Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00023/11.4BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/22/2016
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Joaquim Cruzeiro
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO; CULPA
Sumário:Ocorre actuação culposa do Réu Município quando se dá como provado que alguns dos seus trabalhadores tiveram conhecimento do lençol de água, antes da ocorrência do acidente, procedendo mesmo a tentativas para desentupir o sistema de drenagem, e, não o tendo conseguido, não sinalizaram o local.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Município de Penafiel
Recorrido 1:CRSL
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Sumária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
1 – RELATÓRIO
Município de Penafiel vem interpor recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, datada de 27 de Junho de 2014, e que julgou parcialmente procedente a presente acção administrativa comum intentada por CRSL, onde se solicitava que fosse o Réu condenado a:
“… Efectuar o pagamento de € 9 231, 52 acrescido de juros a contar da citação até integral pagamento contabilizados à taxa legal…”

Em alegações o recorrente concluiu assim:
1. A sentença recorrida fez incorrecta interpretação e valoração da prova produzida.
2. O TCAN deve alterar a matéria de facto considerada provada na sentença recorrida, usando os poderes conferidos pelo artigo 662º, 1, do CPC.
3. O ponto 22 da factualidade dada como provada na decisão recorrida foi incorrectamente considerado como provado, devendo ser considerado como não provado.
4. A fundamentação para esta pretendida alteração da decisão da matéria de facto radica, desde logo, na prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente nos depoimentos das testemunhas JAMM, SJLS e MMRS, com base no auto da GNR junto com a petição inicial sob documento nº 1, do conjunto da factualidade provada e das regras que distribuem o ónus da prova.
5. A Autora não alegou por qualquer forma — como lhe competiria — a propriedade ou qualquer outro direito sobre o veículo com a matrícula **-**-UZ e nessa medida o tribunal recorrido não podia conhecer dela — art.º 5º do CPC.
6. A alegação da propriedade ou qualquer outro direito sobre o veículo com a matrícula **-**-UZ seria um facto essencial e como tal deveria ser alegado pela Autora o que significa que o tribunal não se pode pronunciar estando tal matéria afastada dos seus poderes de cognição — artigo 5º do CPC.
7. O documento junto aos autos a fls. 96 do processo físico, que corresponde a título de registo automóvel, não é mais do que um dos meios de prova admissíveis no ordenamento jurídico português e, nessa medida, não substitui nem dispensa a alegação do direito correspondente — artigos 410º e 423º e ss. do Código de Processo Civil.
8. Ora, como dispõe o referido artigo 410º do CPC, "a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quanto não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova", ou seja, só estarão sujeitos a prova os factos necessitados dela, que tenham sido correspondentemente alegados pelas partes.
9. O tribunal recorrido violou o artigo 5º do CPC, o qual impõe que sejam as partes a alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e, por via disso, que impede o tribunal de conhecer de factos essenciais que não tenham sido alegados pelas partes.
10. O acidente em apreço ocorreu devido ao comportamento descuidado e com culpa da Autora, que contribuiu decisivamente para o referido acidente de viação.
11. A matéria julgada como provada pelo tribunal recorrido nos pontos 27, 28 e 29 da factualidade dada como provada afasta a presunção de culpa do recorrente constante do artigo 10º da Lei nº 67/2007, de 31/12.

A recorrida notificada para o efeito, contra-alegou tendo apresentado as seguintes conclusões:

A) Entende a Recorrente que o Tribunal a quo julgou incorretamente os factos insertos no ponto 2 da fundamentação de facto constante na douta sentença e ainda que a Autora seja a proprietária do veículo danificado.
B) Contudo, da análise da prova produzida não se alcança - como pretende o Recorrente - como a mesma levaria a uma resposta diversa, ou seja, que não resultasse provado que a Autora circulasse naquele local e que o veículo fosse de sua propriedade.
C) Conforme resulta da douta sentença a prova do facto de que a Autora circulava na Estrada Municipal resultou da consideração do depoimento de JAMM que demonstrou ter conhecimento dos factos por se ter deslocado ao local do acidente logo após a sua ocorrência, depoimento que se afigurou credivel e verdadeiro. Esta testemunha confirmou as circunstâncias de tempo e lugar declarando de forma clara e coerente que ouviu o barulho do embate e deslocou-se de imediato ao local do acidente tendo-se deparado com o veículo da Autora imobilizado num campo agrícola existente imite ao local do acidente. Mais declarou que viu uma poça de água "enorme" que ocupava toda a largura da estrada, sendo que na hemi-faixa de rodagem direita atento o sentido Cabeça Santa-Peroselo.
D) Este facto resultou também da consideração do testemunho de SJLS, tio da Autora, que não assistiu ao acidente, mas passou no local logo a seguir ao acidente referindo que quando chegou já estavam a retirar a Autora do seu veículo que se encontrava imobilizado no campo.
E) O depoimento das testemunhas conjugado com o auto de participação da GNR é prova bastante para se considerar como porvado que a Autora circulava naquela estrada e naquele sentido.
F) Também não aceita a Recorrente o facto provado de que a Autora era a proprietária do veículo **-**-UZ.
G) Ora, também não tem razão a recorrente uma vez que a Autoar juntou aos autos após douto despacho do Tribunal certidão do registo automóvel.
H) Também não cotrresponde à verdade que a Autora não tenha alegado na P.I. ser proprietária do veículo pois logo no seu n.º 1 refere “ o veículo da Autora de matricula **-**-UZ.”
I) Assim, também este facto foi dado como provado pelo Tribunal “a quo”.
J) Alega ainda o Recorrente que o acidente deveu-se à culpa da lesada.
K) Não se aceita, de forma alguma, tal alegação.
L) Com efeito, resultou provado que:
- Choveu intensamente nas horas e nos dias que precederam o acidente;
- O lençol de água tinha um comprimento que ocupava as duas hemi-faixas de rodagem e uma profundidade de, pelo menos, 15 cm na parte mais funda
- No momento em que o acidente ocorreu, a conduta que drena as águas pluviais, junto do local onde o acidente ocorreu, estava entupida;
- Com a chuva, a água não drenada concentrou-se na via, formando um lençol de água, que cobria as duas hemi-faixas de rodagem;
- No dia em que o acidente ocorreu, a água proveniente das chuvas, nomeadamente, dos dias que antecederam o acidente acumulou-se nessa via e transformou-se num lençol de água, que ocupava toda a largura da faixa de trânsito em que seguia o veículo da Autora
- No dia anterior à data em que ocorreu o acidente, já existia no local um lençol de água a cobrir a via e alguns condutores que lá passavam tentavam evitá-la
- No dia 15/01/2010, os funcionários do Réu deslocaram-se ao local onde ocorreu o acidente tentando desentupir a conduta das águas pluviais de forma a drenar o lençol de água acumulado no local onde o acidente ocorreu, mas sem êxito .
- No local onde o acidente ocorreu, o mesmo não se encontrava sinalizado, não existindo informação do perigo no referido troco da via.
M) Perante estes factos, outra conclusão não pode ser extraída que a Autora não teve culpa na produção do acidente.
N) Qualquer condutor prudente e cauteloso naquelas circunstâncias não conseguiria evitar o acidente.
O) O Réu, através dos seus funcionários, teve conhecimento da formação daquela poça de água na véspera do acidente e, como tal, impunha-se que:
- Tivesse providenciado pelo desentupimento imediato do sistema de drenagem para permitir o escoamento das águas pluviais por a existência de uma poça de água com aquelas características representar uma situação de perigo potenciadora de acidentes de viação para os utentes da via;
- Caso se revelasse inviável o desentupimento imediato do sistema de drenagem, a sinalização adequada nos moldes supra explanados, o que não sucedeu.
P) Com efeito, nem o Réu desentupiu o sistema de drenagem, nem sinalizou com qualquer um dos sinais impostos por lei, sendo que os utentes da via deveriam ter sido informados de que na via existia um obstáculo ocasional que representava uma situação de perigo através de sinalização adequada, o que não sucedeu.
Q) A falta de sinalização que indicasse a existência da poça de água e a não realização das operações necessárias para desentupir a valeta e permitir o regular escoamento da água, quando o Réu teve conhecimento atempado da sua existência antes da ocorrência do acidente, permitiram e bem ao Tribunal concluir que o Réu não cumpriu o seu dever de manutenção da via municipal e sinalização do obstáculo ocasional.
R) As regras de experiência comum, da qual se socorreu o Tribunal “a quo” diz-nos que uma poça de água que ocupa as duas temi-faixas de rodagem, com uma profundidade de, pelo menos, 15 em na temi-faixa de rodagem direita, atento o sentido de marcha da Autora, traduz uma situação potenciadora de elevados riscos para a segurança do trânsito que exige cuidados especiais para minorar os riscos para os utentes.
S) Como tal, o Réu ao não providenciar pelo desentupimento do sistema de drenagem e pela sinalização do obstáculo ocasional omitiu os deveres de cuidado e fiscalização das vias públicas. Além disso, ao não sinalizar o obstáculo que se encontrava na via com o recurso à sinalização adequada omitiu, igualmente, o dever de cuidado e fiscalização da via sob sua jurisdição.
T) Com a sua conduta o Réu violou o disposto nos arts. 11º 16.°, al. b), 18.°, n.° 1, a) da Lei n.° 159/99, de 14/09, art.' s 5.', n.° 1 e 2 do CE e arts. 77.°, 78º, 84º, 87.° e 90.° do D.R. n.° 22-A/98, de 01/10.
U) Assim, a verificação da omissão de sinalização adequada e manutenção da via face ao dever que é imposto pelos referenciados normativos e que definem os tipos de sinais a colocar em situações como a dos autos é suficiente para a consideração da ilicitude da conduta, presumindo-se a culpa dos serviços, nos termos do art. 10.°, n.° 2 da Lei 67/2007, que o Réu não logrou afastar.
V) Pelo exposto, andou bem o Tribunal “a quo” ao condenar a Ré no pagamento dos danos sofridos pela Autora.

O Ministério Público, notificado ao abrigo do disposto no artº 146º, nº 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

As questões suscitadas e a decidir resumem-se em determinar:

— se ocorreu erro de julgamento quanto à matéria de facto e quanto à matéria de direito por não ter sido afastada a presunção de culpa.


2– FUNDAMENTAÇÃO
2.1 – DE FACTO
Na decisão sob recurso ficou assente o seguinte quadro factual:


1) No dia 16 de Janeiro de 2010, pelas 14:30, o veículo automóvel da Autora, de matrícula **-**-UZ, circulava no Lugar da Quintã, Freguesia de Peroselo, Concelho de Penafiel – resposta ao quesito 1.º da base instrutória.

2) A Autora circulava na Estrada Municipal em Peroselo, no sentido Cabeça Santa-Peroselo - resposta ao quesito 2.º da base instrutória.

3) Até que, avistou um lençol de água que cobria toda a largura da via em que circulava – facto não controvertido.

4) E embora tenha travado de forma a reduzir a velocidade, não conseguiu evitar e penetrou no lençol de água, tendo entrado em despiste – facto não controvertido.

5) Após ter saído do “lençol” de água descontrolado, o veículo da Autora direcionou-se para o lado esquerdo e depois para o lado direito da via em que circulava, embatendo frontalmente num poste da EDP que se encontrava no local - facto não controvertido.

6) O local do acidente é uma recta – facto não controvertido.

7) A via onde o acidente se verificou é uma estrada municipal – facto não controvertido.

8) O UZ capotou, imobilizou-se num campo agrícola existente junto ao local do acidente e que se encontra a um nível inferior à estrada - resposta ao quesito 3.º da base instrutória.

9) Choveu intensamente nas horas e nos dias que precederam o acidente - resposta ao quesito 4.º da base instrutória.

10) O lençol de água tinha um comprimento que ocupava as duas hemi-faixas de rodagem e uma profundidade de, pelo menos, 15 cm na parte mais funda - resposta ao quesito 5.º da base instrutória.

11) No momento em que o acidente ocorreu, a conduta que drena as águas pluviais, junto do local onde o acidente ocorreu, estava entupida - resposta ao quesito 6.º da base instrutória.

12) Com a chuva, a água não drenada concentrou-se na via, formando um lençol de água, que cobria as duas hemi-faixas de rodagem - resposta ao quesito 7.º da base instrutória.

13) No dia em que o acidente ocorreu, a água proveniente das chuvas, nomeadamente, dos dias que antecederam o acidente acumulou-se nessa via e transformou-se num lençol de água, que ocupava toda a largura da faixa de trânsito em que seguia o veículo da Autora - resposta ao quesito 8.º da base instrutória.

14) No dia anterior à data em que ocorreu o acidente, já existia no local um lençol de água a cobrir a via e alguns condutores que lá passavam tentavam evitá-la - resposta ao quesito 9.º da base instrutória.

15) No dia 15/01/2010, os funcionários do Réu deslocaram-se ao local onde ocorreu o acidente tentando desentupir a conduta das águas pluviais de forma a drenar o lençol de água acumulado no local onde o acidente ocorreu, mas sem êxito - resposta ao quesito 10.º da base instrutória.

16) No local onde o acidente ocorreu, o mesmo não se encontrava sinalizado, não existindo informação do perigo no referido troço da via - resposta ao quesito 11.º da base instrutória.

17) Após o acidente, o piquete da Linha Azul do Réu deslocou-se ao local, tendo drenado o lençol de água que se encontrava na faixa de rodagem - resposta ao quesito 12.º da base instrutória.

18) No momento em que o acidente ocorreu não chovia - resposta ao quesito 13.º da base instrutória.

19) No local onde o veículo da Autora se encontrava imobilizado, a estrada descreve uma lomba que apenas possibilitou à Autora ver o lençol de água a cerca de 10 metros de distância da lomba - resposta ao quesito 14.º da base instrutória.

20) O veículo da Autora sofreu estragos na parte da frente e na lateral direita - resposta ao quesito 15.º da base instrutória.

21) O veículo da Autora necessitou de ser retirado do local por um reboque que o transportou para a oficina denomina “B & A, Lda.” para ser reparado - resposta ao quesito 16.º da base instrutória.

22) O veículo foi observado na oficina identificada no ponto antecedente, tendo apresentado à Autora um orçamento com o montante necessário para reparação dos estragos no valor de € 6.731,52, já com Iva incluído, mas a reparação foi posteriormente efectuada pelo valor de € 4.325,65 - resposta ao quesito 17.º da base instrutória.

23) Para reparar os estragos do carro da Autora foi necessário: Reparar o capot; Reparar a parte da frente do veículo, incluindo os faróis, para-choques, charriot, radiador da água; Reparar o motor; Reparar a suspensão; Serviço de chapeiro; Serviço de mecânico; e Pintar - resposta ao quesito 18.º da base instrutória.

24) Após o acidente, a Autora foi transportada para o Hospital Padre Américo, em Penafiel, tendo-lhe sido efectuados exames de imagem duas incidências na coluna dorsal, duas incidências coluna lombar, duas incidências no crânio e duas incidências no tórax- resposta ao quesito 19.º da base instrutória.

25) A Autora conduz mas tem medo de conduzir sozinha - resposta restritiva ao quesito 22.º da base instrutória.

26) Nas horas anteriores ao referido acidente chovera intensamente naquele local - resposta ao quesito 24.º da base instrutória.

27) O Réu tem cerca de 600 quilómetros de extensão de estradas municipais sob a sua jurisdição - resposta ao quesito 26.º da base instrutória.

28) O Réu tem plano de actuação rodoviário - resposta ao quesito 27.º da base instrutória.

29) O Réu tem piquetes que, diariamente executam trabalhos de reparação nas vias de circulação.- resposta ao quesito 29.º da base instrutória.

FACTOS NÃO PROVADOS

A) A Autora conduzia com cuidado, atenção e velocidade moderada, não mais de 40/50 km/h – quesito 2.º da B.I.

B) A Autora ficou com pisadelas no corpo, o que lhe provocou dores, principalmente, nas costas - quesito 20.º da B.I.

C) Após ter sofrido o acidente, a Autora sofreu angústia, insónias e pesadelos com o acidente - quesito 21.º da B.I.

D) Os funcionários do Réu, quando estiveram no dia 15 de Janeiro de 2010 – véspera do acidente – no local onde o mesmo se deu, desentupiram e limparam a conduta de águas pluviais – quesito 23.º da B.I.

E) A Autora, no momento e local do acidente, circulava a uma velocidade superior a 50 Km/h - quesito 25.º da B.I.

F) O Réu despende, anualmente, uma verba do seu orçamento para reparar, melhorar e construir arruamentos - quesito 28.º da B.I.

2.2 – DE DIREITO
Cumpre apreciar as questões suscitadas pelo ora Recorrente, o que deverá ser efectuado dentro das balizas estabelecidas, para tal efeito, pela lei processual aplicável - ver artigos 5.º, 608.º, n.º2, 635.º, n.ºs 4 e 5, e 639.º do C.P.C., na redacção conferida pela Lei n.º 41/2013, ex vi art.º 1.º do C.P.T.A, e ainda conforme o disposto no artigo 149º do CPTA.

I- O recorrente vem, em primeiro lugar, sustentar que ocorre erro de julgamento quanto à matéria de facto.

Nesta área impera no nosso ordenamento jurídico o princípio da livre apreciação da prova, referindo o artigo 607º, n.º 5, do CPC (antigo artigo 655º), que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto;…”. A prova livre está excluída sempre que a lei conceda um determinado valor legal a um determinado meio de prova. O princípio da livre apreciação da aprova implica que na decisão sobre a matéria de facto devem ser especificados os fundamentos que foram decisivos à tomada de posição sobre a materialidade controvertida (artigo 607º - artigos 653º, n.º 2, e 712º do antigo CPC).

Neste sentido, refere Miguel Teixeira de Sousa, in, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 348, que: “ a fundamentação da apreciação da prova deve ser realizada separadamente por cada facto. A apreciação de cada meio de prova pressupõe conhecer o seu conteúdo (por exemplo, o depoimento da testemunha), determinar a sua relevância (que não é nenhuma quando, por exemplo, a testemunha afirmou desconhecer o facto) e proceder à sua valoração (por exemplo através da credibilidade da testemunha ou do relatório pericial). Se o facto for considerado provado, o tribunal começar por referir os meios de prova que formaram a sua convicção, indicar seguidamente aqueles que se mostrarem inconclusivos e terminar com referência àqueles que, apesar de conduzirem a uma distinta decisão, não foram suficientes para infirmar a sua convicção…”.

No que se refere à matéria de recurso sobre a matéria de facto, menciona o Ac. STA, de 19/10/2005, in Rec. 0394/05, que: “O Tribunal de recurso só deve modificar a matéria de facto quando a convicção do julgador, em 1ª instância, não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se assim a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova e à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto.

Ver ainda mais recente Acórdão do STA proc. n.º 0990/12, de 25-09-2012, quando refere : I - Os poderes conferidos ao tribunal ad quem pelo artº 712º, nº1 do CPC devem ser articulados com o disposto no artº 655º, nº1 do CPC, segundo o qual «O tribunal colectivo aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto». II - O que significa que o tribunal ad quem deve ser especialmente cuidadoso na reapreciação do julgamento da matéria de facto, só devendo proceder à alteração dessa matéria se a mesma padecer de erro notório ou manifesto.

Por seu lado, como resulta do art.º 640, nºs. 1, a), b) e 2, a), do CPC, e sob pena de rejeição, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, devendo ainda referir os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Especificar os concretos pontos de facto será referir, quanto aos factos constantes da Base Instrutória, quais é que se consideram que foram incorrectamente julgados.
Feitas estas considerações debrucemo-nos sobre o caso concreto.

A) Vem o recorrente, nas suas conclusões 1 a 4, sustentar que o ponto 2 da matéria de facto não podia ser dado como provado, uma vez que não foi feita prova sobre o mesmo. Vem ainda referir que se trata de um facto alegado pela Autora e era a ela que competia efectuar a prova. Por seu lado ninguém teria assistido ao acidente e resulta do depoimento das testemunhas que apenas tomaram conhecimento do mesmo após o veículo da Autora se encontrar imobilizado.
O ponto 2 da matéria de facto dada como provada refere: “A Autora circulava na Estrada Municipal em Peroselo, no sentido Cabeça Santa-Peroselo”
Na fundamentação dada a este ao artigo refere-se na decisão recorrida:
A convicção do Tribunal relativamente aos factos constantes dos pontos …, 2), …. resultou da consideração do depoimento de JAMM que demonstrou ter conhecimento dos factos por se ter deslocado ao local do acidente logo após a sua ocorrência, depoimento que se afigurou credível e verdadeiro e, por isso, levou o Tribunal a considerar assentes os factos em causa. Esta testemunha confirmou as circunstâncias de tempo e lugar declarando de forma clara e coerente que ouviu o barulho do embate e deslocou-se de imediato ao local do acidente tendo-se deparado com o veículo da Autora imobilizado num campo agrícola existente junto ao local do acidente….Resultou também da consideração do testemunho de SJLS, tio da Autora, que não assistiu ao acidente, mas passou no local logo a seguir ao acidente referindo que quando chegou já estavam a retirar a Autora do seu veículo que se encontrava imobilizado no campo. Disse que conhece a estrada…
A convicção dos factos constantes dos pontos 1), 2), 8), 10) e 20) da matéria assente resultou também da consideração do auto de participação junto com a petição inicial sob o doc. 1 que não foi impugnado, bem como da consideração do depoimento da testemunha JAMM que a este respeito demonstrou ter conhecimento dos mesmos.

Basta atentar para a fundamentação da resposta dada a este artigo da Base Instrutória para não se perceber a alegação do recorrente quando refere que nenhuma testemunha tinha assistido ao acidente, pelo que não poderia ser dado como provado tal facto. Em primeiro lugar é de referir que não está em causa no artigo em questão a dinâmica do acidente mas sim o lugar em que o mesmo teve lugar. Depois, verifica-se do depoimento das testemunhas que estas se deslocaram, logo que o acidente teve lugar, ao local onde este se verificou. Ou seja, estamos perante pessoas que tiveram conhecimento directo do local onde se verificou o acidente.
Por outro lado, verifica-se do da Participação do Acidente de Viação elaborado pela GNR que o agente policial que procedeu à sua elaboração se deslocou ao local. Ou seja, o polícia autuante não presenciou o acidente, mas esteve no local do mesmo.
Não vemos com pode sustentar o recorrente, pelo referido, que não se encontra provado o local do acidente.
Sem necessidade de mais considerações conclui-se que não podem proceder estas conclusões.

B) Vem o recorrente sustentar nas suas conclusões 7 a 9 que não foi feito prova sobre a propriedade do veículo sinistrado, nem foi alegado tal facto que era essencial.
Também não se compreende esta alegação do recorrente.
Quanto à alegação da propriedade do veículo vem a Autora, logo no artigo 1º da pi, referir que “ no dia 16 de Janeiro de 2010…o veículo automóvel da Autora de matricula **-**-UZ…”. Em vários artigos da pi também se faz referência ao veículo da Autora.
Ou seja, não há dúvidas que foi alegado que a Autora era a proprietária do veículo.
A fls. 96 dos autos encontra-se certidão emitida pelo Instituto de Registos e Notariado referindo que “ a propriedade do veículo com a matrícula **-**-UZ marca RENAULT, referido no requerimento que antecede, está registado a favor de : Cristina Raquel Soares Leal…”
Na fundamentação quanto à matéria de facto referiu o Tribunal a quo sobre este aspecto:
A convicção sobre a propriedade do veículo (facto constante no ponto 1) “veículo da Autora”) resultou do documento junto aos autos a fls. 96 do processo físico que não foi impugnado e que demonstra que a propriedade se encontra registada em nome da Autora e, nessa medida, o Tribunal extrai a conclusão fáctica que o veículo é da Autora.

Nada há referir quanto a esta conclusão do Tribunal a quo, resultando a mesma dos documentos junto aos autos.
Improcedem assim também estas conclusões.

II- Nas suas conclusões 10 e 11 vem o recorrente referir que a matéria dos pontos 27, 28 e 29 afasta a ressunção constante do artigo 10º n.º 2 da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.
Os três pontos referem o seguinte:
27. O Réu tem cerca de 600 quilómetros de extensão de estradas municipais sob a sua jurisdição
28. O Réu tem plano de actuação rodoviário
29. O Réu tem piquetes que, diariamente executam trabalhos de reparação nas vias de circulação.

Menciona-se, quanto a este aspecto na decisão recorrida:
Além disso, os funcionários do Réu deslocaram-se ao local na véspera do acidente para desentupir o sistema de drenagem, mas sem sucesso e abandonaram o local sem providenciarem pela sinalização do local com qualquer sinal de perigo que alertasse os automobilistas para a existência daquele obstáculo.
Por conseguinte, o Réu, através dos seus funcionários, teve conhecimento da formação daquela poça de água na véspera do acidente e, como tal, impunha-se que:
(i) Tivesse providenciado pelo desentupimento imediato do sistema de drenagem para permitir o escoamento das águas pluviais por a existência de uma poça de água com aquelas características representar uma situação de perigo potenciadora de acidentes de viação para os utentes da via;
(ii) Caso se revelasse inviável o desentupimento imediato do sistema de drenagem, a sinalização adequada nos moldes supra explanados, o que não sucedeu.
Com efeito, nem o Réu desentupiu o sistema de drenagem, nem sinalizou com qualquer um dos sinais impostos por lei, sendo que os utentes da via deveriam ter sido informados de que na via existia um obstáculo ocasional que representava uma situação de perigo através de sinalização adequada, o que não sucedeu.
A falta de sinalização que indicasse a existência da poça de água e a não realização das operações materiais necessárias para desentupir a valeta e permitir o regular escoamento da água, quando o Réu teve conhecimento atempado da sua existência antes da ocorrência do acidente, permitem ao Tribunal concluir que o Réu não cumpriu o seu dever de manutenção da via municipal e sinalização do obstáculo ocasional. A experiência comum diz-nos que uma poça de água que ocupa as duas hemi-faixas de rodagem, com uma profundidade de, pelo menos, 15 cm na hemi-faixa de rodagem direita, atento o sentido de marcha da Autora, traduz uma situação potenciadora de elevados riscos para a segurança do trânsito que exige cuidados especiais para minorar os riscos para os utentes. Como tal, o Réu ao não providenciar pelo desentupimento do sistema de drenagem e pela sinalização do obstáculo ocasional omitiu os deveres de cuidado e fiscalização das vias públicas. Além disso, ao não sinalizar o obstáculo que se encontrava na via com o recurso à sinalização adequada omitiu, igualmente, o dever de cuidado e fiscalização da via sob sua jurisdição.
Com a sua conduta o Réu violou o disposto nos arts. 13.º, 16.º, al. b), 18.º, n.º 1, a) da Lei n.º 159/99, de 14/09, art.º s 5.º, n.º 1 e 2 do CE e arts. 77.º, 78.º, 84.º, 87.º e 90.º do D.R. n.º 22-A/98, de 01/10.
Assim, a verificação da omissão de sinalização adequada e manutenção da via face ao dever que é imposto pelos referenciados normativos e que definem os tipos de sinais a colocar em situações como a dos autos é suficiente para a consideração da ilicitude da conduta, presumindo-se a culpa dos serviços, nos termos do art.º 10.º, n.º 2 da Lei n.º 67/2007, que o Réu não logrou afastar.

Em matéria de culpa, dispõe o artigo 10.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro:

1. A culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor.

2. Sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de actos jurídicos ilícitos.

3. Para além dos demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância.”

Como vemos a decisão recorrida socorreu-se da presunção para concluir que ocorreu culpa na actuação da entidade demandada, ora recorrente.
No entanto, da matéria de facto dada como provada, verifica-se que não se tornava necessário recorrer a qualquer presunção, uma vez que estamos perante uma actividade da recorrente que não pode deixar de ser ilícita e culposa.
Na verdade quando se dá como como provado, e não vem posta em crise tal situação, que os funcionários do Réu deslocaram-se ao local na véspera do acidente para desentupir o sistema de drenagem, mas sem sucesso e abandonaram o local sem providenciarem pela sinalização do local com qualquer sinal de perigo que alertasse os automobilistas para a existência daquele obstáculo, verifica-se que estamos perante uma culpa efectiva da entidade recorrente e não presumida. Culpa esta que se deve aferir pela diligência e aptidão de um funcionário médio, zeloso e cumpridor ( artigo 10º n.º 1 da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro). Como se encontra provado que os trabalhadores do Município réu tiveram conhecimento do lençol de água, antes da ocorrência do acidente, procedendo mesmo a tentativas para desentupir o sistema de drenagem, não o tendo conseguido, e mesmo podendo prever os perigos daí decorrentes, não sinalizaram o local, não se pode concluir que tal actuação corresponda à actuação de um funcionário médio zeloso e cumpridor.
Assim sendo, pode-se concluir que ocorreu actuação culposa da Administração na produção do acidente em causa nos autos, pelo que sempre ficaria prejudicado o conhecimento do afastamento de presunção de culpa.
No entanto, como a decisão recorrida se socorreu da presunção de culpa, é de referir, desde já, que seria de aplicar ao caso dos autos o n.º 3 do artigo 10º, uma vez que estamos perante incumprimento dos deveres de vigilância, e não o seu n.º 2, aplicável apenas quando está em causa a prática de actos jurídicos ilícitos.
Como refere Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, Coimbra Editora, pág.168: “o n.º 3 do art. 10.º prevê igualmente uma presunção de culpa leve no caso de incumprimento de deveres de vigilância. A admissibilidade da presunção «por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil» parece implicar a remissão para o artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil, significando que a presunção funciona no tocante a danos causados por coisas, animais ou actividades relativamente aos quais uma pessoa colectiva pública tenha o dever de vigilância.
Consagra-se assim uma culpa in vigilando nos termos que vinham já sendo admitidos pela jurisprudência.

A presunção de culpa implica uma inversão do ónus da prova. Isto é, nestas situações não se aplica a regra do artigo 487º n.º 1 do CC, quando refere que é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, mas antes passa a ser o lesante que tem de provar que agiu sem culpa (artigo 350º n.º 2 do CC).
Mas neste caso, como refere Carlos Alberto Fernandes Cadilha, na obra citada (2ª edição pag. 206) “Entende-se, porém, que, provada a realidade dos factos que constituem a base da presunção, não basta para a sua elisão a simples alegação de desconhecimento da situação que originou o dano ou a prova de que os serviços dispõem de meios e equipamentos para exercer o dever de vigilância, sendo ainda necessário demonstrar que na situação concreta os serviços agiram de forma eficaz e adequada, de modo a que não se lhes possa imputar a ocorrência do acidente a título de culpa (Acórdão do STA de 2 de Maio de 2009, Processo n.º 566/08, e de 23 de Setembro de 2009, Processo n.º 606/09).
Ora, não são os factos invocados pelo recorrente, nomeadamente que tem cerca de 600 quilómetros de extensão de estradas municipais sob a sua jurisdição, e que tem plano de actuação rodoviário, e piquetes que, diariamente executam trabalhos de reparação nas vias de circulação, que eram idóneos a afastar essa presunção. Estamos perante factos gerais, comuns e vagos que nada têm a ver com a nossa situação concreta.
No entanto, como já referimos, no caso dos autos, estamos perante uma culpa efectiva e não presumida, pelo que não podem, de todo, proceder estas conclusões do recorrente.

Não procedendo as conclusões não pode proceder o presente recurso, pelo que deve ser mantida a decisão recorrida.

3. DECISÃO
Nestes termos, decidem os Juízes deste Tribunal Central, em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida

Custas pelo recorrente

Notifique

Porto, 22 de Janeiro de 2016
Ass.: Joaquim Cruzeiro
Ass.: Luis Miguéis Garcia
Ass.: Esperança Mealha