Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00499/15.0BEMDL
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/21/2020
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:PEDIDO DE REVISÃO OFICIOSA, RECTIFICAÇÃO, IMPOSTO INDEVIDAMENTE MENCIONADO NAS FACTURAS, REEMBOLSO DO IVA, AUTOLIQUIDAÇÃO, DÉFICE INSTRUTÓRIO
Sumário:Revelando os autos insuficiência factual para a boa decisão da causa, impõe-se a anulação da sentença recorrida e a baixa do processo ao Tribunal recorrido para melhor investigação e nova decisão, em harmonia com o disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil ex vi artigo 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:A., E.M.
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

A Excelentíssima Representante da Fazenda Pública interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, proferida em 15/05/2017, que julgou procedente a impugnação judicial de autoliquidação de IVA, no montante de €13.289,26, intentada por A., E.M., com sede na Estalagem (…), (…), (…), freguesia de (…), concelho de (…), na sequência de indeferimento do pedido de revisão oficiosa desse IVA, constante de facturas emitidas em Abril de 2009 e em Setembro de 2010, efectuado ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as conclusões que se reproduzem de seguida:
A) A douta sentença decidiu pela procedência da impugnação, fazendo um enquadramento erróneo dos factos relativamente aos quais estiveram na base da liquidação do IVA em causa, considerando que se tratou de um erro na autoliquidação e por conseguinte, imputável à administração tributária, nos termos do artº. 78 nº. 1 e 2 da LGT (folhas 3, paragrafo 3 da douta sentença).
B) Fundamentou ainda a douta sentença que a AT, tendo um entendimento de que "as operações efectuadas pelos municípios que criaram as empresas municipais, e as tutelam, não constituem operações no âmbito de poderes de autoridade para efeitos de IVA", veiculado pelos ofícios circulado nº.s 30.126 de 15/4/2011 e 30.159 de 18/6/2014 da Direção de Serviços do IVA, defender "agora o contrário como parecer ser a posição da AT, é violar o principio da boa-fé ...." (folhas 3, paragrafo 1 e 2 da sentença).
C) Ora, com o devido respeito, considera-se que a douta sentença, não só enquadrou mal os factos aqui controvertidos, como na sequência do errado enquadramento factual, interpretou mal as normas sobre as quais, o caso em análise teria e deveria ser apreciado.
D) A recorrida emitiu a factura/recibo nº. 1154/200 9 de 3/04/2009, no valor de €36.000 (IVA €6.000.00) referente às transferências do mês de Abril a Outubro de 2009; a factura /recibo 4615/2010 de 23.09.2010 no valor de €42.000 (IVA €7.289,26) referente às transferências do mês de Novembro a Maio de 2010; factura/recibo nº.2652/ACC13 de 2.8.2013, com débito de €30.000, com referência ao montante recebido em 2009 e uma Nota de crédito nº. 12/2013 de 2.8.2013 a anular a factura nº. 1154, conforme documentos juntos aos autos a folhas 25 a 28 do PA,, vindo pedir autorização para regularizar a seu favor o imposto liquidado em excesso, factos apreciados em sede do pedido de revisão oficiosa a folhas 38 a 42 do PA, invocados, por remissão nos artigos 8 e 9 da contestação.
E) A douta sentença não apreciou estes factos, apenas se referindo “ao recebimento das importâncias relativas a transferências de apoio à exploração, a A. procedeu à emissão de uma factura/recibo …onde liquidou IVA”, para mais à frente referir que “ a recorrida apresentou um pedido de revisão oficiosa, solicitando à AT a regularização a seu favor do imposto pago em excesso referente aos anos de 2009 (mês de Abril) e 2010 (mês de Setembro), no valor total de €13.289,26” conforme pontos 6 e 7 da douta sentença.
F) E então as outras facturas? E a Nota de Crédito?
G) A douta sentença não apreciou todos os factos da matéria controvertida, e em consequência, enquadrou mal tais factos, à luz das normas legais aplicáveis, quando decidiu que se tratava de “erros imputáveis à Administração Tributária, porque os considerou erros na autoliquidação”.
H) A Recorrida fundamentou o pedido de revisão nos termos dos artigos 98 do CIVA e 78 da LGT, tendo a douta sentença enquadrado a questão decidenda nestas normas legais.
I) Ora, conforme decorre dos nº.1 e 2 do artº. 78 da LGT, a “revisão dos actos tributários, com erro imputável aos serviços, pode ser desencadeada pela AT, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago”, nos termos da 2ª. parte do nº. 1 da citada norma legal.
J) Por sua vez, a chamada “revisão oficiosa do acto” pode ser pedida pelo sujeito passivo, dentro do prazo em que a AT o pode efectuar, com fundamento em erro imputável aos serviços, entendendo-se como tal o erro material ou de direito (nº. 3 do artº 78 da LGT) na liquidação efectuada pelos sujeitos passivos, considerando imputável aos serviços, por força da fictio iuris prevista no nº. 2 do artº. 78 da LGT.
K) No caso em apreço, estamos perante um pedido de rectificação de um erro de direito, concretizado num erróneo enquadramento tributário da operação, por parte da impugnante/recorrida, relativamente às facturas emitidas ao ter liquidado imposto, pelo que, o erro invocado pela impugnante/ recorrida não configura um erro na autoliquidação, mas sim no imposto liquidado em factura. É um erro prévio à autoliquidação, reflectido na Declaração Periódica respectiva, que decorre das facturas registadas na contabilidade, nos termos do artº. 44 do CIVA, e por isso imputável à impugnante/recorrida.
L) Este erro não pode ser imputável aos serviços, porquanto, este conceito não é extensível a erros prévios à liquidação efectuada na Declaração Periódica, embora sejam repercutidos no seu preenchimento.
M) O pedido de recuperação do imposto liquidado em excesso que se pressupõe incluído na correspondente declaração periódica, não pode ser acolhido por via da revisão oficiosa do nº. 1 do artº. 78 da LGT, por falta de fundamento.
N) A revisão oficiosa do imposto não pode prejudicar a imperatividade das normas aplicáveis especialmente a correcção dos erros evidenciados na emissão das faturas, as quais estabelecem prazos especiais para o exercício do direito à regularização.
O) A ser diferente, tais normas ficariam desprovidas de qualquer efectividade, na medida em que sempre seria possível regularizar o imposto liquidado no prazo de quatro anos através do mecanismo da revisão oficiosa ( nº. 1 do artº. 78 da LGT).
P) Um sujeito passivo que, nos termos do CIVA não possa regularizar o IVA liquidado, não pode atingir o mesmo resultado através do pedido de revisão oficiosa previsto no nº. 1 do art. 78 da LGT e no nº. 1 do artº. 98 do CIVA.
Q) É o que se constata na situação aqui controvertida, na medida em que a regularização da liquidação do imposto realizada depende forçosamente, da correcção da facturação, nos termos do disposto no nº. 3 do artº. 78 do CIVA.
R) Só assim se garantindo que seja regularizada a favor do Estado, a dedução efectuada pelo adquirente sujeito passivo nos termos do artº. 78 nº. 4 do CIVA. Havendo imposto liquidado a mais, a rectificação, isto é, a emissão do documento rectificativo, que em geral consiste na nota de crédito, só pode ser efectuado no prazo de dois anos, contado a partir da data do documento que titula a operação a rectificar, cuja rectificação do imposto tem, necessariamente, de respeitar este limite temporal.
S) Os documentos rectificativos apresentados pela impugnante/ recorrida, relativos à factura de 2009.04.03 foram emitidos passados mais de quatro anos, por isso, ultrapassando o prazo específico de dois anos para poder proceder à regularização do imposto a recuperar o IVA, alegadamente, liquidado em excesso.
T) Andou mal a douta sentença, não se percebendo o alcance e sentido do seu parágrafo 4 de folhas 3, quando considera que a matéria controvertida não se enquadra no nº. 3 do artº. 78 do CIVA.
U) Em nosso entender, não é aplicável, à situação aqui em discussão, o nº. 2 do artº. 98 do CIVA, no que respeita ao prazo geral de quatro anos nele previsto, visto existir disposição especial no CIVA para a regularização pretendida.
V) Reitera-se que andou mal a douta sentença, ao decidir como decidiu, porquanto, a não verificação das condições exigidas pelo artº. 78 do CIVA, implica, desde logo, a preclusão da possibilidade da impugnante/recorrida obter a revisão oficiosa do imposto por si liquidado, com fundamento num erro que não é passível de ser rectificado por aquela disposição especial, por intempestividade.
W) A questão controvertida esgota-se na impossibilidade legal de a impugnante/recorrida se socorrer do mecanismo a que se reportam os nº.s 1 do artº. 78 da LGT e no artº. 98 do CIVA, quando, a priori, se deve concluir negativamente pela regularização nos termos do artº. 78 do CIVA.
X) Decidindo o Tribunal a quo como decidiu, não apreciou os factos devidamente, não enquadrou os mesmos nas normas legais previstas no caso em apreço, violando as normas dos artigos 78 da LGT, 44, 45,78 e 98 do CIVA.
Y) Reitera-se que a douta sentença andou mal, quando decidiu que se tratava de um erro na autoliquidação, e não no imposto, erro, anterior a esta. Pelo que, andou mal, quando considerou que a regularização deste IVA deveria sê-lo através do mecanismo da revisão oficiosa prevista no citado artº. 78 da LGT.
Z) Em suma, a douta sentença, não apreciou todos os factos controvertidos, errou ainda no enquadramento factual da situação em concreto, bem como, e nessa sequência, errou quanto à aplicação das normas a aplicar à matéria controvertida dos autos.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que serão por Vª. Exªs Doutamente supridos, deve a presente recurso ser julgado procedente e em consequência declarada a nulidade da douta sentença, aqui sob recurso, com todas as consequências legais.
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A Recorrida apresentou contra-alegações, concluindo da seguinte forma:
· “A Recorrida concluiu não dever incidir IVA sobre o valor das transferências em causa havendo, efetivamente, imposto liquidado em excesso pela A., referente aos anos de 2009 (mês de abril) e 2010 (mês de setembro), no valor total de € 13.289,26.
· A Recorrida apresentou o pedido de revisão oficiosa, nos termos do nº 1 do artigo 98º do Código do IVA e do artigo 78º da LGT, dentro prazo legal de 4 anos, utilizando o meio adequado para a recuperação do IVA liquidado em excesso.
· Estamos claramente perante um erro na autoliquidação do imposto, o qual se considera, nos termos da lei, como sendo imputável à Autoridade Tributária.
· Assim, o erro cometido pela Recorrida é ao nível do enquadramento conferido ao IVA das transferências efetuadas pelo Município de A., ou seja, estamos perante um “erro de direito”, e não uma “inexatidão” ao nível dos documentos inicialmente emitidos, ou seja, a Recorrida entende que não pode ser aplicado o disposto no nº 3 do artigo 78º do Código do IVA ao caso em apreço.
· Sem prejuízo do acima exposto, importa também referir que, no entender da ora Recorrida, o nº 3 do artigo 78º do Código do IVA não impede a apresentação de um pedido de revisão oficiosa, por parte do contribuinte, dentro do prazo legal de 4 anos.
· Face ao exposto, ainda que por mera hipótese se considerasse que estávamos perante uma correção de documentos inexatos, a Recorrida dispunha efetivamente de 4 anos para efetuar essa correção.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, sempre com mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser negado provimento ao presente recurso e, manter-se a sentença recorrida nos termos pugnados assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!”
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O Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido de os autos deverem baixar à primeira instância, nos termos do artigo 617.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (CPC), a fim de o Meritíssimo Juiz “a quo” apreciar nulidade por omissão de pronúncia. Efectivamente, o digníssimo Magistrado do Ministério Público entendeu ter a Recorrente, entre os vícios que assaca à sentença recorrida nas conclusões das suas alegações, embora não o indicando expressamente, sustentado a verificação de nulidade nos termos do artigo 125.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), por omissão de pronúncia, já que o tribunal recorrido não terá tido em conta outros documentos e factos da matéria controvertida, que refere constarem do processo administrativo, e, em consequência, terá enquadrado mal a factualidade apurada, remetendo para as conclusões D), E), F) e G) do recurso.
Com efeito, a Recorrente no final das suas alegações solicita a declaração de nulidade da sentença recorrida, mas é nossa convicção não ser indispensável a remessa dos autos ao tribunal recorrido para cumprimento do artigo 617.º, n.º 1 do CPC, pois a omissão de apreciação de factos controvertidos não gera nulidade da sentença, não consubstancia a falta de pronúncia sobre uma “questão” (poderá ocorrer erro na selecção e no julgamento dos factos necessários à decisão da causa), logo a baixa do processo à primeira instância não poderia ter como consequência a alteração da decisão.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa analisar se a sentença recorrida errou no julgamento de facto e de direito ao decidir que o pedido de revisão oficiosa deveria ter sido deferido, por não ser aplicável o disposto no artigo 78.º, n.º 3 do Código do IVA, anulando a autoliquidação de IVA em apreço.

III. Fundamentação
1. Matéria de facto

Na sentença prolatada em primeira instância foi proferida decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
“Factos provados:
1. A Impugnante é uma empresa municipal de capitais maioritariamente públicos, constituída a 1 de Junho de 2005, cujo objectivo é a promoção e desenvolvimento turístico do concelho de (…) – doc 1 da PI;
2. Em 2 de Março de 2006, foi celebrado um contrato programa entre o Município de (…) (adiante Município) e a empresa municipal A., que tinha como objecto assegurar a prossecução de objectivos sectoriais de relevo social e económico para o concelho de A., através da garantia da exploração turística integrada e sustentável da Estalagem (...) (actualmente designada Hotel & Spa (…)), em articulação plena com a gestão de sete unidades/apartamentos turísticos situadas nas aldeias de (...), (…), (…), (…), (…), (…), e também a exploração do Centro de Manutenção Física – doc 2 da PI, que aqui se reproduz;
3. O referido contrato programa definia, assim, os deveres, direitos, garantias e contrapartidas necessárias para que a empresa A., assumisse a exploração daquelas unidades/apartamentos, bem como o Centro de Manutenção Física;
4. Pela assunção, por parte da A. das competências relacionadas, por exemplo, com promoção e marketing, prestação de serviços diversos (organização e promoções sazonais, eventos desportivos, culturais etc.), manutenção e limpeza das unidades de alojamento etc.) o Município comprometia-se a transferir para a A., uma comparticipação financeira mensal, assegurando, assim, os pagamentos derivados daquelas obrigações – doc 2 da PI;
5. Durante os anos de 2009 e 2010, a A., inscrita no regime de IVA trimestral, liquidou IVA à taxa normal nas transferências recebidas – art.º 5.º da PI, não impugnado;
6. Aquando do recebimento das importâncias relativas a transferências de apoio à exploração, a A. procedeu à emissão de uma factura/recibo para o Município pelo montante efectivamente recebido, onde liquidou o respectivo IVA – docs 3 e 4 da PI
7. Em 5/8/2011, a Impugnante apresentou um pedido de revisão oficiosa, solicitando à Autoridade Tributária a regularização a seu favor do imposto pago em excesso referente aos anos de 2009 (no mês de Abril) e de 2010 (no mês de Setembro), no valor total de € 13.289,26 – doc 5 da PI;
8. A Impugnante foi notificada, através do Ofício n.º 1094, datado de 9/06/2015, do indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado – doc 6 da PI.”
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2. O Direito

A Recorrida formulou um pedido de revisão oficiosa relativo a IVA entregue em excesso nos anos de 2009 e 2010, nos termos do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT) e do artigo 98.º do Código do IVA, requerendo autorização para regularizar a seu favor o IVA liquidado em excesso, no montante de €13.289,26.
Este pedido de rectificação de erro tem subjacente um erróneo enquadramento tributário da operação constante das duas facturas emitidas: uma em 03 de Abril de 2009 [factura n.º 1154 referente a contrato-programa com o Município de (…) relativa a Abril a Outubro de 2009, no montante de €36.000,00, sendo €6.000,00 o valor do IVA] e outra emitida em 23 de Setembro de 2010 [factura n.º 4615 referente a contrato-programa com o Município de (…) relativa a Novembro de 2009 até Maio de 2010, no montante de €42.000,00, sendo €7.289,26 o valor do IVA]. Estarão em causa dotações financeiras ou subsídios à exploração entregues à empresa municipal aqui Recorrida sem a natureza de contraprestação de um serviço, por isso fora do âmbito de incidência do imposto.
A AT indeferiu o pedido de revisão por não ser aplicável à situação em análise o n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA invocado pela Recorrida, no que respeita ao prazo de quatro anos nele previsto, visto existir disposição especial no Código do IVA para a regularização pretendida – o artigo 78.º, n.º 3 – determinando que as facturas só podem ser rectificadas no prazo de dois anos. Foram analisados os documentos apresentados pela Recorrida e concluído que se mostra ultrapassado o prazo específico de dois anos para poder proceder à regularização do imposto, para recuperar o IVA alegadamente liquidado em excesso. Ou seja, a decisão de indeferimento tem implícito que, como já não é possível corrigir o erro de que enfermam as facturas após o decurso de dois anos desde a data da emissão das mesmas, a autoliquidação também não encerra qualquer erro, pois o IVA entregue ao Estado mostra-se de acordo com o IVA indicado nas facturas.
Ora, a sentença recorrida julgou a impugnação judicial totalmente procedente, o que inclui a aceitação de todos os pedidos formulados na respectiva petição inicial:
- Anulação do acto de indeferimento do pedido de revisão;
- Condenação na restituição do IVA pago ao Município de (…);
- Pagamento à impugnante de juros indemnizatórios.
Como vimos, está em apreço um acto de indeferimento de pedido de revisão oficiosa que incluiu a apreciação da legalidade dos actos de autoliquidação do IVA, daí o meio processual utilizado pela impugnante – a impugnação judicial. A sentença recorrida, além de ter anulado o acto de indeferimento do pedido de revisão, por entender não ser aplicável o disposto no artigo 78.º, n.º 3 do Código do IVA, anulou, igualmente, os actos de autoliquidação do IVA, na medida em que condenou na restituição deste imposto pago e em juros indemnizatórios. Vejamos os termos em que o efectuou:
“(…) Decorre dos princípios do direito administrativo que o exercício de poderes de autoridade pública ocorre na relação que a pessoa colectiva de direito público estabelece com os cidadãos. As operações efectuadas pelos municípios que criaram as empresas municipais, e as tutelam, não constituem operações no âmbito de poderes de autoridade para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado. Esta visão era-nos dada pelo ofício circulado n.º 30.126, de 15/4/2011, da Direcção dos Serviços do IVA e pelo ofício circulado dos mesmos serviços n.º 30.159, de 18/6/2014, que veio esclarecer o entendimento da AT quanto à não sujeição a IVA das transferências efectuadas entre um município e uma empresa municipal, no âmbito de um contrato programa.
Portanto, vir agora defender o contrário, como parece ser a posição da AT, é violar o principio da boa-fé que estabelece que no exercício da actividade administrativa a Administração e os particulares devem relacionar-se de modo a que suscitem confianças na contraparte pela actuação em causa, considerando, também, o objectivo a alcançar com a actuação pretendida – art.º 6.º-A do CPA (na redacção à data dos factos)
Sob a epígrafe “Revisão dos actos tributários”, dispunha o art.º 78.º da LGT (na redacção dada pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro) o seguinte:
“1 - A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.
2 - Sem prejuízo dos ónus legais de reclamação ou impugnação pelo contribuinte, considera-se imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação”
Por outro lado o STA já julgou (acórdão de 14/12/2012, proc. 0366/11; e acórdão de 28/11/2007, proc. 0532/07) que se consideram imputáveis à administração tributária os erros de autoliquidação.
Inexiste a situação que o art.º 78.º, n.º 3 do CIVA prevê, porque a inexactidão das facturas que o preceito refere ( “Nos casos de facturas inexactas que já tenham dado lugar ao registo referido no artigo 45.º, a rectificação é obrigatória quando houver imposto liquidado a menos, podendo ser efectuada sem qualquer penalidade até ao final do período seguinte àquele a que respeita a factura a rectificar, e é facultativa, quando houver imposto liquidado a mais, mas apenas pode ser efectuada no prazo de dois anos”) relaciona-se com um erro, ou inexactidão, sobre a transmissão de bens ou prestação de serviços sobre os quais o IVA é liquidado, e não sobre se os bens ou serviços prestados incide IVA.
Os juros indemnizatórios pedidos (cfr. art.º 89 a 91.º) são devidos porque a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuou mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária, o que não sucedeu – art.º 78.º, n.º 3 da LGT.
DECISÃO
Pelo exposto julgo a impugnação totalmente procedente. (…)”
A Recorrente não se conforma com este teor da sentença recorrida, por não ter apreciado todos os factos da matéria controvertida, e, em consequência, enquadrou mal tais factos, à luz das normas legais aplicáveis, quando decidiu que se tratava de “erros imputáveis à Administração Tributária, porque os considerou erros na autoliquidação”.
Alerta a Recorrente que a Recorrida emitiu a factura/recibo n.º 1154/2009 de 3.04.2009, no valor de €36.000 (IVA €6.000.00); a factura/recibo n.º 4615/2010 de 23.09.2010, no valor de €42.000 (IVA €7.289,26); a factura/recibo n.º 2652/ACC13 de 2.8.2013, com débito de €30.000, com referência ao montante recebido em 2009 e uma Nota de crédito n.º 12/2013 de 2.8.2013 a anular a factura n.º 1154, conforme documentos ínsitos no processo administrativo a folhas 25 a 28, tendo estes factos sido apreciados no âmbito do pedido de revisão oficiosa.
Efectivamente, a sentença não tomou posição sobre a totalidade dos factos relevantes para a decisão da causa, apenas se referindo “ao recebimento das importâncias relativas a transferências de apoio à exploração, a A. procedeu à emissão de uma factura/recibo …onde liquidou IVA”, mencionando, ainda, que “a impugnante apresentou um pedido de revisão oficiosa, solicitando à AT a regularização a seu favor do imposto pago em excesso referente aos anos de 2009 (mês de Abril) e 2010 (mês de Setembro), no valor total de €13.289,26”, conforme pontos 6 e 7 da decisão da matéria de facto.
Na verdade, no seu pedido de revisão oficiosa, a Recorrida esclareceu ter procedido à revisão dos seus procedimentos no que respeita ao enquadramento em sede de IVA dos subsídios concedidos pelo Município de A. e ter concluído que aplicou um enquadramento erróneo em sede de IVA, designadamente por ter liquidado IVA nas transferências provenientes do contrato programa relativo à exploração da Estalagem (...) (actualmente, Hotel SPA), das unidades/apartamentos turísticos e do Centro de Manutenção Física, referentes aos anos de 2009 e de 2010. Foi neste circunstancialismo que a Recorrida alegou ter procedido à emissão de novos documentos, de modo a corrigir o enquadramento em IVA inicialmente adoptado, substituindo, assim, as facturas/recibos que haviam sido emitidas ao Município com IVA – cfr. artigos 8.º, 9.º e 10.º.
Compulsados todos os elementos ínsitos nos autos, verifica-se que somente consta dos mesmos documentos comprovativos da anulação da factura n.º 1154 e a respectiva nota de crédito, faltando documentos demonstrativos da anulação da factura n.º 4615 (não obstante se mostrar invocada a sua correcção e substituição).
Tal inviabiliza que a alteração da decisão da matéria de facto seja realizada por este TCA Norte.
Por outro lado, observamos que a decisão recorrida não efectua, em concreto, qualquer subsunção dos factos ao direito.
Acresce que a sentença em crise não aplica qualquer norma especial do Código do IVA, afastando o artigo 78.º, n.º 3, apesar de se referir a jurisprudência sobre os erros na autoliquidação; mencionando, apenas, o artigo 78.º da LGT, relativo à revisão dos actos tributários.
Ora, não podemos esquecer que, tendo a sentença recorrida decidido no sentido da restituição do IVA pago, tal pressupõe a anulação dos actos de autoliquidação. Nesta conformidade, temos em apreciação, como objecto imediato, o acto de indeferimento do pedido de revisão, importando, claro, os fundamentos de rejeição da pretensão da Recorrida; e, como objecto mediato, os actos de autoliquidação do IVA.
Observamos que a sentença recorrida rejeita a motivação que subjaz ao acto de indeferimento do pedido de revisão, afastando expressamente a aplicação ao caso do artigo 78.º, n.º 3 do Código do IVA.
Todavia, para anular os actos de autoliquidação e determinar o reembolso do IVA, temos, necessariamente, de os conhecer, saber quando foram praticados e se o IVA declarado nas declarações periódicas foi efectivamente entregue ao Estado.
Verificamos que nenhum elemento constante dos autos nos permite, com a segurança e certeza exigíveis, responder a essas questões e aditar tais factos ao probatório.
Todos os detalhes que temos vindo a adiantar são relevantes, pois o artigo 97.º, n.º 3 do Código do IVA dispõe que “as liquidações só podem ser anuladas”, na sequência de recurso hierárquico, reclamação e/ou impugnação, “quando esteja provado que o imposto não foi incluído na factura ou documento equivalente passado ao adquirente nos termos do artigo 37.º”.
Tudo indica que a autoliquidação efectuada pelos sujeitos passivos de IVA, na declaração apresentada nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA, apenas poderá ser anulada, quer em sede de revisão oficiosa, quer em sede de impugnação, no que se refere ao apuramento do montante de imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram, se o imposto em causa não estiver contido em factura ou documento equivalente passado ao adquirente, e em vigor.
Mesmo abstraindo da norma do artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA, invocada no pedido de revisão pela Recorrida, a própria revisão dos actos tributários pressupõe a existência do acto de liquidação e a verificação do limite máximo de quatro anos após a mesma, estando o tributo pago – cfr. artigo 78.º da LGT.
Salientamos que a liquidação ocorreu no momento da entrega da declaração com a autoliquidação do IVA, sendo que o respectivo pagamento deve ser feito simultaneamente, nos termos previstos no artigo 26.º do Código de IVA, na redacção aplicável à data.
Os sujeitos passivos estão obrigados a “enviar mensalmente uma declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade no decurso do segundo mês precedente, com a indicação do imposto devido ou do crédito existente e dos elementos que serviram de base ao respectivo cálculo” – cfr. artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA.
São estas declarações, na medida em que das mesmas decorre uma obrigação de pagamento a título de imposto, que constituem actos de (auto)liquidação, e que estiveram em causa no pedido de revisão oficiosa e deverão estar, presentemente, em análise.
Nestes termos, importa apurar as datas exactas das autoliquidações do IVA em apreço. Saber que a Recorrida está inscrita no regime do IVA trimestral não é suficiente, pois a declaração periódica do IVA deve ser entregue até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao trimestre do ano civil a que respeitam as operações – cfr. artigo 41.º, n.º 1, alínea b) do Código do IVA. E a obrigação de entrega do IVA exigível (artigos 7.º e 8.º do Código do IVA), como vimos, é efectuada simultaneamente com as declarações periódicas.
Ao contrário do que parece sustentar a Recorrida, a autoliquidação do IVA não ocorre com a emissão da factura, mas com a entrega de cada declaração periódica com a autoliquidação do IVA, reflectindo o imposto indicado nas facturas.
O reembolso do IVA entregue em excesso só poderá ocorrer, numa situação enquadrável no denominado erro de direito, até ao decurso de quatro anos após o pagamento em excesso do imposto – cfr. artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA.
Assim sendo, se o pagamento ocorreu em simultâneo com a apresentação da declaração periódica, urge apurar estas datas correspondentes às autoliquidações em causa.
Por outro lado, também a data do pedido de reembolso do IVA se nos apresenta duvidosa. Na decisão da matéria de facto, no seu ponto 7, indica-se 05/08/2011 como sendo a data em que a impugnante apresentou o pedido de revisão oficiosa, apoiando-se no documento n.º 5 junto com a petição inicial. Porém, nesse documento, bem como na cópia que consta no processo administrativo, tudo indica que o pedido foi formulado em 05/08/2013. No entanto, da fundamentação do acto de indeferimento retira-se que o pedido de revisão em apreço deu entrada no Serviço de Finanças de (…). em 01/06/2013 e o capeamento do procedimento de revisão oficiosa tem aposta a data de abertura do procedimento como sendo 05/06/2013.
Todas estas falhas na factualidade relevante, não superáveis através dos elementos constantes nos autos, inviabilizam o conhecimento da totalidade das questões colocadas no presente recurso.
Deste modo, não podendo sufragar-se, sem mais, o julgamento produzido em 1.ª instância, impõe-se anular, oficiosamente, segundo o disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil, a sentença, de molde a permitir que, no tribunal recorrido, sejam efectivadas as diligências probatórias que se mostrem adequadas e necessárias ao esclarecimento, mais completo possível, dos aspectos apontados como deficitariamente instruídos.

Conclusões/Sumário

Revelando os autos insuficiência factual para a boa decisão da causa, impõe-se a anulação da sentença recorrida e a baixa do processo ao Tribunal recorrido para melhor investigação e nova decisão, em harmonia com o disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil ex vi artigo 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, anular a sentença recorrida e ordenar a remessa do processo à primeira instância para nova decisão, com preliminar ampliação da matéria de facto, após a aquisição de prova conforme acima se indica.

Custas a cargo da Recorrida, nos termos da tabela I-B – cfr. artigos 6.º, n.º 2, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais.

Porto, 21 de Maio de 2020

Ana Patrocínio
Cristina Travassos Bento
Paulo Ferreira de Magalhães