Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01026/12.7BEBRG-B
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/10/2014
Tribunal:TAF de Braga
Relator:João Beato Oliveira Sousa
Descritores:SEGREDO BANCÁRIO
Sumário:É de deferir o levantamento do sigilo bancário suscitado pelo TAF, ao abrigo do artigo 135º/3 CPP “ex vi” artigo 417º/4 CPC e 1º CPTA, no sentido de obter da Comissão Liquidatária determinada informação quanto à identidade daqueles a quem o banco fez pagamentos alegadamente irregulares, posteriormente à data da declaração de insolvência.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:GMMPV e Outro(s)...
Recorrido 1:Estado Português e Outro(s)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
Na ação administrativa comum supra indicada, instaurada por GV e outros contra Estado Português, BPP, S.A. (em liquidação); Massa Insolvente do BPP, S.A. e Incertos, o TAF de Braga, correspondendo a solicitação dos Autores, ordenou à Comissão Liquidatária do BPP que informasse sobre a identidade e domicílio daqueles a quem o BPP fez pagamentos depois de 01-12-2008.
A referida Comissão Liquidatária considerou-se impedida de fornecer tal informação porque isso implicaria violação do sigilo profissional e deduziu escusa nos termos do artigo 417º/3/c) do CPC.

Perante isto, nos termos dos artigos 417º/4 CPC e 135º/3 CPP, foi suscitado o presente incidente de derrogação de sigilo bancário.


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
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Os factos com interesse para a decisão deste incidente estão materializados nas peças processuais que constituem o presente incidente, destacando-se o seguinte:

1. No âmbito dos autos que correm termos neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, sob o número 1026/12.7BEBRG, e em que são AA., GMMPV, TCPFG, RMGMV e Réus, Estado Português, BPP, S.A. (em liquidação, Massa Insolvente do BPP, S.A. e “Incertos”, vieram os AA. solicitar se “intime a Comissão Liquidatária do BPP a trazer aos autos informação sobre a identidade e domicilio daqueles a que o BPP fez pagamentos depois de 01 de Dezembro de 2008, que agora são demandados como incertos, de modo a que possam ser pessoalmente accionados e citados”.

2. Nos referidos autos os AA. peticionam, além do mais, se declare ineficazes em relação aos AA. os pagamentos efetuados pelo BPP, a incertos, depois de 01 de Dezembro de 2008, alegando, em suma, que tais pagamentos causam a diminuição da garantia patrimonial do crédito dos AA. e serem tais pagamentos indevidos e inexigíveis.

3. Por despacho de 26.09.2013 a fls. 687 dos autos (e a fls. 146 deste incidente) foi determinado que se oficiasse “à Comissão Liquidatária do BPP, através da Massa Insolvente do BPP, S.A, para no prazo de 10 (dez) dias, informar os autos quanto à identidade e domicilio daqueles a que o BPP fez pagamentos depois de 1.12.2008, nos termos solicitados pelos AA.”;

4. A fls. 893 (fls. 2 e 3 deste incidente) veio a «Comissão Liquidatária do BPP, S.A. - Em Liquidação» deduzir escusa, nos termos do art. 417.º, n.º 3, al. c) do CPC, sustentando estar a informação em causa abrangida por segredo bancário nos termos do art. 78.º do RGICSF.

5. Por despacho de 05-06-2014 o TAF de Braga julgou legítima a escusa referida no ponto anterior, por considerar que “atento o disposto no art. 78.º, n.º 1 e 2 do RGICSF estando em causa a revelação da identificação dos clientes (nomes e domicílios), tendo por referência movimentos nas suas contas, e sem que haja consentimento dos titulares, está a informação requerida pelos AA. sujeita a dever de segredo”.

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DE DIREITO
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A questão a decidir é apenas esta: Se se justifica a derrogação do sigilo bancário perante a escusa legitimamente deduzida pela Comissão Liquidatária do BPP.
Como não tem sido objecto de apreciação frequente na Secção de Contencioso Administrativo do TCAN, justifica-se um esforço acrescido para enquadramento geral desta problemática.

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Os parâmetros gerais deste meio processual são sintetizados no Acórdão da 2ª Secção de Contencioso Tributário deste TCAN, de 19-05-2011, Proc. 00069/10.0BECBR-A, cujo sumário se reproduz (fazendo-se aqui a ressalva de que o mencionado artigo 519º nº3, c) e nº4 corresponde, com a mesma redacção, ao actual artigo 417º nº3 c) e nº4 do CPC):

«I - Em matéria de segredo profissional, os ministros de religião ou confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas, os membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo - Cfr. artº135º do CPP;

II - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento - Cfr. nº 2 do mesmo comando jurídico;

III - O tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso de o incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante - Cfr. nº 3, ainda do artº 135º do CPP;

IV - Do mesmo modo, no âmbito do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeira (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31.DEZ, se contêm regras que definem o dever de segredo bancário, os seus destinatários, as suas excepções e as sanções pela sua violação, estando abrangidos pelo segredo bancário os factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações destas com os seus clientes, designadamente, os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias;

V - No entanto, porque o segredo bancário não constitui um fim em si mesmo nem sequer um valor absoluto, a lei prevê diversas situações em que o mesmo pode ser derrogado em face de outros interesses públicos ou privados.

VI - O RGICSF, prevê as seguintes excepções ao dever de sigilo:
– Autorização do cliente;
– No âmbito dos poderes de supervisão e de controlo dos riscos;
– Nos termos da lei penal e de processo penal; e
– Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.

VII - Por outro lado, conforme resulta do enunciado no art. 519.º-3-c) do CPC, é legítima a recusa de colaboração com o tribunal se a obediência importar violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, mas, como logo se ressalva no mesmo preceito legal, sem prejuízo do disposto no n.º 4, que preceitua que uma vez deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.

VIII - E de acordo com o disposto nos artºs 135.º, n.ºs 1, 2 e 3, e 182º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal (CPP), importa considerar os seguintes aspectos:
- O primeiro, relativo à legitimidade da escusa com base no segredo profissional, sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do art. 135.º do Código de Processo Penal; e
- O segundo, respeitante à justificação da escusa, em termos de a afirmar ou a declarar não subsistente, sendo que, nesta última hipótese, o tribunal superior (o tribunal competente para o efeito) ordena que se prestem as informações pretendidas, com quebra do segredo profissional.

IX - No caso de uma instituição de crédito (rectius, dos funcionários ou administradores dessa instituição) se escusar a prestar uma informação que lhe foi solicitada pelo tribunal administrativo e fiscal no âmbito de um processo de impugnação judicial com fundamento no segredo bancário a que está obrigada (cf. art. 78.º, n.º 2, do RGICSF) - o segredo bancário constitui uma modalidade de sigilo profissional - deve o juiz desse tribunal, antes do mais, decidir se tal escusa é ou não legítima, ou seja, se estão ou não verificados os pressupostos que permitem àquela instituição escusar-se legalmente a prestar tal informação sendo que, somente, no caso de decidir que a escusa é legítima e está justificada deverá suscitar a intervenção do tribunal superior no incidente de dispensa do segredo bancário (Cfr. artºs 135.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, 519º, nº 4 do CPC ex vi do art. 2.º, alínea e) do CPPT).

X - Tendo sido proferida decisão pelo tribunal a quo, nos termos da qual julgou as recusas das instituições bancárias legítimas e justificadas, ao abrigo do dever de sigilo bancário, cumpre ao Tribunal Superior decidir da quebra do sigilo bancário, de acordo com a prevalência dos interesses preponderantes.

XI - Tendo-se decidido, no tribunal a quo, pela legitimidade e pela justificação das recusas das identificadas instituições bancárias, uma eventual quebra do sigilo bancário a decidir por este TCAN, a justificar a intervenção do tribunal superior no incidente de dispensa do segredo bancário, passaria pelo entendimento de que os elementos bancários, em causa, se mostrariam indispensáveis à descoberta material dos factos em questão na Impugnação judicial deduzida, e nessa medida interessariam à realização da justiça, devendo sobrepor-se ao interesse particular dos clientes das instituições bancárias, tais como a reserva à vida privada bem como das relações de confiança que se estabelecem entre as entidades bancárias e os respectivos clientes, de acordo com o princípio da prevalência dos interesses preponderantes.

XII - Considerando que, nos presentes autos de impugnação de liquidações de IRC, em que a fiscalização tributária concluiu que a maior parte da facturação se configurava como fictícia por não corresponder a efectivas operações comerciais e tendo a Impugnante solicitado a remessa de extractos e de cheques bancários de que possa depreender-se, eventualmente, pela realidade dessas operações materiais, os elementos bancários, em questão, mostram-se indispensáveis à descoberta material dos factos, objecto da impugnação judicial, e nessa medida interessarem à realização da justiça, devendo sobrepôr-se aos interesses particulares acima assinalados.

XIII - E estabelecendo-se uma ponderação de interesses, ente os interesses públicos e privados, em presença, segundo critérios de proporcionalidade, decidindo-se no sentido da prevalência dos primeiros em detrimentos dos segundos, e, em consequência, dever determinar-se uma quebra ou o levantamento do sigilo bancário.»

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Quanto ao enquadramento processual do incidente para autorização da quebra do sigilo bancário, refere-se no Acórdão da Relação do Porto de 15-05-2012, Proc. 1911/08.0TBOAZ-B.P1:
«No seguimento do Ac.Jurispª S.T.J. n°2/2008 de 13/2/08 in D.R., I-s. de 31/3/08, o n°3 do art° 135° C.P.Pen. deve ser interpretado no sentido de visar tão só assegurar uma 2ª instância decisória, para as hipóteses em que o tribunal, embora reconhecendo a legitimidade formal e substancial da escusa, pretenda suscitar a ponderação de valores ou direitos em jogo (balancing rights) - já que a apreciação da proporcionalidade e da proibição do excesso (art° 18° n°2 C.R.P.), na invocação do direito, cabe exclusivamente ao tribunal superior».

Para mais completa elucidação sobre a natureza e âmbito da decisão a proferir neste incidente do artigo 135º CPP, aplicável por remissão, é útil atentar ainda no seguinte passo do citado acórdão do STJ de fixação (ou uniformização) de jurisprudência:

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«3.4 - Temos, pois, que têm tratamento claramente diferenciado as situações de legitimidade e de ilegitimidade da escusa de prestação de depoimento ou informações pelas instituições bancárias, sendo evidentemente mais simples o caso de ilegitimidade, que é da competência do próprio tribunal em que a escusa tenha sido invocada, precisamente porque aí se trata apenas de constatar a inexistência de sigilo bancário e consequentemente a ilegitimidade da escusa, e consequentemente ordenar a prestação da informação (ou do depoimento).
Estando, porém, o facto coberto pelo segredo, e sendo portanto legítima a escusa, só a quebra do segredo pode obrigar a entidade bancária à prestação da informação.
Mas a quebra do segredo impõe um juízo de prevalência entre os interesses em conflito, que o legislador entendeu dever deferir a um tribunal superior.
Sendo assim, temos que, quando invocado o sigilo bancário, a autoridade judiciária perante a qual tiver sido suscitada deverá decidir se essa escusa é legítima ou ilegítima.
Quando conclua, após as diligências que considerar necessárias e cumprido o formalismo do n.º 5 do mesmo artigo, que a escusa é ilegítima, a autoridade judiciária ordena ou requer ao tribunal que ordene a prestação do depoimento, não podendo então a instituição bancária deixar de cumprir o ordenado.
Se concluir que a escusa é legítima, dois caminhos estão abertos à autoridade judiciária: ou se conforma com a invocação do segredo, não podendo insistir na obtenção do depoimento, ou então suscita o incidente de quebra de segredo junto do tribunal imediatamente superior.
A quebra do segredo, pelo juízo que envolve, é, por opção legislativa, necessariamente da competência de um tribunal superior (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça, conforme os casos). Este último não funciona, pois, como uma instância residual, quando se suscitem dúvidas sobre a legitimidade da escusa, mas sim como instância de decisão do incidente da quebra do segredo, nas situações em que a escusa é legítima.»
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Note-se que, embora no citado acórdão do STJ estivesse em causa matéria penal, mais propriamente crimes de roubo agravado, o enquadramento legal relevante não diverge, uma vez que a escusa da CGD em fornecer os elementos solicitados invocando o sigilo bancário foi considerada legítima e, portanto, em ambas as hipóteses, parafraseando aquele acórdão «As informações pretendidas só poderiam ser obtidas através do incidente de quebra do segredo bancário, previsto no n.º 3 do citado artigo 135.º do CPP…»
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Fazendo incidir o foco na dimensão substantiva da questão, o Acórdão de 17-09-2010 da 2ª Secção - Contencioso Tributário deste TCAN, Proc. 00542/08.0BEPNF, em “breve nota quanto aos interesses tutelados”, refere que o segredo bancário visa tutelar:
«-interesses públicos, que têm a ver com o regular funcionamento da actividade bancária, sendo que o segredo contribui para a criação de um clima de confiança fundamental para o correcto e regular funcionamento da actividade creditícia, em especial, no domínio do incentivo ao aforro e

- interesses privados, sendo estes dos clientes, que têm interesse na reserva ou discrição relativamente às relações com a banca, quer no domínio dos negócios, quer dos actos pessoais, mas também das instituições financeiras, surgindo aqui como manifestação da liberdade da iniciativa económica privada e do direito ao bom nome e à reputação das instituições».

Esta orientação prossegue numa linha jurisprudencial muito nítida traçada pelos nossos Tribunais de cúpula, acorde com a melhor doutrina e reiterada no acórdão do STJ citado do seguinte modo:
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«3.1 - O segredo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses (1).
Por um lado, de ordem pública: o regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança, e indirectamente para o bom funcionamento da economia, já que o sistema de crédito, na dupla função de captação de aforro e financiamento do investimento, constitui, segundo o modelo económico adoptado, um pilar do desenvolvimento e do crescimento dos recursos.

Por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de reflectir aproximadamente a «biografia» de cada sujeito, de forma que o direito ao sigilo bancário se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (2).

Porém, esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita. Pode, pois, ter de ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário (3).

(…)

(1) Sobre este ponto, v. o parecer n.º 138/83, do Conselho Consultivo da PGR (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 342, p. 61), o Acórdão n.º 278/95, do Tribunal Constitucional, de 31 de Maio, n.º 7.2, Meneses Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3.ª ed., p. 253, e José Maria Pires, O Dever de Segredo na Actividade Bancária, p. 19, entre muitos outros elementos.

(2) Assim, o citado Acórdão n.º 278/95 do Tribunal Constitucional, n.º 7.1, e Meneses Cordeiro, p. 254. Diferentemente, J. M. Pires funda o segredo bancário na «necessidade de proteger a actividade bancária de intromissões que prejudiquem a confiança das relações entre as instituições e os seus clientes», considerando o segredo bancário como expressão de um «direito fundamental de segredo», enquadrável nos direitos fundamentais atípicos, previstos no artigo 16.º, n.º 1, da CRP.

(3) Assim, expressamente, o Acórdão citado do Tribunal Constitucional, n.º 8».

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Vantajosa é ainda a transcrição de alguns excertos do referido Acórdão n.º 278/95 do Tribunal Constitucional. Assim:
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«7.2. Com a instituição do segredo bancário pretende-se salvaguardar simultaneamente interesses públicos ou colectivos e interesses de ordem individual [cfr. O Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 138/83, de 5 de Abril de 1984, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 342 (1985), p. 61. Para uma análise do segredo bancário em direito comparado, cfr. este mesmo Parecer, p. 62 ss.].

Os primeiros têm a ver com o regular funcionamento da actividade bancária, o qual pressupõe a existência de um clima generalizado de confiança nas instituições que a exercem. De facto, "a economia bancária é particularmente vulnerável, uma vez que baseada na confiança; daí que o segredo bancário seja considerado como um dos pilares do crédito e garante de uma economia saudável" (cfr. M. Eduarda Azevedo, ob. cit., p. 98).

A instituição do segredo bancário contribui, assim, juntamente com outros factores, para a criação de um clima de confiança, que se revela de importância fundamental para o correcto e regular funcionamento da actividade creditícia e, em especial, no domínio do incentivo ao aforro.

Mas, para além da evidente satisfação de interesses gerais ou colectivos, o segredo bancário serve também interesses de índole individual. Com efeito, a par da prossecução do interesse público, não se pode perder de vista que a finalidade do instituto do segredo bancário é também o interesse dos clientes, para quem o aspecto mais significativo do encorajamento e tutela do aforro é a garantia da máxima reserva a respeito dos próprios negócios e relações com a banca (cfr. Alberto Luís, Direito Bancário, Coimbra, Almedina, 1985, p. 93). Com o sigilo bancário o legislador pretende, pois, rodear da máxima discrição a vida privada das pessoas, quer no domínio dos negócios, quer dos actos pessoais a eles ligados.

(…)

8. Aqui chegados, está este Tribunal em condições de afirmar que a situação económica do cidadão, espelhada na sua conta bancária, incluindo as operações activas e passivas nela registadas, faz parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada, condensado no artigo 26º, nº 1, da Constituição, surgindo o segredo bancário como um instrumento de garantia deste direito. De facto, numa época histórica caracterizada pela generalização das relações bancárias, em que grande parte dos cidadãos adquire o estatuto de cliente bancário, os elementos em poder dos estabelecimentos bancários, respeitantes designadamente às contas de depósito e seus movimentos e às operações bancárias, cambiais e financeiras, constituem uma dimensão essencial do direito à reserva da intimidade da vida privada constitucionalmente garantido.

(…)

O segredo bancário não é um direito absoluto, antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Na verdade, a tutela de certos valores constitucionalmente protegidos pode tornar necessário, em certos casos, o acesso aos dados e informações que os bancos possuem relativamente às suas relações com os clientes. Assim sucede com os artigos 135º, 181º e 182º do actual Código de Processo Penal…»

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Reassumindo a questão concreta, este TCAN não tem, portanto, que indagar sobre a relevância dos elementos bancários solicitados no contexto da causa principal, nem sobre a legitimidade da Comissão Liquidatária do BPP ao escusar-se, em nome do sigilo bancário, a fornecer essa informação, questões que o Tribunal de 1ª instância já decidiu no exercício normal das suas competências no processo principal. Mas apenas ponderar e decidir se em face dos interesses públicos e privados contrapostos (“segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante” como preceitua o artigo 135º/3 CPP) se justifica no caso a derrogação do dever de sigilo bancário.
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O INTERESSE PÚBLICO
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Com a insolvência do BPP (BPP) foi desferido um rude golpe no desejável “clima generalizado de confiança” nas instituições que exercem a actividade bancária.
E, no caso específico do BPP, tratou-se mesmo de um golpe fatal, uma vez que esta instituição fechou portas e cessou a sua actividade bancária.

Onde havia um banco passou a estar um acervo patrimonial praticamente inerte, destinado a garantir e satisfazer equitativamente os direitos dos credores.

No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março (CIRE) declara-se que «O objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores».

E no seu artigo 1º/1 preceitua-se que «O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores».

Nesta situação anómala de quebra absoluta da confiança pública num banco (o BPP) e, certamente, de degradação da confiança no sistema financeiro e na actividade bancária em geral, emerge decisivamente um novo interesse público, o qual a própria entidade que legitimamente se escusa atrás do sigilo bancário publicamente reconheceu e caracterizou de forma lapidar.

Efectivamente pode ler-se na Mensagem da Comissão Liquidatária do BPP (Em Liquidação) acessível no respectivo site da internet:

«Mensagem da Comissão Liquidatária

Em 15 de Abril de 2010, o Banco de Portugal deliberou revogar a autorização que concedera ao BPP, S.A, para o exercício da actividade bancária, o que, nos termos do artigo 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 199/2006, de 25 de Outubro, “produz os efeitos da declaração de insolvência”, tendo sido fixadas as 12 horas do dia 16 de Abril como o momento da produção de efeitos do acto.

Em conformidade com os dispositivos legais, o Banco de Portugal requereu no Tribunal de Comércio de Lisboa a liquidação da instituição e propôs a nomeação de uma Comissão Liquidatária, que foi aceite pela Meritíssima Juíza no despacho de prosseguimento da liquidação.

Para os portugueses não existe memória da insolvência de uma instituição de crédito com a natureza de banco, tantos são os anos desde que isso aconteceu pela última vez. Estamos, pois, perante um acontecimento raro em Portugal, não existindo (dir-se-á, felizmente) uma experiência que possa ser convocada como exemplo ou guião orientador.

O Decreto-Lei n.º 199/2006, de 25 de Outubro, que transpôs a Directiva n.º 2001/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Abril, relativa ao saneamento e à liquidação das instituições de crédito, regula especificamente a liquidação das instituições de crédito e sociedades financeiras mas estatui no n.º 3 do artigo 9.º que “são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as demais disposições do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que se mostrem compatíveis com as especialidades constantes do presente decreto-lei, com excepção dos títulos IX e X.” Trata-se, pois, de uma trabalho juridicamente complexo, que envolve a articulação destes dois diplomas, qualquer deles relativamente recente.

Esta Comissão aceitou o encargo ciente das dificuldades que tem pela frente e com plena consciência dos traumas e problemas que a situação já causou, em particular aos clientes do BPP e aos seus colaboradores.

Pautará o seu comportamento pelo escrupuloso cumprimento da lei, em ordem a garantir a defesa da massa insolvente com o objectivo de assegurar, na medida do possível, a satisfação dos credores. A Comissão Liquidatária tudo fará para que o processo de liquidação corra do melhor modo. Para além dos legítimos e diferentes interesses em presença, de pessoas e instituições concretas, é nossa convicção que numa liquidação bancária está também subjacente um interesse público fundamental: o de que a própria liquidação se faça em termos ordenados e transparentes, de forma a evitar quaisquer danos adicionais para a confiança no sistema financeiro português.

O Presidente da Comissão Liquidatária»

Este Tribunal está inteiramente de acordo com o teor da Mensagem da Comissão Liquidatária, mormente no sentido de a respectiva actividade ter por objectivo “assegurar, na medida do possível, a satisfação dos credores” e de o interesse público fundamental nestas infelizes circunstâncias ser “o de que a própria liquidação se faça em termos ordenados e transparentes, de forma a evitar quaisquer danos adicionais para a confiança no sistema financeiro português”.

Como no contexto da insolvência dum banco o próprio interesse público genérico no “regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança” impõe a satisfação do interesse público de liquidação ordenada e transparente da massa insolvente, não há dúvida de que esta finalidade específica deve prevalecer sobre o sigilo bancário, quando ambos os interesses colidam de tal modo que o primeiro não possa realizar-se sem o sacrifício do segundo.

Ora, no caso em apreço, não se vislumbra, nem os intervenientes processuais sugerem, quaisquer outros dispositivos práticos capazes de garantir uma liquidação justa e transparente, perante a invocação pelos Autores no processo principal da existência de pagamentos indevida e extemporaneamente efectuados pelo BPP a incertos, susceptíveis de causar a diminuição da garantia patrimonial dos credores, a não ser através da prestação da informação solicitada pelo TAF de Braga, com a consequente quebra do sigilo bancário a respeito de tais pagamentos.

Sendo assim, pelo prisma do interesse público conclui-se que deverá ser autorizada a quebra do sigilo bancário.

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OS INTERESSES PRIVADOS
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Neste campo estão em confronto, por um lado os interesses dos Autores em acautelar na máxima medida possível o seu património, através da garantia dos seus créditos e, por outro lado, os interesses dos aludidos Incertos em garantir a máxima reserva a respeito dos próprios negócios e relações com o banco.
Ora bem.

Em primeiro lugar faz-se notar que pela experiência comum das coisas o decurso do tempo tenderá para atenuar a premência da protecção do sigilo bancário relativamente àquelas operações pretéritas. Quer porque algumas terão já sido divulgadas por iniciativa dos próprios interessados, ou mesmo contra a sua vontade, quer porque a divulgação desactualizada já não terá tanto impacto nos seus negócios e vida pessoal, quer enfim por uma multiplicidade de razões que se poderão conjecturar e que, de certo modo, inspiram o conhecido adágio popular segundo o qual “o tempo cura tudo”.

Em contrapartida, o interesse dos Autores na minimização da perda de garantias dos seus créditos mantém-se plenamente actual.

Em segundo lugar não pode afiançar-se que exista uma verdadeira oposição entre os interesses dos Autores e todos esses Incertos. Pelo contrário, é razoável admitir que alguns deles, se conhecidos e confrontados com a questão que nos ocupa, teriam autorizado a divulgação das operações que lhes dizem respeito. E não menos razoável será admitir que nem todos os alegados pagamentos a que se refere o presente incidente terão sido irregulares, caso em que, afinal, a manutenção do sigilo bancário até poderá encobrir eventuais conflitos de interesses entre os ditos Incertos.

Finalmente, há que referir que os próprios Autores tinham direito a beneficiar do sigilo bancário e que, provavelmente, não teriam divulgado as suas operações com o BPP se não fossem compelidos a isso em ordem à protecção dos seus direitos em sede de liquidação judicial por insolvência daquele banco, parecendo algo injusto perante isto a protecção irredutivel do sigilo bancário dos incertos demandados, conferindo-lhes por assim dizer um ganho de causa automático contra a pretensão dos Autores, a qual, por sua vez, não teria à partida qualquer viabilidade sem que abdicassem do sigilo bancário relativamente às suas operações com o mesmo banco insolvente.

Nenhuma destas razões é só por si decisiva mas, articuladas, apontam decisivamente no sentido de que também na perspectiva do confronto entre interesses privados é caso para conceder a solicitada derrogação do sigilo bancário.

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DECISÃO
Pelo exposto acordam em determinar o levantamento do sigilo bancário nos termos do despacho do TAF de fls. 146 “in fine”.
Sem custas.
Porto, 10 de Outubro de 2014
Ass.: João Beato Sousa
Ass.: Fernanda Brandão
Ass.: Hélder Vieira