Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00906/19.3BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/11/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Luís Migueis Garcia
Descritores:HABITAÇÃO SOCIAL. INTERESSE EM AGIR.
Sumário:I) – É destituído de interesse em agir o recurso a juízo pela Autora, com poder de autotutela.
Recorrente:Espaço Municipal Renovação Urbana d Gestão do Património, E.M.S.A.
Recorrido 1:AA
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não foi emitido parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:
Espaço Municipal – ... e G..., E.M.S.A. (Rua ..., Maia) interpõe recurso jurisdicional de decisão do TAF do Porto, em acção por si intentada contra AA (Rua ..., ..., Maia), julgada parcialmente procedente.
A recorrente conclui:
1 - Por douta sentença foi absolvida o Réu da instância com fundamento na excepção dilatória de falta de interesse em agir.
2 - A factualidade está em desacordo expresso com o fundamento legal da douta sentença ora recorrida.
3 - A Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro não é aplicável à apreciação da questão decidenda.
4 - Os contratos previstos na Lei 81/2014, de 19 de Dezembro são meros contratos de arrendamento qua tale.
5 - O contrato dos autos é um contrato misto, formado por um contrato de locaçao e um contrato de promessa de compra e venda e consequentemente fora do âmbito de aplicação desta Lei.
Vejamos então,
6 - Os contratos previstos na Lei 81/2014, de 19 de Dezembro são celebrados pelo prazo máximo de 10 anos, contrariamente ao dos autos que é celebrado pelo prazo de 25 anos.
7 - Nos contratos celebrados no alcance e previsão da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro nunca os arrendatários se tornam proprietários, ao contrário da estatuição do contrato dos autos, em que a arrendatária se torna proprietária do locado findo o prazo de duração do contrato.
8 – O total desalinho do quadro legal aplicável verte-se ainda nas regras de atribuição das habitações no âmbito da Lei 81/2014, de 19 de Dezembro comparando-as com as definidas âmbito do contrato dos autos, em que a atribuição é feita de acordo com o estabelecido no Regulamento Municipal para ....
9 - O contrato dos autos, ao contrário do quadro legal aplicável por força da Lei 81/2014, de 19 de Dezembro, prevê que durante o seu período de vigência a promitente vendedora deixa de ter quaisquer obrigações ou encargos com os imóveis locados/prometidos vender, sendo a locatária assumir as obrigações inerentes a um proprietário.
Por último,
10 - Enquando os contratos celebrados ao abrigo da Lei 81/204, de 19 de Dezembro é regulamentadas em todo o seu itinerário pelo regime jurídico que este encerra, o contrato dos autos é exclusivamente regido pelo Regulamento Municipal, pelo clausulado do ocntrato e pela legislação civil.
11 - O que a afasta, à saciedade, e sem mais, a aplicação do novo regime do arrendamento apoiado aos factos.
12 – Inequivocamente neste sentido na douta sentença extractada nas presentes alegações, como ainda em vários outros arestos, designadamente no processo 943/19... - U. Orgânica 2.
13 - Violou a sentença recorrida incisos legais, sustentando-a em legislação não aplicável ao caso em exegese, devendo, em consequência, ter provimento o presente Recurso.
Sem contra-alegações.
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O Exmº Procurador-Geral Adjunto, notificado nos termos do art.º 146º, n.º 1, do CPTA, não emitiu parecer.
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Dispensando vistos, vêm os autos a conferência, cumprindo decidir.
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Os factos, que na decisão recorrida foram tidos como provados:
1. Em 25.06.2009, a Câmara Municipal da Maia e a Autora outorgaram contrato-programa através do qual delimitaram o âmbito dos poderes de gestão do parque habitacional do Município da Maia, que foram conferidos à segunda.
2. No âmbito do conjunto de pressupostos descritos no Regulamento Municipal de Atribuição e Gestão de Habitação Pública, a Autora e BB celebraram um contrato de arrendamento com promessa de compra e venda para habitação própria e do seu agregado familiar, sobre uma fração de um prédio urbano sito na Rua ..., na freguesia ..., Concelho da Maia.
3. O contrato de arrendamento foi celebrado pelo período de 25 anos, com início no dia 01 de setembro de 2005 e termo em 31 de agosto de 2030.
4. Conforme nele convencionado, BB constituiu-se na obrigação de pagar à Autora, pela fruição da fração, a quantia de EUR 128,70 por mês, e a cumprir o seu pagamento até ao dia oito do mês a que respeitar, renda que estava fixada, à data da entrada da ação, em EUR 156,77.
5. O arrendado foi transferido para o Réu no mês de maio de 2015, por decisão judicial, concentrando-se aquele direito em seu favor.
6. O Réu não pagou à Autora parte da renda do mês de junho e as rendas dos meses de julho, agosto, outubro e novembro de 2018, bem como as rendas de janeiro, fevereiro e março do ano de 2019, no montante global de EUR 1.177,00.
7. O Réu promete reiteradamente à Autora pagar as rendas em dívida.
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A apelação:
Os pedidos formulados na acção:
«A)Deve ser resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre a Autora e o Demandado e ordenado o seu despejo do locado e a sua entrega àquela livre de pessoas e coisas;
B)Deve o Demandado ser condenado a pagar à Autora as rendas já vencidas, no montante de €1.177,00 (mil cento e setenta e sete euros e zero cêntimos) e as vincendas até efectiva entrega do locado;
C)Deve o Demandado ser, também, condenado a pagar à Autora os juros calculados à taxa de 4% desde a citação e até real e efectivo pagamento;
D)Deve ser resolvido o contrato de promessa de compra e venda, celebrado em 01 de setembro de 2005, com inerente perda de todas as quantias que pagas a favor da Autora;
E)Deve o Demandado ser, também, condenado a pagar à Autora o valor que esta despendeu com todos os gastos administrativos inerentes à resolução extrajudicial deste litígio, e diligências conexas, que esta reputa num valor nunca inferior a €400,00 (quatrocentos euros e zero cêntimos).».
O tribunal “a quo”, em 31/03/2022, decidiu julgar a acção parcialmente procedente, na sequência do que determinou:
«a) Absolvo o Réu da instância quanto aos pedidos formulados nas alíneas A) e D), por falta de interesse em agir;
b) Condeno o Réu a pagar à Autora o valor global de EUR 1.177,00 (mil cento e setenta e sete euros), acrescido dos respetivos juros de mora, à taxa legal, a contar da data da citação;
c) Condeno o 2.º Réu a pagar à Autora o valor das rendas vincendas até à entrega do locado, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data dos respetivos vencimentos,
d) Absolvo o Réu do demais peticionado.».
Corrigindo por despacho de 4/4/2022 a estatuição sob alínea c), ficando “c) Condeno o Réu a pagar à Autora o valor das rendas vincendas até à entrega do locado, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data dos respetivos vencimentos; (…)”.
Serviu de lastro à solução alcançada (no que respeita à inconformidade que motiva o recurso):
«(…)
Questão Prévia – a exceção de falta de interesse em agir:
Vejamos desde logo se procede a exceção de falta de interesse em agir quanto ao pedido de resolução do contrato.
O contrato em causa nos autos, em vigor entre a Autora e o Réu, é, em parte, um contrato de arrendamento para fim habitacional em regime de renda apoiada, celebrado ao abrigo do Regulamento Municipal de Atribuição e Gestão de Habitação Pública do Município da Maia (cfr. ponto 2 do probatório).
Conforme recentemente considerado pelo Supremo Tribunal Administrativo em situação semelhante, está em causa nos autos um contrato misto de arrendamento apoiado com um contrato de promessa de venda em regime de propriedade resolúvel (cfr. Ac. do STA de 15.10.2020, proc. n.º 02886/17.0BEPRT, in www.dgsi.pt).
A tais contratos não deixa de ser aplicável, nessa parte, o regime legal imperativo atinente à relação jurídica de habitação social.
Neste sentido, vejam-se as seguintes doutas palavras do Acórdão supra referido:
(…) não estamos perante a regulação de uma relação jurídica contratual em que seja “inteiramente soberana” a vontade contratual das partes, uma vez que estamos perante uma relação jurídica de habitação social, regulada, maioritariamente, pelo direito administrativo, e não pelo direito civil e pelo direito do arrendamento urbano (este último tem apenas aplicação subsidiária). Por se tratar de um contrato relativo ao regime jurídico da habitação social, ou seja, um contrato de concretização de uma política pública social, o conteúdo do contrato, que é administrativo, tem de estar em conformidade com as normas e os princípios imperativos nesta matéria (prevalência do princípio da legalidade) e a sua interpretação tem igualmente de fazer-se em conformidade com aquelas regras e com aqueles princípios.
(…)
O princípio da mobilidade efectiva-se em diversos traços dos regimes jurídico-legais que habilitam os Regulamentos Municipais em matéria de atribuição e gestão da habitação social, onde se inscrevem, também, os Regulamentos Municipais da Maia (o de 1992, de 2014 e de 2018). Referimo-nos, essencialmente, ao concurso como forma de atribuição da habitação [Decreto-Lei n.º 797/76, de 6 de Novembro e Decreto Regulamentar n.º 50/77, de 11 de Agosto] e ao regime jurídico da renda apoiada [hoje regulado pela Lei n.º 32/2016, de 24 de Agosto, mas à data da celebração do contrato (em 2001) previsto no Decreto-lei n.º 166/93, de 7 de Maio], em que a renda é definida segundo uma fórmula que tem em conta as disponibilidades financeiras do agregado familiar do arrendatário e que podem conduzir a um aumento significativo do montante da mesma em caso de melhoria da situação financeira do arrendatário ou do seu núcleo familiar. Uma actualização que pode alcançar níveis que deixem de justificar a ocupação do imóvel por aquele agregado familiar, assim contribuindo para a sua “libertação” para afectação a outra família carenciada.” (assinalado nosso)
Importa, pois, considerar aplicável ao contrato dos autos o regime imperativo do arrendamento apoiado para habitação, em que se inclui a Lei n.º 81/2014, tal como alterada pela Lei n.º 32/2016, de 24 de agosto.
De facto, nos termos do art. 2.º, n.º 1, deste diploma, “O arrendamento apoiado é o regime aplicável às habitações detidas a qualquer título por entidades das administrações direta e indireta do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais, do setor público empresarial e dos setores empresariais regionais, intermunicipais e municipais, que por elas sejam arrendadas ou subarrendadas com rendas calculadas em função dos rendimentos dos agregados familiares a que se destinam.
Ora, de acordo com o disposto no art. 17.º, n.º 2, deste diploma, “o contrato de arrendamento apoiado tem a natureza de contrato administrativo, estando sujeito, no que seja aplicável, ao respetivo regime jurídico”.
A falta de pagamento das rendas constitui, à luz do disposto no n.º 1 do art. 25.º da Lei n.º 81/2014, que remete para os arts. 1083.º e 1084.º do Código Civil (CC), fundamento de resolução do contrato.
A resolução opera, nos termos do art. 1084.º, n.º 2, do CC, “por comunicação à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida”.
Por outro lado, quanto ao despejo, o n.º 1 do art. 28.º da Lei n.º 81/2014 estabelece que “caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação a uma das entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º, cabe a essas entidades levar a cabo os procedimentos subsequentes, nos termos da lei”.
O n.º 3 do mesmo preceito, estipula que “quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo”.
Tais preceitos devem ainda ser lidos em articulação com o n.º 6 do art. 34º da Lei n.º 84/2014 que prescreve o seguinte: “a comunicação do senhorio ou do proprietário, relativa à resolução ou à cessação da ocupação, é realizada nos termos da presente lei e dos regulamentos nela previstos, com menção à obrigação de desocupação e entrega da habitação no prazo nunca inferior a 90 dias e à consequência do seu não cumprimento”.
Do bloco de legalidade acabado de expor, em conjugação com o disposto no art. 180.º do CPA, resulta que a resolução do contrato opera por mera comunicação à parte contrária e que a Autora dispõe de competências próprias para proceder ao despejo do locado (neste sentido, veja-se os doutos Acórdãos do TCAS de 18.06.2020, proc. n.º 644/18.4BESNT, e de 02.07.2017, proc. n.º 13708/16, in www.dsi.pt).
Em nada altera tal enquadramento jurídico o facto de o contrato em causa consagrar a possibilidade de compra do imóvel por parte do locatário, uma vez que, independentemente dessa possibilidade contratualmente prevista, não deixa de estar em causa um contrato de arrendamento, resolúvel nos termos legais aplicáveis.
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Aliás, a este respeito, importa refutar a argumentação da Autora no sentido de que o interesse em agir se justifica face à natureza mista do contrato, que constitui simultaneamente contrato de arrendamento e promessa de compra e venda, o que, segundo propugna, afasta a aplicação do regime previsto no Decreto-lei n.º 81/2014.
É que, ainda que assim se entendesse e se não considerasse aplicável o art. 1084.º, n.º 2, do CC, para que remete o art. 25.º da Lei n.º 81/2014, a verdade é que nada nos autos aponta para a aplicação do Novo Regime do Arrendamento Urbano ao contrato aqui em causa (cfr., inter alia, art. 28.º do Regulamento Municipal de Atribuição e Gestão de Habitação Pública da Maia).
Assim, ainda que se sufragasse a tese da Autora, sempre seria aplicável ao contrato em crise o art. 436.º, n.º 1, do CC, atinente às obrigações em geral, nos termos do qual a resolução opera mediante mera declaração à outra parte.
Note-se que os tribunais superiores apenas têm admitido o interesse em agir no âmbito de uma ação com vista à resolução de contrato de arrendamento pelo facto de se encontrar legalmente prevista a possibilidade da ação de despejo prevista no art. 14.º, n.º 1, do NRAU, enquanto alternativa à resolução por via extrajudicial, nos termos previstos no art. 9.º, n.º 7, do NRAU (cfr., a título de exemplo, o Ac. do TRP de 17.10.2013, proc. 2541/11.5TBOAZ.P1, in www.dgsi.pt).
Ou seja, a tese que a Autora sufraga, em que pugna pela existência de um contrato misto, que abrange, para além do arrendamento, um contrato de promessa de compra e venda, não permitiria a aplicação do NRAU e o recurso à ação de despejo aí prevista, pelo que sempre seria aplicável o disposto no art. 436.º, n.º 1, do CC, mantendo-se, por conseguinte, ainda assim, a falta de interesse em agir.
Recorrendo às palavras do autor Pedro Romano Martinez “No sistema jurídico português, a resolução pode fazer-se mediante declaração unilateral e não carece de recurso judicial (art. 436.º, n.º 1, do CC). (…)
A resolução dos contratos, nos termos gerais dos arts. 432.º e ss do CC, segue o regime da liberdade de forma, bastando a mera declaração de uma das partes à outra para produzir os seus efeitos (art. 436.º, n.º 1, do CC); e o regime comum de liberdade de forma não é posto em causa ainda que o negócio jurídico que se pretende dissolver seja formal.
(…) Se uma parte resolve o contrato, a contraparte pode impugnar judicialmente a sua resolução, e se a decisão judicial confirma a validade da declaração, o contrato cessou no momento em que esta chegou ao poder do destinatário e não mediante a intervenção judicial. Diferentemente, se aquele a quem assiste o direito, duvidando da sua existência, em vez de emitir a declaração negocial, intenta uma acção judicial em que pede a apreciação do direito, o contrato cessa com a decisão judicial, se na ação, além da apreciação do direito, também se tiver feito o pedido de resolução do contrato.” (cfr. ROMANO MARTINEZ, Pedro – Da Cessação do Contrato. 3ª ed. Coimbra: Almedina, p. 171)
Salienta-se que, nos presentes autos, a Autora não pede a apreciação do direito por ter dúvidas da sua existência. Se assim é, ainda que não se entendesse pela aplicação do Decreto-lei n.º 81/2014, sempre seria de considerar a inexistência de necessidade de tutela judicial, por assistir à Autora o direito de resolver unilateralmente o contrato em crise.
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Assim, há que proceder a exceção inominada da falta de interesse processual oficiosamente suscitada por este tribunal, pelo que determino a absolvição da instância da Ré, nos termos do art. 89.º, n.º 1, do CPTA, em conjugação com os arts. 278.º, n.º 1, al. e), aplicável por remissão do art. 1.º do CPTA, quanto aos pedidos formulados nas als. A) e D) da p.i..
(…)».
A sentença recorrida seguiu a doutrina do acórdão do STA, de 15.10.2020, proferido no processo n.º 02886/17.0BEPRT, expondo o aí expendido.
Também, na mesma linha, o Ac. deste TCAN, de 08-04-2022, no proc. n.º 2504/19.2 BEPRT, perante igual esgrimir argumentativo.
Tal como no aresto desta instância (e outros aí identificados), de 14-10-2022, proc. n.º 1216/19.1BEPRT, acolhendo o discurso do citado Ac. do STA, bem acrescentando:
«(…)
3.7. Quanto à questão da aplicabilidade Lei n.º 81/2014, de 19/12, que revogou o Decreto Lei n.º 166/93, de 07/05, o Apelante não tem qualquer razão na tese que sustenta.
O contrato em causa nestes autos foi celebrado ao abrigo do Decreto-Lei n.º 166/93, de 07/05, em vigor à data, regime que foi entretanto revogado pela Lei 81/2014, de 19/05, a qual passou a aplicar-se a todos os contratos de arrendamento de fim social existentes à data da sua entrada em vigor ( artigo 39.º, n.º2, al.a) ).
Como tal, estando-se perante uma relação jurídica de arrendamento social, sujeita ao regime do arrendamento apoiado para habitação, constante da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, que revogou o Decreto-Lei n.º 166/93, de 07/05, bem andou a senhora juiz a quo ao considerar que a resolução do contrato de arrendamento em causa nos autos opera por mera comunicação à parte contrária e que a Autora, ora Apelante, dispõe de competências próprias para proceder ao despejo do locado.
Vejamos.
3.8.De acordo com o disposto no artigo 25.º, n.º 1 da Lei n.º 81/2014, que remete para a disciplina dos artigos 1083.º e 1084.º do Código Civil (CC), a falta de pagamento de rendas constitui fundamento de resolução do contrato. Por sua vez, a resolução do contrato, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 1084.º, n.º 2, do CC, opera “por comunicação à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida”.
3.8.1.Quanto ao despejo do locado, importa ter presente que nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014 “caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação a uma das entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º, cabe a essas entidades levar a cabo os procedimentos subsequentes, nos termos da lei”, estabelecendo-se no n.º3 do mesmo normativo que “quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo”.
3.8.2.Por fim, prescreve-se no n.º 6 do art. 34º da Lei n.º 84/2014 que “a comunicação do senhorio ou do proprietário, relativa à resolução ou à cessação da ocupação, é realizada nos termos da presente lei e dos regulamentos nela previstos, com menção à obrigação de desocupação e entrega da habitação no prazo nunca inferior a 90 dias e à consequência do seu não cumprimento”.
3.8.3.Procedendo-se a uma leitura articulada destes preceitos, é incontornável que cabe às entidades que detêm habitações em regime de arrendamento apoiado, como é o caso da autora, ora Apelante, o direito de resolver o respetivo contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas e, bem assim, de proceder ao despejo, caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação, dispondo a mesma de poderes de autotutela declarativa e executiva para declarar a resolução do contrato e ordenar e promover a execução do despejo do arrendatário.
3.9.Também se chegaria à mesma conclusão por força do o disposto no n.º 3 do artigo 17.º da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, onde se prevê que “Compete aos tribunais administrativos conhecer das matérias relativas à invalidade ou cessação dos contratos de arrendamento apoiado”, decorrendo deste normativo que não integra a competência dos tribunais administrativos, resolver o contrato de arrendamento/ordenar o despejo assente na falta de pagamento de rendas.
3.10.No sentido de que a Lei n.º 81/2014, de 19/12, passou a atribuir poderes de autotutela declarativa e executiva em relação aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor, pronunciou-se o TCAS, em Acórdão de 18/06/2020, proferido no processo 644/18.4BESNT, no qual se sumariou a seguinte jurisprudência, a cuja fundamentação aderimos:
«I . Sem que seja possível extrair uma solução expressa e inequívoca da letra da lei, a questão de saber a quem cabe a legal competência para decidir a execução do despejo no âmbito dos contratos de arrendamento de renda apoiada, há-de decorrer da interpretação conjugada de um conjunto de preceitos da Lei n.º 81/2014, de 19/12, na redação conferida pela Lei n.º 32/2016, de 24/08, a saber, os artigos 17.º, n.º 3, 28.º, 28.º-A e 35.º, n.º 3.
II. Os tribunais administrativos são competentes para conhecer das matérias relativas à invalidade ou cessação dos contratos de arrendamento de renda apoiada, mas sem que se preveja a competência judicial em matéria de despejo, sendo essa competência atribuída aos órgãos administrativos.
III. Quanto ao despejo estabelece o artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19/12, na redação conferida pela Lei n.º 32/2016, de 24/08, que caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação, cabe ao senhorio levar a cabo os procedimentos subsequentes, nos termos da lei, atribuindo a competência da decisão do despejo aos dirigentes máximos, dos conselhos de administração ou dos órgãos executivos das entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º, consoante for o caso, in casu, ao Presidente da Câmara Municipal, sem prejuízo da possibilidade de delegação de competência.
IV. Quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo, o que significa que neste caso se confere a competência legal para determinar não apenas o despejo, mas a sua execução, a um órgão administrativo.
V. Especificamente no caso de o despejo ter por fundamento a falta de pagamento das rendas, o legislador conferiu à Administração o poder de decidir o despejo e de o executar, consagrando, por isso, o despejo administrativo.
VI. Tratando-se de um poder administrativo, de autotutela declarativa e de autotutela executiva, exclui-se a competência jurisdicional dos tribunais administrativos para a execução do despejo.»
Esta jurisprudência foi novamente reiterada pelo TCAS, em acórdão de 19/05/2022, processo n.º 689/18.4BESNT, conforme se retira do seguinte sumário:
«I – Nos termos do art.º 28º da Lei nº 81/2014, de19.12, na redação dada pela Lei nº 32/2016, de 24.8, que se aplica aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor ao abrigo de regimes de arrendamento de fim social, nomeadamente de renda apoiada, por força do disposto no art.º 39º, nº 2 da mesma Lei, o Município tem competência legal para levar a cabo os procedimentos subsequentes à decisão administrativa de resolução do contrato. A saber, o Município pode determinar e executar o despejo administrativo, nos termos da lei.
II - Não sendo impugnada a decisão administrativa de resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, não existe litígio carente de solução judicial, dispondo o órgão administrativo de poder administrativo para ordenar e executar o despejo.
III – Sem necessidade de recorrer à via judicial para fazer valer a sua pretensão de despejo e de pagamento de rendas, encargos ou despesas, falta ao Município interesse em agir na instauração da ação administrativa.»
No mesmo sentido, também já nos pronunciamos nos Acórdãos deste TCAN, de 23/06/2022 e 15/07/2022, proferidos, respetivamente, nos processos n.ºs 2143/21.8BEPRT e 2386/18.7BEPRT, por nós relatados.
Em face das considerações que antecedem e da jurisprudência que tivemos o ensejo de citar são desnecessárias mais considerações para evidenciar que a razão não acompanha o Apelante.
Tendo o mesmo poderes de autotutela declarativa e executiva, para efeitos não só de resolver o contrato de arrendamento social, como para decidir e executar o despejo do arrendatário inadimplente, falta-lhe o pressuposto processual do interesse em agir para acionar os Tribunais em ordem à tutela da pretensão em discussão.
Termos em que improcedem todos os fundamentos de recurso aduzidos.
(…)»
Trata-se de questão já amadurecida, sem razão para inflectir.
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Acordam, pelo exposto, em conferência, os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.
Custas: pela recorrente.
Porto, 11 de Novembro de 2022.
Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre
Isabel Costa