Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00614/06.5BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/16/2015
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:RGEU;
PRINCIPIO DA PROPORCIONALIDADE.
Sumário:1 – A norma impositiva do afastamento das construções ínsita na 1.ª parte do corpo do artigo 58.º do RGEU destina-se a acautelar a salubridade dos edifícios, garantindo níveis mínimos de arejamento, iluminação natural e exposição solar. Estes objetivos são densificados e objetivados pelas normas seguintes do mesmo capítulo, designadamente os artigos 59.º e 62.º.
2 - A execução das construções com observância daqueles normativos garante aos utilizadores um padrão mínimo de qualidade ambiental e urbanística e aplica-se, após 1951, aos pedidos de licenciamento de toda e qualquer edificação, que passou a ter de observar o afastamento em relação à construção existente na proximidade antes do pedido de licença.
3 - O art.º 58.º do RGEU é uma norma relacional que se sobrepõe transversalmente aos planos, destinada a proteger a higiene e saúde das pessoas que utilizem os edifícios existentes e aqueles cuja licença é pedida, independentemente de preocupações quanto a conceder igual aproveitamento da faculdade de construir maior ou menor volume nos prédios contíguos - não se destina a proteger a propriedade, mas a impor-lhe condicionamentos.
4 – O Principio da proporcionalidade, enquanto norma estruturante do Estado de Direito, constitui um postulado de atuação a ser observado no exercício da atividade discricionária da Administração, na qual esta detenha liberdade para escolha de alternativas comportamentais, funcionando, assim, como limite interno dessa atividade, não relevando, em consequência, no domínio da atividade vinculada, consistente esta na simples subsunção de um dado concreto à previsão normativa dos comandos legais vigentes.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Município da FF...
Recorrido 1:MPAF...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao Recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
I Relatório
O Município da FF, no âmbito da Ação Administrativa Especial intentada contra si por MPAF, tendente, em síntese, a obter a “impugnação de ato administrativo de legalização de alterações ao projeto de licenciamento de obras, datado de 25-11-2005”, não se conformando com o acórdão proferido no TAF de Coimbra, em 3 de Julho de 2013, que veio a julgar a ação procedente, “anulando-se o despacho impugnado”, veio em 24 de Setembro de 2013, a recorrer jurisdicionalmente do mesmo (Cfr. Fls. 476 a 487 Procº físico).
Formula o aqui Recorrente/Município nas suas alegações de recurso, as seguintes conclusões (Cfr. fls. 485 a 487 Procº físico):

“I. O tema que se coloca à apreciação deste Tribunal tem gerado incerteza junto das autoridades competentes para decidir os licenciamentos. Seja qual for a solução interpretativa a dar ao art. 73º do RGEU, pode suceder que os atos de licenciamento venham a ser anulados.

II. Não há, na verdade, unanimidade nem sintonia quanto ao sentido interpretativo a dar aquela norma. Na mais alta instância da ordem judicial Administrativa existem correntes jurisprudenciais diametralmente opostas quanto ao verdadeiro alcance dos arts. 58º e 73º do RGEU.

III. Por um lado, invocará a recorrida a seu favor, à semelhança do que fez o Acórdão recorrido, o Ac. do Pleno do STA de 29/05/2007 (com 4 votos de vencido), bem o Acórdão do STA de 17/06/2003 (processo 01854/02 ou de 12/06/2007 (processo 0208/07). Registe-se, no entanto, que o Juiz Conselheiro Pais Borges, tendo votado no acórdão do Pleno ao lado da posição que saiu vencedora, veio no Acórdão de 24/09/2009 do processo 0707/09 a subscrever a orientação que se defende com o presente recurso, o que em bom rigor significa que, se fosse hoje, o resultado da decisão do Acórdão do Pleno de 29/05/2007 seria outro.

IV. No sentido aqui defendido pelo réu, vejam-se os Acórdãos do STA proferidos nos processos 006982, 006806, o voto de vencido do Acórdão do Pleno de 29/05/2007 ou o mais recente Acórdão de 24/09/2009 do processo 0707/09, tanto quanto se sabe o último decidido no domínio dos normativos que se apreciam. Será estendendo a jurisprudência destes últimos Acórdãos ao caso vertente que este douto Tribunal fará Justiça!

V. Nessa medida, deverá entender-se que na apreciação e aprovação dos projetos de arquitetura apresentados no âmbito de processos de licenciamento para construção ou reconstrução de edifícios não há que atender à posição relativa das construções vizinhas para aferir do cumprimento, por esse projeto, dos artigos 58, 73º e 75º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas;

VI. Com efeito, a finalidade de tais normas é a de assegurar condições de arejamento, luminosidade e exposição solar dos novos edifícios ou da reconstrução dos existentes e já não das construções confinantes.

VII. Porque assim é, não podia o apelante, no âmbito do processo de obras, ter recusado a aprovação do projeto de arquitetura apresentado pelo contrainteressado sob pretexto de ele incumprir com as citadas normas legais.

VIII. Logo, também não podia o Tribunal recorrido ter anulado o ato de 25/11/2005 fundamentando-o com a circunstância de não terem sido observados aqueles normativos em relação ao prédio da autora, com o que incorreu em erro de julgamento, violando as normas do RGEU supra mencionadas e, bem assim, a norma do art. 5º/2 do CPA.

IX. Com efeito, indeferir, nestas condições, o pedido de licenciamento do contrainteressado afrontaria o princípio da proporcionalidade (nº 2 do art. 5º do CPA), na medida em que estaria o recorrente a impor o recuo da alçada poente do prédio do contrainteressado para garantir à autora um benefício que não tinha antes do processo de licenciamento (i. é., o afastamento). O sacrifício seria desproporcional ao interesse a beneficiar. Com esta solução, só o contrainteressado suporta o encargo de, sozinho, cumprir a distância prevista no art. 73º, apenas porque tomou a iniciativa de reconstruir a sua habitação. O encargo imposto à A. é nulo, recaindo todo sobre o contrainteressado.

Termos em que, sempre com doutro suprimento de V. Exas., deve ser revogado o acórdão, assim se fazendo a costumada Justiça!”

O Recurso Jurisdicional veio a ser admitido por despacho de 7 de Outubro de 2013 (Cfr. Fls. 495 Procº físico).

A aqui Recorrida/MPF veio apresentar as suas contra-alegações de Recurso em 20 de Novembro de 2013, concluindo do seguinte modo (Cfr. fls. 499 a 518 Procº físico):

“1 - A tese do Recorrente é a seguinte: se alguém quiser fazer uma construção nova pode fazê-lo com total desprezo de quem já lá está (já edificou próximo), pois que os arts. 58.º, 73.º e 75.º do RGEU em momento algum se preocupam com as condições de arejamento, iluminação natural e exposição solar das habitações pré-existentes confinantes ou vizinhas. Assim, e neste enquadramento, o facto de a habitação existente da Recorrida, que já é pessoa de idade considerável e vizinha do Contrainteressado, ter ficado privada das sobreditas condições mínimas de iluminação e salubridade, é irrelevante, não tendo a Administração que cuidar desta matéria, pelo que o Tribunal a quo, ao ter decidido o contrário, incorreu em erro de julgamento.

2 - Pois bem, como se sabe, esta questão não é, de todo em todo, nova. Pelo contrário, e como o próprio Recorrente admite, ela foi uniformemente decidida pelo Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, que, em 29/05/2007 e em sede de oposição de julgados, a resolveu expressamente contra a posição interpretativa que agora, e dilatoriamente, se pretende fazer valer nesta sede.

3 - É que, como aquele Município tão bem sabe, apesar de a jurisprudência uniformizadora do Supremo não deter natureza vinculativa, e para que tudo tenha algum sentido ou utilidade, apenas em casos em que se apresentem e digladiem especiais ou ponderosas razões ou argumentos é que se pode justificar a introdução de desvios à interpretação perfilhada por aquela jurisprudência.

4 - Cenário que manifestamente se não verifica na situação vertente.

5 - Na verdade (descontada a referência aos dois arestos enunciados sem data e que remontam a 1964 e 1965…), o Recorrente estriba a sua argumentação na repetição literal quer da declaração de voto de vencido exarada no acórdão uniformizador, quer no aresto de 24/09/2009, que, como ressalta do mesmo, até apela única e simplesmente ao elemento gramatical.

6 - Acontece, porém, que o raciocínio discursivo neles adiantado assenta pura e simplesmente em argumentos que nada de inovador incorporam face ao uniformemente decidido, antes repetindo razões que entreteciam a corrente jurisprudencial adversa e que foi debatida e afastada neste mesmo aresto uniformizador - cfr. o que supra se consignou.

7 - Como é bom de ver, não se tendo alterado a lei (sendo que, quando o novo RGEU entrar em vigor, ele até é consonante, como se viu, com a jurisprudência uniformizadora), não se introduzindo qualquer facto ou argumento novos, não se tendo citado sequer doutrina, muito menos distinta ou contrária à exposta pelo aresto uniformizador, não tendo ocorrido nenhuma evolução doutrinal e jurisprudencial que desequilibre a solução jurídica alcançada, antes se tendo reiterado os mesmos argumentos de cariz essencialmente literal já debatidos, não deve a jurisprudência emanada pelo acórdão do Pleno de 29/05/2007 ser alterada ou desconsiderada, mantendo-se, por conseguinte, o Acórdão prolatado pelo digno Tribunal a quo que a aplicou.

8 - Acórdão este que, de resto, esse sim e repetindo-nos, se encontra em consonância quer com a jurisprudência uniformizadora que aderiu à interpretação que maioritariamente vinha sendo proferida, quer com a doutrina e praxis administrativa prolatadas ao longo do tempo - cfr., ilustrativamente, Acórdãos do STA de 07/06/1994 (proc. n.º 338361); 21/10/1999 (proc. n.º 37337); 17/06/2003 (proc. n.º 01854/02); de 03/11/2005 (proc. n.º 0939/03); de 12/06/2007 (proc. n.º 0208/07); de 21/06/2007 (proc. n.º 0126/07); de 28/11/2007 (proc. n.º 0663/07); André Folque, Direito da Urbanização e Edificação, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 292 e ss.; Recomendação do Provedor de Justiça n.º 130/A/95 - Proc. R. 1342/92 in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente n.º 8, 1997, pág. 213; e Recomendação n.º 3/A/2007 do Provedor de Justiça, proferida no processo R-2670/04 (A1) e parecer da CCDR-C n.º 261/04 de 13/12/2004.

9 - Devendo, portanto, ser negado provimento ao presente recurso - v., a propósito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2001, proferido no âmbito do processo n.º 376/09, citado que foi no corpo das presentes alegações.

Termos em que, deve o recurso interposto ser improvido, com todas as consequências legais.”

O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado em 18 de Dezembro de 2013, veio a emitir Parecer, em 15 de Janeiro de 2014, no qual, a final, se pronuncia no sentido de dever ser negado provimento ao Recurso, confirmando-se o aresto recorrido (Cfr. Fls. 532 a 543v Procº físico).
Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA, verificando, designadamente, o suscitado “erro de julgamento quanto à matéria de direito” e a invocada violação do princípio da proporcionalidade.

III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo, considerou a seguinte factualidade, entendendo-se a mesma como adequada e suficiente:
1. Em 23-10-2001, deu entrada na Câmara Municipal da FF, um pedido de licenciamento para “Alteração e Ampliação de Habitação” a que foi atribuído o n.º 1283/01, feito por FMSB, relativo a um prédio sito na Rua … , em B... (cfr. fls. 1 e 32 do P.A.);
2. De acordo com o doc. de fls. 16 do P.A. o terreno tem a área de 114,4 m2, a implantação é de 32,4 m2 e a construção é de 64,8 m2, sendo que é referido que “As alterações são a nível da Cave e r/c” (fls. 16 do P.A.);
3. Nos docs. de fls. 17 e 18 do P.A., designado “Estatísticas Liquidações”, consta que a obra se destina a habitação familiar tipo T2, num total de 2 pisos, sendo um acima da cota de soleira e outro abaixo da cota de soleira, que a área de construção para habitação é de 126 m2, que a área total habitável é de 74 m2 e que o volume total de construção é de 252 m2 (fls. 17 e 18 do P.A.);
4. Consta da “Memória descritiva”, nomeadamente, o seguinte: “(…) O edifício não oferecendo condições de habitabilidade e apresentando pavimentos, tetos, paredes interiores, instalações de águas, esgotos e eletricidade sem condições de recuperação, optou-se por proceder à demolição do telhado, de todo o interior do edifício e do alçados posterior.
Após as demolições proceder-se-á a ampliação do mesmo.
(…)
O edifício foi ampliado no alçado de tardoz com a demolição e construção de um novo pano exterior.
As paredes do alçado principal e do alçado lateral esquerdo manter-se-ão, recuando a do alçado lateral direito na zona a ampliar. (…)” (fls. 27 do P.A.);
5. Em 11-04-2002, foi aprovado, por despacho do Vice-Presidente da Câmara Municipal o projeto de arquitetura, embora condicionado à entrega de novas peças desenhadas, contemplando um aumento das dimensões dos vãos do quarto e da cozinha no alçado posterior de forma a garantir o cumprimento do art. 71.º do RGEU (fls. 33 a 35 do P.A.);
6. A aprovação a que se refere o ponto 5. foi comunicada ao Contrainteressado, através de ofício n.º 008099, de 26-04-2002 (fls. 35 do P.A.);
7. Em 07-06-2002, deu entrada na Câmara Municipal da FF um requerimento, a que foi atribuído o n.º 6507, apresentado por FMSB, no qual pedia a junção ao processo das “peças desenhadas (alçadas; planta e corte) de arquitetura em duplicado” “Para cumprimento do que lhe foi determinado através do ofício, de 26/04/2002 (n.º 008099).” (fls. 39 e 40 do P.A.);
8. Através do Ofício n.º 015221, de 23-07-2002, remetido mediante carta registada com A/R, recebida em 25-07-2002, foi comunicado ao Contrainteressado que “Relativamente ao processo supra referenciado e face aos elementos apresentados em 02.06.07 informo Vª Exª que se mantém o deferimento do projeto de arquitetura e que se aguarda a apresentação dos projetos de especialidade (…)” (fls. 42 e 43 do P.A.);
9. Em 02-12-2002, o ora Contrainteressado apresentou na Câmara Municipal da FF um requerimento, a que foi atribuído o n.º 12002, “para cumprimento do que lhe foi determinado através do ofício de 26-04-2002 (n.º 008099)”, através do qual pedia a junção ao processo dos seguintes elementos e informava que: “Projeto de Estabilidade Acústico, Térmico, Telecomunicações, Ficha Eletrotécnica, Águas e Gás foram entregues nas entidades respetivas” (fls. 138 e anteriores do P.A.);
10. Em 05-06-2003, foi aprovado pelo Presidente da Câmara Municipal o pedido de licenciamento do projeto de construção, nos seguintes termos: “Deferido nos termos da informação”, a qual, por sua vez, tem, nomeadamente, o seguinte teor: “O processo contém todos os projetos de especialidades e pareceres necessários das entidades exteriores.
Assim, o pedido está em condições de ser deferido e ser emitida a respetiva licença de obras para alteração e ampliação condicionada ao cumprimento dos pareceres emitidos pela EDP, ITG e empresa Águas da Figueira, S.A., assim como ao cumprimento da legislação aplicável aos recetáculos postais – D.R. 8/90 de 6/4 com as alterações introduzidas pelo D.R. 21/98 de 4/9.” (…)” (fls. 201 do P.A.);
11. Em 02-07-2003, mediante carta registada com A/R, através do ofício n.º 14935, de 01-07-2003, foi o ora Contrainteressado notificado da aprovação a que se refere o ponto anterior (fls. 204 e 205 do P.A.);
12. Em 04-09-2003, foi passado o “Alvará de Obras de Alteração” n.º 520/03, proc. n.º 1283/01, do qual consta, nomeadamente, o seguinte: “(…) As obras, aprovadas por despacho do presidente da câmara municipal, de 03.06.05, respeita o disposto no PU, bem como o alvará de loteamento (…) e apresentam, as seguintes características:
Tipo de obras a executar: Alteração e Ampliação de Habitação;
Área total de construção: 126 m2; Volume de construção: 253 m3; Área de implantação: ----; N.º de pisos 2, sendo 1 acima da cota de soleira e 1 abaixo da mesma cota; Cércea: 4; N.º de fogos: 1; Uso a que se destina a edificação: Habitação. (…)” (fls. 267 do P.A.);
13. Em 01-10-2003, deu entrada na Câmara Municipal da FF um requerimento da A., enviado por telecópia, do qual consta, designadamente, o seguinte: “(…) A minha habitação possui no seu lado nascente e há mais de 40 anos, três janelas (duas ao nível do rés do chão e uma ao nível do 1º andar) as quais se localizam a cerca de 85 cm do limite da propriedade e da confinância poente do prédio do referido FB, e que deitam diretamente para este.
Esta habitação foi objeto de um Licenciamento de Obras no vosso Processo n.º 12…/01, que tem em vista a demolição e ampliação do edifício.
Após a demolição do Edifício, teve início no dia 22 de Setembro a construção de um novo prédio.
Sucede que a Edificação em causa apresenta anomalias e a violação dos meus direitos de propriedade, porquanto:
♦ Verifica-se in loco que a estrutura de betão armado indicia o não cumprimento do Projeto, nomeadamente os dois últimos pilares do tardoz do alçado lateral direito que não foram colocados no local devido;
♦ O Projeto de Obras não respeita as janelas do meu prédio, nomeadamente não tem em atenção o que a este respeito estipula o RGEU e a Lei Civil, sendo que não consta do mesmo – como devia – a planta lateral do meu prédio, tão-somente a sua frente.
Assim sendo requeiro a V. Excia se digne urgentemente:
Mandar proceder à fiscalização da obra;
Mandar constatar as janelas existentes e as quais o Engenheiro Camarário na apreciação do projeto não teve na devida consideração; (…)” (fls. 273 e 274 do P.A.);
14. Em 30-10-2003, foi elaborada uma “Participação” por CMGA, Fiscal Municipal da Câmara Municipal da FF, servindo como testemunha CHFP, também Fiscal Municipal da mesma Câmara, por terem verificado que o ora Contrainteressado teria infringido as disposições da alínea b) ponto 1 do art. 98.º do Dec.-Lei 555/99, com a redação do Dec.-Lei 177/01, já que “pelas 10.30h do dia 29.10.2003 que o Munícipe acima mencionado, está a levar a efeito a alteração e ampliação de uma habitação sita na Rua …, B..., a que se refere o processo n.º 1283/01, em desacordo com as condições de licenciamento, pois demoliu todas as paredes existentes, construindo outras novas, não cumprindo com a tela comparativa do referido processo.” (fls. 276 do P.A.);
15. De acordo com a informação da Câmara Municipal da FF, de fls. 281 do P.A., “1 - Face à informação dos serviços de fiscalização e auto de notícia de 30/10/03, constata-se que estão a ser realizadas obras em desacordo com o projeto aprovado, infringindo assim o disposto na alínea c) do n.º 2 do art. 4.º do Dec.-Lei n.º 555/99 de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec-Lei n.º 177/01 de 4 de Junho.
2 – Assim, propõe-se:
· Efetuar o embargo da obra, com auto de medição, ao abrigo do disposto no art.º 102.º do mesmo diploma legal;
· Notificar o requerente para no prazo de 30 dias, apresentar projeto para eventual legalização das obras realizadas em desconformidade com o projeto aprovado;
· Informar a munícipe com req.to na folha 213, deste procedimento.”;
16. Tal informação mereceu o seguinte despacho do Chefe de Divisão com competências subdelegadas, com data de 13-11-2003: “Concordo com a informação técnica.
Propõe-se proceder como se informa no ponto 2
1- Embargar a obra
2 – Notificar o requerente
3 – Informar a munícipe do procedimento
À consideração superior” (fls. 281 e 281 v.º);
17. De acordo com doc. de fls. 287 do P.A., o Presidente da Câmara, em 23-12-2003, decidiu embargar a obra;
18. Através do Ofício n.º 77, de 05 de Janeiro de 2004, a A. foi informada da decisão de embargar a obra, tomada pelo Presidente da Câmara Municipal, bem como de que o Contrainteressado tinha o prazo de 30 dias para apresentar projeto de eventual legalização das obras levadas a efeito (fls. 289 do P.A.);
19. No dia 4 de Fevereiro de 2004, foi elaborado o “Auto de Embargo de Obras”, tendo do mesmo sido dado conhecimento ao pedreiro que estava na obra, de nome JACG, dele constando uma descrição do estado atual dos trabalhos (fls. 292 do P.A.);
20. Em 14-01-2004, deu entrada na Câmara Municipal da FF, um requerimento da A. no qual alertava a autarquia para o facto do ora Contrainteressado, ao invés do que estava no projeto, que previa a construção de um telheiro, estar a construir uma varanda, o que levaria “à violação dos meus direitos, pelas vistas sobre o meu prédio, as quais nunca existiram.” (fls. 295 do P.A.);
21. O Diretor de departamento mandou informar a Requerente de que “a obra objeto de reclamação está embargada, e que o seu proprietário foi notificado para apresentar projeto de eventual legalização das obras levadas a efeito em desacordo com o projeto aprovado.” Mandou informar, ainda, que “não se deteta nas obras realizadas qualquer violação de direito público, sendo as questões de direito privado tratadas nos respetivos tribunais.” (fls. 305 do P.A.);
22. Em 18-03-2004, deu entrada na Câmara Municipal da FF um requerimento da A., do qual consta, designadamente, o seguinte: “- Em carta datada de 13 de Janeiro próximo passado deu conhecimento a Vº Excia que o titular do Processo – FB – se preparava para construir uma varanda do lado sul do prédio em edificação, acabando com o telhado do telheiro previsto, e substituindo uma janela por uma porta;
- Sucede que o mesmo além de fazer a varanda, não fez nenhuma das janelas previstas na planta, transformando-as a seu belo prazer em duas portas;
- De igual modo o juro que separa o meu prédio, a poente, encontra-se em desrespeito do projeto aprovado;
Daqui resulta desde logo que desrespeitou o embargo decretado, sendo QUE A OBRA NUNCA PAROU DESDE O MOMENTO DO EMBARGO E ATÉ HOJE, donde exijo que procedam em conformidade legal, participando os factos ao Procurador-Adjunto no Tribunal da FF, sendo que se o não fizerem significará tal que eu terei de tomar as medidas adequadas junto das Entidades que tutelam o Poder Local;
- Em todo o caso, solicito averiguem esta factualidade supra referida, e que me informem das providências levadas a efeito. “ (fls. 307 do P.A.);
23. Através de Ofício n.º 9643, de 7 de Abril de 2004, da CMFF, notificado à A. mediante carta registada com A/R, assinado em 08-04-2004, foi-lhe dado conhecimento de que “a obra objeto de reclamação está embargada, e que o seu proprietário foi notificado para apresentar o projeto para eventual legalização das obras levadas a efeito em desacordo com o projeto aprovado. Informo, ainda, que não se deteta nas obras realizadas qualquer violação de direito público, sendo as questões de direito privado tratadas nos respetivos tribunais.” (fls. 308 do P.A.);
24. No dia 15-04-2004, deu entrada na CMFF um requerimento, a que foi atribuído o n.º 3472, do ora Contrainteressado, pedindo a junção ao processo do “projeto de alterações” (fls. 322 do P.A.);
25. De acordo com o documento designado “Alteração ao Projeto Licenciado de Alteração/Ampliação de Habitação de FMMSB” e da respetiva “Memória Descritiva”, entregue com o requerimento referido em 24. supra, “As alterações que agora se propõe resultaram fundamentalmente de, ao demolirem parte das paredes exteriores e a totalidade do interior, verificou-se que as que inicialmente eram para manter, não apresentavam condições de estabilidade, pondo em risco um prédio vizinho e a própria estrada.
Assim, procedeu-se à demolição de todas as paredes conforme descrito em livro de obra e executou-se de imediato um muro de suporte, evitando-se assim aluimentos e/ou assentamentos indesejáveis.
Por outro lado alterou-se a compartimentação interior, tendo em vista um melhor aproveitamento do espaço coberto, sendo que a cobertura do alçado posterior foi transformada em varanda.
Assim a área de implantação do edifício manteve-se a mesma e a compartimentação foi reprogramada, passando-se a dispor da seguinte disposição:
Cave – Cozinha, Sala de jantar e de estar e W.C.
R/Chão – 2 Quartos, escritório e W.C.
Escadas de acesso da cave para o R/Chão.
Manteve-se a traça e cércea do alçado principal, apresentando nos alçados laterais o elemento varanda. No alçado posterior a cobertura do alpendre foi substituída por uma varanda, com a abertura de duas portas para a mesma.
Todos os restantes elementos construtivos do projeto inicial bem como os acabamentos se mantiveram conforme o projeto licenciado.
Todas as alterações ao projeto licenciado obedeceram a todas a regulamentação em vigor.” (fls. 319 do P.A.);
26. Na sequência do requerimento a que se referem os pontos 24. e 25. supra, foi elaborada informação, em 07-05-2004, pela CMFF, aprovada superiormente em 11-05-2004, nomeadamente, com o seguinte teor: “(…) 2 – O projeto de arquitetura apresentado, sob o req.to n.º 3472 de 15/04/04, encontra-se incompleto:
· O termo de responsabilidade do autor não faz referência ao cumprimento do Plano de Urbanização – PU;
· Faltam cortes e plantas descritivas com a indicação das áreas dos compartimentos de acordo com o art.º 66.º do RGEU;
· Nas peças desenhadas comparativas, as paredes exteriores e fachadas devem ser representadas com a cor azul pois são para legalizar.
3 – O projeto carece ainda de retificação de forma a garantir um afastamento mínimo de 3 metros dos pilares da varanda à extrema posterior, cumprindo-se os art.ºs 73.º e 75.º do RGEU.
Os topos da varanda devem ter uma parede resguardo com 1.80 metros de altura, cumprindo os art.ºs 1360.º e ss. do Código Civil. (…)” (fls. 324 do P.A.);
27. Esta informação foi notificada ao ora Contrainteressado, através do Ofício n.º 14204, de 19-05-2004 (fls. 325 do P.A.);
28. Em 16-06-2004, deu entrada na CMFF um requerimento da A. no qual esta pedia que lhe fosse dado conhecimento “das demandas desencadeadas por este (Contrainteressado), nomeadamente no que respeita à legalização das obras levadas a efeito em desacordo com o projeto aprovado.
Mais requer se digne comunicar-lhe da situação da varanda do lado sul do prédio em edificação por aquele, nomeadamente quanto à eliminação do telheiro previsto, e substituição de uma janela por uma porta.
Finalmente solicito me informe se mandou dar conhecimento ao Procurador-Adjunto no Tribunal da FF da desobediência ao embargo decretado.” (fls. 338 do P.A.);
29. Em 11-06-2004, o ora Contrainteressado apresentou à CMFF novo Requerimento, a que foi atribuído o n.º 5510, apresentando “Projeto de Alterações”, o qual mereceu a seguinte informação da Câmara de 29-10-04, aprovada superiormente no mesmo dia: “Face à situação do processo propõe-se:
1 – Notificar o requerente para, no prazo de 45 dias, apresentar projeto de alterações (legalização) devidamente instruído porquanto o apresentado apresenta deficiências nas peças desenhadas, nomeadamente: erros de representação e cotagem, bem como falta de cortes. Deverá, ainda, esclarecer a nova delimitação do prédio;
2 – Solicitar aos serviços de fiscalização que se desloquem ao local, a fim de informar se o embargo está ou não a ser respeitado, atuando em conformidade.” (fls. 326 a 336 e 340 do P.A.);
30. Através de Ofício n.º 032841, de 10-12-2004, a CMFF informou, mediante carta registada com A/R, assinado em 13-12-2004, o ora Contrainteressado do teor da informação a que se refere o ponto 29. supra (fls. 341 do P.A.);
31. De acordo com a informação dada pelos fiscais da CMFF, C... e LP, com data de 25-01-2005, em cumprimento do solicitado em 29-20-04, “A obra encontra-se parada e de acordo com o auto de medição expresso no Embargo de Obras” (fls. 343 do P.A.);
32. Através do ofício n.º 004011, de 15-02-2005, remetido mediante carta registada com A/R, assinado em 16-02-2005, a CMFF informou a A. de que “O projeto de alterações (legalização) encontra-se em fase de apreciação;
A obra encontra-se parada e de acordo com o auto de medição expresso no Embargo de Obras;
Não se deteta nas obras qualquer violação de direito público, sendo as questões de direito privado tratadas nos respetivos tribunais.” (fls. 345 e 346 do P.A.);
33. Em 08-03-2005, deu entrada na CMFF um novo requerimento da A. essencialmente com o mesmo teor da presente p.i. (fls. 348 a 355 do P.A.);
34. Em 16-03-2005, o ora Contrainteressado apresentou novo requerimento, a que foi atribuído o n.º 2496, entregando projeto de alterações (fls. 356 a 373 do P.A.);
35. Em resposta a tal requerimento, foi o Contrainteressado notificado pela CMFF, mediante carta registada com A/R, assinado em 30-05-2005, de que dispunha do prazo de 15 dias para apresentar os seguintes elementos: “. Peças desenhadas comparativas com a pretensão representada em termos de cores convencionais. A cor preta, a parte existente/licenciada; a cor vermelha a parte nova a construir; a cor amarela, a parte a demolir; a cor azul, a parte a legalizar;
. Termo de responsabilidade do autor do projeto de arquitetura corretamente redigido, no que diz respeito à data e conforme Anexo I da Portaria n.º 1110/2001 de 19/09;
. Aditamento à memória descritiva esclarecendo devidamente a nova delimitação do prédio e a construção do muro divisório da propriedade;
. Planta de implantação às escalas de 1/100 e 1/200 com a delimitação das estremas do prédio a carmim e indicação em legenda da sua área;
. Aditamento às peças desenhadas de forma a cumprir com o art.º 66.º do RGEU.” (fls. 377 e 378 do P.A.);
36. Em 25-07-2005, o ora Contrainteressado apresentou novo requerimento, a que foi atribuído o n.º 7399, com Projeto de Alterações (fls. 379 a 390 do P.A.);
37. Em 02-08-2005, é elaborada informação pela CMFF, a qual mereceu a aprovação do Presidente, em 25-11-2005, em que se propõe, nomeadamente, o seguinte: “2- Quanto ao aditamento apresentado sob o req.to n.º 7399 de 25-07-05, corrige certas deficiências do projeto de arquitetura.
3- Considerando a versão final do projeto de arquitetura de alterações (legalização) – fls. 300, 320, 321 e 322 (peças desenhadas), verifica-se o cumprimento dos parâmetros urbanísticos e regulamentares aplicáveis. A pretensão garante também um enquadramento aceitável no local.
4- Face ao exposto, o projeto de arquitetura de alterações (legalização) reúne condições para merecer aprovação. (…)” (fls. 392 do P.A.);
38. Através de Ofício n.º 029716, de 30-11-2005, enviado mediante carta registada com A/R, assinado em 02-12-2005, foi o mandatário da A. notificado do seguinte: “Relativamente ao assunto em epígrafe e em conformidade com o despacho do Presidente da Câmara Municipal de 2005/11/25, informo V. Ex.ª na qualidade de Mandatário Judicial de MPAF que o requerente construiu o seu prédio com uma parede cega, não tendo necessidade de cumprir com o art.º 58.º do RGEU – Regulamento Geral de Edificações Urbanas, tendo apenas que cumprir com o plano em vigor.” (fls. 393 e 394 do P.A.);
39. A mesma informação a que se refere o ponto 38. supra foi notificada à A., através de Ofício n.º 029717, de 30-11-2005, enviado mediante carta registada com A/R, assinado em 02-12-2005 (fls. 395 e 396 do P.A.);
40. Através de Ofício n.º 029718, de 30-11-2005, enviado mediante carta registada com A/R, assinado em 02-12-2005, foi o ora Contrainteressado notificado, entre outras situações, de que “por despacho do Presidente da Câmara Municipal, datado de 2005/12/10, foi deferido o projeto de arquitetura.” (fls. 397 e 398 do P.A.);
41. Em 03-03-2006, deu entrada na CMFF um requerimento da A., a que foi atribuído o n.º 2078, através do qual vem pedir a certificação, a existir, do ato final de legalização das obras, bem como do “seu conteúdo, autoria e data, incluindo-se aqui também o conteúdo, autoria e data de todas as informações ou pareceres que sustentaram esse ato de legalização e ou as plantas (a amarelo, vermelho e azul) correspondentes à versão da legalização e licenciamento autorizado.” (fls. 531 e 532 do P.A.);
42. Através de carta registada com A/R, assinado em 18-04-2006, foi o Mandatário da A. notificado de que “se encontra a pagamento as cópias autenticadas com valor de certidão, podendo para o efeito proceder ao levantamento das mesmas mediante o pagamento de 8,80€ (oito euros e oitenta cêntimos), no Departamento de Urbanismo desta Câmara Municipal” (fls. 539 e 540 do P.A.);
43. Através de carta registada com A/R, assinada em 17-04-2006, foi o ora Contrainteressado notificado pela CMFF do seguinte: “ASSUNTO: LICENCIAMENTO DE OBRAS PARTICULARES
Comunicação da resolução final – Proc. n.º 1283/01
Nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 71.º, 76.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 177/01, de 4 de Junho, NOTIFICO V. Ex.ª de que por despacho proferido pelo Presidente da Câmara Municipal em 2006.04.06, foi/foram aprovado(s) o(s) projeto(s) que constitui/constituem o processo em epígrafe e relativo(s) ao projeto que apresentou para a LEGALIZAÇÃO de ALTERAÇÃO À AMPLIAÇÃO DE HABITAÇÃO, sita na R… – B.... (…)” (fls. 545 e 546 do P.A.);
44. De acordo com o documento de fls. 563 do P.A., constituído pela “LICENÇA PARA OBRAS”, o Alvará de Licença (inicial) n.º 520/03, emitido em 4 de Setembro de 2003, com validade até 4 de Setembro de 2004, teve o prazo prorrogado com o n.º 394 emitido em 03 de Maio de 2006, válido até 03 de Dezembro de 2006.
45. A presente ação deu entrada no Tribunal no dia 20-07-2006 (fls. 1 dos Autos).”

IV – Do Direito
Em síntese, imputa o Município da FF, ao acórdão recorrido, predominantemente erro de julgamento de direito, sendo que a Recorrida se pronuncia no sentido da improcedência do recurso jurisdicional.

Refira-se desde já que a argumentação e fundamentação aduzida no acórdão recorrido se mostra lapidar, tanto mais que assenta predominantemente no entendimento constante do Acórdão do Pleno do Colendo STA, de 29-05-2007, no Processo n.º 46.946, em cujo sumário se refere que “a norma impositiva do afastamento das construções ínsita na 1.ª parte do corpo do artigo 58.º do RGEU destina-se a acautelar a salubridade dos edifícios, garantindo níveis mínimos de arejamento, iluminação natural e exposição solar. Estes objetivos são densificados e objetivados pelas normas seguintes do mesmo capítulo, designadamente os artigos 59.º e 62.º.
A execução das construções com observância daqueles normativos garante aos utilizadores um padrão mínimo de qualidade ambiental e urbanística e aplica-se, após 1951, aos pedidos de licenciamento de toda e qualquer edificação, que passou a ter de observar o afastamento em relação à construção existente na proximidade antes do pedido de licença.
O art.º 58.º do RGEU é uma norma relacional que se sobrepõe transversalmente aos planos, destinada a proteger a higiene e saúde das pessoas que utilizem os edifícios existentes e aqueles cuja licença é pedida, independentemente de preocupações quanto a conceder igual aproveitamento da faculdade de construir maior ou menor volume nos prédios contíguos - não se destina a proteger a propriedade, mas a impor-lhe condicionamentos.”

Trata-se de um entendimento constante de um aresto do Pleno da Secção do CA do Colendo STA, sendo que se não vislumbram razões que justifiquem divergir do sentido do mesmo.

O entendimento aduzido pelo Recorrente/Município assenta, aliás, na linha de entendimento rejeitada expressamente pelo identificado Acórdão do Pleno do Colendo STA.

No que concerne já à invocada violação do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 5.º, n.º 2, do CPA, tal como sublinhado pelo Ministério Público, importa recordar que compete à Administração a obrigação de adequar os seus atos aos fins concretos que se visam atingir, ajustando ao necessário e razoável as limitações impostas aos direitos e interesses de outras entidades.

O referido principio tem subjacente a ideia de limitação do excesso, de forma a que o exercício dos poderes não ultrapasse o indispensável à realização dos objetivos públicos.

As decisões da Administração que interfiram com aqueles direitos dos particulares devem ser adequadas e proporcionadas aos objetivos a realizar, de harmonia com o consagrado nos artigos 266.º, n.ºs 1 e 2, da CRP, 4.º e 5.º do CPA.

O princípio da proporcionalidade assenta em três vertentes essenciais, a saber:
(i) a adequação, que estabelece a conexão entre os meios e as medidas e os fins e os objetivos;
(ii) a necessidade, que se traduz na opção pela ação menos gravosa para os interesses dos particulares, ou seja, a menos lesiva dos seus direitos e interesses; e
(iii) o equilíbrio, ou proporcionalidade em sentido estrito, que estabelece a relação entre a ação e o resultado.

O referido princípio, enquanto norma estruturante do Estado de Direito, constitui um postulado de atuação a ser observado no exercício da atividade discricionária da Administração, na qual esta detenha liberdade para escolha de alternativas comportamentais, funcionando, assim, como limite interno dessa atividade, não relevando, em consequência, no domínio da atividade vinculada, consistente esta na simples subsunção de um dado concreto à previsão normativa dos comandos legais vigentes (cfr. Acórdão do STA, de 17.12.99, no Recurso n.º 40313).

No caso em apreciação, verificando-se que a decisão tomada pelo Recorrente, se revelou desconforme com a vinculativa legalidade urbanística, sempre se mostraria irrelevante ponderar a invocada violação do referido principio, que apenas relevaria se estivéssemos em presença de atuação discricionária da administração.

Em qualquer caso, e sem prejuízo de tudo quanto precedentemente ficou dito de forma mais linear, importa aprofundar a análise feita, por forma a que não possam restar duvidas face ao entendimento preconizado, não perdendo de vista o Acórdão do Colendo STA a que se fez referência, com base no qual, e bem, se decidiu em 1ª Instância.

Efetivamente, o art. 58.º do RGEU dispõe que “A construção ou reconstrução de qualquer edifício deve executar-se por forma que fiquem assegurados o arejamento, iluminação natural a exposição prolongada à ação direta dos raios solares, e bem assim o seu abastecimento de água potável a evacuação inofensiva dos esgotos § único. As câmaras municipais poderão condicionar a licença para se executarem obras importantes em edificações existentes à execução simultânea dos trabalhos acessórios indispensáveis para lhes assegurar as condições mínimas de salubridade prescritas neste regulamento”.

Já o art. 73.º RGEU, concretizando o disposto no 58.º, refere que: “As janelas dos compartimentos das habitações deverão ser sempre dispostas de forma que o seu afastamento de qualquer muro ou fachada fronteiros, medido perpendicularmente ao plano da janela e atendendo ao disposto no artigo 75.º, não seja inferior a metade da altura desse muro ou fachada acima do nível do pavimento do comportamento, com o mínimo de 3 metros. Além disso não deverá haver a um e outro lado do eixo vertical da janela qualquer obstáculo à iluminação a distância inferior a 2 metros, devendo garantir-se, em toda esta largura, o afastamento mínimo de 3 metros acima fixado.
O art. 75.º do mesmo diploma, refere que “Sempre que nas fachadas sobre logradouros ou pátios haja varandas, alpendres ou quaisquer outras construções, salientes das paredes, suscetíveis de prejudicar as condições de iluminação ou ventilação, as distâncias ou dimensões mínimas fixadas no artigo 73.º serão contadas a partir dos limites extremos dessas construções.”.

Como se transcreve no Acórdão recorrido, afirma André Folque, in Curso de Direito da Urbanização e da Edificação, Coimbra Editora, pág. 292 e ss., que “os proprietários devem cumprir cumulativamente umas e outras condições, mas onde não se mostrar possível a compatibilidade, são as normas do RGEU a prevalecer, dada a sua natureza pública – são normas da chamada ordem pública urbanística.
(…)
Depois, importa saber se as normas do RGEU sobre afastamentos e altura das edificações urbanas podem ser objeto de renúncia por acordo entre os proprietários vizinhos.
Certamente que não. Estas normas constituem na esfera jurídica dos particulares direitos indisponíveis e, por outro lado, ultrapassam os titulares desses mesmos direitos num dado momento.”

Já no capítulo denominado “Imperatividade das normas do RGEU sobre a edificação em conjunto”, refere o aludido Autor: “E poderão ser afastadas ou derrogadas por postura municipal, por instrumento de gestão territorial ou por licença de operação de loteamento?
Trata-se de normas imperativas e não supletivas. Trata-se de normas de natureza legislativa, pois o RGEU foi aprovado por decreto-lei.”

No caso controvertido, e dos elementos disponíveis, mormente do que resulta dos factos provados, evidencia-se que o Município não teve em consideração no licenciamento as normas dos artigos 58.º, 73.º e 75.º do RGEU, o que se mostra irregular, tal como decidido pelo tribunal a quo.

Como resulta do já reiteradamente referido Acórdão do Colendo STA, do Pleno, de 29-05-2007, rec. n.º 46.946:
“I - A norma impositiva do afastamento das construções ínsita na 1.ª parte do corpo do artigo 58.º do RGEU destina-se a acautelar a salubridade dos edifícios, garantindo níveis mínimos de arejamento, iluminação natural e exposição solar. Estes objetivos são densificados e objetivados pelas normas seguintes do mesmo capítulo, designadamente os artigos 59.º e 62.º.
II – A execução das construções com observância daqueles normativos garante aos utilizadores um padrão mínimo de qualidade ambiental e urbanística e aplica-se, após 1951, aos pedidos de licenciamento de toda e qualquer edificação, que passou a ter de observar o afastamento em relação à construção existente na proximidade antes do pedido de licença.
III – O art.º 58.º do RGEU é uma norma relacional que se sobrepõe transversalmente aos planos, destinada a proteger a higiene e saúde das pessoas que utilizem os edifícios existentes e aqueles cuja licença é pedida, independentemente de preocupações quanto a conceder igual aproveitamento da faculdade de construir maior ou menor volume nos prédios contíguos - não se destina a proteger a propriedade, mas a impor-lhe condicionamentos.”

Mais se refere no identificado Acórdão do STA queO art.º 58.º está inserido num regime jurídico que não podia de modo algum, atendendo a todos os valores e finalidades que visava, bem como à filosofia de ampla harmonização de interesses evidenciada no preâmbulo do diploma, ser interpretado no sentido de se aplicar exclusivamente às novas construções e já não às antigas.
A defesa de um tal entendimento, ainda que potencialmente suportada por argumentos literais retirados de modo isolado do contexto global do RGEU, contraria frontalmente o espírito não apenas da norma em si (art. 58º), mas também de todo o diploma, bem como, numa perspetiva mais geral, toda a orientação para que propende a própria atividade administrativa da polícia edilícia, assim como estaria em frontal oposição com a garantia de tratamento igual dos cidadãos que é exigência que se prima sobre a própria da lei.
Efetivamente, esta não podia permitir uma regulação em que ao mesmo tempo se protegesse a saúde e a vida dos utilizadores das novas edificações com sacrifício de idênticos bens pessoais dos utilizadores de edificações anteriores, ou sem o mínimo de proteção de tão relevantes bens jurídicos deste outro grupo de cidadãos.
Na perspetiva defendida pela corrente que faz oposição a este entendimento a igualdade e a justiça não seriam asseguradas porque não haveria razões para impor a quem vai construir que respeite um afastamento que o primeiro construtor já invadiu.
Esta argumentação, porém, não colhe pela razão essencial de os bens protegidos pela norma edilícia que impõe o afastamento estarem, numa escala hierárquica, muito acima da conceção “beati possidentes” que preside à preocupação manifestada por este modo de pensar. Efetivamente, as normas sobre afastamento das edificações visam proteger bens essenciais da pessoa humana e não a propriedade.
Uma segunda razão pela qual não é de aceitar aquele modo de ver as coisas é que, mesmo na visão meramente defensora da propriedade ele seria ainda mais injusto do que o oposto. Se se importasse com a justiça relativa e o tratamento igual então teria de estabelecer um mínimo de igualdade a favor de quem já tinha construído antes, consistindo em a nova construção ter de observar para igual altura de edificação igual afastamento da construção existente em relação ao limite dos terrenos de implantação das edificações.
(…)
Há pois que concluir que os condicionamentos à edificação previstos no art. 58.º do R.G.E.U. visam satisfazer os interesses públicos da higiene e salubridade, o que impõe a sua qualificação como restrições de utilidade pública ao direito de propriedade (…) bem como formas de concretização do direito fundamental dos cidadãos a usufruir de um ambiente salubre e sadio.
(…)
Daí que importe também assinalar que a norma se encontra inserida num capítulo com a epígrafe «Da edificação em conjunto» que, ao contrário do que se entendeu no acórdão fundamento, revela que se teve em vista regulamentar a edificação atendendo ao enquadramento circundante, à integração da construção no conjunto edificado em que se vai inserir o que é confirmado por outras normas desse mesmo capítulo que se reportam aos requisitos de localização e dimensões dos prédios a construir derivadas das edificações fronteiras e de arruamentos em que existam prédios já construídos (arts. 59.º, 60.º, 61.º e 62.º).(…)”

No mesmo sentido apontou o Acórdão do Colendo STA, de 12-06-2007, proc. n.º 0208/07, no qual se refere que “I - A norma impositiva de afastamento das construções ínsita na 1ª parte do corpo do artigo 58º do RGEU é uma norma relacional que se destina a proteger a salubridade dos edifícios, garantindo níveis mínimos de arejamento, iluminação natural e exposição solar, quer daqueles cuja licença é pedida, quer dos já existentes.
II - O art. 60º do RGEU prevê apenas a hipótese de haver vãos de habitação nas duas fachadas contrapostas e não numa só dessas fachadas.
III - O art.73º dá concretização à regra geral do art. 58º do RGEU e o afastamento mínimo de 3 m nele previsto assegura níveis de arejamento, iluminação natural e exposição solar que o legislador considera satisfatórios.”

Ainda no mesmo sentido se havia já pronunciado o Acórdão do Colendo STA, de 17-06-2003, no proc. n.º 01854/02, no qual se refere que “I - O art.º 73º do RGEU e o artº 1360º do CC têm campos de aplicação distintos.
II - O artº 73º situa-se no domínio das restrições impostas pelo direito público ao direito de propriedade, com base no interesse público da salubridade e estética das edificações, a par das restrições impostas pelo direito privado, designadamente o artº 1360º do CC, com base em interesses meramente particulares, dos proprietários dos prédios vizinhos.
III - A preocupação civilista é defender os interesses meramente privados dos proprietários, as relações de vizinhança, evitando a devassa do prédio vizinho. A preocupação do RGEU é evitar que se erijam edificações em terrenos acanhados e de conformação deficiente, é a ideia de que cada edificação deve ser encarada como mera parte de um todo, em que se terá de integrar harmoniosamente, valorizando-o tanto quanto possível, é evitar que os edifícios se aproximem tanto dos limites dos respetivos terrenos, que a qualidade urbana seja prejudicada no seu conjunto, é assegurar uma certa qualidade de vida às populações, é, afinal, o interesse público em garantir um ambiente urbano minimamente sadio e esteticamente equilibrado.
IV - O artº 73º do RGEU é uma norma relacional, ou seja, atende à posição relativa das construções confinantes, exigindo a observância de determinadas distâncias mínimas entre elas, por razões que se prendem com a necessidade de assegurar as condições a que se alude no artº 58º do RGEU.
V - Assim, tais normativos aplicam-se quer às construções novas entre si, quer às construções novas relativamente às já existentes, sendo irrelevante, dado o interesse público.”

Aqui chegados, não se mostra pois possível deixar de concluir que, quer o artigo 58.º do RGEU, quer os artigos 73.º e 75.º do mesmo diploma, que o concretizam, não será apenas aplicável à construção objeto de novel licenciamento, importando verificar da sua aplicabilidade e conformidade face às edificações preteritamente construídas e que lhe estão adjacentes.

Assim, mostrando-se provado que na apreciação do processo de legalização/licenciamento da obra controvertida levada a cabo pelo Município, não foi considerada e ponderada a construção preexistente e adjacente, na perspetiva, designadamente, dos artigos 58.º, 73.º e 75.º do RGEU, não merece censura a decisão de 1ª Instância ao anular o ato objeto de impugnação, consubstanciado na legalização de alterações ao identificado processo de licenciamento, de 25 de Novembro de 2005.

* * *
Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao Recurso Jurisdicional apresentado, confirmando-se o Acórdão Recorrido.
Custas pelas Recorrentes.

Porto, 16 de Janeiro de 2015

Ass.: Frederico de Frias Macedo Branco
Ass.: Rogério Martins (Em substituição)
Ass.: Maria do Céu Neves