos direitos fundamentais, pelo que, cessando a personalidade, não poderão reconhecer-se direitos fundamentais ao cadáver, nem admitir-se a transmissibilidade daqueles direitos pessoais para outrem» (BMJ, 378- 141).
O Ilustre Professor da Faculdade de Direito de Lisboa, Doutor Eduardo Vera-Cruz Pinto, na sua Conferência proferida no Brasil em 2003, no âmbito da II Jornada de Direito Civil, assim afirmou:
«Se os direitos da personalidade são só da pessoa, não podem ser outorgados ao cadáver. Isso funciona como limite negativo à possibilidade de o poder judicial aceitar um pedido de condenação de alguém por atentar contra a dignidade pessoal de um cadáver.
Esse direito supõe a pessoa, é só dela e é intransmissível (não pode ser transmitido aos sucessores do de cujus).
[….]
Do que ficou dito não se extrai, porém, a ilação de que o ordenamento jurídico deixa sem tutela contra as agressões materiais ou imateriais a memória ou os restos mortais da pessoa falecida.
Na verdade, no domínio jurídico-criminal, o nosso compêndio substantivo penal criou dois tipos legais de crime previstos e puníveis pelos artºs 253º e 254º do Código Penal, cujo bem jurídico tutelado é, precisamente, o sentimento de piedade para com os mortos e a possibilidade da sua livre expressão ( artº 253º) e o mesmo sentimento, como expressão da colectividade ( artº 254º).
[…]
Na área jurídico-civil, o artº 71º do Código Civil é a matriz normativa, por excelência, da tutela dos defuntos.
Porém, ao contrário do que uma interpretação demasiado apegada à littera legis do nº 1 do referido preceito legal inculca, tal não significa que é tutelado qualquer direito de personalidade do falecido qua tale, exactamente porque o cadáver não é titular dos direitos de personalidade de gozava em vida.
Como afirmava o saudoso Professor de Coimbra, Carlos Mota Pinto, ao discordar do entendimento de Pires de Lima e A.Varela que viam no artº 71º, nº 1 um desvio à cessação da personalidade com a morte, «a nossa discordância assenta no entendimento de que a tutela do artº 71º, nº 1 é uma protecção de interesses e direitos de pessoas vivas ( as indicadas no nº 2 do mesmo artigo) que seriam afectadas por actos ofensivos da memória ( da integridade moral) do falecido».[11]
No mesmo sentido, Eduardo Vera-Cruz Pinto na Conferência supracitada, onde afirmou:
«No art. 71 do Código Civil português, a proteção aos direitos da personalidade do morto resulta da possibilidade de dano à sua família, que, nesse caso, tem legitimidade processual para actuar em sua defesa, protegendo-se.
Logo, a proteção legal é dada não à pessoa que foi, mas à sua família».
Ainda in hoc sensu pode indicar-se a posição do Prof. Carvalho Fernandes ao escrever que «O significado dos preceitos em análise ... consiste em atribuir protecção jurídica ao interesse que certas pessoas ( justamente as referidas no nº 2 do artº 71º) têm na integridade moral do falecido. São, pois, protegidos interesse e direitos de pessoas vivas – embora em função da dignidade moral do defunto. Por isso, a razão de ser dessa tutela reside no facto de as pessoas em causa poderem ainda ser atingidas, indirecta ou mediatamente, pelas ofensas feitas à memória do falecido»
[…]
A violação do respeito ao cadáver importa a prática de actos que consubstanciem, materialmente, um vilipêndio do cadáver, isto é, actos susceptíveis de aviltar, profanar ou ultrajar o cadáver […]”.
Do exposto retira-se que, efetivamente, no que concerne à tutela de direitos de personalidade de pessoa falecida, a lei confere tutela à mesma, não em função dos seus próprios interesses (porquanto já não é detentora de personalidade jurídica), mas em função dos interesses dos seus familiares (in casu, cônjuge sobrevivo e descendentes). Em consequência, tendo o legislador estipulado, concretamente, que os direitos de personalidade do falecido podem ser defendidos pelos herdeiros, incluindo-se aqui o direito à honra (artigo 70º, n.º 1 do C.C.), os aqui Autores detêm legitimidade substantiva para o pedido que formulam, nesta parte.
Analisada a conduta que originou a degradação do corpo do falecido, forçoso é concluir que a mesma integra violação da integridade física, isto é, o mau acondicionamento do corpo do falecido, como se imputa ao Réu, consubstanciou violação dos direitos de personalidade do falecido, sendo, por isso, indemnizável.
Por outro lado, os Autores formulam pedido no sentido de que o indevido tratamento dado ao corpo do seu marido e pai lhes causou grande sofrimento, principalmente porque foi impedida a realização de qualquer cerimónia fúnebre.
Nesta parte, porque se revela de especial relevo, atente-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.12.2006, proferido no processo 06A4210, que ainda que não se debruce sobre situação semelhante, analisa com cuidado o direito de culto dos mortos:
“O destino a dar ao corpo, após a morte, varia, ao longo dos tempos, de acordo com as concepções sociais e religiosas vigentes, tendo por base a preocupação de zelar pelo futuro "post mortem" ou tão somente, pelo culto, como manifestação de amor, de saudade, de privação, de respeito.
[…]
Já a tumulária privada representa […] o culto da memória, da personalidade moral, da presença dolorosa de uma ausência definitiva de alguém estremecido e que queremos, e cremos, […]
Se ninguém pode ser privado da possibilidade de prestar culto a seus mortos, de conviver com a sua memória e com a sua saudade, o certo é que as manifestações externas desse recolhimento variam com a personalidade de cada um, os ritos religiosos, os usos da comunidade, as tradições familiares ou de grupo.
[…]
Na Constituição da República e no Código Civil não se encontra consagrado expressamente o direito ao culto dos mortos.
Ali consagra-se, apenas, genericamente, a liberdade de consciência, de religião e de culto - artigo 41º nº1 - numa clara perspectiva de livre opção, de prática religiosa.
Já o CC se limita à tutela geral dos direitos de personalidade, ainda que depois da morte do respectivo titular (artigo 71º).
Por sua vez, o chamado "direito mortuário", constituído por um conjunto de diplomas - DL nº 433/82, de 27 de Outubro, 411/98, de 30 de Dezembro, alterado pelos DL nº 5/2000, de 29 de Janeiro e 138/2000, de 13 de Julho - destina-se, nuclearmente, a estabelecer o regime jurídico da remoção, transporte, inumação, exumação, transladação e cremação de cadáveres e aos actos relativos às ossadas, cinzas, fetos mortos e peças anatómicas, bem como localização de cemitérios.
Confere - artigo 3º do DL nº 411/98 - legitimidade para requerer a prática daqueles actos, e por esta ordem, ao testamenteiro (em cumprimento de disposição testamentária), ao cônjuge sobrevivo, ao unido de facto, a qualquer herdeiro, a qualquer familiar, a qualquer pessoa ou entidade, ao representante diplomático ou consular do país da nacionalidade (se o falecido não tiver nacionalidade portuguesa).
Daí que toda a gestão do destino do cadáver, e as respectivas exéquias, cumpra, em primeira linha (e na ausência de disposição testamentária especifica) ao cônjuge sobrevivo.
Presume o legislador que o cônjuge após um comungar de vida com o falecido, e tendo partilhado bons e maus momentos na gestão da família, melhor conhece a sua personalidade, interpretando o que ele desejaria se ainda pudesse optar. Ademais, colocando-o a par dos descendentes, na primeira classe de sucessíveis - artigo 2133º nº1 a) do CC - privilegiando-o em matéria de alimentos - artigos 2015º a 2018º CC - conferindo-lhe a tutela - artigo 143º nº1 a) CC - e a curatela - artigo 156º CC - o legislador faz ressaltar o relevante papel de um cônjuge em relação ao outro.
[…]”.
Retirando daqui o que releva na presente instância, sabe-se que as cerimónias fúnebres são caraterísticas da nossa tradição religiosa (seja ela cristã ou outra), e tem, em grande medida, uma função de eliminação da dor pela perda de um ente de querido, de despedida última quanto ele, de catarse. Não se pode ignorar que a ausência de tais cerimónias impediu os Autores de fazerem, mental/psicologicamente, a despedida do seu marido e pai, tendo, inevitavelmente, trazido grande sofrimento para todos. Na verdade, afigura-se que não carece de grandes desenvolvimentos este aspeto, pois que tal situação abala qualquer pessoa, muito mais se tivermos em conta que o falecido era marido e pai dos Autores, sendo que para eles muito mais marcante terá sido.
Por outro lado, há também o sofrimento de o corpo do falecido não ter sido tratado com a dignidade que se impunha, sendo que, da matéria de facto assente, foi possível constatar que a Autora MA…, viúva, terá visto o corpo do falecido na morgue, já em avançado estado de decomposição.
Muito embora os Autores filhos tenham sofrido pelo (mau) tratamento dado ao corpo do seu pai, crê-se que a tutela por via dos direitos de personalidade do falecido, que se julgou supra ser suscetível de indemnização, compensa tal sofrimento. Contudo, relativamente à viúva, não se pode olvidar que a mesma passou pela maior provação quando foi confrontada com a imagem do seu marido em decomposição, entendendo o Tribunal que tal deve ser ressarcido individualmente.
Deste modo, serão indemnizáveis os danos não patrimoniais por ofensa aos direitos de personalidade do falecido, por impossibilidade de realização de cerimónias fúnebres e pelo sofrimento causado à viúva aquando do transporte do corpo do marido.
Atendendo à dinâmica dos factos aqui em análise, a factualidade que ficou provada integra inequivocamente todos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual, porquanto, desde logo, demonstra-se a existência de um facto voluntário (o armazenamento numa morgue sem câmaras frigoríficas), ilícito (por violador da obrigação de assegurar a permanência do corpo em local apropriado e dos direitos de personalidade do falecido), culposo (na vertente de negligência, por violação de um dever de cuidado que se prendia com o devido acondicionamento do corpo do falecido), que foi a causa direta e necessária dos danos produzidos (decomposição do corpo do falecido e danos morais no falecido e nos Autores).
Conclui-se, pois, que o Réu é o responsável direto pelos danos adequadamente causados ao falecido e aos Autores.
Assim sendo, está afastada a atribuição de responsabilidade a outros intervenientes para a ocorrência do sucedido, importando, agora, fixar o montante da indemnização a cargo do Réu.
De acordo com o estabelecido no artigo 562º do Código Civil: “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
Os danos podem ser patrimoniais ou não patrimoniais, conforme sejam ou não suscetíveis de avaliação pecuniária.
O leque dos danos patrimoniais indemnizáveis é muito amplo, abrangendo quer os prejuízos causados (dano emergente), quer os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucro cessante).
Consagra-se, ainda, a possibilidade de o tribunal atender aos danos futuros desde que previsíveis (artigo 564.º n.º 2 do Código Civil).
A ressarcibilidade dos danos morais ou não patrimoniais encontra-se circunscrita àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, conforme prescreve o n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil.
Os danos não patrimoniais verificam-se quando é atingido objetivamente um bem imaterial, cujo valor é insuscetível de ser avaliado pecuniariamente. Nestes casos, a indemnização visa proporcionar ao lesado “uma compensação ou benefício de ordem material (a única possível) que lhe permita obter prazeres ou distracções – porventura de ordem espiritual – que, de algum modo, atenuem a sua dor” (Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1972, pág. 375).
O montante da indemnização deverá ser fixado equitativamente pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do agente, à sua situação económica e à do lesado, bem como às demais circunstâncias que contribuam para uma solução equitativa, nos termos dos artigos 496.º, n.º 3 e 494.º do Código Civil (cf. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra, 1991, págs. 484 e 485).
Está em causa uma conduta desencadeadora de responsabilidade extracontratual levada a cabo por um Hospital, que é uma entidade sobre a qual recai dever especial de cuidado, pois que lida com a saúde e bem-estar do corpo humano. É uma entidade dotada de pessoal técnico e experiente neste domínio, não se podendo descurar que detém conhecimento especializado, sendo que, até, quanto ao que aqui se trata, pode mesmo afirmar-se ser do conhecimento comum que, no verão, o armazenamento de um corpo, num local sem câmara frigorífica, aceleraria a decomposição de um corpo humano.
No que se refere à situação económica das partes neste processo nada veio alegado ou demonstrado, pelo que se conclui que estarão numa situação normal, em que não há carências ou necessidades especiais nem riquezas exorbitantes.
Avaliando os danos apurados nos autos (danos não patrimoniais), verifica-se que os valores peticionados pelos Autores, na sua globalidade perfazem um montante elevado (100.000,00€), principalmente se se atender ao valor que tem sido arbitrado pela violação do direito à vida. Não se ignora que o sofrimento dos Autores foi enorme e que não há valor que apague da sua memória o sucedido, mas tal não justifica que se atribua uma indemnização desconforme com o que jurisprudencialmente vem sendo decidido.
Assim, no que concerne à violação dos direitos de personalidade do falecido, entende o Tribunal ser adequada a quantia de 10.000,00€; no que diz respeito à privação de cerimónias fúnebres, a quantia de 3.000,00€ a cada um dos Autores; e pelo sofrimento da viúva por ocasião do transporte, supra devidamente consubstanciado, a quantia de 2.500,00€.
Nestes termos, face ao que fica supra dito, procede parcialmente a presente ação, sendo o Réu responsável pelo pagamento da indemnização pelos danos não patrimoniais que se fixa no montante global 24.500,00€.

Ao assim pensado e decidido, a este julgamento, dirige o recorrente crítica por entender não se poder imputar culpa no sucedido, convocando a propósito o regime do DL n.º 11/98, de 24/01.
Realça que das disposições conjugadas do n.ºs 1, 2 e 3, do artigo 54º, do DL n.º 11/98, de 24/01 (“Procede à reorganização do sistema médico-legal” - em vigor à data dos factos a que se reportam os presentes autos), há lugar à autópsia médico-legal em situações de morte por causa ignorada, como foi o caso, competindo, nestes casos, à autoridade judiciária a autorização para a remoção do corpo, com vista à realização da autópsia, a qual deve ser realizada com a brevidade possível, após a constatação de sinais de certeza de morte, sendo o transporte do cadáver sempre requisitado por aquela entidade, sendo que não pode ser assacada qualquer culpa na produção do evento/facto gerador dos danos (permanência do corpo na Morgue do Hospital de PR entre o dia 14 e o dia 16 de agosto de 2004), visto que este facto foi causado por circunstâncias anormais e imprevisíveis (atinentes ao mau funcionamento dos serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de PR, por não ter á data dos factos um Magistrado de turno no fim de semana) que escapam, de todo, ao domínio do Recorrente, à luz de um critério de previsibilidade razoável.
Acontece que tal argumentação não atinge o que foi a razão da sentença, que nada colocando em causa que a remoção do cadáver fosse decisão da autoridade judiciária (determinando a autópsia ou a sua dispensa), antes versou o que só do recorrente era de domínio (no entretanto): Assegurar a permanência do corpo em local apropriado (art.º 51º, nº 1, b), do cit. DL).
Trata-se de um dever de cuidado, que pende sobre o réu.
Como se sabe, incorrem em ilicitude os actos administrativos ou as actuações materiais da Administração que violem normas legais ou regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e, nesse sentido, sejam causa adequada da ilicitude do resultado em violação de direitos subjectivos ou interesses protegidos de terceiros – cfr. artºs. 2º, 3º e 6º do DL 48051 de 21.11.1967.
Ao invés do que o recorrente pretende situar, não está em causa a produção do evento/facto gerador dos danos pela permanência do corpo na Morgue do Hospital de PR entre o dia 14 e o dia 16 de agosto de 2004, por “atraso” do Mº Pº em determinar remoção.
Antes advém a responsabilidade por incumprimento de dever próprio.
É de todo manifesto que não foi observado o cuidado exigível; nas circunstâncias de tempo e lugar, sendo do comum conhecimento as elevadas temperaturas que então se fazem sentir, não se pode ter por cumprido.
À licitude junta-se a culpa.
«Demonstrada a ilicitude da conduta por omissão de cumprimento de deveres expressamente previstos em normas legais, deve pressupor-se a existência de culpa, por ser algo que normalmente está ligado ao carácter ilícito do facto respectivo.» - Ac. do STA, de 01-02-2011, proc. nº 0838/10.
A “falta do serviço” é evidente.
As disposições normativas ditas como violadas antes dão abrigo ao decidido.
Concluindo, e como se impõe de justiça, o recurso não merece provimento, mantendo-se a douta sentença.
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Pelo exposto, acordam em conferência os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.
Custas: pelo recorrente.

Porto, 17 de Abril de 2015.
Ass.: Luís Migueis Garcia
Ass.: Frederico Branco
Ass.: Joaquim Cruzeiro