Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01842/06.9BEPRT-A
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/15/2019
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO; HABILITAÇÃO PARCIAL; TRANSMISSÃO DE DIREITO REAL; TRANSMISSÃO DE DIREITO OBRIGACIONAL; DIREITO DE PROPRIEDADE; INDEMNIZAÇÃO POR RECONSTITUIÇÃO NATURAL; PRINCÍPIO DA TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA;
ARTIGOS 263.º, N.º 2, E 356.º N.º 1, ALÍNEA A), AMBOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; ARTIGOS 2º E 7° DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
Sumário:
1. O pedido de que a Entidade Demandada seja “condenada a retirar, a expensas suas, a tubagem e caixas de visita que colocou e mandou colocar na parcela 11, por forma a que a propriedade dos Autores seja colocada, o mais possível, no estado em que se encontrava antes dos factos supra descritos…” diz respeito a uma obrigação de indemnização, por reconstituição natural, e não a um direito real, o direito de propriedade.
2. A transmissão de propriedade não transmite direitos indemnizatórios conexos com essa mesma propriedade, pelo que nada dizendo o contrato de compra e venda celebrado entre as partes sobre essa transmissão, não poderemos considerar que o correu a transmissão de direitos a indemnização.
3. Não se verificando, de um ponto de vista substantivo, a transmissão de qualquer direito de indemnização, improcede o pedido de habilitação de cessionário, baseado no direito de propriedade transmitido ao requerente.
4. Em termos gerais, não existem obstáculos na lei para a habilitação parcial de cessionário, face ao disposto nos artigos 263° e 356° do Código de Processo Civil.
5. A inexistência de obstáculos à habilitação de cessionários, nas disposições combinadas dos artigos 263.º, n.º 2, e 356.º n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Civil, não significa que esta possa ser admitida, em particular se não houve transmissão da posição contratual.
6. A adequação do processo à realidade material não impõe, antes veda, admitir a habilitação de cessionário num caso em que tenha havido cessão de um direito real, o direito de propriedade, mas não do direito obrigacional que está em litígio.
7. O princípio da tutela jurisdicional efectiva, previsto nos artigos 2º e 7° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, não impõe a habilitação de cessionário num caso em que não houve cessão do direito de indemnização por reconstituição natural. *
*Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:PM, L.da
Recorrido 1:MCGS
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Outros despachos
Decisão:
Negar provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO
Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
PM, L.da veio interpor o presente recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto de 05.03.2018, que julgou improcedente o incidente de habilitação de adquirente deduzido pela Recorrente para os termos do processo nº 1842/06.9 PRT a que os presentes autos se encontram apensos, em que são Autores MCGSB, VMSB e VLSB, JJFB e mulher, MCASB e Réu Águas e Parque Biológico de Gaia, EEM, pedindo que se declarasse habilitada, como adquirente, ao lado dos Autores.
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Invocou para tanto, em síntese, que: da letra e do espírito do vertido nos artigos 263° e 356° ambos do Código de Processo Civil não resulta que a habilitação parcial de adquirente esteja excluída do instituto da habilitação, e que por consequência, procedendo a habilitação, o primitivo Autor não possa continuar na lide, a par do habilitado relativamente apenas a um dos pedidos iniciais; a causa de pedir nos autos principais é complexa, assumindo uma componente indemnizatória de natureza obrigacional e uma componente que corporiza a defesa do direito de propriedade de natureza real ou predial; o que se pretende com a habilitação de adquirente é que Habilitanda e os primitivos Autores coexistam no segmento activo da instância, com as respetivas pretensões petitórias identificadas e autonomizadas: os primitivos Autores pugnando pelas pretensões indemnizatórias de natureza obrigacional e a Habilitanda, aqui Recorrente, com a sua pretensão real em defesa do seu direito de propriedade entretanto adquirido; nem todos os pedidos deduzidos na acção principal se reconduzem a pedidos de natureza indemnizatória, configurando o pedido em d) nos autos principais um pedido de natureza real; a Recorrente tem todo o interesse no desfecho da visada pretensão (alínea d)), porquanto a retirada ou não da tubagem e caixas de visita dos seus prédios afectará de forma relevante o conteúdo e características do seu direito de propriedade sobre os mesmos; a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 263º e 356° do Código de Processo Civil, assim como, os princípios da economia processual e da promoção da justiça previstos no artigo 130° do Código de Processo Civil e artigo 7° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e que a interpretação conjugada dos artigos 263º e 356º no sentido de afirmar ser legalmente inadmissível a habilitação parcial de adquirente ou sucessor é inconstitucional por violadora do princípio da tutela jurisdicional efectiva prevista no nº5 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
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A Recorrida, Águas e Parque Biológico de Gaia, contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
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Cumpre, pois, decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:
O Tribunal a quo deveria ter julgado procedente a habilitação da aqui Recorrente nos autos principais para assumir a posição de Autora no tocante ao já deduzido pedido em d), coexistindo processualmente com os primitivos Autores que prosseguiriam na acção pugnando pela procedência dos demais pedidos.
A Recorrente intentou incidente de habilitação de adquirente, por apenso ao processo n.º 1842/06.9 PRT, em que são Autores MCGSB (e outros) e Réu Águas e Parque Biológico de Gaia, E.E.M., pedindo que se declarasse habilitada, como adquirente, ao lado dos Autores, uma vez que havia na pendência da acção adquirido dois imóveis que integram a causa de pedir daqueles autos.
Nos autos principais os ali Autores deduziram, entre outros, o seguinte pedido: “d) Mais deve a Ré “Águas de Gaia, EM” ser condenada a retirar, a expensas suas, a tubagem e caixas de visita que colocou e mandou colocar na parcela 11, por forma a que a propriedade dos Autores seja colocada, o mais possível, no estado em que se encontrava antes dos factos supra descritos.”
Relativamente a este pedido, a Recorrente pugna por assumir a posição dos primitivos Autores – que deixariam de encabeçar tais pretensões -, até porque o interesse na sua procedência é exclusivo do proprietário do imóvel, podendo mesmo ser-lhe prejudicial que a disponibilidade do mesmo fique na esfera dos primitivos Autores.
Relativamente aos demais pedidos deduzidos nos autos principais, a Recorrente pugna que os mesmos deveriam prosseguir, com os primitivos Autores que manteriam interesse na prossecução da ação nessa parte, atenta o seu cariz indemnizatório ou obrigacional.
A causa de pedir nos autos principais é complexa, assumindo uma componente indemnizatória de natureza obrigacional e uma componente que corporiza a defesa do direito de propriedade de natureza real ou predial.
O que se pretende com a habilitação de adquirente é que a Habilitanda e os primitivos Autores, coexistam no segmento activo da instância, com as respetivas pretensões petitórias identificadas e autonomizadas: os primitivos Autores pugnando pelas pretensões indemnizatórias de natureza obrigacional e a Habilitanda, aqui Recorrente, com a sua pretensão real em defesa do seu direito de propriedade entretanto adquirido.
Nem todos os pedidos deduzidos na acção principal se reconduzem a pedidos de natureza indemnizatória, configurando o pedido em d) nos autos principais um pedido de natureza real.
O Tribunal a quo indeferiu a habilitação da aqui Recorrente no pedido em d) alegando que 1) a figura da habilitação parcial do adquirente não é legal e processualmente admissível e 2) face a uma eventual intervenção na propriedade da adquirente, a sua falta de habilitação não a prejudica, pois a sentença produz sempre caso julgado em relação a si nos termos do nº3 do artigo 263º do Código de Processo Civil.
10ª Da letra e do espírito do vertido nos artigos 263° e 356° ambos do Código de Processo Civil não resulta que a habilitação parcial de adquirente esteja excluída do instituto da habilitação, e que por consequência, procedendo a habilitação, o autor primitivo não possa continuar na lide.
11ª É entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Administrativo que a habilitação parcial é permitida pela nossa lei - Ac. STA de 08.03.2017, relatado pelo Juiz Conselheiro Costa Reis, Proc. 01088/16, não sendo posição única na nossa jurisprudência.
12ª O ordenamento jurídico português estabelece o princípio da estabilidade da instância, segundo o qual uma vez citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei, mas estão legalmente consagradas exceções a este princípio.
13ª Em processo civil, a habilitação tem, pois, por objetivo colocar o adquirente no lugar que o transmitente ocupava no processo pendente, e certificar que determinada pessoa sucedeu a outra na posição jurídica em que esta se encontrava.
14ª Esta substituição só pode ser recusada quando se entenda que a transmissão foi efetuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária.
15ª Da conjugação dos artigos 263.º n.º 2 e 356.º n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Civil, a parte contrária pode opor-se à substituição do transmitente pelo adquirente com dois fundamentos: invalidade do acto de transmissão ou por entender que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo.
16ª Nenhuma das circunstâncias vindas de referir foram alegadas nos autos quer pela Requerida quer pelo Tribunal a quo.
17ª O facto de a Recorrente ter interesse em apenas parte dos pedidos deduzidos nos autos principais não pode ser razão suficiente para impossibilitar a sua habilitação nos autos.
18ª A aquisição da Recorrente do direito de propriedade sobre os prédios em discussão nos autos principais, faz nascer na sua esfera jurídica o direito a ver as tubagens e caixas de visita deles retiradas, desiderato que se encontra já peticionado nos autos principais e que a Requerente pretende prosseguir.
19ª A Recorrente tem todo o interesse no desfecho da visada pretensão (d)), porquanto a retirada ou não da tubagem e caixas de visita dos seus prédios afetará de forma relevante o conteúdo e características do seu direito de propriedade sobre os mesmos.
20ª A Recorrente enquanto proprietária dos prédios em discussão nos autos principais tem o direito de ali pugnar pela integridade do seu património, reagindo contra atos atentatórios do mesmo e exigindo a sua reparação.
21ª Encontrando-se já concretizada nos autos principais tal pretensão, ao negar-se a habilitação da Recorrente está a promover-se uma desarmonia entre a realidade substantiva e a realidade processual e a impulsionar-se a instauração de uma nova acção judicial onde a Recorrente necessariamente tomaria necessariamente a posição de autora e a requerente de Ré, com a necessária duplicação de meios e custos em detrimento dos princípios da economia processual e promoção da justiça.
22ª Impossibilitando-se a Recorrente de intervir na acção principal e permitindo-se, assim, que os primitivos Autores sejam os únicos sujeitos ativos da causa, estar-se-á a possibilitar que a acção possa terminar com uma transação à revelia da adquirente e contra os interesses da mesma (que nesta medida podem ser divergentes dos interesses dos primitivos Autores que uma vez não serem proprietários já não cuidarão da integridade do direito de propriedade cedido), coartando-se-lhe o direito de a ela se poder opor ou defender (atento a força de caso julgado que se lhe estenderá).
23ª Verificando-se uma alteração subjetiva e superveniente na titularidade do direito de propriedade, justifica-se que a acção de cujo desfecho possa influir na substância e características daquele direito predial, reflita essa mudança com vista a uma solução debatida ou contraditada, justa e definitiva do litígio.
24ª A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 263º e 356° do Código de Processo Civil, assim como, os princípios da economia processual e da promoção da justiça previstos no artigo 130° do Código de Processo Civil e artigo 7° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
25ª A interpretação conjugada dos artigos 263º e 356º no sentido de afirmar ser legalmente inadmissível a habilitação parcial de adquirente ou sucessor é inconstitucional por violadora do princípio da tutela jurisdicional efectiva prevista no nº5 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
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II –Matéria de facto.
A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:
1) Em 25.07.2006 AFB e mulher, MCGSB e JJFB e mulher, MCASB intentaram ação administrativa comum neste Tribunal (processo n.º 1842/06.9) contra a CST, S.A., Águas de Gaia, EM e SR & R, S.A. alegando que as mesmas são responsáveis por danos nos seguintes bens imóveis de sua propriedade:- um prédio rústico constituído por tapada de mato e pinhal, sito na freguesia de L…, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 00177, e inscrito na respetiva matriz sob o artigo 10.º;- um prédio rústico constituído por terreno lavradio e pinhal, sito no lugar de L…, freguesia de L…, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 00178, e inscrito na respetiva matriz sob o artigo 17.º (cf. petição inicial do processo n.º 1842/06.9BEPRT a fls. 2 a 19 do suporte físico desse processo).
2) Foram aí formulados os seguintes pedidos: «Nestes termos e nos melhores de Direito, deve a presente acção ser julgada procedente, por provada e fundada e, por via disso, deve a Ré “CST, S.A.”: a) Ser condenada a pagar, dentro do valor do capital seguro pela apólice n.º 0000372656, o custo da reparação da propriedade dos Autores, em concreto:- Movimentação de terras e materiais de construção e limpeza;- Construção de cerca de 250 metros quadrados de muro de suporte em granito;- Construção de cerca de 150 metros quadrados de muro no leito do rio;-Recolocação de cerca de 250 metros quadrados de superfície de terra de cultivo;-Refazer cerca de 220 metros quadrados de muro junto ao Rio Uíma; tudo pelo valor que melhor vier a ser fixado mediante liquidação em execução de sentença, bem como em juros de mora, à taxa legal. b) Mais deve ser condenada, em montante a liquidar em execução de sentença, pelos prejuízos que até aí se contabilizarem pela perda das videiras, das ramadas, do vinho por elas produzido, da perda de possibilidade de cultivar totalmente a sua propriedade, dos alimentos que tiveram de adquirir para alimentação das duas cabeças de gado, pelas oportunidades de negócios malogrados em virtude do estado da sua propriedade e tudo o demais que for nessa sede liquidado como prejuízo directo e necessário dos actos praticados pelas Rés. c) As Rés “Águas de Gaia, EM” e “SR & R, S.A.” deverão, solidariamente, ser condenadas, a proceder à reparação, em tudo quanto não esteja coberto pela apólice do contrato de seguros celebrada com a Ré “CST, S.A.”, no todo ou em parte, e igualmente nos juros de mora devidos, à taxa legal. d) Mais deve a Ré “Águas de Gaia, EM” ser condenada a retirar, a expensas suas, a tubagem e caixas de visita que colocou e mandou colocar na parcela 11, por forma a que a propriedade dos Autores seja colocada, o mais possível, no estado em que se encontrava antes dos factos supra descritos.” (cf. petição inicial do processo n.º 1842/06.9BEPRT a fls. 2 a 19 do suporte físico do processo n.º 1842/06.9BEPRT).
3) Em 07.03.2011 faleceu AFB, sucedendo-lhe como únicos herdeiros legitimários MCGSB, VMSB e VLSB, que foram habilitados como herdeiros (cf. escritura pública constante de fls. 366 e 367 do suporte físico do processo n.º 1842/06.9BEPRT e decisão de incidente a fls. 383 e 384 do suporte físico do processo).
4) Em 04.11.2011 MCGSB, VLSB, VMSB e JJFB venderam a PM, Lda. os seguintes imóveis: -«Pelo preço de quatrocentos mil euros o prédio urbano composto por casa de dois pavimentos e dependência, sito no Lugar do L…, freguesia de L…, concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o número cento e setenta e seis – Lever e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 242, com o valor patrimonial de € 36.480,00»; - «Pelo preço de cento e cinquenta mil euros o prédio rústico, composto por tapada de mato e pinhal, denominado “Do Lm… ou Entre as V…”, sito em Lugar de Mi… ou Um…, freguesia de L…, concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o número cento e setenta e sete – L…, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10, com o valor patrimonial de €220,31»;- «Pelo preço de noventa mil euros o prédio urbano, “outros”, com a área de sete mil e quinhentos metros quadrados, sito no Lugar de Lm…, referida freguesia do L…, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o número cento e setenta e oito- Lever, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo P1457, (anteriormente inscrito na matriz rústica sob o artigo 17)» (cf. escritura pública constante de fls. 19 a 25 do suporte físico do processo, que aqui se dá por integralmente reproduzida).
5) Em 26.07.2017 as Rés CST, S.A. e SR & R, S.A foram absolvidas da instância (cf. fls. 520 a 522 do suporte físico do processo n.º 1842/06.9 PRT).
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III - Enquadramento jurídico.
1. A natureza real da pretensão deduzida em d) a justificar a habilitação.
Determina o artigo 262.º do Código de Processo Civil (de 2013) que:
“A instância pode modificar-se, quanto às pessoas:
a) Em consequência da substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por ato entre vivos, na relação substantiva em litígio;
(…)”
Resulta da matéria factual dada como provada que a Requerente, ora Recorrente, é actualmente proprietária dos dois bens envolvidos no litígio que opõe as partes no processo principal, propriedade que lhe adveio da compra e venda celebrada por escritura pública, que cumpre as formalidades necessárias para a transmissão extrajudicial de propriedade (artigo 875º do Código Civil).
Não se trata, ao contrário do alegado pela ora Recorrente, do reconhecimento de direitos reais, para os quais os tribunais administrativos seriam incompetentes.
Os pedidos deduzidos na acção principal reconduzem-se a pedidos de natureza indemnizatória.
O da alínea d), em causa no incidente de habilitação é, tal como os restantes direitos em exercício no processo principal, um direito de indemnização, consubstanciando uma indemnização in natura.
Conforme previsto no artigo 562.º do Código Civil:
“Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
Os demais pedidos reconduzem-se a uma indemnização por equivalente, em dinheiro, de danos provocados na esfera dos Autores e habilitados do Autor já falecido, AFB, enquanto eram proprietários dos imóveis em causa.
Nos termos do disposto no n.º1, do artigo 566º, do Código Civil:
“A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.”
A transmissão de propriedade não transmite direitos indemnizatórios conexos com essa mesma propriedade, pelo que nada dizendo o contrato de compra e venda celebrado entre as partes sobre essa transmissão, não poderemos considerar que tal transmissão de direitos a indemnização ocorreu.
Esses direitos indemnizatórios são litigiosos, porque contestados nos autos principais, pelo que seguem o regime próprio dos artigos 577º e seguintes do Código Civil.
Determina o artigo 578º, nº 1, do Código Civil, que os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que lhe serve de base.
A Requerente, ora Recorrente, invocou e por isso não demonstrou ter sido feita a cessão dos direitos litigiosos de indemnização, em causa no processo principal, sendo que tal facto era seu ónus alegar e provar - artigo 342º nº 1 do Código Civil.
Só a alegação da válida transmissão dos direitos de indemnização poderia fundamentar a procedência do incidente de habilitação de cessionária, mal apelidado pela ora Recorrente de incidente de habilitação de adquirente.
Termos em que logo por este fundamento decisório, determinante do insucesso do incidente, improcede o recurso jurisdicional.
2. O interesse na habilitação.
Naturalmente a Requerente tem interesse na retirada da tubagem e das caixas de visita dos seus prédios pois isto afeta de forma relevante o conteúdo e características do seu direito de propriedade sobre os mesmos.
Mas esse interesse justificaria a legitimidade para propor outra acção com vista ao reconhecimento da propriedade plena sobre os prédios que agora são seus.
O que não basta para permitir entrar em acção já intentada, no lugar do primitivo Autor.
Tanto assim que, como vimos, não está em causa o reconhecimento de um direito real, como o de propriedade, mas um direito obrigacional, de indemnização em espécie.
Necessitaria a Requerente, ora Recorrente, para além do interesse em agir, de demonstrar que tinha havido a seu favor a cessão do crédito em apreço. O que não demonstrou, tendo apenas demonstrado a transferência do direito de propriedade.
Termos em que também por este fundamento não procede o recurso.
3. A habilitação parcial.
Invoca-se na decisão recorrida um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 30.01.2012, no processo 115/09, no sentido de não ser permitida a habilitação parcial de cessionário.
Mas o caso ali relatado não é igual ou sequer idêntico ao caso presente.
Ali estava em causa a possibilidade de cisão, com a habilitação, entre duas partes incindíveis do processo, o pedido deduzido na acção e o pedido reconvencional, assentes na mesma causa de pedir, e que passariam a ter sujeitos processuais distintos com a habilitação parcial, apenas para o pedido principal.
Em termos gerais, aplicáveis ao caso concreto não vemos obstáculo na lei para a habilitação parcial de cessionário.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 08.03.2017, processo 01088/16:
“Desde logo, porque nem da letra e nem do espírito dos art.ºs 263° e 356° do CPC resulta, expressa ou implicitamente, que a cessão parcial de créditos litigiosos está excluída do instituto da habilitação de cessionários visto as únicas certezas que deles se poderá retirar são, por um lado, que a cessão só opera se o seu título for válido e eficaz e, por outro, que o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, independentemente da cessão abranger, ou não, a totalidade do crédito peticionado. Deste modo, nada nos permite concluir que a substituição de que fala o art.º 263.º/2 do CPC tenha de ser total e que, como afirmam as instâncias, a substituição parcial não pode acontecer. E isto porque a única limitação de que se retira dessa norma é a de que a substituição só deve ser recusada “quando se entenda que a transmissão foi efectuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária.”
Nesta conformidade, tendo em conta as regras gerais relativas à legitimidade das partes, deverá concluir-se que, apesar do princípio da estabilidade da instância, é de admitir a intervenção de terceiros sempre que os novos intervenientes processuais têm um interesse convergente com as partes iniciais e o seu direito advém da relação jurídica controvertida ou dela é juridicamente dependente. Só assim é possível resolver definitivamente a causa e, portanto, obter-se a formação de caso julgado sobre o litígio (art.ºs 32.º a 40.º do CPC e 9.º/2 e 10.º/10 do CPTA).”
Mas no caso a habilitação não está vedada por uma questão adjectiva mas por uma questão substantiva: a de não estar demonstrada a cessão do crédito de natureza obrigacional para a Requerente, como acima se viu.
Termos em que não se mostra válido este fundamento para inverter o sentido da decisão recorrida que, assim, apesar de um inválido fundamento, deve ser mantida.
Fincando assim prejudicado o conhecimento da questão da inconstitucionalidade artigos 263º e 356º do Código de Processo Civil, no sentido de afirmar ser legalmente inadmissível a habilitação parcial de adquirente ou sucessor.
4. Os obstáculos à habilitação: artigos 263.º n.º 2 e 356.º n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Civil.
Invoca a Recorrente neste capítulo (conclusão 15):
“Da conjugação dos artigos 263.º n.º 2 e 356.º n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Civil, a parte contrária pode opor-se à substituição do transmitente pelo adquirente com dois fundamentos: invalidade do acto de transmissão ou por entender que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo”.
Esta questão, dos obstáculos à habilitação só se coloca, naturalmente, se a habilitação for admissível.
Não serve para concluir que sempre que estes obstáculos não se verificam deve ser admitida a habilitação.
Caso contrário perderia todo o sentido útil o disposto na citada alínea a) do artigo 262.º do Código de Processo Civil que prevê esta substituição processual, por meio da habilitação, em consequência da substituição substantiva, quer por sucessão quer por acto entre vivos.
Também por aqui não procederia o pedido de habilitação, impondo-se manter a decisão recorrida.
5. O princípio do aproveitamento dos actos processuais; artigo 130º do Código de Processo Civil; adequação do processo à realidade material; caso julgado material.
Invoca a Recorrente neste ponto (conclusões 21ª e 22ª):
“21ª Encontrando-se já concretizada nos autos principais tal pretensão, ao negar-se a habilitação da Recorrente está a promover-se uma desarmonia entra a realidade substantiva e a realidade processual e a impulsionar-se a instauração de uma nova acção judicial onde a Recorrente necessariamente tomaria necessariamente a posição de autora e a requerente de Ré, com a necessária duplicação de meios e custos em detrimento dos princípios da economia processual e promoção da justiça.
22ª Impossibilitando-se a Recorrente de intervir na acção principal e permitindo-se, assim, que os Autores primitivos sejam os únicos sujeitos ativos da causa, estar-se-á a possibilitar que a acção possa terminar com uma transação à revelia da adquirente e contra os interesses da mesma (que nesta medida podem ser divergentes dos interesses dos autores primitivos que uma vez não serem proprietários já não cuidarão da integridade do direito de propriedade cedido), coartando-se-lhe o direito de a ela se poder opor ou defender (atento a força de caso julgado que se lhe estenderá). ”
Este princípio, com a extensão que a Recorrente lhe pretende dar, esvaziaria também de sentido útil o disposto na citada alínea a) do artigo 262.º do Código de Processo Civil, as condições em que é possível a modificação subjectiva da instância por substituição processual.
Ficaria aberta a possibilidade de substituição processual ainda que não houvesse, como é o caso, substituição substantiva no direito em litígio.
O que não é o pretendido pela lei.
Tratam-se, de resto, de situações distintas a merecer tratamento distinto.
Numa hipótese há substituição substantiva na relação material litigiosa, a justificar a substituição processual; no outro caso, o que aqui se verifica, não.
O que nos leva a concluir de igual modo que a adequação do processo à realidade material não impõe no caso admitir a habilitação de cessionário dado ter havido cessão de um direito real, o direito de propriedade, mas não do direito obrigacional que está em litígio.
E como o direito de propriedade não é o objecto do litígio aqui em curso, não poderá haver preterição da defesa desse direito nem formação de caso julgado pela não admissão do incidente de habilitação de cessionário.
Termos em que também por esta via não se impõe alterar a decisão recorrida, devendo, pelo contrário, julgar-se improcedente o recurso.
7. O princípio da tutela jurisdicional efectiva; artigos 2º e 7° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Este princípio não impõe que todo o direito possa ser exercido de qualquer forma.
Pelo contrário, determina o artigo 2º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que:
“A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos …”
No caso a substituição processual só é admissível no caso de substituição substantiva na relação jurídica material controvertida.
O que não sucedeu.
Pelo que o interesse ou direito da Requerente terá de ser exercido em nova acção, de forma a não prejudicar o regular e normal andamento do presente processo pela introdução, a par da alteração subjectiva, de uma alteração do objecto do processo que passaria a abarcar o direito de propriedade que não está em causa no pedido que se pretende ver atendido, o da alínea d) da petição inicial.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantém a decisão recorrida, embora com divergência quanto aos fundamentos.
Custas pela Recorrente.
Porto, 15.03.2019
Ass. Rogério Martins
Ass. Luís Garcia
Ass. Conceição Silvestre