Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00212/12.4BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/28/2014
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:INCOMPETÊNCIA TRIBUNAL EM RAZÃO DA MATÉRIA
Sumário:I-A questão da (in)competência de determinado tribunal tem de ser resolvida em função do modo como se encontra articulado e fundamentado o pedido do autor, não sendo incumbência do réu definir o âmbito do mesmo;
I.1-a competência do tribunal não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção.
II-Em termos gerais, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais;
II.1-o que permite extrair a ilação de que à jurisdição administrativa incumbirá, em regra, o julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, isto é, todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada;
II.2-ficam de fora da jurisdição administrativa as causas que, na ausência de qualquer elemento de administratividade, o legislador ordinário quis atribuir a outra jurisdição.
III-No caso em concreto, trata-se de matéria relativa à acção de uma autarquia e de um agente da administração (o senhor presidente da Junta de Freguesia), no exercício da sua função administrativa e no contexto da mesma, razão pela qual cai na esfera de competência do TAF.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:AGMPC...
Recorrido 1:Junta de Freguesia de Rebordelo
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Sumária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
AGMPC... instaurou acção administrativa comum, com processo sumário, contra a Junta de Freguesia de Rebordelo, ambos já melhor identificados nos autos, deduzindo os seguintes pedidos:
a) Condenação da Ré ao restabelecimento de direitos e interesses violados, retirando as placas toponímicas, devolvendo os materiais que retirou e reconhecendo o A. como único e legítimo proprietário da faixa indevidamente apossada;
b) Condenação da Ré em “litigância de má-fé face ao abuso de poder, ao incumprimento das disposições administrativas em vigor e ao prejuízo causado ao A. sem que o interesse público o justificasse e a lei o fundamentasse “.
Para o caso de assim não ser entendido, então:
c) Deverá ser a Ré condenada a liquidar ao A. os prejuízos que lhe causou no montante de € 11.701,88, bem como a quantia de € 1.000,00 a título de danos morais.
Por
despacho saneador proferido pelo Tribunal Administrativo de Penafiel foi julgada procedente a suscitada excepção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria e absolvida da instância a Ré.
Deste vem interposto recurso.
Em alegação o Autor concluiu assim:
1) A Ré no exercício das suas funções de autarquia local, através do seu presidente de Junta, tomou decisões e estabeleceu relações jurídicas reguladas pelo Dtº Administrativo (e não contempladas em qualquer outro código)
2) Tais relações geraram um ABUSO DE PODER merecedor de Tutela Jurisdicional Efectiva (art. 2º CPTA)
3) Configurando actos nulos e anuláveis (ats. 134º CA e 58º CPTA)
4) Tendo-se verificado sonegação dos deveres de informação, de audiência de interessados de formalismos legais na ocupação em causa e outros
5) Tudo em ofensa aos direitos fundamentais do A.
6) Pelo que deverá improceder a sentença que absolve a R. da instância sob pretensa incompetência material do TAF de Penafiel
7) Já que outro não se entenderia que o fosse
8) Com ulteriores termos e prosseguimento legal.
Pede deferimento
A Ré ofereceu contra-alegação, sem conclusões, pedindo que seja negado provimento ao recurso.
O MP, notificado ao abrigo do disposto no artº 146º/1 do CPTA, emitiu o parecer de fls. 152/154, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
A este respondeu o Autor, sustentando a posição assumida em sede de recurso- fls. 158/159.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
O Recorrente assaca ao julgado erro de direito, na medida em que o tribunal, ao declarar-se incompetente em razão da matéria, descurou que a Ré agiu no exercício das suas funções de autarquia local, através do seu presidente de Junta, tomando decisões e estabelecendo relações jurídicas reguladas pelo Direito Administrativo (e não contempladas em qualquer outro código), relações essas geradoras de abuso de poder merecedor de tutela jurisdicional efectiva, por configurarem actos nulos e anuláveis, do mesmo modo que se verificou sonegação dos deveres de informação, de audiência de interessados e de formalismos legais na ocupação em causa.
Cremos que lhe assiste razão.
Antes, porém, deixa-se aqui transcrito o discurso jurídico fundamentador do despacho em apreço:
O Autor alega “…que a Ré tem vindo a praticar actos impeditivos do exercício do seu pleno direito de propriedade, visto aquela considerar que determinado caminho que atravessa a referida propriedade é um caminho público.
Em sede de contestação, a Ré invoca a incompetência material do tribunal, como excepção dilatória que implica a sua absolvição da instância.

Vejamos
Embora alguns dos pedidos deduzidos pelo Autor sejam efectivamente, típicos de uma acção da competência dos tribunais administrativos, com o pedido de reconhecimento do A. como único e legítimo proprietário de determinado terreno, já assim não é, como refere, por todos, o Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 07-07-2009, processo n° 08/09, disponível em www.dgsi.pt.
Nesses termos, e de acordo com o disposto no art° 50º, n° 2 do CPTA, terá de haver lugar à absolvição da instância quanto a esse pedido de condenação da Ré a reconhecer que o Autor é o único e legítimo proprietário de determinado terreno, bem como, em consequência, dos restantes pedidos, designadamente, do pedido subsidiário de condenação da Ré ao pagamento de indemnização, já que o Autor só pretende que o mesmo seja satisfeito se o primeiro não o for, usando a expressão, «e se assim se não entenda”
(o sublinhado é nosso).
X
Para dirimir a questão em análise importa saber se a matéria colocada como objecto da causa, maxime o pedido e a causa de pedir configuram alguma das situações em que a lei atribui a competência especificamente aos tribunais administrativos, porque se assim não for a matéria cabe aos tribunais comuns, cuja competência, como se sabe, é genérica e residual.
Vejamos, portanto, se a matéria se enquadra na previsão do artº 1º do ETAF aprovado pela Lei 13/2002, isto é, se deve qualificar-se como litígio emergente de relação jurídica administrativa.
Para ajudar a delimitar o conceito de relação jurídica administrativa o nº 4º do mesmo diploma efectua uma enumeração exemplificativa, através da qual podemos encontrar critérios ou efectuar uma delimitação de fronteiras, usando as técnicas de interpretação da lei.
A relação jurídica administrativa tem sido definida como aquela que se desenvolve entre um ente público e pessoas privadas sob a égide de normas de direito público, isto é, que regulam a relação de modo diferente de correspondentes relações privadas, por incluírem um poder da parte pública ou uma sujeição especial, determinadas pela necessidade de conferir especial eficácia à tutela do interesse público.

E fazendo-o, parece-nos que tem razão o Recorrente, quando pugna pela competência material dos tribunais da jurisdição administrativa para a apreciação deste litígio.
Na verdade, fazendo apelo ao preceituado no artº 13° do CPTA, é seguro que a competência do tribunal é de ordem pública e deve preceder o conhecimento de qualquer outra matéria.
Acresce que a incompetência absoluta se configura como uma excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e que conduz à absolvição da instância, sendo, de resto, do seu conhecimento oficioso, conforme resulta das disposições conjugadas dos artºs 576°/1 e 2, 577°/al. a), 578º/1ª parte e 278°/1, al. a), do novo CPC, (artºs 62º/2, 101º, 102º, 105º/1, 288º/1, al. a), 493º/1 e 2 e 494º/al. a), todos do antigo CPC, então em vigor, ex vi artº 1º do CPTA e referidos no despacho saneador em análise).
A competência do tribunal, como se salienta no parecer da senhora PGA, constitui um pressuposto processual, sendo um dos elementos de cuja verificação depende o dever do juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a pretensão deduzida. Como qualquer outro pressuposto processual, é aferida em relação ao objecto da lide, tal como é configurado pelo autor.
Deste modo, o problema da (in)competência de determinado tribunal tem de ser resolvido em função do modo como se encontra articulado e fundamentado o pedido do autor, não sendo incumbência do réu definir o âmbito do mesmo.
Dito de outro modo, a competência do tribunal não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, constituindo uma questão que será decidida de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor, não importando averiguar quais deviam ser as partes ou os termos dessa pretensão. É, portanto, o pedido do demandante que determina a competência do Tribunal - Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91, Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 104, e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns, 3ª ed., pág. 139.
Na verdade, na base da competência em razão da matéria, está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para certos órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram -Antunes Varela /Miguel Bezerra/ Sampaio e Nora, ob. cit./197.
Postos estes considerandos, repete-se, parece-nos acertada a pretensão do Recorrente.
Com efeito, o artº 212°/3, da CRP define o âmbito da jurisdição administrativa por referência ao conceito de relação jurídica administrativa, já que prescreve competir aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Acresce que, em sintonia com o referido normativo, estatui o artº 1º/1 do ETAF, que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Na arquitectura deste quadro legal, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto, além do mais, a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal - artº 4°/1/al. a), do ETAF.
Em termos gerais, compete aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais. O que nos permite extrair a ilação de que à jurisdição administrativa incumbirá, em regra, o julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, ou seja, todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário expressamente atribuiu a outra jurisdição.
Neste sentido, as relações jurídicas administrativas pressupõem o relacionamento de dois ou mais sujeitos, num feixe de posições activas e passivas, regulado por normas jurídicas administrativo e sob a égide da realização do interesse público.
O critério material da distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público - Vieira de Andrade em Justiça Administrativa, 9ª ed., 103. Já Fernandes Cadilha, em Dicionário de Contencioso Administrativo, 117/118, afirma: Por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração), que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas.
A competência do Tribunal afere-se pelo pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos que invoca, pelo que a análise da petição dos Autores é determinante, sublinha o ac. do STA de 27/01/2010, proc. 017/09.
Assim sendo, há que atentar na configuração que o A. faz da acção, a saber, o pedido formulado e a concreta causa de pedir em que se baseia.
E, a este nível, invoca que:
-é dono e legitimo proprietário dos prédios urbanos que identifica na p.i ;
-a 21 de Março de 2009 solicitou à Ré Junta de Freguesia de Rebordelo informação QUANTO ÀS VIAS PÚBLICAS QUE AÍ SERVEM A SUA PROPRIEDADE;
-a 28 de Março de 2009 a Ré deu como resposta a tal solicitação a informação que “AS VIAS PÚBLICAS QUE SERVEM A VOSSA PROPRIEDADE SÃO: RUA ANTÓNIO MARIA DOS SANTOS E CAMINHO DA GRANJA;
-de seguida passou a cuidar das suas propriedades nelas ocorrendo anómalos incidentes (de autoria desconhecida) tais como:
-caminhadas promovidas pela junta através dos terrenos do A.;
-o armazém da quinta incendiou-se;
-os postes recentemente colocados foram arrancados;
-os enxertos de vinha foram destruídos;
-tendo o A. pedido à R. Junta de Freguesia colaboração para tais anomalias, esta nem sequer respondeu;
-o A. a expensas suas, limpou a sua propriedade, criou caminhos e reabriu alguns trajectos;
-limitou a sua propriedade;
-num desses caminhos que atravessa a propriedade do autor a ré decidiu inaugurar um caminho “CAMINHO DA BURRA” (NOVO), mandando remover as pedras limitativas e destruir e retirar as redes e cabos que o A. colocou, colocando placas toponímicas;
-tudo sem que ao A. nada fosse pedido, comunicado ou indemnizado ou “para se pronunciar”;
-não só promoveu a junção de múltiplas diligências e peças até documentais como tentativas de acordo, exercendo a sua competência;
-estão em causa direitos e interesses violados por UMA AUTARQUIA NO EXERCÍCIO DAS SUAS FUNÇÕES E PRERROGATIVAS ADMINISTRATIVAS logo configurando actos e relações jurídicas reguladas pelo Direito Administrativo e não por qualquer outro,… .
E, voltando ao despacho recorrido, ele próprio reconhece que “Embora alguns dos pedidos deduzidos pelo A. sejam, efectivamente, típicos de uma acção de competência dos Tribunais Administrativos, com o pedido de reconhecimento do A. como único e legitimo proprietário de determinado terreno, já assim não é”.
Ora, esta constatação difere daquela que foi objecto de análise no acórdão do STA de 07/07/2009, pr. 08/09, em que a decisão sob recurso se alicerçou, pois deste resulta o seguinte: “Trata-se, assim, de um litígio entre particulares que tem subjacente a defesa de um bem alegadamente de domínio público, o qual não é suficiente para caracterizar a relação como jurídico-administrativa, ……………”.
Tal como alegado, na hipótese vertente, trata-se de matéria relativa à acção de uma autarquia e de um agente da administração (o senhor presidente da Junta de Freguesia), no exercício da sua função administrativa e no contexto da mesma.
Logo, os tribunais da ordem administrativa são os competentes para conhecer do mérito/fundo da causa.
Atento o desenho da presente acção feito na p.i., trata-se de uma acção em que a Ré/Junta de Freguesia intervém na sua veste de ente público, munida do seu poder de autoritas, e não como qualquer privado que se arroga a propriedade da faixa de terreno em causa.
Socorrendo-nos do mesmo acórdão do STA de 7/7/2009, dele decorre:
“O critério material de distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica e nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público” . E a relação jurídica administrativa pode, de um modo geral configurar-se como a definida pela seguinte ordem de critérios:
-a que se estabelece entre duas pessoas colectivas públicas ou entre dois órgãos administrativos, desde que entre ela não haja indícios da sua pertinência ao direito privado;
-aquela em que um dos sujeitos, pelo menos (seja ele público ou privado) actua no exercício de um poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente definido.
E acrescenta, aquela em que este sujeito actua no cumprimento de deveres administrativos de autoridade pública, impostos por motivos de interesse público.
A matéria dos autos, tal como advogado, emerge de relações jurídicas administrativas. Diferente seria se estivesse em causa tão só uma acção de reivindicação, como resulta, por todos, do ac. do TC de 06/02/2014, pr. 047/13 cujo sumário reza assim: ”É da competência dos tribunais judiciais a acção em que, sem qualquer elemento específico de administratividade, determinada empresa municipal, invocando a propriedade sobre certo imóvel, peticiona contra ocupante, alegadamente sem título, a respectiva restituição bem como o arbitramento de indemnização pelos danos causados pela detenção indevida. (sublinhado nosso).
Ora, aqui, esse elemento de administratividade existe, pelo que tem razão o Recorrente ao concluir que o caso em concreto é da competência do TAF a quo, pois, os demais se declarariam (eles sim), incompetentes em razão da matéria.
Em face do exposto, procedem as conclusões da alegação.
DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso e, em consequência:
a) revoga-se a decisão recorrida;
b) ordena-se a remessa dos autos ao TAF de Penafiel com vista à subsequente tramitação, desde que a tal nada mais obste.

Custas pela Recorrida.
Notifique e D.N..
Porto, 28/03/2014
Fernanda Brandão
João Sousa
Maria do Céu Neves