Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:03191/09.1BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/13/2021
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Paulo Moura
Descritores:IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE POR ANULAÇÃO DA LIQUIDAÇÃO; NÃO IMPEDIMENTO DE APRECIAÇÃO DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO PREVISTO NO ARTIGO 53.º DA LGT PELA PRESTAÇÃO INDEVIDA DA GARANTIA BANCÁRIA;
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS; VALOR DA IMPUGNAÇÃO; O PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO PELA PRESTAÇÃO DE GARANTIA ACRESCE AO VALOR DA IMPUGNAÇÃO; AUMENTO DO VALOR DEPENDENTE DE SIMPLES CÁLCULO ARITMÉTICO.
Sumário:I – No caso de a liquidação impugnada ser oficiosamente anulada pela Administração Tributária, antes do trânsito em julgado, a lide deve ser julgada por impossibilidade superveniente.

II – Estando peticionado na Petição Inicial o direito à indemnização previsto no artigo 53.º da LGT pela prestação indevida da garantia bancária, a referida impossibilidade superveniente, não prejudica a apreciação desta situação por poder ser conhecida autonomamente.

III – Se o próprio ato de anulação da liquidação refere que ocorreu erro na emissão da liquidação, que motivou duas notas de cobrança indevidas, mostra-se preenchido o pressuposto legal para atribuir uma indemnização pela prestação indevida de garantia.

IV – Quando na Impugnação Judicial, haja uma cumulação de pedidos, ou seja, para além do pedido de anulação da liquidação, também esteja peticionada uma indemnização com os encargos tidos com a prestação da garantia bancária, o montante indemnizatório deve acrescer ao valor da ação, por representar uma utilidade económica imediata desse pedido indemnizatório.

V – Quando o valor da causa fixado na Sentença for suficiente para que o recurso seja admissível, não se mostra necessário ordenar a baixa dos autos para a sua correção para montante superior, se depender de simples cálculo aritmético.
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:M., SA
Votação:Unanimidade
Decisão:Julgar extinta a instância.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
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A FAZENDA PÚBLICA interpõe recurso da sentença que julgou procedente a Impugnação deduzida contra a liquidação adicional de IRC de 2001, no montante de € 21.601,19 deduzida por «M., S.A.», sentença que decidiu pela caducidade do direito de liquidação, tendo ainda condenado no pagamento de indemnização pela prestação de garantia prestada para suspender a execução fiscal.

Formula nas respetivas alegações as seguintes conclusões que se reproduzem:

A. Pelo elenco de fundamentos acima descritos, subjaz que a douta sentença, ora objecto de recurso, alicerçou-se na fundamentação dos doutos acórdãos do STA de 8/10/2014, rec.0114/11 e de 15/06/2016, rec.01471/15, tendo anulado a liquidação de IRC, do exercício do ano 2001 e condenando a AT ao pagamento dos encargos incorridos com a prestação de garantia no valor de €1.704,94.
B. Todavia, salvo o devido respeito, somos da opinião que a douta sentença estribou a sua fundamentação na errónea apreciação das razões de facto e consequentemente de direito que se encontram subjacentes na decisão que levou à anulação da liquidação de IRC do exercício do ano 2001 e à condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira, vulgo A.T., ao pagamento dos encargos incorridos com a prestação de garantia no valor de €1.704,94., e em clara manifesta violação do disposto no art.º 45.º da LGT.
C. Com efeito, a fundamentação da douta sentença alicerçou-se nos doutos acórdãos, já supra referidos, por concordar com tal entendimento jurisprudencial.
D. Porém, é peremptório que, tal situação não se verificou nos presentes autos.
E. Entendeu o Tribunal na sentença recorrida que:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

F. Não pode a Fazenda Pública conformar-se com esta decisão, por considerar incorrer a Sentença em erro de julgamento por errada valoração da prova e, consequentemente, aplicação do direito.
G. A Fazenda Pública discorda do probatório fixado, atentas as soluções de direito configuráveis para a decisão da causa, passando de imediato a elencar factos que a seu ver deveriam ser acrescidos ao probatório, por se mostrarem pertinentes.
Vejamos:
H. O tribunal considerou provados, nos pontos 1 e 2, a fls. 3 da sentença, os seguintes factos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
Todavia,
I. Tendo em conta os elementos documentais patentes dos autos, deveria constar dos referidos pontos 1 e 2 do probatório que os valores de retenção na fonte, no valor de €6.619,46, e tributação autónoma, no valor de €14.185,70 já constavam da liquidação n.º 2510068311, datada de 13/08/2002, que resultou da declaração efectuada pelo sujeito passivo em 31/05/2002.
J. No ponto 6 da contestação pode ler-se:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
K. Conforme se pode constatar pelo doc. infra e que consta dos autos a fls (…).
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

L. E, tais valores autoliquidados constavam das primeiras e segundas liquidações, i é, na liquidação n.º 2510068311 (1ª), cfr. doc supra, bem assim da liquidação n.º 8310017511 (2ª).
Aliás,
M. No ponto 2 da reclamação graciosa, estava já plasmada essa realidade e não foi a mesma discutida pelo sujeito passivo, logo deve ser aceite por acordo.
N. O sujeito passivo também nunca diz que não é ele (sujeito passivo) que declara e liquida.
Ademais,
O. a sentença baseia-se num extrato de um acórdão, limitando-se a ver apenas uma única liquidação (n.º 20068310040220 – 4ª liquidação), sem ter em atenção as liquidações anteriores (n.ºs 2510068311- 1ªliquidação -, 8310017511- 2ª liquidação- e 8310124101-3ª liquidação- pois que essa liquidação n.º 2006 8310040220 – 4ª liquidação- não resulta de um acto isolado, antes resulta por existirem liquidações anteriores, sem as quais essa liquidação não teria ocorrido.
P. Conforme se discorre da própria contestação, nos pontos 8 e 9 da mesma, que esclarece de forma sucinta o porquê sequencial da sucessão de correções e que ora se reproduzem:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
Ainda,
Q. a liquidação impugnada não acrescenta nada à obrigação tributária que o sujeito
passivo já tinha.
Ora,
R. Tais factos não entraram em linha de conta na Sentença.
S. Tendo em conta os elementos documentais patentes dos autos, que conduziram ao probatório fixado e, considerando que a verdade almejada a adquirir no processo tributário é a verdade material, não podem ser simplesmente ignorados,
T. Por consequência entende-se que se devia aditar à matéria de facto dada por PROVADA, nos seus pontos:
· - 1 a expressão “(…) 2001, que resultou da declaração apresentada pelo sujeito passivo em 31/05/2001, donde já constavam os montantes de € 6.619,46 a título de retenção na fonte, e € 14.185,70 a título de tributação autónoma, de que resultou o reembolso (…) .”;
· - 2 a expressão “(…) donde continuaram a constar os montantes de € 6.619,46 a título de retenção na fonte, e € 14.185,70 a título de tributação autónoma.” e,
· - no ponto 4 da matéria de facto dada como provada deveria aditar-se a expressão “(…) €505.798,26 a pagar, repondo-se os montantes de € 6.619,46 a título de retenção na fonte, e € 14.185,70, a título de tributação autónoma, que já constavam nas liquidações referidas nos pontos 1 e 2 (…)”.
U. Tais expressões apoiam-se nos elementos de prova e, muito particularmente, de natureza documental.
V. No entanto, apesar de tais afirmações e referência à missiva acima mencionada terem sido explícitas nos autos, tal não foi tido em conta pelo tribunal a quo, tendo o mesmo decidido como se as mesmas não existissem.
W. Nesse seguimento, não se mostrando preenchido o fundamento relativo à caducidade da liquidação, não se mostram, também, preenchidos os fundamentos de atribuição de indemnização por prestação de garantia indevida.
X. Consequentemente não tem a AT que ressarcir o recorrido pelos encargos com a prestação de garantia.
Y. Neste pendor, a douta sentença procedeu à errónea valoração da prova e consequentemente dos preceitos legais aplicáveis.
Z. Assim, deverá o recurso ser procedente, revogando-se a decisão recorrida a qual deverá ser substituída por outra que julgue a impugnação improcedente.
AA. Enferma a decisão recorrida de erro de julgamento da matéria de facto, porquanto errou na seleção da factualidade relevante para decidir da causa, não apreciando toda a matéria de facto resultante dos elementos constantes dos autos, valorando erradamente a prova produzida.
BB. De igual modo considera a Fazenda Pública, sempre com o devido respeito por melhor opinião, enfermar ainda a sentença sob recurso de erro de julgamento na aplicação do direito, porquanto ao efetuar uma errónea seleção e valoração da matéria considerada como provada, não procedeu, in casu, à correta aplicação das devidas normas legais, a saber o art.º 45.º da LGT, i é, temos que está mal aplicada a regra do art.º 45.º da LGT, porque se esqueceu que o ato impugnado se trata de uma autoliquidação efetuada dentro de prazo.

Termos em que, e nos melhores de direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, com o que se fará inteira JUSTIÇA.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado procedente.

A Fazenda Pública vem informar nos autos que a liquidação impugnada foi anulada, requerendo a decretação da inutilidade superveniente da lide.

As partes foram ouvidas sobre a eventual inutilidade superveniente da lide.

A Impugnante concorda com a inutilidade superveniente em relação à liquidação anulada, referindo que o mesmo já não sucede em relação à indemnização devida pela prestação de garantia.

A Fazenda Pública diz que a indemnização pela prestação de garantia é assunto a tratar em sede de execução de sentença.

Foram dispensados os vistos legais, nos termos do n.º 4 do artigo 657.º do Código de Processo Civil, com a concordância da Exmas. Desembargadoras Adjuntas.
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Delimitação do Objeto do Recurso – Questões a Decidir.

Considerando a informação prestada nos autos de que a liquidação impugnada foi anulada, cumpre apreciar a eventualidade da impossibilidade superveniente da lide. Nessa sequência, compete também saber o que decidir em relação ao que ficou reconhecido na sentença em relação à indemnização pela prestação de garantia.
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Relativamente à matéria de facto, o tribunal, deu por assente o seguinte:

IV – Matéria de facto

Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, consideram-se provados os seguintes factos:

1. Em 13.08.2002 foi emitida a liquidação n.º 2510068311 respeitante a IRC do exercício de 2001, de que resultou o reembolso no montante de € 67.681,56 – cfr. fls. 20 do processo de reclamação graciosa (RG) junto aos presentes autos.
2. Em 16.10.2013 foi emitida a liquidação n.º 8310017511, respeitante a IRC do exercício de 2001 de que resultou IRC a pagar no montante de € 625.953,59 – cfr. fls. 21 a 23 do processo de RG junto aos autos.
3. Em 29.12.2005 foi emitida a liquidação n.º 8310124101, respeitante a IRC do exercício de 2001 de que resultou IRC líquido no montante de €635.252,12 e o montante de € 498.232,03 a pagar, sem que fosse considerado qualquer valor a título de retenção na fonte ou de tributação autónoma – cfr. fls. 24 do processo de RG junto aos autos.
4. Foi emitida em 6.12.2006 a liquidação n.º 2006 8310040220, respeitante a IRC do exercício de 2001, de que resultou IRC líquido no montante de € 635.252,12 o montante de € 505.798,26 a pagar e considerado o montante de € 6.619,46 a título de retenção na fonte e €14.185,70 a título de tributação autónoma calculada – cfr. fls. 7, 25 a 27 do processo de RG junto aos presentes autos.
5. A liquidação descrita em 4. originou a nota de compensação n.º 2007 000000658002 emitida em 17.01.2007, no montante de € 21.601,19 a pagar – cfr. fls. 8 do processo de RG junto aos autos.
6. Notificada da liquidação e da nota de demonstração a que se alude em 4. e 5., a M., SA apresentou em 25.05.2007 reclamação graciosa junto do Serviço de Finanças da Maia – cfr. fls. 3 a 6 do processo de RG junta aos autos.
7. Sob a reclamação descrita em 6. recaiu em 11.11.2008 despacho de deferimento parcial – cfr. fls. 68 do processo de RG junta aos autos.
8. Do deferimento parcial da reclamação graciosa descrita em 7., foi em 26.12.2008 deduzido recurso hierárquico – cfr. fls.1 a 6. do processo de recurso hierárquico (RH) junto aos autos.
9. Por despacho de 19.08.2009 foi indeferido o recurso hierárquico a que se alude em 9. – cfr. fls. 88 do processo de RH junto aos autos.
10. Em 3.05.2007 foi instaurado pelo Serviço da Maia o processo de execução fiscal n.º 1805200701042688 para cobrança do montante de €7.566,23 por dívida de IRC e €14.034,96 a título de juros compensatórios respeitante à liquidação a que se alude em 4. – cfr. fls. 38 do processo administrativo (PA) junto aos autos.
11. No processo de execução fiscal descrito em 10., foi apresentada a garantia bancária n.º 338136 até ao montante de € 27.958,14 - cfr. fls. 39 do PA junto aos autos e fls. 19 do processo de RH junto aos autos.
12. M., Lda. suportou com a prestação da garantia bancária descrita em 11. o montante de € 1.704,94 – cfr. verso de fls.72 a verso de fls. 88 do processo físico.
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Apreciação jurídica do recurso.

Ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), e 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, decide-se aditar a seguinte matéria de facto superveniente:

13) A liquidação impugnada foi anulada em 02/02/2012, com o seguinte fundamento, em conclusão: «um DC que queria somente confirmar uma liquidação anterior, por motivos dos erros atrás descritos, motivou duas notas de cobrança, evidentemente que indevidas». Fls. 130 a 134 vº autos físicos e págs. 180 e 181 do SITAF.
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As partes estão de acordo quanto ao facto de a liquidação impugnada ter sido anulada, após a instauração da presente ação. Aliás, isso mesmo é constatado nos autos pela documentação referida na matéria de facto aditada. Lamenta-se que essa informação não tivesse sido trazida aos autos em momento anterior, com a devida clareza.
Assim sendo, nesta parte não restam dúvidas de que a liquidação impugnada deixou de figurar na ordem jurídica, e, como tal, a lide ficou sem objeto impugnatório. Desta forma, deixando de haver objeto impugnatório, a lide não pode prosseguir, porquanto o objeto do processo era a anulação do ato impugnado, e estando este já anulado, não é possível emitir qualquer pronúncia sobre o mesmo.
Estamos assim, diante de um facto que tem influência direta no conteúdo da relação jurídica controvertida, e que o ato tributário impugnado deixando de figurar na ordem jurídica na pendência da causa, impede que se conheça o mérito do mesmo, por ter cessado a sua influência na relação jurídica – art.º 611.º, n.º 2 CPC.
Nos termos da alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, a instância extingue-se quando ocorre uma situação de impossibilidade superveniente da lide.
Conforme referem no Código de Processo Civil anotado, vol. I, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (2.ª ed., ano 2020, Almedina), em anotação ao artigo 277.º, págs. 339: «3. A impossibilidade superveniente da lide pode derivar de três ordens de razões: impossibilidade subjetiva nos casos de relações jurídicas pessoais que se extinguem com a morte do titular da relação, não ocorrendo sucessão nessa titularidade; impossibilidade objetiva nos casos de relações jurídicas infungíveis em que a coisa não possa ser substituída por outra ou o facto ou o facto prestado por terceiro; impossibilidade causal quando ocorre extinção de um dos interesses em litígio (v.g. por confusão).
4. A inutilidade superveniente decorre em geral dos casos em que o efeito pretendido já foi alcançado por via diversa, sendo o caso mais típico o do pagamento da quantia peticionada ou, em geral, o cumprimento espontâneo da obrigação em causa ou a entrega do bem reivindicado.».

Considerando que a liquidação impugnada, foi anulada pela Administração Tributária depois da instauração da presente Impugnação, e que este processo visava a mesma finalidade (a anulação da liquidação), verifica-se que o objetivo processual foi alcançado por via diversa (extrajudicialmente), pelo que estão preenchidos os pressupostos para a verificação da inutilidade superveniente da lide, ou melhor, da impossibilidade superveniente, na medida em que já não é possível anular o que anulado foi por outra via.
Atendendo a que a Sentença ainda não transitou em julgado, é possível decretar a impossibilidade superveniente da lide, por causa diversa – vide artigo 652.º, n.º 1, alínea h) do Código de Processo Civil.
Significa isto que, em relação à impugnação da liquidação, a instância deve ser dada como finda por impossibilidade superveniente da lide, por facto imputável à Administração Tributária.
Atendendo que a responsabilidade pela impossibilidade superveniente da lide deve ser imputada à Administração Tributária, deve esta ser condenada nas respetivas custas pela impossibilidade superveniente da lide, nos termos da segunda parte do n.º 3 e do n.º 4 do artigo 536.º do Código de Processo Civil.
Neste sentido veja-se Salvador da Costa, As Custas Processuais, análise e comentário, 7.ª ed., 2018, Almedina, pág. 44, anotação ao artigo 536.º do CPC.
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Compete agora saber se a lide pode ou deve prosseguir parcialmente para apreciar o direito da Impugnante ao pagamento de encargos incorridos com a prestação da garantia.
Conforme consta da parte final da Sentença, a decisão contém dois segmentos decisórios, que são os seguintes:
VI – Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos:
a) Julgo procedente a presente impugnação, anulando-se a liquidação de IRC impugnada;
b) Reconheço o direito da Impugnante ao pagamento dos encargos incorridos com a prestação indevida de garantia no montante de €1.704,94.

Relativamente ao segmento decisório mencionado na alínea a), já o assunto ficou acima resolvido no sentido de ocorrer impossibilidade superveniente da lide.
Tendo em conta que a Sentença reconheceu o direito ao pagamento dos encargos devidos por ter sido anulada a liquidação, não vemos motivo para decidir de modo diferente pelo facto de a liquidação ter sido anulada oficiosamente pela Administração Tributária, na pendência da presente causa.
Assim, a condenação ao pagamento dos encargos incorridos com a prestação da garantia, teve como pressuposto o reconhecimento pelo Tribunal da procedência do fundamento deduzido pela Impugnante, que levou à anulação da liquidação impugnada.
Se a liquidação acaba por ser anulada oficiosamente, ainda que por diferente motivo do que o referido na Sentença, como foi o caso de motivo imputável aos serviços (emissão de duas notas de cobrança, motivada de erros dos serviços), vale o mesmo princípio indemnizatório que havia presidido ao sentenciado, ou seja, a liquidação enferma sempre de vício imputável à Administração Tributária.
No sentido de que a indemnização pela prestação indevida da garantia é devida, independentemente do meio processual ou de procedimento administrativo onde foi verificado o erro imputável aos serviços da Administração Tributária, veja-se Jorge Lopes de Sousa, na obra Sobre a Responsabilidade Civil da Administração Tributária por actos ilegais, Áreas Editora, 2010, onde na página 156, refere que: «Na verdade, a razão que justifica a atribuição do direito a indemnização é a existência de um prejuízo para o particular provocado por uma actuação ilegal da administração tributária, ao efectuar erradamente uma liquidação, e, por isso, a atribuição de tal direito justifica-se em todos os casos em que for detectado um erro imputável aos serviços, independentemente do meio processual administrativo ou contencioso em que essa determinação é feita.».
Com a interposição do recurso pela Fazenda Pública, verifica-se que não transitou em julgado a condenação no pagamento da indemnização. Verifica-se, contudo, que a Fazenda Pública não recorre na parte relativa ao montante reconhecido, pois que entende ter razão de mérito, e como tal, não ser devida a aludida indemnização. Desta forma, não estando impugnado ou sob recurso o valor concedido a título de indemnização pela prestação da garantia, sobre esta matéria em particular, nada há a decidir em sede deste recurso, considerando-se firmado o montante atribuído pela 1.ª instância.
Por outro lado, também não pode ser deixado para execução de julgado esta questão indemnizatória, uma vez que ela está peticionada neste processo e não a conhecer implicaria uma omissão de pronúncia, para além de que nada obsta ao seu conhecimento por o processo conter todos os elementos para o efeito. Resulta, ainda, que não está explicada a razão pela qual apenas em execução de julgado se pode conhecer esta questão, para além de que sendo decretada a impossibilidade superveniente da lide, por anulação do ato tributário efetuada pela própria Administração, não poderá haver execução de julgado de uma instância que nada decidiu sobre o mérito da causa.
Daí que tenha de haver neste processo conhecimento autónomo da questão relativa à prestação da garantia e respetiva indemnização.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29/06/2011, proferido no processo n.º 0889/10 (em www.dgsi.pt), segundo o qual, mesmo nas situações de inutilidade superveniente da lide, deve ser conhecido o pedido de indemnização efetuado pela prestação indevida de garantia.
Ora, nos termos do artigo 53.º da Lei Geral Tributária, bem como do artigo 171.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, é devida uma indemnização pela prestação de garantia realizada para suspender a execução fiscal, quando tenha sido indevidamente prestada. Ou seja, quando tenha havido vencimento na reclamação graciosa, no recurso administrativo, na impugnação ou na oposição à execução fiscal.
Os preceitos em apreço contêm a seguinte redação:
Artigo 53.º (Garantia em caso de prestação indevida)
1 - O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.
2 - O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3 - A indemnização referida no n.º 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
Artigo 171.º (Indemnização em caso de garantia indevida)
1 - A indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda.
2 - A indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência.
Não obstante os preceitos em apreço nada referirem sobre a anulação oficiosa da liquidação fora do âmbito de algum daqueles procedimentos ou processos, tem de se aplicar o princípio que preside ao regime indemnizatório pela indevida prestação de garantia. Isto, sob pena de violação das garantias dos contribuintes na vertente da indemnização devida pela prática de atos tributários ilegais.
Para além disso, resulta do disposto no n.º 1 do artigo 53.º da Lei Geral Tributária que o pedido de indemnização por prestação de garantia pode ser efetuado autonomamente (ou seja, sem estar na dependência de qualquer procedimento administrativo ou processo judicial), pelo que, por identidade de razão, pode ser apreciada essa indemnização na Impugnação Judicial, ainda que a liquidação tenha sido anulada fora do âmbito desse processo. Até porque, o pedido se encontra efetuado neste processo desde o seu início.
Considerando que a liquidação foi anulada oficiosamente pelos serviços, os quais referiram ter a mesma sido emitida indevidamente, por erro na sua emissão, que motivou duas notas de cobrança indevidas, mostra-se preenchido o pressuposto legal para atribuir uma indemnização pela prestação indevida de garantia.
Desta forma, resulta demonstrado um dos pressupostos para a concessão da indemnização, que é o erro imputável aos serviços – vide n.º 2 do artigo 53.º da Lei Geral Tributária.
No que concerne ao pressuposto do montante em concreto, verifica-se que não foi impugnado o valor pedido pela Impugnante, nem está sob recurso a discussão do concreto montante atribuído pela Sentença.
Em face do exposto, resulta que estão preenchidos os pressupostos para a concessão da indemnização pela prestação da garantia, que no caso correspondem aos encargos incorridos com as despesas bancária para a sua manutenção.
Veja-se sobre o assunto, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 18/06/2014, no processo n.º 01062/12 (em www.dgsi.pt), cuja parte do sumário com interesse para a presente causa é o seguinte:
I – O art. 53.º da LGT consagra o direito de indemnização do devedor pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia bancária ou equivalente que tenha oferecido para obter a suspensão da execução fiscal, no caso de a dívida exequenda vir a revelar-se indevida por força do vencimento do procedimento ou processo tributário em que era controvertida a respectiva legalidade, podendo o pedido de indemnização ser formulado tanto nesse procedimento ou processo tributário, como autonomamente.
II – O artigo 171.º do CPPT visou, tão só, regulamentar o modo de requerer a indemnização no próprio procedimento ou processo tributário, e não regulamentar o modo de a requerer através do meio processual autónomo (principal ou acessório) adequado para o efeito.
Em conclusão, pode dizer-se que, mesmo nas situações de impossibilidade superveniente da lide por a liquidação impugnada ter sido oficiosamente anulada, o tribunal pode apreciar autonomamente os pressupostos indemnizatórios decorrentes da indevida prestação de garantia, na medida em que não precisa de conhecer o mérito da Impugnação para o efeito, uma vez que lhe basta verificar que a anulação oficiosa decorreu de erro imputável aos serviços reconhecido no próprio ato de anulação.
Neste enquadramento, conclui-se que em relação ao mérito da Impugnação, deve ser decretada a sua impossibilidade superveniente; e, quanto à indemnização pela prestação indevida da garantia, julga-se o recurso improcedente, ainda que com diferentes fundamentos dos sentenciados.
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Do valor da causa

Sendo o valor da causa matéria de conhecimento oficioso, vai proceder-se à sua apreciação, uma vez que a sentença atribuiu à Impugnação o valor correspondente ao da liquidação impugnada, ou seja, € 21.601,19, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), mas nada disse quanto ao valor atribuído a título de indemnização.
Assim, a Sentença para além de anular a liquidação impugnada, também reconheceu à Impugnante o direito a receber o pagamento dos encargos incorridos com a prestação indevida de garantia no montante de € 1.704,94. Significa isto, que a Sentença reconheceu autonomamente um valor a atribuir à Impugnante, sem que tivesse corrigido o valor dado à ação.
Considerando que o valor da causa fixado na Sentença é suficiente para que o recurso seja admissível, não se mostra necessário ordenar a baixa dos autos para a sua correção, caso esteja verificado que será superior ao fixado na Sentença, por simples cálculo aritmético. Vide sobre o assunto o que escreve o Conselheiro Abrantes Geraldes na sua obra, “Recursos em Processo Civil”, (6.ª ed., ano 2020, Almedina), que em anotação ao artigo 652.º do Código de Processo Civil, quando refere a págs. 299 e 300, que apenas nos casos em que está em questão saber se o recurso é admissível em função do valor, é que o Relator deve mandar baixar o processo para que o Juiz proceda à fixação do valor da ação. O mesmo autor, em anotação ao artigo 641.º, a págs. 219 e 220, escreve o seguinte:
«Se, apesar das oportunidades dadas ao juiz de 1.ª instância, este deixar de se pronunciar sobre o valor da causa, limitando-se a admitir o recurso, caberá à Relação determinar que seja superada tal omissão, ponto fundamental para que possa pronunciar-se em definitivo sobre a admissibilidade do recurso.».
Em face do exposto, entende-se que, por estar apenas em apreço a fixação do valor em função de um segmento decisório da Sentença e que tal situação em nada contende com a admissibilidade do recurso e depende de simples cálculo aritmético, pode este Tribunal realizar essa operação. Até porque, o valor da causa é matéria de conhecimento oficioso, segundo o determinado pelo o n.º 1 do artigo 306.º do Código de Processo Civil.
Conforme referido, o valor da causa foi fixado segundo o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, só que neste preceito não encontramos previsão para a atribuição do valor da causa em função de uma cumulação de pedidos. Compreende-se tal ausência de previsão legislativa, uma vez que não se trata de uma matéria usual no contencioso tributário. Estamos, portanto, diante de um caso omisso.
Desta forma, temos que aplicar o direito subsidiário previsto no artigo 2.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, pela respetiva ordem de elenco. Assim, nos termos da alínea c) do referido preceito aplicam-se subsidiariamente as normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e tributários; e nos termos da aliena e), o Código de processo Civil.
As normas de processo nos tribunais administrativos, encontram-se previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), segundo o qual a toda a causa deve ser atribuído um valor que represente a utilidade económica imediata do pedido – vide n.º 1 do artigo 31.º. Em sentido idêntico estabelece o artigo 296.º, n.º 1 do CPC.
Por sua vez, no n.º 7 do artigo 32.º do CPTA, determina que quando sejam cumulados, na mesma ação, vários pedidos, o valor da causa, é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles. No mesmo sentido dispõe o n.º 2 do artigo 297.º do Código de Processo Civil.
Conforme acima referido, a Impugnante cumulou dois pedidos, sendo que apenas atribuiu ao primeiro pedido um valor concreto.
Ora, a Impugnante pretende também ser indemnizada ou ressarcida do valor em que incorreu com os encargos tidos com a prestação da garantia bancária. Esse valor foi apurado na Sentença como sendo o correspondente a € 1.704,94, pelo que este montante representa a utilidade económica imediata do pedido (no caso do segundo pedido, uma vez que o primeiro pedido era o de anulação da liquidação). Portanto, a Impugnante pretende obter quantia certa em dinheiro, pelo que deve ser esse o valor a dar ao respetivo pedido – vide artigo 32.º, n.º 1 do CPTA e n.º 1 do artigo 297.º do CPC.
Em face do exposto, estando em apreço uma cumulação de pedidos, deve acrescer ao valor do pedido anulatório (o que foi fixado como sendo o da causa, no montante de € 21.601,19), a quantia de € 1.704,94, a somar ao valor já atribuído, pelo que a ação perfaz o valor total de € 23.306,13 (vinte e três mil, trezentos e seis euros e treze cêntimos).
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Nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do Código de Processo Civil, elabora-se o seguinte sumário:

I – No caso de a liquidação impugnada ser oficiosamente anulada pela Administração Tributária, antes do trânsito em julgado, a lide deve ser julgada por impossibilidade superveniente.

II – Estando peticionado na Petição Inicial o direito à indemnização previsto no artigo 53.º da LGT pela prestação indevida da garantia bancária, a referida impossibilidade superveniente, não prejudica a apreciação desta situação por poder ser conhecida autonomamente.

III – Se o próprio ato de anulação da liquidação refere que ocorreu erro na emissão da liquidação, que motivou duas notas de cobrança indevidas, mostra-se preenchido o pressuposto legal para atribuir uma indemnização pela prestação indevida de garantia.

IV – Quando na Impugnação Judicial, haja uma cumulação de pedidos, ou seja, para além do pedido de anulação da liquidação, também esteja peticionada uma indemnização com os encargos tidos com a prestação da garantia bancária, o montante indemnizatório deve acrescer ao valor da ação, por representar uma utilidade económica imediata desse pedido indemnizatório.

V – Quando o valor da causa fixado na Sentença for suficiente para que o recurso seja admissível, não se mostra necessário ordenar a baixa dos autos para a sua correção para montante superior, se depender de simples cálculo aritmético.
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Decisão

Termos em que, acordam em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em:
a) Julgar extinta a instância, por impossibilidade superveniente, relativamente ao conhecimento do mérito da impugnação (ou da liquidação impugnada);
b) Julgar improcedente o recurso na parte do reconhecimento do direito ao pagamento dos encargos incorridos no montante de € 1.704,94, com a prestação indevida da garantia.
c) Fixar à Impugnação o valor € 23.306,13 (vinte e três mil, trezentos e seis euros e treze cêntimos).
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Custas, em ambas as instâncias, a cargo da Recorrente.
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Porto, 13 de maio de 2021.

Paulo Moura
Cristina da Nova
Ana Paula Santos