Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00120/03 - Porto
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:09/13/2013
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos
Descritores:RECLAMAÇÃO PRÉVIA NECESSÁRIA
CORRECÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA TRIBUTAÇÃO DO RENDIMENTO REAL
Sumário:1.1. A reclamação prévia necessária a que aludia o artigo 84.º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Tributário e a que aludem agora os artigos 86.º, n.º 5, da Lei Geral Tributária e 117.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário não abrange as correções meramente aritméticas da matéria tributável resultantes de imperativo legal – ao tempo, o n.º 4 daquele artigo 86.º do Código de Processo Tributário e, atualmente, o artigo 91.º, n.º 14 da Lei Geral Tributária;
1.2. São correções meramente aritméticas da matéria tributável resultantes de imposição legal, para efeitos destes normativos, aquelas em que a administração tributária não recorre a qualquer método de avaliação da matéria coletável (direto ou indireto) para determinar o imposto devido e se limita a corrigir erros de cálculo das declarações-liquidações;
1.3. Não são, por isso, correções meramente aritméticas da matéria tributável resultantes de imposição legal, as correções ao valor de venda de uma embarcação que resultaram de inspeção à escrita do sujeito passivo e do adquirente dessa embarcação e que tiveram por base o cruzamento dos dados respetivos e de informações aí relevadas sobre a depreciação dessa embarcação entre a data da construção e a data da venda.
1.4. A reclamação prévia necessária referida nos números anteriores também não abrange as questões de direito que não sejam referidas aos pressupostos da determinação indireta da matéria tributável ou da sua quantificação – cfr., atualmente, o artigo 91.º, n.º 14 da Lei Geral Tributária;
1.5. A questão de saber se a correção ao valor declarado da venda da embarcação, sem correspondente correção ao valor de aquisição (do lado do adquirente), ofende os princípios da igualdade e da tributação do rendimento real, é uma mera questão de direito, se o pressuposto de facto respetivo (não ter havido correção ao valor de aquisição) não é controvertido nos autos.
1.6. Por outro lado, essa questão não contende com os pressupostos de tributação por métodos indiretos nem com os critérios de quantificação respetivos, visto que não põe em causa o valor de venda apurado pela administração tributária;
1.7. Assim sendo, a questão de saber se tal correção ofende aqueles princípios constitucionais não dependia de prévia reclamação, sendo, por isso, nesta parte ilegal a decisão judicial que assim o considerou.
1.8. Mas a falta de correção do valor de aquisição não afeta, em tal caso, a legalidade da liquidação adicional efetuada ao vendedor com base no valor de venda corrigido, podendo apenas pôr em causa a legalidade da atuação da administração tributária junto do comprador.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:M... e outros
Recorrido 1:Fazenda Pública
Decisão:Concedido parcial provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. Relatório

1.1. «M…, I… e R… », sociedade irregular com o n.i.f. 9…, com sede na Rua…, em Vila do Conde, recorreu da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgando verificada a «exceção dilatória inominada da não reclamação prévia da fixação da matéria tributável», absolveu a Fazenda Pública da instância nos presentes autos de impugnação judicial da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas do exercício de 1998.

Recurso esse que foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Notificada da sua admissão, apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões:

A. Por decisão do tribunal recorrido a fls. ?? o Meritíssimo Juiz a quo JULGA: «procedente a referida excepção dilatória e, consequentemente absolvo a Fazenda Pública da instância». É da totalidade desta decisão que se recorre, quer por se discordar do procedimento da excepção dilatória invocada pela Fazenda Pública, quer por subsistir uma omissão de pronúncia do Tribunal quanto à demais matéria de facto e de direito relevante invocada pela impugnante.

B. De facto, a sentença recorrida viola, entre outros o disposto nos artigos 87º a 90º da LGT, o artigo 117º do CPPT, e os artigos 13º, 103º, n. 3 e 104º n.º 2 da CRP.

C. A Fazenda Nacional invocou como excepção dilatória a preterição do disposto nos artigos 86º, n.º 5, 91º e 92º da LGT e 117º n.º 1 do CPPT, quanto à essencialidade do prévio pedido de revisão da matéria tributável apurada em sede de avaliação indireta, como pressuposto da impugnabilidade da liquidação.

D. Entendemos que no caso inexiste esta obrigação de prévio pedido de revisão da matéria tributável, quer porque a impugnação não se funda exclusivamente em erro na quantificação ou nos pressupostos da determinação indireta da matéria tributável, quer porque esta quantificação se deu exclusivamente por correcção aritmética, como tal não sujeita a prévio pedido de revisão da matéria colectável.

E. De facto, a liquidação adicional de que se reclama funda-se numa correcção à declaração de IRS de 1998 da contribuinte, que se resumiu ao facto de a administração fiscal ter considerado como valor da venda da embarcação “E…” de 78.389.755$00/391.006,44 €, e não o valor declarado de 37.200.000$00/185.552,81€.

F. Ora a correcção supra referida limita-se como vimos à correcção aritmética do valor declarado do bem embarcação “E…”, no entanto os factos alegados (e provados) supra referidos, e sobre os quais o Tribunal a quo não se pronunciou comprovam que esta correcção está errada, e que o valor declarado era correcto.

G. Assim, o primeiro fundamento da impugnação está na errónea rectificação aritmética do valor do bem embarcação “E…”, certo sendo que nos termos da jurisprudência citada em sede de alegações estando em causa apenas a rectificação aritmética do valor do bem embarcação “E…”, a impugnação da liquidação daí resultante não está dependente do prévio pedido de revisão da matéria tributável.

H. O segundo fundamento da impugnação resulta do facto de esta rectificação aritmética estar em contradição com o valor constante de uma escritura pública de 26/08/1998, que rectifica o valor da venda para 37.200.000$00/185.552,81 €, e que representa documento autêntico cuja autenticidade não foi impugnada e que portanto faz prova plena dos factos nela atestados.

I. Conduta que viola expressamente o disposto no artigo 371.º do Código Civil pelo que esta avaliação indireta é igualmente ilícita por violação de direito, matéria que no entendimento unânime da jurisprudência e doutrina, supra citadas, pode igualmente ser suscitada em sede de impugnação judicial sem pévio pedido de revisão da matéria tributável.

J. O terceiro fundamento da impugnação resulta do facto de a Fazenda Pública agir na correção efetuada à contribuinte/impugnante em contradição com a inspecção realizada à entidade que adquiriu a embarcação.

K. O valor da venda da embarcação declarado pela contribuinte/impugnante corresponde ao valor de compra declarado pela «P…, Lda.» (como aliás é referido no relatório de inspecção), não havendo, por isso, aqui qualquer aproveitamento indevido ou fuga ao fisco, por o valor considerado como receita para a contribuinte, é igual ao considerado como despesa para a compradora «P…, Lda.», (cfr. Doc. n.º 13 junto com a Reclamação Graciosa).

L. Ora, na inspecção à contabilidade da empresa «P…, Lda.» - processo 0504014 – os valores apresentados foram aceites pela administração fiscal, não merecendo a sua declaração de IRC de 1998 qualquer correcção, conforme se pode apurar pelo «notificação do resultado da acção de inspecção – sem correcções» que se juntou sob a designação de Doc. n.º 14 junto com a Reclamação Graciosa.

M. Não é legítimo que a Fazenda Pública pretenda que nesta compra e venda seja considerado como receita para o vendedor – aqui contribuinte/impugnante – um valor superior (de 78.389.755$00/391.006,44 €) ao que a própria administração fiscal considerou como despesa para o comprador – a empresa «P…, Lda» (37.200.000$00/185.552,81€).

N. Contradição que atenta contra um basilar princípio da igualdade, decorrente do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e consuma uma notória violação do princípio inserto no n.º 2 do artigo 104º também da C.R.P. porquanto se impõe ao contribuinte uma tributação sobre um rendimento que este comprovadamente não auferiu.

O. Donde resulta que a impugnação dos autos, fundamentando-se na errada rectificação aritmética e em questões de direito, não está sujeita ao prévio pedido de revisão da matéria colectável como pressuposto de impugnabilidade.

P. É certo que a impugnante/recorrente, na sua impugnação questiona igualmente os pressupostos invocados pela Fazenda Pública para o recurso à avaliação indirecta.

Q. Mas tal não sendo este o fundamento exclusivo da impugnação, não fica a impugnabilidade da liquidação dependente do prévio pedido de revisão da matéria colectável, como é jurisprudência assente nos tribunais superiores.

R. Devendo, por isso, a excepção dilatória invocada ser julgada improcedente!

S. Do supra exposto resulta que, mesmo para a correcta apreciação da supra referida excepção dilatória, o tribunal a quo não podia ter deixado de apreciar a demais matéria de facto alegada, nomeadamente a supra exposta.

T. No entanto, esta omissão, porque o juiz a quo partiu do pressuposto (certo ou errado) da procedência da excepção dilatória previamente conhecida, não determina qualquer vício formal na Sentença, mas face à improcedência da excepção em sede de recurso importará necessariamente que o Tribunal a quo seja chamado a pronunciar novamente sobre a matéria de facto e de direito da impugnação.

U. Assim, deve este recurso ser julgado procedente e julgando improcedente a excepção dilatória invocada pela Fazenda Nacional, ser a Sentença recorrida revogada e determinar a remessa dos autos ao TAF do Porto para fixação da matéria de facto pertinente e apreciação do mérito da causa.

V. A final, deve o Tribunal julgar a impugnação procedente e em consequência devem ser anuladas as correcções efetuadas à DECLARAÇÃO DE IRC, relativas ao exercício de 1998, e nessa medida ser ANULADA a LIQUIDAÇÃO OFICIOSOA de IRC que se impugna.

W. Mais devendo ordenar-se que a quantia indevidamente paga relativa a esta liquidação, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 248-A/2002, de 14 de Novembro, no montante de 86.695,65 Euros (oitenta e seis mil seiscentos e noventa e cinco euros e sessenta e cinco cêntimos) seja restituída à contribuinte, acrescida dos respectivos juros de mora legais.

Assim o decidindo farão Vossas Ex.as inteira e sã JUSTIÇA.

1.2. Não houve contra-alegações.

A M.mª Juiz a quo lavrou despacho de sustentação.

Neste Tribunal, a Ex.mª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir, visto que nada a tal obsta.

1.3. A única questão a decidir é a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao concluir pela ilegalidade da impugnação judicial sem prévio pedido de revisão da matéria coletável (artigos “1.º” a “30.º” das doutas alegações de recurso; conclusões “A” a “R”).

É certo que, nos artigos “31.º” a “36.º” das doutas alegações de recurso e nas conclusões “S” a “W”, a Recorrente invoca também a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia sobre matéria de facto alegada. Mas para citar, logo de seguida, um acórdão deste Tribunal onde se afirma precisamente que tal nulidade não existe quando o que está em causa é a existência duma condição prévia de que depende a apreciação do mérito da causa. E a confirmar este entendimento, remata a própria Recorrente (na conclusão “T”) que tal omissão «não determina qualquer vício formal na Sentença». Pelo que o único sentido lógico da sua alegação é a de que a Recorrente não pretendia, afinal, invocar nenhuma nulidade, mas ressalvar que, em caso de provimento do recurso, se deverá determinar a devolução dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto para fixação da matéria de facto pertinente, sob pena de nulidade.

2. Fundamentação de Facto

2.1. Na sentença recorrida, foi a seguinte a resposta à matéria de facto:

«Com interesse para a apreciação da questão considero provados os seguintes factos:

1. Em 28/5/2002, foi elaborado pelos Serviços de Prevenção e Inspecção Tributária, o relatório com as conclusões da acção inspectiva efectuada a M… e outros, junto a fls. 43 a 48 do processo administrativo em apenso e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

2. Na sequência da acção inspectiva realizada, foram efectuadas correcções à matéria tributável dos ora impugnantes, ao exercício de 1998, com recurso a métodos indirectos.

3. Em 6/8/2002, através de correio registado com aviso de recepção, M… e outros foram notificados da fixação da matéria tributável relativamente ao exercício de 1998, nos termos que melhor constam de fls. 48-A(49 do processo de reclamação graciosa apenso.

4. No seguimento, em 2/10/2002, a administração tributária emitiu a liquidação adicional nº 8310034201 referente a IRC de 1998, no montante de imposto a pagar de € 104.950,17, cuja data limite para pagamento voluntário ocorreu em 18/11/2002.

5. Os impugnantes apresentaram reclamação graciosa contra a liquidação referida em 3) em 17/2/2003.

6. Tal reclamação foi totalmente indeferida, por despacho de 19/3/2004, por se ter concluído que “o contribuinte não podia reclamar graciosamente sem a prévia discussão na Comissão de Revisão, que a aplicação dos métodos indirectos está de acordo com as regras definidas, para tal, e, não apresenta provas que alterem o sentido das correcções efectuadas”.»

3. Fundamentação de Direito

3.1. A única questão a decidir é, como se disse, a de saber se o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento ao concluir que a impugnação judicial é ilegal por não ter sido efetuado prévio pedido de revisão da matéria tributável nos termos dos artigos 91.º a 94.º da Lei Geral Tributária.

A Recorrente pugna pela ilegalidade da decisão recorrida porque não levou em conta que o que estava em causa é a errónea retificação aritmética do valor do bem embarcação, o facto de o valor retificado estar em contradição com o valor constante de uma escritura pública e o facto de estar também em contradição com o valor assumido na inspeção realizada à contabilidade da entidade que adquiriu a embarcação.

Dispõe, com efeito, o artigo 91.º, n.º 14, da Lei Geral Tributária que «as correções meramente aritméticas da matéria tributável resultantes de imposição legal e as questões de direito, salvo quanto referidas aos pressupostos de determinação indireta da matéria tributável, não estão abrangidos por esse artigo», isto é, não admitem a revisão da matéria tributável. Daqui decorrendo que a impugnação da liquidação subjacente não pode estar dependente do prévio pedido de revisão.

Este dispositivo legal sucedeu ao artigo 84.º, n.º 5, do Código de Processo Tributário, que também afastava a possibilidade de reclamação graciosa das «correções meramente aritméticas da matéria tributável resultantes de imposição legal».

Sobre a natureza destas «correções meramente aritméticas da matéria tributável resultantes de imposição legal» já se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo no douto acórdão de 2007.04.26 (R. 037/07): são as situações em que a administração tributária não recorre a qualquer método de avaliação da matéria coletável (direto ou indireto) para determinar o imposto devido e se limita a corrigir erros de cálculo das declarações-liquidações. Como a atividade de controlo da administração tributária se resume aqui a operações de cálculo ou ao confronto dos valores delas resultantes com valores aritméticos constantes da lei tributária, não sobra aqui nenhuma da margem de subjetividade que é inerente ao ato de avaliação.

As «correções meramente aritméticas da matéria tributável resultantes de imposição legal» não se confundem, assim, com as operações aritméticas inerentes à quantificação da matéria tributável em qualquer método de avaliação. De um lado, porque a determinação da matéria coletável não se resume aqui a essas operações aritméticas. De outro lado, porque lhes serve de pressuposto quantitativo ou qualitativo algum facto que não decorre da declaração do contribuinte.

Ora, a Recorrente defende que as correções ao valor da venda da embarcação “E…” resultaram de retificações aritméticas mas não explicou porquê. Sendo que os dados disponibilizados nos autos não confirmam esta conclusão. Porque as correções efetuadas ao valor da venda não resultaram da mera análise da declaração apresentada para efeitos de I.R.C., tendo sido necessário proceder a uma ação de fiscalização, determinada pela ordem de serviço n.º 38355 (Código PAFT 32239) para obter elementos adicionais referentes aos movimentos financeiros realizados na fase da construção da embarcação e à existência ou não de factos que tivessem determinado a desvalorização dessa embarcação e justificado aquele valor. Sendo que nem aqueles movimentos financeiros – de acordo com a informação de fls. 95 do processo administrativo em apenso – se encontravam refletidos na contabilidade do sujeito passivo (o que, de resto, a Recorrente confirma no artigo 30.º da douta petição inicial), nem os fatores de desvalorização da embarcação foram fixados a partir de valores declarados mas, de acordo com a expressão ali utilizada, «com base nos valores por nós apurados» (cit.).

A Recorrente também defende que entre os fundamentos da impugnação estava uma questão de direito: a de saber se a administração tributária pode efetuar alguma correção à matéria tributável apoiada em valores constantes de documento autêntico. Mas nem a Recorrente indica onde é que tinha alegado anteriormente tal vício nem o tribunal de recurso, lendo e relendo a douta petição, conseguiu localizar a sua alegação. Assim sendo, não se pode confirmar, por aqui, a ilegalidade da decisão recorrida que não teve – nem podia ter – como pressuposto a alegação de tal vício.

Finalmente, a Recorrente defende que entre os fundamentos da impugnação estava outra questão de que não dependia o prévio pedido de revisão. Tratava-se da questão de saber se era ou não legítimo à administração tributária considerar como receita para o vendedor da embarcação um valor superior ao que a própria administração tributária considerou para o comprador. E se, pelo contrário, tal comportamento viola ou não o princípio da igualdade e o princípio da tributação do rendimento real, consagrados, respetivamente, nos artigos 13.º e 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

Ora, analisando a douta petição inicial, verifica-se que tal questão tinha sido alegada nos seus artigos 37.º e seguintes e que, por conseguinte, já integrava então o objeto do processo.

Por outro lado, trata-se de uma questão que não contende nem como os pressupostos de facto em que se suportou a correção à matéria coletável da Recorrente nem com o método de quantificação adotado. O que aqui está em causa é, tão só, saber se – no pressuposto (que não pode ser impugnado por aqui) que o valor mais aproximado da venda da embarcação foi o considerado pela administração tributária – é valida a correção operada com esse pressuposto apenas do lado do vendedor.

E, a ser assim, a impugnação judicial com tal fundamento não estava dependente de prévio pedido de revisão da matéria tributável. E a douta sentença que assim não o entendeu é ilegal neste segmento e terá que ser revogada.

3.2. A questão que fica é a de saber se o tribunal de recurso dispõe dos elementos necessários para o conhecimento desta questão em substituição do tribunal recorrido, ao abrigo do artigo 715.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

A resposta é afirmativa: muito embora não existam elementos que permitam confirmar que a ação de fiscalização à compradora da embarcação abrangeu o ano da sua aquisição (o documento n.º 14 junto à reclamação graciosa e para que remete o artigo 37.º da douta petição inicial não confirma que a inspeção respetiva tenha abrangido esse exercício e tenha tido por objeto o imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas declarado nesse exercício pela compradora da embarcação) é possível proferir desde já uma decisão conscienciosa sobre essa matéria em substituição do tribunal recorrido. O que se fará já de seguida.

Não se vê, desde logo que possa estar em causa, por aqui, o princípio da tributação do rendimento real. No pressuposto (o único de que aqui podemos partir sem questionar os pressupostos de facto em que se sustentaram as correções) de que o valor real da venda não foi o declarado pela vendedora e de que os pagamentos diretamente efetuados pelo comprador da embarcação aos fornecedores da Recorrente o foram a título de empréstimo à própria Recorrente, parece seguro que as correções efetuadas aos valores que esta declarou a título de menos valias vão no sentido de uma maior aproximação à sua verdadeira situação tributária.

E também não vemos que esteja em causa, por aqui, o princípio da igualdade tributária. Sendo o princípio da capacidade contributiva o critério material da igualdade tributária adequado aos impostos (do qual deriva, de resto, o princípio da tributação do rendimento real das empresas) o tratamento fiscal dado ao sujeito passivo que leve em conta o mais aproximado valor de venda da embarcação é o que assegura o tratamento fiscal mais paritário com outros contribuintes que disponham de idêntica capacidade contributiva.

É certo que, o valor correspondente de aquisição declarado pelo comprador não foi correspondentemente corrigido. Mas o que daqui pode derivar não é a ilegalidade da liquidação impugnada, mas a ilegalidade da decisão de não rever a auto-liquidação do comprador que, assim, não vai deduzir os gastos correspondentes nessa liquidação nem os das correspondentes amortizações nos exercícios subsequentes. O que não importa aqui considerar, porque essa(s) liquidação(ões) não constitui(em) o objeto da presente impugnação judicial.

Pelo que a impugnação judicial não pode proceder por aqui.

4. Conclusões

4.1. A reclamação prévia necessária a que aludia o artigo 84.º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Tributário e a que aludem agora os artigos 86.º, n.º 5, da Lei Geral Tributária e 117.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário não abrange as correções meramente aritméticas da matéria tributável resultantes de imperativo legal – ao tempo, o n.º 4 daquele artigo 86.º do Código de Processo Tributário e, atualmente, o artigo 91.º, n.º 14 da Lei Geral Tributária;

4.2. São correções meramente aritméticas da matéria tributável resultantes de imposição legal, para efeitos destes normativos, aquelas em que a administração tributária não recorre a qualquer método de avaliação da matéria coletável (direto ou indireto) para determinar o imposto devido e se limita a corrigir erros de cálculo das declarações-liquidações;

4.3. Não são, por isso, correções meramente aritméticas da matéria tributável resultantes de imposição legal, as correções ao valor de venda de uma embarcação que resultaram de inspeção à escrita do sujeito passivo e do adquirente dessa embarcação e que tiveram por base o cruzamento dos dados respetivos e de informações aí relevadas sobre a depreciação dessa embarcação entre a data da construção e a data da venda.

4.4. A reclamação prévia necessária referida nos números anteriores também não abrange as questões de direito que não sejam referidas aos pressupostos da determinação indireta da matéria tributável ou da sua quantificação – cfr., atualmente, o artigo 91.º, n.º 14 da Lei Geral Tributária;

4.5. A questão de saber se a correção ao valor declarado da venda da embarcação, sem correspondente correção ao valor de aquisição (do lado do adquirente), ofende os princípios da igualdade e da tributação do rendimento real, é uma mera questão de direito, se o pressuposto de facto respetivo (não ter havido correção ao valor de aquisição) não é controvertido nos autos.

4.6. Por outro lado, essa questão não contende com os pressupostos de tributação por métodos indiretos nem com os critérios de quantificação respetivos, visto que não põe em causa o valor de venda apurado pela administração tributária;

4.7. Assim sendo, a questão de saber se tal correção ofende aqueles princípios constitucionais não dependia de prévia reclamação, sendo, por isso, nesta parte ilegal a decisão judicial que assim o considerou.

4.8. Mas a falta de correção do valor de aquisição não afeta, em tal caso, a legalidade da liquidação adicional efetuada ao vendedor com base no valor de venda corrigido, podendo apenas pôr em causa a legalidade da atuação da administração tributária junto do comprador.

5. Decisão

Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em conceder parcial provimento ao presente recurso e, em consequência:

a) Revogar a decisão recorrida na parte em que julgou ilegal a parte da impugnação judicial que tinha por fundamento na violação dos princípios da igualdade e da tributação do rendimento real;

b) Em substituição, julgar a impugnação improcedente, na parte correspondente.

Mais se acorda, no mais, em negar provimento ao recurso.

A Recorrente suportará custas, em primeira instância, na proporção de 2/3 (dois terços) das devidas.

E suportará integralmente as custas do presente recurso.

Porto, 13 de Setembro de 2013

Ass. Nuno Bastos

Ass. Irene Neves

Ass. Pedro Marques