Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01105/20.7BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/15/2021
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:INTERESSES DIFUSOS - LEGITIMIDADE PROCESSUAL ATIVA
Sumário:I- Inserindo-se os valores constitucionais alegados no campo de proteção preconizado pelo nº. 2 do artigo 9º do C.P.T.A, e recaindo os eventuais benefícios da procedência da presente providência cautelar sobre uma universidade de destinatários representados pela Recorrente, apresenta-se distintivo que goza esta de legitimidade processual ativa bastante, aferida na vertente da proteção de interesses difusos, para intervir em juízo.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:JUNTA DE FREGUESIA (...)
Recorrido 1:C. e C., LDA.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar para Adopção duma Conduta (CPTA) - Rec. Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO

JUNTA DE FREGUESIA (...), devidamente identificada nos autos, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga promanada no âmbito da presente Providência Cautelar por si intentada contra C. e C., LDA., igualmente identificados nos autos, que, em 19.05.2021, julgou procedente a suscitada exceção de ilegitimidade processual ativa, com a consequente absolvição dos Requeridos.

Alegando, a Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)

1. O Tribunal a quo considerou que, cortejada a Lei n° 54/2005 de 15/11 (sobre a titularidade dos Recursos Hídricos), “o domínio público hídrico fluvial pertence ao Estado e, às Freguesias, apenas, está atribuído, em parte, o domínio hídrico lacustre (artigo 6º, nº 2, al. b) da Lei 54/2005) ”.
2. Nesse sentido, concluiu que “carece de legitimidade a Requerente, por pretender defender, i.e., impor o cumprimento, o respeito de uma servidão, da qual não é titular”.
3. Completando ser “forçoso concluir que a Requerente não alega, nem decorre da sua pretensão, que a mesma tenha legitimidade para a pretensão cautelar (e mesmo principal) que aqui deduz. Pelo que, verifica-se a ilegitimidade ativa, a qual é exceção dilatória e de conhecimento oficioso (artigo 89º, n.°s 1, 2, 4, al. e) do C.P.T.A.), que impede o conhecimento do mérito e determina a absolvição da instância dos Requeridos, como se decide”.
4. Acontece que, a Recorrente não pode concordar com o entendimento do Tribunal a quo, isto porque não é seu entendimento que a simples circunstância do domínio público hídrico pertencer ao Estado e não às Freguesias obste ao dever de prossecução do interesse público por parte destas, nomeadamente no âmbito das suas atribuições, em particular, no domínio do ambiente, tal como o Regime Jurídico das Autarquias Locais o confere.
5. Dispõe o art. 2° daquela Lei n° 75/2013 de 12/09 que “Constituem atribuições das autarquias locais a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações, designadamente nos domínios referidos no n.0 2 do artigo 7.° e no n.° 2 do artigo 23° da presente lei”, acrescentando a alínea f) do art. 3° do mesmo diploma legal que “As autarquias locais prosseguem as suas atribuições através do exercício pelos respetivos órgãos das competências legalmente previstas, designadamente de fiscalização”.
6. De igual modo, o n° 1 do art. 7° do mesmo regime jurídico dispõe que “Constituem atribuições da freguesia a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações, em articulação com o município.” e o n° 2 que “As freguesias dispõem de atribuições designadamente nos seguintes domínios: g) Proteção civil; h) Ambiente e salubridade; j) Ordenamento urbano e rural; k) Proteção da comunidade”.
7. Além do RJAL (Lei n° 75/2013 de 12/09), importa considerar o art. 9° n° 2 do CPTA, relativo à legitimidade ativa “Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais”.
8. Além disso, incumbirá sempre à Junta de Freguesia zelar e fazer zelar pelo direito ao ambiente e ao ordenamento do território, porque é uma das suas atribuições, fazendo ver a todos que devem cumprir com as normas legais da República, ainda que a competência específica, em determinada matéria, esteja acometida ao Estado.
9. Nesse sentido, a servidão de passagem, de acesso às águas de pesca e fiscalização, não é unicamente um direito do Estado mas também dos cidadãos, nomeadamente dos pescadores, da freguesia, pelo que incumbe à entidade pública - freguesia - a defesa dos direitos daqueles cidadãos.
10. Pelo exposto, não podemos concordar com o entendimento do Tribunal a quo, que julgou procedente aquela exceção de ilegitimidade ativa, tendo a Junta de Freguesia atuado, in casu, em conformidade e mediante as atribuições que lhe são conferidas pela Lei n° 75/2013 de 12/09 (Regime Jurídico das Autarquias Locais).
11. Mais importa alegar que o requisito do periculum in mora também se julga por preenchido, porquanto caso seja necessário e haja a pretensão de aceder às águas do rio Cávado naquele local, as entidades licenciadoras, autoridades fiscalizadoras e pescadores não o conseguirão fazer,
12. E da ponderação dos interesses públicos e privados em presença, decorre que os danos resultantes da concessão da providência não se mostram superiores àqueles que podem resultar da sua recusa (…)”.
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Notificados que foram para o efeito, os Recorridos produziram contra-alegações, que remataram com o seguinte quadro conclusivo: “(…)

1. Nos termos do disposto no artigo 6.° n.° 1 da Lei n.° 54/2005, de 15 de novembro “O domínio público lacustre e fluvial pertence ao Estado”.
2. Os presentes autos tratam de um troço do Rio Cávado situado em terreno privado, e por isso não em terreno municipal e muito menos em terreno de freguesia, pelo que dúvidas não podem restar que pertence ao Estado a competência para os presentes autos, e não à junta de freguesia, e menos ainda ao seu omnipresente presidente!
3. Os preceitos e toda a doutrina que a recorrente, em jeito canhestro, “despeja” nas alegações, não se referem à tutela de uma eventual servidão como a dos presentes autos, mas sim ao ordenamento e/ou defesa do ambiente, parecendo que foram enviadas para o processo errado.
4. Considerando que a pretensão da recorrente nos presentes autos é o cumprimento/respeito da alegada servidão administrativa, e esta, a existir, sempre pertenceria ao Estado, é indubitável que carece de legitimidade nos presentes autos, pelo que muito bem andou o Tribunal em declará-la, sob pena de estar a gastar recursos ao estado e às partes a discutir inutilidades.
5. Ainda que alegando a Recorrente defender interesses dos seus cidadãos pescadores, o certo é que (i) os pescadores nunca foram impedidos de aceder às margens do rio (e como se disse anteriormente, a zona não é sequer ou é muito residualmente usada por pescadores), nem tampouco aduziram o que quer que fosse nos presentes autos nesse sentido, “lembrando-se agora”, à míngua de qualquer argumento válido, e (ii) nem todos os pescadores que se queiram deslocar ao local são residentes na freguesia (...), pelo que nunca poderia a recorrente defender interesses dos titulares de outra área da respetiva circunscrição.
6. Relativamente às entidades fiscalizadoras e de policiamento, é indubitável que estas têm meios à sua disposição para atuar quanto a eventuais impedimentos, que, repete-se, nunca existem nem existiram.
7. Não se verifica qualquer periculum in mora, considerando que se tratam de águas não navegáveis, pelo que nunca se irá verificar a situação de acudir pessoas e bens.
8. A sentença proferida não merece qualquer reparo, bem pelo contrário, devendo assim ser mantida na sua totalidade, por não haver qualquer fundamento factual ou legal para que se decida de forma diversa. (…)”.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior emitiu parecer no sentido da procedência do presente recurso.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.

Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir resume-se a saber se a sentença recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance descritos no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em erro de julgamento de direito.

Assim sendo, esta será a questão a apreciar e decidir.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO

O Tribunal a quo não fixou factos, em face do que aqui se impõe estabelecer a matéria de facto, rectius, ocorrências processuais, mais relevante à decisão a proferir:
A. Em 03.08.2020, a JUNTA DE FREGUESIA (...) intentou a presente providência cautelar no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga [cfr. fls. 39 e seguintes dos autos -suporte digital -, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
B. Nela demandou o (i) C. e (ii) C., Lda. [idem];
C. E formulou o seguinte petitório: “(…)
Deve o presente procedimento cautelar ser considerado provado e procedente, e em conformidade serem os Requeridos condenados:
a) A retirar todos os materiais que colocaram ou mandaram colocar na margem esquerda do Rio Cávado, em toda a extensão da propriedade, nomeadamente troncos de árvore, estrume e vegetação seca, que impede o exercício da servidão legal de acesso e passagem;
b) A absterem-se futuramente deste tipo de comportamentos;
c) Ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na remoção das barreiras físicas que impedem a servidão, em valor nunca inferior a € 500,00 (quinhentos euros). (…)” [idem].
D. Em 19.05.2021, o TAF de Braga promanou decisão judicial a julgar procedente a suscitada exceção de legitimidade processual ativa da Requerente [cfr. fls. 440 e seguintes dos autos – suporte digital – cujo teor se dá por integralmente reproduzido];
F) Sobre esta decisão judicial sobreveio, em 02.06.2021, o presente recurso jurisdicional [cfr. fls. 458 e seguintes dos autos – suporte digital – cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
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III.2 - DO DIREITO

O dissídio subsistente nos presentes autos traduz-se em determinar se a sentença recorrida incorreu [ou não] em erro de julgamento de direito quanto à decidida procedência da exceção de ilegitimidade processual ativa da Requerente, aqui Recorrente.

Neste pressuposto, e para facilidade de análise, convoque-se a ponderação de direito na qual se estribou o juízo de procedência da aludida matéria excetiva:
“(…)
Antes de mais, importa que, quanto à personalidade judiciária, decorre do artigo 236°, n.° 1 da C.R.P. que as autarquias locais, no continente, são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas.
Da Lei 75/2013, de 12 de setembro, resulta que os órgãos representativos da freguesia (pessoa coletiva) são a assembleia de freguesia e a junta de freguesia (artigo 5°, n.° 1). Atendendo ao disposto no artigo 8°-A, n.° 3 e artigo 10°, n.° 2 do C.P.T.A., a parte demandada nos processos intentados contra entidades públicas, é a pessoa coletiva pública, considerando-se, nos termos do n.° 4 do mesmo artigo, que a ação se encontra regularmente proposta quando seja demandado o órgão e não a pessoa coletiva. Muito embora as disposições referidas digam respeito à legitimidade passiva, o mesmo regime deve ser aplicado quando está em causa o autor da ação.
Destarte, considerando o expendido, e bem assim que a junta de freguesia é um órgão da pessoa coletiva freguesia, tem-se a ação por regularmente proposta pela Freguesia (...).
O presente processo vem, assim, intentado pela Freguesia (...), preliminarmente à ação administrativa em que peticionará o reconhecimento da existência de servidão administrativa e a necessidade do seu cumprimento.
Em sustentação da sua pretensão, a Requerente invoca, antes de mais, que segundo o artigo 2° do RJAL '“Constituem atribuições das autarquias locais a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações, designadamente nos domínios referidos no n.° 2 do artigo 7.° e no n.° 2 do artigo 23.° da presente lei”, sendo que, nos termos da alínea f) do artigo 3° do mesmo regime jurídico, “As autarquias locais prosseguem as suas atribuições através do exercício pelos respetivos órgãos das competências legalmente previstas, designadamente de fiscalização'’”, que o n.° 1 do artigo 7° do RJAL dispõe que “Constituem atribuições da freguesia a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações, em articulação com o município.”, completando, o n.° 2 do mesmo artigo que “As freguesias dispõem de atribuições designadamente nos seguintes domínios: g) Proteção civil; h) Ambiente e salubridade; j) Ordenamento urbano e rural; k) Proteção da comunidade”.
Além disso, que dispõe o artigo 9°, n.° 2 do CPTA que “Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais.”
Seguidamente, a Requerente sustenta que os Requeridos têm uma propriedade (“Paço (...)”, “Quinta do (…)” ou “Quinta dos (…)”), junto ao Rio Cávado, em (...), a qual está na zona de proteção e zona reservada da Albufeira de Ruães, sendo que a largura da margem é de 30 metros (artigo 11°, n.° 3 da Lei 54/2005, de 15 de novembro), que está inserida em área de reserva ecológica nacional, estando o proprietário da referida “Quinta” onerado com uma servidão administrativa no interesse geral de acesso às águas, de passagem ao longo das águas da pesca, da navegação e da flutuação e ainda de fiscalização, a que acresce a obrigação de licenciamento das obras que ali execute, bem como um dever de conservação, desobstrução e limpeza.
Mais invoca que os Requeridos têm posto em causa o exercício da referida servidão, com diversas atuações que levaram a ações de fiscalização, pelas autoridades policiais e fiscalizadoras.
Ao nível do periculum in mora, aduz que é urgente a regularização da servidão, porquanto pode ser necessário aceder às águas do Rio Cávado e as entidades e autoridades não o conseguirão fazer; por outro lado, com essa obstrução as entidades fiscalizadoras e de policiamento no domínio hídrico, não poderão passar para efetuar qualquer fiscalização; os pescadores estarão impedidos de usufruir da servidão de passagem para o exercício da pesca, no período de verão.
Quanto à ponderação de interesses refere que os danos resultantes da concessão da providência não se mostram superiores àqueles que podem resultar da sua recusa.
Face a esta alegação, foi proferido o seguinte despacho:
[...]
Para sustentar a sua legitimidade (ativa) recorre aos artigos 2.°, 3°, al. f), 7º, n.°s 1 e 2 e 15° do Regime Jurídico das Autarquias Locais e ao artigo 9°, n.° 2 do C.P.T.A..
A Requerente assenta a sua pretensão na existência de uma servidão administrativa, decorrente do artigo 21° da Lei 54/2005, de 15 de novembro (com a alteração mais recente pela Lei 31/2016, de 23 de agosto), a qual, segundo alega, o Requerido não respeita.
Cotejado o diploma em causa (Lei 54/2005) afigura-se que o domínio público hídrico fluvial pertence ao Estado, e não às Freguesias (artigo 6°), sendo certo que, em face do alegado, não se descortinam, aqui, neste domínio, quais os direitos fundamentais dos cidadãos ou os interesses difusos, em sede, nomeadamente, de ordenamento e ambiente, que estão sob a égide de proteção da Freguesia Requerente (ou seja, cuja defesa lhe esteja acometida).
[…]
A Requerente, em sede de resposta, reiterou, maioritariamente, o expendido no seu requerimento inicial.
Apreciando e decidindo.
Principiando pela pretensão da Requerente, é inegável que a mesma visa o cumprimento/respeito, por parte dos Requeridos, pela invocada servidão administrativa. Servidão essa, que a existir, pertence ao Estado. Como se referiu, no despacho que antecede, o domínio público hídrico fluvial pertence ao Estado e, às Freguesias, apenas, está atribuído, e parte, o domínio hídrico lacustre (artigo 6°, n.° 2, al. b) da Lei 54/2005).
Portanto, desde logo, por aqui, carece de legitimidade a Requerente, por pretender defender, i.e., impor o cumprimento, o respeito de uma servidão, da qual não é titular.
Ademais, é imperioso referir que os dispositivos que a Requerente invoca, como legitimadores, não se referem à tutela da eventual servidão. Note-se que as competências em sede de ordenamento do território e defesa do ambiente não estão relacionadas com o pretendido respeito da servidão. Aliás, a Requerente basta-se com a alusão às referidas competências, mas não diz, concretamente, quais os interesses difusos especialmente confiados pelo RJAL, que estão em causa no presente caso.
Ou seja, a Freguesia pretende defender a servidão, mas não alega legitimidade para defesa da mesma, mas para defesa de interesses que não estão relacionados, efetivamente, com a servidão.
E mais, o mesmo vale para as alegações em torno dos direitos fundamentais dos seus cidadãos. A Requerente refere-se a direitos fundamentais dos seus cidadãos, mas não os concretiza.
É certo que a Freguesia vem, em sede de resposta, indicar que defende os interesses dos cidadãos (pescadores) da Freguesia. No entanto, os pescadores (enquanto titulares de interesses próprios) nada aduziram, que se saiba, quanto à violação dos seus interesses, e, além disso, nem todos os pescadores, que quiserem ir ao local (e que sejam impedidos), são fregueses da Requerente.
Saliente-se que o artigo 9°, n.° 2 do C.P.T.A., visa atribuir legitimidade às autarquias locais (em que se incluem as Freguesias) para defesa dos interesses de que sejam titulares os residentes na área da respetiva circunscrição (Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha Fernandes, Comentário do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição revista, Almedina, 2018, p. 95). Os interesses dos pescadores (de todos os pescadores) não estão circunscritos à área da circunscrição da Freguesia (...).
Por outro lado, a Requerente aborda as dificuldades que as entidades fiscalizadoras e de policiamento do domínio hídrico poderão ter, para aceder à margem do Rio Cávado. Contudo, estas entidades têm formas próprias de atuação e as mesmas não passam, certamente, por mandatar a Freguesia na defesa das suas atribuições, nomeadamente por via da instauração de um processo cautelar. Nem se prefigura fundamento legal para tal. Nem a Requerente o alega.
Por fim, a Requerente ainda refere, a titulo de periculum, que poderá estar em causa uma situação de emergência, sendo necessário acudir pessoas e bens. Porém, e em consonância com o demais, a Requerente não se sustenta nas específicas competências que lhe poderão estar atribuídas em sede de proteção civil e que lhe permitam ser parte legítima na defesa da servidão.
Deste modo, face a tudo quanto vem expendido, é forçoso concluir que a Requerente não alega, nem decorre da sua pretensão, que a mesma tenha legitimidade para a pretensão cautelar (e mesmo principal) que aqui deduz.
Pelo que, verifica-se a ilegitimidade ativa, a qual é exceção dilatória e de conhecimento oficioso (artigo 89°, n.°s 1, 2, 4, al. e) do C.P.T.A.), que impede o conhecimento do mérito e determina a absolvição da instância dos Requeridos, como se decide (…)”.

Ora, a Recorrente insurge-se contra o assim decidido com base no entendimento de que a simples circunstância do domínio público hídrico pertencer ao Estado, e não às Freguesias, obste ao dever de prossecução do interesse público por parte destas, nomeadamente no âmbito das suas atribuições, em particular, no domínio do ambiente, tal como o Regime Jurídico das Autarquias Locais o confere, importando ainda considerar o disposto no nº. 2 do artigo 9º do CPTA, nesse sentido concluindo que a servidão de passagem, de acesso às águas de pesca e fiscalização, não é unicamente um direito do Estado mas também dos cidadãos, nomeadamente dos pescadores, da freguesia, pelo que incumbe à entidade pública – Freguesia – a defesa dos direitos daqueles cidadãos.
Espraiada a fundamentação vertida na decisão judicial recorrida, adiante-se, desde já, que o assim decidido não é de manter.

Realmente, a legitimidade da requerente cautelar dependerá da sua legitimidade para intentar a ação principal, e esta última dependerá da sua alegação (i) de um interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesada pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos [cfr. artigo 55º, nº.1 do C.P.T.A.], ou (ii) da invocação de valores constitucionais integrados no campo de proteção preconizado no nº. 2 do artigo 9º do C.P.T.A.

Pois bem, a Requerente – que é uma Autarquia -, por intermédio da presente providência cautelar, pretende obter a condenação dos Requeridos a “(…) retirar todos os materiais que colocaram ou mandaram colocar na margem esquerda do Rio Cávado, em toda a extensão da propriedade, nomeadamente troncos de árvore, estrume e vegetação seca, que impede o exercício da servidão legal de acesso e passagem (…)” [bem como a] absterem-se futuramente deste tipo de comportamentos (…)”.

Para estribar a sua pretensão suspensiva, e no que concerne ao fumus boni iuris, a Recorrente alega que a propriedade dos Requeridos, não obstante privada, está onerada com uma servidão administrativa no interesse geral de acesso às águas, de passagem ao longo das águas da pesca, da navegação e da flutuação e ainda de fiscalização, que estes teimam em não respeitar, já que resolveram colocar (i) estrume na margem, junto ao leito do rio, em toda a extensão do terreno agrícola que ali detém, sentido norte-nascente da propriedade e, no limite sul-poente da propriedade, na margem, junto ao leito do rio, (ii) troncos de árvores de grande porte, uns em cima dos outros, chegando aos três metros de altura, tudo com vista a obstaculizar o exercício da dita servidão administrativa, impedindo o seu exercício na sua propriedade.
Ante o exposto, considera que o Requerido está a violar disposto no art. 21º da Lei nº 54/2005 de 15.11, o que motiva a sua intervenção processual nos presentes autos.

Invoca a seu favor, fundamentalmente, a legitimidade processual que deriva do disposto no artigo 9º, nº 2 do C.P.T.A., para além da preconizada nos artigos 2º, alínea f) do artigo 3º e nº.s 1 e 2 do artigo 7º, todos da RJAL, aprovada pela Lei nº. nº 75/2013, de 12 de setembro.

Ora, é o seguinte o teor do nº. 2 do artigo 9º do C.P.T.A: “(…)
2 - Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais (…)”.

O regime vertido no supracitado nº 2 – que é aplicável a quem não possua interesse pessoal e direto na relação material controvertida – reconhece, pois, a qualquer pessoa, às associações e fundações defensoras dos interesses em causa, às autarquias locais e ao Ministério Público, uma legitimidade impessoal ou social, para defesa de certos bens ou valores legal ou constitucionalmente protegidos, independentemente de ter existido ou venha a existir a possibilidade de verificação de uma lesão específica da sua esfera jurídica.

Na análise deste preceito, Gomes Canotilho e Vital moreira [in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª. edição, páginas 281 a 283], escrevem: "O objeto da ação popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos".

Os interesses difusos são os interesses juridicamente reconhecidos de uma pluralidade indeterminada ou indeterminável de sujeitos que, potencialmente, pode incluir todos os participantes da comunidade geral de referência, o ordenamento geral cuja normatividade protege tal tipo de interesse, ou seja é aquele que afeta um grupo, categoria ou classe que carece de organização e surge como consequência da existência de setores de relações jurídicas com repercussão num grupo mais ou menos extenso de pessoas alheias à titularidade das relações jurídicas [cfr. neste sentido Luís Filipe Colaço Antunes, in A Tutela do interesses difusos em Direito Administrativo, pp. 20 e segs. e "Almagro, in "Legitimacion Y amparo constitucional, in RDP, n.º 4, pp. 647].

Porque assim é, quanto ao enunciado legal dos sujeitos e entidades aos quais é concedida a legitimidade popular, a atribuição desta legitimidade implica um significativo reforço do papel dos tribunais na tutela dos direitos difusos.
“Quando a função de solicitar a tutela jurisdicional desses interesses é atribuída a um órgão público (como, por exemplo, o Ministério Público ou o Ombudsman), isso implica uma definição pelo poder legislativo das entidades legitimadas para o exercício dessa tutela e não concede ao tribunal da ação qualquer controlo sobre a adequação da representação assumida por estas entidades. Pelo contrário, quando essa mesma legitimidade é atribuída a cidadãos e a organizações, o tribunal tem de verificar a adequação da representação reclamada pelo particular ou pela organização e a inclusão dos interesses em causa nas atribuições e objetivos estatutários da organização demandante.” [cfr. Miguel Teixeira de Sousa, “A legitimidade popular na tutela dos interesses difusos”, LEX, 2003, pág. 122].

Pois que não pode o interesse difuso ser confundido com qualquer outro interesse, como seja, o interesse público.

Apesar de alguma coincidência, os interesses públicos são os interesses gerais de uma coletividade e os interesses difusos são aferidos pelas necessidades efetivas que por eles são ou deviam ser satisfeitas aos membros de uma coletividade.

Os “interesses públicos, porque correspondem (em termos ideais, pelo menos) aos interesses gerais de uma coletividade, abstraem dos interesses individuais que são ou podem ser satisfeitos. Os interesses públicos aferem-se pelas necessidades gerais da coletividade, pelo que, ainda que seja apenas o interesse de um único indivíduo, esta satisfação corresponde a um interesse publico se ela for imposta por aquelas necessidades gerais. Em contrapartida, os interesses difusos só são delimitáveis em função das necessidades concretamente satisfeitas aos membros de uma coletividade: como esses interesses se desdobram numa dimensão individual e numa dimensão supra-individual, não há interesses difusos que não satisfaçam efetivamente uma necessidade de todos e de cada um dos membros da coletividade. Assim, enquanto os interesses públicos são os interesses gerais da coletividade, os interesses difusos são os interesses de todos aqueles que veem as suas necessidades concretamente satisfeitas como membros de uma coletividade.” [cfr. Miguel Teixeira de Sousa, obra cit., pág. 31-32].

Ora, estando intimamente ligado o campo de ação preconizado no nº.2 do artigo 9º do C.P.T.A. com a defesa dos chamados interesses difusos, isto é de interesses que não se reportam a pessoas individualmente identificadas, não podendo por elas ser apropriados, impõe-se in casu que a Recorrente projete os interesses que, alegadamente, vêm defender, num universo indistinto de interessados.

Neste domínio, cabe notar que o objectivo primordial que a Recorrente visa atingir com a dedução da presente providência cautelar é a reversão da atuação dos Requeridos descritas nos autos - traduzida na colocação de (i) estrume na margem, junto ao leito do rio, em toda a extensão do terreno agrícola que ali detém, sentido norte-nascente da propriedade e, no limite sul-poente da propriedade, na margem, junto ao leito do rio, (ii) troncos de árvores de grande porte, uns em cima dos outros, chegando aos três metros de altura - de forma a desonerar uma servidão administrativa existente no interesse geral de acesso às águas, de passagem ao longo das águas da pesca, da navegação e da flutuação e ainda de fiscalização.

Mais cabe notar que os eventuais benefícios que poderão advir da procedência da presente providência cautelar serão obtidos por uma pluralidade de pessoas, representando a Recorrente a coletividade de indivíduos que podem ser afetados pelos efeitos da atuação que se visa impedir com a interposição da presente providência cautelar.

O que serve para concluir que os valores que a Recorrente pretende ver tutelados na presente providência cautelar contendem com a defesa do ambiente, do urbanismo, do ordenamento do território e da qualidade de vida, projetando-se os eventuais benefícios da procedência da presente providência cautelar sobre uma universalidade de destinatários que cabe à Recorrente representar nos termos da lei.

Em conformidade com o exposto, entende-se que, atenta a particular conformação e natureza da legitimidade popular, a que subjaz a defesa de interesses públicos, que se mostra aqui caracterizado um interesse difuso que legitima o direito que a intervenção popular postula.

E assim é, então dúvidas não podem subsistir que a Recorrente goza de legitimidade processual ativa, aferida na vertente da proteção de interesses difusos, para intervir em juízo.

Assim deriva, naturalmente, que se impõe conceder provimento ao presente recurso, devendo ser revogado a decisão judicial recorrida e determinada a baixa dos autos à 1ª instância, para que aí prossigam os seus ulteriores trâmites processuais se nada mais obstar.

Ao que se provirá no dispositivo, o que determina, naturalmente, a prejudicialidade do conhecimento da remanescente argumentação aduzida no domínio do invocado erro de julgamento de direito.
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IV – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice”, revogar a sentença recorrida e determinar a baixa dos autos à 1ª instância, para que aí prossigam os seus ulteriores trâmites processuais se nada mais obstar.
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Custas pela parte vencida a final.
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Registe e Notifique-se.
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Porto, 15 de julho de 2021,

Ricardo de Oliveira e Sousa
João Beato
Helena Ribeiro