Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00422/09.1BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/24/2023
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Antero Pires Salvador
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL AQUILIANA - NEGLIGÊNCIA MÉDICA;
PRESCRIÇÃO;
CASO JULGADO;
Sumário:1 . Atenta a tramitação do processo criminal, processo de indemnização civil – primeiramente deduzido no processo crime (princípio da adesão) – depois remetido para os meios comuns – instaurado nos tribunais judiciais que se declaram materialmente incompetentes, antes pertencendo a competência aos tribunais administrativos, remessa a que a co-ré se opôs, obrigando a que tivesse sido apresentada nova petição nos tribunais administrativos – o processo em causa – impunha-se que, oficiosamente ou, se necessário, com a coadjuvação das partes coligir todos os factos objectivos de modo a aferir da verificação ou não da prescrição, atendendo, nomeadamente, ao preceituado no art.º 289.º do CPCivil 2013 (actual art.º 279.º).

2 . Não o tendo efectivado, impõe-se a baixa dos autos à 1.ª instância para os efeitos pertinentes.

3 . A sentença criminal absolutória e que não apreciou o pedido de indemnização civil – tendo quanto a este as partes sido remetidas para os meios comuns – não constitui caso julgado em relação a processo de responsabilidade extracontratual instaurado nos tribunais administrativos.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, no Tribunal Central Administrativo Norte – Secção do Contencioso Administrativo:
I
RELATÓRIO
1. AA, residente em ..., ..., inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do TAF de Mirandela, datada de 23 de Novembro de 2015, que, no âmbito da Acção Administrativa que havia instaurado contra o “CENTRO HOSPITALAR ...” e BB, Sendo certo que o Estado Português, também demandado inicialmente nos autos, foi absolvido da instância, por ilegitimidade – cfr. despacho de 4/7/2012 – fls. 143 dos autos (processo físico). tendo esta, pela seu decesso ocorrido em 12/4/2016, sido, por sentença de 31/1/2022, habilitados os seus herdeiros CC, DD e EE --- na qual pedia a condenação dos Réus/Recorridos no pagamento solidário de indemnização no valor de € 117.380,00, por danos patrimoniais e não patrimoniais, passados, presentes e futuros, bem como no pagamento dos respetivos juros, e ainda de todos os cuidados de saúde relacionados com a intervenção cirúrgica em causa ---, julgou procedentes as excepções peremptória de prescrição e de caso julgado.
*
2. Nas suas alegações recursivas, o Recorrente formulou as seguintes conclusões:
1. O M.mo Julgador a quo absolveu o R. Centro Hospitalar do pedido, por entender que o direito do A. está prescrito,
2. A douta sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de Mirandela, no âmbito de um processo crime que, ali, correu termos e de que o M.mo Julgador a quo se socorre não conheceu do pedido de indemnização e ordenou a remessa das partes para os tribunais civis.
3. Aquando do trânsito em julgado da decisão, e no prazo a que alude o actual artº. 279º., nº. 2 CPC, o, aqui, Recorrente deu entrada no Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela à competente acção judicial.
4. Posteriormente, atento o facto de o Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela ter decidido da sua incompetência material para conhecer da causa de pedir e dos pedidos e de ter determinado que o Tribunal competente para conhecer das questões suscitadas é o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela o, aqui, Recorrente veio requerer a remessa dos autos para este Tribunal.
5. À pretensão do A. (aqui, Recorrente) opôs-se a Recorrida BB.
6. O que “obrigou” o A./Recorrente, uma vez mais, a intentar a presente acção no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela.
7. O, ora, Recorrente beneficia do preceituado no actual artº. 279º., nº. 2 CPC (cujo conteúdo se mantém inalterado, em relação ao artº. 289º., 2 do anterior CPC), ou seja, os efeitos civis derivados da proposição da primeira causa e da citação do réu mantêm-se...se a nova acção for intentada ou o réu for citado para ela dentro de trinta dias a contar do trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância.
8. Acresce, ao exposto, que o Tribunal a quo não atentou, ainda, ao preceituado no artº. 498º., nº. 3 CC que estabelece que se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável. Ou seja, estamos na presença de um, pretenso crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, p. p. artº. 148º., nº.s 1 e 3 Cód. Penal.
9. O agente infractor que cometa o crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, incorre numa pena de prisão até dois anos ou pena de multa até 240 dias.
10. Estabelece o artº. 118º., nº. 1, al. c) CP que o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tenham decorrido 5 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 1 ano, mas inferior a 5 anos.
11. O Tribunal a quo não atentou ao prazos de prescrição estabelecidos no Cód. Penal, nem às regras estabelecidas para as situações de absolvição da instância, no que respeita ao aproveitamento dos prazos,
12. Ou seja, no contexto, supra, exposto, o Tribunal a quo errou ao absolver o Recorrido Centro Hospitalar do pedido.
13. Importa, ainda, sublinhar o seguinte, quanto à absolvição da Recorrida BB da instância, por alegado caso julgado,
14. As decisões proferidas pelo Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela foram as seguintes:
- no âmbito do processo crime: remeter as partes para os tribunais civis (ou seja, não conheceu do mérito do pedido de indemnização cível),
- no âmbito da acção cível: considerar o Tribunal, materialmente, incompetente e o Tribunal Administrativo e Fiscal como o competente para conhecer do mérito da acção.
15. Ou seja, nenhum dos Tribunais conheceu (do mérito) da causa de pedir e dos pedidos formulados pelo, aqui, Recorrente.
16. O Tribunal a quo incorre em, manifesto, lapso, quando refere que a absolvição da co-R. BB, no âmbito do processo crime, o impede de reapreciar os factos que integram a causa de pedir e os pedidos.
17. O Tribunal da Comarca de Mirandela, pura e simplesmente, não apreciou o pedido indemnizatório e remeteu as partes para os tribunais civis.
18. Ou seja, compete, agora, ao TAF de Mirandela conhecer do mérito da acção e decidir em conformidade; ou seja, proferir uma sentença.
19. Nenhum Tribunal conheceu da pretensão do, aqui, Recorrente (onde está a sentença que conheceu, anteriormente, dos pedidos ???); daí que não possa proceder a excepção de caso julgado.
20. Estamos na presença de uma situação grave, com consequências, muito, nefastas para o, aqui, Recorrente e que não podem ser sopesadas de forma aligeirada,
21. O Recorrente, na sequência de uma intervenção cirúrgica, aos seios perinasais (uma vez que padecia de sinusite), perdeu a visão do olho direito!!!
22. O Tribunal da Comarca de Mirandela, quanto ao pedido de indemnização, não proferiu qualquer decisão de mérito e “encaminhou” o Recorrente para o Tribunal administrativo...
23. Não pode o Tribunal a quo denegar que se faça Justiça, com base em, ficcionadas, prescrições e casos julgados!!!
24. Ao decidir de modo diverso o Tribunal a quo violou o disposto nos artº.s s 279º., nº. 2, 323º., 576º., nº.s 2 e 3, 577º., al. i), 580º. e 581º. CPC, 498º., nº. 3 CC e 118º., nº. 1, al. c) e 148º., nº.s 1 e 3 CP”.
*
3. Notificados da interposição do recurso, os Recorridos CENTRO HOSPITALAR ... e os habilitados da falecida A. BB, CC, DD e EE não foram apresentadas contra-alegações.
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4. A Digna Magistrada do M.º P.º neste TCA, notificada nos termos do art.º 146.º n.º 1 do CPTA, em douto e fundamentado Parecer, pronunciou-se pela procedência do recurso, sendo que as partes, notificadas deste Parecer, nada disseram.
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5. Sem vistos, mas com envio prévio do projecto aos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos, foram os autos remetidos à Conferência para julgamento.
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6. Efectivando a delimitação do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, acima elencadas, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, ns. 3 e 4 e 685.º A, todos do Código de Processo Civil, “ex vi” dos arts. 1.º e 140.º, ambos do CPTA.
II
FUNDAMENTAÇÃO
1. MATÉRIA de FACTO
São os seguintes os factos fixados na sentença recorrida:
1. Em 6/11/2003, o A. foi submetido a uma intervenção cirúrgica programada aos seios perinasais, no Hospital ...;
2. Corre termos no ... Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela, o processo comum n.º 56/04...., com intervenção de tribunal singular, em que é arguida a aqui Ré BB, que responde pelos factos que consubstanciarão um ilícito criminal;
3. Em 16/7/2010, o Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela, julgando não provada e improcedente a acusação pública, absolveu BB do crime de ofenda à integridade física grave por negligência de que vinha acusada, conforme decisão de fls. 170 e ss, que aqui se dá por reproduzida, com o seguinte destaque: “
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
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(...)
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[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

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[Imagem que aqui se dá por reproduzida]”
4. O A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação;
5. O Tribunal da Relação do Porto não conheceu o recurso apresentado pelo assistente, aqui A. AA, e “rejeitando-o de imediato o mesmo sem mais e não se conhecendo das restantes questões invocadas por assim se encontrarem prejudicados”Fls. 184
6. Em 26/2/2008, o 2.º R CENTRO HOSPITALAR ... ( assim como os aqui 1ª e 3.º RR, BB e Estado Português, respectivamente) foi demandado nesse processo-crime para contestar o pedido de indemnização civil, que deu entrada em 5/3/2007, pelos fundamentos que constam de fls. 104 e ss, que aqui se dão por reproduzidas, com o seguinte destaque: “DA CAUSA DE PEDIR// O CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FISICA GRAVE POR NEGLIGÊNCIA// (...) 2. Extrai-se da douta acusação pública o seguinte: // 3. Que a arguida BB provocou no ofendido/demandante cível as seguintes lesões (...) 4. a Arguida é a única responsável pela produção no corpo do ofendido das lesões supra descritas (...) C- Da LEGITIMIDADE DOS DEMANDADOS // 84. Os Requeridos Hospital e Estado são partes legitimas (...) // 85. Tanto mais que a demandada, em 6/11/2003, desempenhava as suas funções no Hospital .... // 86. E foi no interior das suas instalações que ocorreram os factos constantes da douta acusação pública (...)”Fls. 103 e ss;
7. O Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela decidiu, no que tange ao pedido de indemnização cível, remeter as partes para os tribunais civis;
8. Em data não alegada, mas durante o ano de 2008, o A intentou acção de condenação com processo ordinário no Tribunal de Mirandela, que ali correu termos no ... juízo sob o n.º 811/08.9TNMDL, o qual decidiu que era incompetente em razão da matéria, julgando competente este TAF, e, em consequência, absolveu os RR. da instância;
9. O A. pretende que o R. CENTRO HOSPITALAR ... seja condenado a pagar-lhe uma indemnização pelos danos que sofreu em virtude daquela operação a que foi submetido (cfr. facto 6);
10. Esta acção deu entrada em 3/12/2009.
2. MATÉRIA de DIREITO
No caso dos autos, delimitando o objecto do recurso, atentas, por um lado, as conclusões das alegações supra transcritas, por outro, a sentença recorrida, nos seus fundamentos e dispositivo, objectivando concretamente o dissídio que nos cumpre apreciar/decidir consiste apenas em saber se se verifica erro de julgamento quanto às decisões de prescrição do direito e verificação de caso julgado.
*
Importa, porém e desde já, referir que, indevidamente, o TAF de Mirandela, oportunamente, não deu seguimento ao processualismo decorrente do facto da co-Ré BB, em sede de contestação, de 5/1/2010 – fls. 41 – 47 dos processo físico - ter requerido a intervenção acessória provocada da Companhia de Seguros “A..., Portugal, SA”, para a qual havia transferido a sua responsabilidade civil profissional, intervenção que não mereceu oposição do A./Recorrente (em 23/2/2020 – fls. 122 do processo físico) – cfr. arts. 330.º e 331.º, ambos do Cód. Proc. Civil (versão de 2013) e apesar do Tribunal ter solicitado à Ré a junção do respectivo contrato de Seguro – que foi efectivamente junto em 3/9/2012 – fls. 155 a 161 do processo físico.
Ou seja, em devido tempo, deveria o TAF de Mirandela, em apreciação desse pedido de intervenção acessória da Companhia de Seguros, ter ordenado a citação da seguradora - cfr. art.º 332 do CPCivil 2013 - e só depois prosseguir a tramitação processual adequada, em consequência da eventual apresentação da contestação e, assim, em sede de saneamento, decidir então todas as questões.
Impor-se-á, na procedência do recurso – como veremos – que o TAF supra esta indevida omissão, actuando em conformidade – cfr. arts. 330.º a 332.º do CPCivil de 2013 (actuais arts. 321.º a 323.º).
***
Efectivado este parêntesis, iniciamos a nossa análise relembrando a decisão recorrida para melhor se aquilatar da sua conformidade/assertividade que, adiantamos, desde já, não podemos secundar, pela sua dupla incorrecção.
Consta do saneador/sentença do TAF de Mirandela, já na longínqua data de 23/11/2015:
Dispõe o art.º 498, n.º 1 do C.C que o direito de indemnização prescreve, para o que aqui interessa, no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da extensão integral dos danos. Portanto, significa que não é necessário que o lesado tenha conhecimento da extensão desses do dano, podendo pedir a sua fixação para momento posterior (Neste sentido. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in C. C. anotado, 4ª edição, pág. 503).
Dano é o prejuízo sofrido que o facto ilícito culposo tenha causado, resultante da perda in natura, sob a forma de destruição, subtracção ou deterioração (dano real) ou o reflexo desse sobre a situação patrimonial do lesado (dano patrimonial) – Cfr. Antunes Varela, em posição que se acompanha, in “Das Obrigações em geral”, Vol I, 10ª edição, pág. 597 e 598.
Em 6/11/2003 o A. foi submetido à intervenção cirúrgica em causa.
Em 26/2/2008 o 2.º R foi demandado naquele processo-crime para contestar o pedido de indemnização civil, que deu entrada em 5/3/2007.
Nos termos do art.º 323.º do CPC a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence, ainda que o tribunal seja incompetente ou que não tenha com ele qualquer relação – neste sentido, que se acompanha, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, Vol. I, pág. 290.
Ora, não há dúvida que o A. pretendeu exercer o direito que aqui peticiona no processo 56/04.....
Contudo, à data da notificação do Réu Centro Hospitalar, e, por maioria de razão, à data de entrada da PI nos autos, o direito do A. já prescreveu uma vez que o Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela, por sentença com trânsito em julgado, absolveu a R. BB do crime de ofensa à integridade física grave por negligência de que vinha acusada.
Portanto, a questão que anteriormente se punha (a de saber se os factos praticados pela Ré BB constituíam crime para o qual a lei estabelecesse prescrição sujeita a prazo mais longo – art.º 498.º, n.º 3 – e, por isso, haver a possibilidade do direito ainda não estar prescrito) está ultrapassada pela decisão do Tribunal da Relação do Porto que rejeitou o recurso interposto pelo aqui A daquela decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela
Absolve-se, assim, o R. Centro Hospitalar ..., do pedido – art.ºs 576.º, n.º 2 e 3 do CPC
Do caso julgado
A excepção de caso julgado consiste em ser proposta uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir que tenha sido decidida por decisão judicial de que já não admita recurso ordinário, isto é, por decisão judicial passada ou transitada em julgado – cfr. arts. 494.º, al. i), 497.º, 498.º, 677.º e 678.º todos do CPC.
Nos termos do art.º 498.º do CPC, sob a epígrafe de “requisitos ... do caso julgado”, repete-se “... a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir ...” (n.º 1), que há “... identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica...” (n.º 2), que existe “... identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico ...” (n.º 3) e que há “... identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. (...) nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido ...” (n.º 4).
Portanto, o caso julgado visa exactamente garantir aos particulares o mínimo de certeza do Direito ou de segurança indispensável à vida de relação em sociedade – Cfr.- Antunes Varela in “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição revista e actualizada, pág. 705 e FF sobre o Novo Processo Civil”, 2.ª edição, Lx 1997, pág. 568. Por outro lado, “... tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior ...” (art. 497.º, n.º 2 do CPC).
Ora o caso julgado é a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão judicial decorrente do seu trânsito em julgado (cfr. art. 677.º do CPC), sendo que como afirma Miguel Teixeira de Sousa o “... caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário ...”, já que “... após o proferimento de uma decisão judicial verifica-se a extinção do poder jurisdicional do juiz (cfr. art. 666.º, n.ºs 1 e 3 do CPC), o que significa que o tribunal não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada ...” (in: ob. cit., págs. 567 e 572). Cfr. também, Ac. do TCAN, proc. 1009/08, de 23/9/2011, em posição que se segue.
O caso julgado possui aquilo que se denomina de limites objectivos, temporais e subjectivos (identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica – art. 498.º, n.º 2 CPC), sendo que será, assim, através da análise dos supra referidos três elementos (sujeitos, pedido e causa de pedir) que se obterá e se definirá a sua extensão.
Não merece contestação que nos presentes autos e nos da decisão transitada em julgado os sujeitos são os mesmos.
Vejamos então o pedido e causa de pedir.
Como vimos há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico sendo que existe identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico – cfr. art. 498.º, n.º 3 e 4 do CPC
Temos, assim, que o problema do âmbito objectivo se prende com a determinação do “quantum” de matéria que foi apreciada pelo tribunal e que recebe o valor de indiscutibilidade do caso julgado, sendo que este abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (art. 659.º, n.º 2 “in fine” e 713.º, n.º 2 ambos do CPC), que pode ser, por exemplo, a condenação ou absolvição do réu ou o deferimento da providência solicitada.
Contudo, sustenta, neste âmbito, M. FF que como “(...) toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão (...)” (in: ob. cit., págs. 578/579).
Por outro lado, a jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de que são abrangidas pelo caso julgado as questões apreciadas que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da sentença (cfr. entre outros, Ac. do STJ de 09.05.1996 in: CJ/ASTJ, Ano IV, Tomo II, págs. 55 e segs.); que o preenchimento da excepção exige a verificação da tríplice identidade de sujeitos, pedido e de causa de pedir (cfr., entre outros, os Acs. do STA de 11.11.2004 – Proc. n.º 046414, de 30.11.2005 – Proc. n.º 034/04, de 04.02.2009 – Proc. n.º 0861/06, de 27.01.2010 – Proc. n.º 0551/09, in www.dgsi.pt), sendo que tal como se decidiu no acórdão do TCAN de 17.06.2010 (Proc. n.º 00059/2003-Penafiel in: «www.dgsi.pt») os “... limites objectivos do caso julgado, que supõe a imodificabilidade da situação jurídica fixada na sentença, definem-se por referência ao objecto do processo, que é constituído pela pretensão do autor individualizada em função da causa de pedir”
Em consideração dos factos provados temos forçosamente de considerar que, para além da identidade de sujeitos há identidade do pedido e causa de pedir.

Não pode o A. ver reapreciado o seu pedido de condenação dos RR. a pagar-lhe solidariamente a titulo de danos patrimoniais e não patrimoniais, o montante global de 117.380,00 €, a que acrescem juros, assim como ao pagamento de todos os cuidados de saúde que se relacionem com a intervenção cirúrgica, porque, invocando os factos ínsitos nos art.ºs 5 e 7, 11, 12, 14 da PI, de onde derivaria a responsabilidade da R. BB, a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela apesar de considerar provado que, “no decurso da sobredita cirurgia, ocorreu a invasão, com os instrumentos cirúrgicos da órbita do olho direito de AA, e foi seccionado o nervo óptico do olho direito e ainda músculos extrínsecos – ou músculos orbitários – desse olho”, considerou não provado que tal tivesse ocorrido “devido a falta de cuidado, desatenção e deficiente utilização pela arguida BB da técnica cirúrgica”; que “Ao proceder como descrito a arguida omitiu os deveres de cuidado e atenção e a observância das boas regras de actuação médica aplicáveis naquela situação e que, segundo as circunstâncias, lhe eram exigíveis, se impunha que observasse e era capaz”; que “a arguida não prestou a devida atenção e cuidado à cirurgia que estava a realizar, fazendo uma deficiente utilização da técnica cirúrgica e, desde logo, (...) representado como possível que a sua descrita conduta poderia realizar/provocar graves lesões em AA (...)”.
Ora, se perante os factos não provados, assim como de acordo com aqueles que julgou provados, o Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela absolveu a arguida BB do crime de ofensa à integridade física grave por negligência de que vinha acusada, não podem voltar a ser reapreciados nos presentes autos esses fundamentos da decisão, de forma a considerar que “no decurso no decurso da sobredita cirurgia, ocorreu a invasão, com os instrumentos cirúrgicos da órbita do olho direito de AA, e foi seccionado o nervo óptico do olho direito e ainda músculos extrínsecos – ou músculos orbitários – desse olho” (facto alegado no art.º 5.º da PI) e “que em consequência directa, necessária e adequada da descrita conduta da R. BB sofreu o A. as lesões descritas no relatório do exame médico-legal (...)” ( art.º 7.º da PI); ou que “ao proceder como descrito a R. BB omitiu os deveres de cuidado e atenção e a observância das boas regras de actuação médica aplicáveis naquela situação (...)” (art.º 11.º da PI).
Pelo exposto:
a) Absolve-se a R. Centro Hospitalar ... do pedido – art.ºs 576.º, n.º 2 e 3 do CPC;
b) Absolve-se a R. BB da instância – art.ºs. 576.º, n.º 2, 457º, al. i), 480.º, n.º 1 do CPC”.
*
Vejamos!
Quanto à prescrição:
A fundamentação apresentada na decisão judicial recorrida ignorou factos essenciais para aferir, com correcção, da verificação (ou não) da prescrição, pese embora, em sede de réplica, o A. tenha aduzido factualidade relevante para avaliar da procedência ou não da suscitada prescrição - cfr. fls. 123 do processo físico.
Aliás, consta do Parecer emitido pelo M.º P.º, neste TCA-N – art.º 146.º do CPTA -, que, por elucidativo, se transcreve:
“…
Da prescrição
Salvo devido respeito por melhor opinião, os factos carreados para os autos, para decidir a excepção da prescrição, invocada pelo R. Hospital, são insuficientes, para se proceder à contagem do prazo.
Para se aquilatar do decurso do prazo prescricional, e proceder à respetiva contagem, torna-se necessário apurar, para além dos factos dados como provados, os seguintes factos:
a) Data da participação crime;
Esta data é importante porque a partir da data da participação até à dedução de acusação, o prazo para deduzir o pedido de indemnização civil suspende-se, conforme tem sido abundantemente, decidido em sede jurisprudencial.
Veja-se, entre outros, o AC. do STJ, proferido do proc. nº1701/15.9T8LSR-A.L1.S2, cujo sumário se transcreve:
I. O estabelecimento hospital que contribuiu para o tratamento ou assistência da vítima é titular de um direito de indemnização que tem origem no facto ilícito, logo é um lesado nos termos e para os efeitos do artigo 495.º, n.º 2, do CC.
II. O disposto, em especial, no artigo 3.º do DL n.º 218/99, de 15.06., quanto ao início da contagem do prazo de prescrição do direito de indemnização de que são titulares as entidades integradas no Serviço Nacional de Saúde não afasta a aplicabilidade dos princípios e das regras gerais sobre a prescrição em tudo o que com ele não contenda.
III. Configurando o facto gerador do direito de indemnização um ilícito criminal, é aplicável, em princípio, a extensão do prazo de prescrição prevista no artigo 498.º, n.º 3, do CC, beneficiando tanto o ofendido / lesado principal como os restantes lesados.
IV. Estando, por força do princípio da adesão do pedido indemnizatório à acção penal (cfr. artigo 71.º do CPP), todos os lesados impedidos de deduzir aquele pedido, em separado, nos tribunais cíveis, a contagem do prazo de prescrição do direito de indemnização não se inicia antes de proferido o despacho de acusação / de arquivamento, em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 1, do CC.
b) Data da acusação;
A referida data é importante, não só pela razão supra exposta, mas também porque sendo o pedido de indemnização cível, decorrente da prática de um crime de adesão obrigatória nos termos do art.71º do CPP e o referido pedido só pode ser deduzido, após ou simultaneamente com a acusação, nos termos do estatuído no art. 77º do Cod. Proc. Penal, que dispõe:
1 - Quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, o pedido é deduzido na acusação ou no prazo em que esta deve ser formulada.
2 - O lesado que tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do artigo 75.º, n.º 2, é notificado do despacho de acusação, ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, se a ele houver lugar, para, querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias.
3 - Se não tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização ou se não tiver sido notificado nos termos do número anterior, o lesado pode deduzir o pedido até 10 dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de acusação ou, se o não houver, o despacho de pronúncia.
4 - Quando, em razão do valor do pedido, se deduzido em separado, não fosse obrigatória a constituição de advogado, o lesado, nos prazos estabelecidos nos números anteriores, pode requerer que lhe seja arbitrada a indemnização civil. O requerimento não está sujeito a formalidades especiais e pode consistir em declaração em auto, com indicação do prejuízo sofrido e das provas.
5 - Salvo nos casos previstos no número anterior, o pedido de indemnização civil é acompanhado de duplicados para os demandados e para a secretaria.
A dedução do pedido cível em separado, sem sentença prévia que determine a remessa para o tribunal cível, equivale à desistência da queixa crime, nos crimes semi-públicos, tal como o crime de ofensas corporais negligentes (cfr. art.72º nº2 do CCP.)
c) Data do transito da sentença que remeteu o A., para a instância cível e da propositura da ação no tribunal cível.
Com vista a apurar se o pedido foi deduzido no prazo dos 30 dias
d) Data do transito da sentença cível que absolveu os RR. da instância, por incompetência do tribunal cível para conhecer da matéria.
e) Data do despacho que não admitiu a transferência dos autos, para o tribunal administrativo, por oposição dos RR.
f) Data do transito em julgado, deste despacho.
Também estas últimas datas são importantes para proceder à contagem dos prazos para aferir se a ação foi proposta no prazo dos 30 dias.
Acontece, porem, que tais factos não foram alegados, pelo R. Hospital, não obstante serem factos essenciais para se conhecer da referida excepção, por serem necessários à contagem do prazo prescricional.
Assim sendo deveria o Tribunal “A Quo”, ter carreado oficiosamente tais factos, ou julga improcedente o pedido de prescrição por omissão de factos essenciais.
Ao não ter carreado para os autos os factos necessários, e essenciais para a apreciação da excepção, e tendo apreciado a excepção da prescrição sem se munir dos factos essenciais para tal decisão, incorreu a sentença numa nulidade processual, atendendo a que tal vício influencia a apreciação da causa (cfr.art.195º do CPC.).
Face ao exposto deve nesta parte, ser anulada a sentença recorrida, e determinar-se a baixa dos autos, para prosseguimento da instrução”.
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Não podemos deixar de concordar com esta posição.
Na verdade, atenta a tramitação do processo criminal, processo de indemnização civil – primeiramente deduzido no processo crime (princípio da adesão) – depois remetido para os meios comuns – instaurado nos tribunais judiciais que se declaram materialmente incompetentes, antes pertencendo a competência aos tribunais administrativos, remessa a que a co-ré BB se opôs, obrigando a que tivesse sido apresentada nova petição nos tribunais administrativos – o processo em causa – impunha-se que, oficiosamente ou, se necessário, com a coadjuvação das partes coligir todos os factos objectivos de modo a aferir da verificação ou não da prescrição, atendendo, nomeadamente, ao preceituado no art.º 289.º do CPCivil 2013 (actual art.º 279.º).
Não o tendo efectivado, impõe-se a baixa dos autos à 1.ª instância para os efeitos pertinentes, sendo certo e inolvidável que, apesar dos autos terem tido o seu início em 2009, os factos averiguandos já ocorreram há cerca de 20 anos (6/11/2003).
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Quanto ao caso julgado.
É igualmente manifesto o desacerto da decisão recorrida nesta vertente recursiva.
É objectivo e manifesto que nenhum tribunal decidiu o pedido de indemnização civil, pelo que é inquestionável que inexiste a excepção de caso julgado.
Sem necessidade de outras considerações, procede esta vertente recursiva, como também refere a Digna Magistrada do M.º P.º no seu douto e fundamentado Parecer supra aludido.
III
DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em:
- conceder provimento ao recurso;
- revogar a decisão recorrida;
- julgar inverificada a excepção de caso julgado;
- ordenar a baixa dos autos à 1.ª instância para:
- prosseguir a tramitação processual referente à requerida intervenção acessória provocada da Companhia de Seguros “A..., Portugal, SA”, nos termos supra referidos; e,
- instruir e decidir a excepção de prescrição, nos termos também supra referidos.
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Sem custas.
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Notifique-se.
DN.

Porto, 24 de Março de 2023
Antero Salvador
Helena Ribeiro
Nuno Coutinho