Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00109/14.3BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/30/2016
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Alexandra Alendouro
Descritores:DECISÃO SURPRESA – PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Sumário:I – O princípio do contraditório, garantido constitucionalmente enquanto valor estruturante do ordenamento jurídico português, constitui um princípio basilar do processo civil – consagrado no artigo 3.º/3 do CPC – visando assegurar às partes, em qualquer processo e em qualquer fase do mesmo, em plena igualdade, a participação real e activa no desenvolvimento do litígio que as envolve, em diálogo entre elas e com o órgão jurisdicional, influenciando, dessa forma, a formação de decisões a proferir nos autos.
II – Não tendo sido dada oportunidade à autora para previamente se pronunciar sobre matéria de excepção, conhecida oficiosamente no saneador, nem invocado e, em consequência, justificado tratar-se de caso de manifesta desnecessidade de observância do contraditório, a decisão recorrida constitui “decisão surpresa”, violando aquele princípio, o que integra uma nulidade que influiu no exame ou na decisão da causa e se consumou com a prolação da mesma, determinando a anulação de todo o processado a partir do momento em que se verificou – artigos 3º, nº 3, 195.º/1 do CPC.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:JP,N & FILHOS, S.A.,
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE CARRAZEDA DE ANSIÃES
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
I – RELATÓRIO
JP,N & FILHOS, S.A., interpõe recurso jurisdicional do despacho saneador-sentença proferido pelo TAF de Mirandela, no âmbito da acção administrativa comum intentada pela Recorrente contra o MUNICÍPIO DE CARRAZEDA DE ANSIÃES que julgou procedente a excepção de ilegitimidade activa, e, em consequência, absolveu o réu da instância.
*

Nas alegações de recurso, a Recorrente formulou as seguintes CONCLUSÕES que delimitam o objecto do recurso:

1ª – Em processo de injunção a prova é apresentada pelas partes na audiência de julgamento, não havendo por isso lugar à aplicação do disposto pelo art.º 552º/n.º 2 do CPC.

2ª – Aliás, no processo de injunção, sendo deduzida oposição pelo Réu vai o processo à distribuição seguindo-se os termos do processo comum, claro está com as devidas adaptações, cabendo ao juiz da causa o dever de gerir o processo, o qual determinará a prática dos actos que se lhe afigurarem mais adequados à adaptação da tramitação do processo tendo em vista a sua agilização e, simplificação para garantir uma justa composição do litígio em prazo razoável (cfr. 590º/n.º 2 al. c) e 591º/n.º 1 ex vis art.º 6º/n.º 1 do CPC).

3ª – No caso dos autos, pretendendo o julgador tomar posição sobre uma questão que poderia colocar termo ao processo, deveria ter convidado as partes a pronunciarem-se sobre essa matéria, até porque a mesma nem sequer tinha sido objecto de debate nos articulados, mais a mais, tratando-se de processo em que não é admissível o articulado de réplica, não teve a Autora oportunidade de se pronunciar sobre a impugnação do contrato invocado e que tão pouco se mostrava ainda junto aos autos, e cuja junção, no mínimo seria de ordenar, adequando a tramitação processual para posterior conhecimento do mérito da questão substantiva/adjectiva da legitimidade da Autora.

4ª – Assim, conhecendo a decisão recorrida sobre a questão de legitimidade da Autora sem lhe conceder a possibilidade de se pronunciar sobre a mesma, violou o princípio do contraditório imposto pelo art.º 3º n.º 3 do CPC.

5ª – Omissão que configura preterição de formalidade essencial, o que importa na nulidade do acto, ou seja, na nulidade da decisão/sentença recorrida.

6ª – Por isso, ao contrário do entendimento sustentado pela decisão recorrida, impunha-se a prolação de decisão que ordenasse a notificação das partes para se pronunciarem, querendo, sobre a questão a decidir, possibilitando assim à Autora/Recorrente a junção tempestiva da prova documental da qualidade e direito de que se arroga.

7ª - Em face do exposto, a decisão recorrida efectuou uma errada interpretação e aplicação da lei, em particular dos normativos constantes dos artigos 3º/n.º 3, 6º, 7º, 590º e 591º do CPC, pois como se deixou alegado, não podia o julgador pronunciar-se sobre matéria de facto e de direito sem prévio debate das partes, motivo pelo qual os autos deveriam ter prosseguido adequando a sua tramitação, determinando a notificação das partes para se pronunciarem para, posteriormente, então dar lugar ao conhecimento e decisão a proferir sobre o mérito.

8ª - Porque assim não sucedeu, o Mmº Juiz “ad quo” decidiu erradamente, decisão que causa agravo à Recorrente.

Termos em que, (…)., deve: (…) ser ordenado ao Tribunal recorrido que dê cumprimento ao princípio do contraditório e, após, se determine o prosseguimento dos autos conforme for entendido de direito.


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Nas contra-alegações de recurso, o Recorrido formulou as seguintes CONCLUSÕES:

I - “Após a Oposição ao requerimento de injunção passa a haver uma acção administrativa comum à qual são aplicadas as regras processuais cíveis, nomeadamente, o nº 2 do artº 552º do CPCivil;

II - Naturalmente que uma vez distribuída a acção administrativa comum passa o Mmº Juiz do processo a proceder à sua gestão, mas as partes não ficam desobrigadas do cumprimento tempestivo dos actos que se lhe impõem, por força do princípio do impulso processual, que sempre lhes cabe, o que para a Recorrente determinou a obrigação de nos 10 dias subsequentes à notificação da Contestação ir aos autos tomar posição sobre as excepções e os factos novos deduzidos pelo Recorrido, o que devia ter feito nos termos do disposto do nº 2 do artº 552º, da segunda parte do nº 1 do artº 587º e do artº 574º, todos do CPCivil, mas que a Recorrente optou por não fazer;

III - O Recorrido ao impugnar, por desconhecimento, a existência do contrato de cessão de crédito referido pela Recorrente, equacionou a existência da excepção dilatória da legitimidade activa e a decisão do Mmº Juiz a quo era absolutamente previsível e, consequentemente, não há qualquer violação maxime do princípio do contraditório;

IV - Conquanto, a Recorrente tendo podido proceder à apresentação do contrato que alegou possuir, nos 10 dias subsequentes à notificação da oposição/contestação apresentada pelo Recorrido, e não o tendo feito, fez precludir o seu direito, e não comprovou a utilidade da procedência da acção nos termos e para os efeitos do disposto no artº 30º nºs 1 e 2 do CPCivil.

V - Além disso, a decisão recorrida não enferma de qualquer vício muito menos de nulidade por preterição de formalidade essencial, dada a manifesta desnecessidade de ouvir a Recorrida sobre o facto desta, voluntariamente, não ter junto aos autos o dito contrato de cessão de crédito, caso exista, que comprovaria a utilidade derivada da procedência da acção, mostrando-se assim cumprido, designadamente, o nº 3 do artº 3º do CPCivil.

VI - A Douta Sentença “a quo” faz uma adequada interpretação e aplicação do regime processual vigente tendo sido elaborada em pontual cumprimento dos artigos 3º nº 3, 6º, 7º, 590º e 591º do CPCivil pois o julgador pronunciou-se sobre matéria de facto e de Direito após debate do Recorrido e do exercício da opção de não pronúncia por parte da Recorrente, em cumprimento do disposto no nº 2 do artº 552º do CPCivil;

VII - E, por tudo o que se deixa dito só pôde o Mmº Juiz a quo julgar a Recorrente parte ilegítima por não ter comprovado a utilidade derivada da procedência da acção nos termos dos nºs 1 e 2 do artº 30º do CPCivil;

Nestes termos, (…) deverá a Douta Sentença ser mantida nos seus exactos e precisos termos.”.

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O tribunal recorrido proferiu despacho, sustentando a inexistência da apontada nulidade.
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O Ministério Público foi notificado nos termos e para os efeitos do artigo 146.º n.º 1 do CPTA.
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II – QUESTÕES DECIDENDAS:

As questões suscitadas no presente recurso, de acordo com as conclusões das alegações que delimitam o âmbito do tribunal ad quem – artigos 5.º, 608.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 3, 4 e 5 e 639.º do CPC – e que se resumem à nulidade da sentença recorrida por violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3º, n.º 3, do CPC e à errada interpretação e aplicação dos artigos 3º/n.º 3, 6º, 7º, 590º e 591º do CPC.

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III – FUNDAMENTAÇÃO:

A– FACTOS PROVADOS

Para conhecer da excepção de ilegitimidade activa, a decisão recorrida deu como assentes os seguintes factos:

1. Por deliberação da Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães foi decidido lançar um concurso público para adjudicação da execução da empreitada designada "Arranjo Urbanístico entre as ruas LC e Marechal GC" – art.º 2 e 3 da PI, não impugnados e doc. n.º 1 da contestação;

2. O contrato de empreitada de obras públicas outorgado para a execução do arranjo urbanístico ora em questão foi assinado em 2 de Fevereiro de 2001 entre o aqui R. Município e a sociedade “RR&M, S.A” NIPC 5..., com sede na R. …– doc. n.º 1 da contestação;

3. No âmbito desse contrato foram outorgados mais três contratos adicionais entre as mesmas partes, que constituem os docs. 2 a 4 da contestação, e que aqui se reproduzem.

Com interesse para a decisão não se provou

· Que por acordo de dação “pro solvendo” datado de 28/11/2008 celebrado entre a sociedade “RR&M, SA” e a A. o crédito em causa nos autos tivesse sido cedido à A. ver fundamentação infra”.”.


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B/DE DIREITO

Da nulidade processual por violação do princípio do contraditório:

A questão fulcral colocada pela Recorrente é a de que o tribunal a quo violou o princípio do contraditório – artigo 3.º/3 do CPC – na medida em que não lhe concedeu a possibilidade de se pronunciar sobre matéria de excepção não arguida pelo réu (ilegitimidade), mas suscitada oficiosamente em sede de saneamento dos autos.

Da tramitação dos presentes autos resulta o seguinte:

– O presente processo teve origem num requerimento de Injunção que, por ter sido deduzida Oposição por parte do réu/Recorrido, deu lugar à remessa para o tribunal competente e distribuição como “Acção Administrativa Comum”.

– O réu/Recorrido na contestação apresentada defendeu-se por excepção e por impugnação, designadamente, impugnando por desconhecimento “um acordo de dação “pró solvendo” que terá celebrado com a insolvente RR&M, S. A.” – a qual foi notificada à autora/Recorrente.

– Em 25.06.15 foi aberta conclusão ao juiz titular do processo, o qual, de imediato, proferiu o despacho saneador-sentença ora recorrido que julgou procedente a excepção da ilegitimidade da autora/Recorrente, nessa data suscitada oficiosamente pelo julgador.

– Na decisão recorrida fez-se constar que a “A., notificada da contestação, não veio alterar o requerimento probatório, designadamente juntando o alegado contrato de cedência (…)”.

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Vejamos.
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Questão prévia:
O CPTA revisto e republicado pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, entrou em vigor no dia 2 de Dezembro 2015, com aplicação exclusiva aos processos iniciados após essa data – cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 15.º – não se aplicando, assim, ao presente processo distribuído em juízo no dia 26.12.2014.

A presente acção administrativa comum segue a tramitação do processo de declaração previsto no novo CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que entrou em vigor no dia 01.09.2013 – cfr. artigos 1.º e 35.º (parte inicial) do CPTA/2004, 5.º e 8.º da Lei n.º 41/2013.

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Cabe enquadrar o caso vertente nos principais normativos relativos à tramitação processual e ao princípio do contraditório, com ele relacionados.

Assim:

Nos termos do artigo 584.º/1 do CPC/2013, a réplica passou a ser admissível apenas para o autor deduzir a defesa quanto à matéria da reconvenção, vigorando em sede do contraditório sobre a defesa por excepção a regra de “às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.”artigo 3.º/4 do CPC.

Pelo que, em princípio, deve o juiz permitir o contraditório sobre as excepções na audiência prévia – artigos 3.º/4 e 591.º/1-b) do CPC/2013 – não a dispensando, de forma a prosseguir tal finalidade – cfr. artigo 593.º/1 a contrario.

Sem prejuízo de, ao abrigo do princípio da adequação formal e considerando os poderes/deveres de gestão processual do juiz – cfr. artigos 6.º e 547.º do CPC, aplicáveis por força dos artigos 1.º e 42.º/1 do CPTA/2004 – poder o mesmo conceder o contraditório sobre as excepções, por escrito, dispensando a audiência prévia, caso seja aquela a sua única finalidade, bem como facultar o exercício do contraditório no início da audiência final, quando não tenha havido lugar a audiência prévia nem a notificação para audição prévia por escrito.

Acresce que, de acordo com o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 3.º do CPC (Necessidade do pedido e da contradição) “Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.”; “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”.

Assim, no caso vertente, quanto às excepções suscitadas pelo réu, face à inadmissibilidade da réplica para responder à matéria de excepção e à não realização de audiência prévia – momento normal para a autora se pronunciar quanto à matéria de excepção invocada pela ré – o julgador a quo podia fazê-lo na audiência final, caso o processo prosseguisse, ou mediante notificação para pronúncia sobre a matéria de excepção.

No que respeita directamente ao presente recurso, a excepção julgada procedente no despacho saneador-sentença recorrido, de ilegitimidade activa, com consequente absolvição do réu da instância, e que assim pôs termo ao processo, foi suscitada não pelo réu, mas oficiosamente pelo juiz, recaindo sobre factos e direito não debatidos pelas partes nos seus articulados – sem que previamente tenha sobre ela ouvido as partes, em especial a autora/Recorrente.

O que se impunha.

Na verdade, ainda que o Tribunal a quo não estivesse inibido de apreciar a questão prévia em causa – cfr. artigo 87.º, n.º 1, alínea a) do CPTA/2004 que impõe ao juiz o dever de conhecer obrigatoriamente (…) de todas as questões que obstem ao conhecimento do objecto do processo”, sendo que essas questões, correspondendo a excepções dilatórias, são de conhecimento oficioso, devendo ser apreciadas independentemente de terem sido suscitadas pelas partes nos articulados” – Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Cometário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª edição revista, 2010, p. 573 – tal não implica que pudesse conhecer a excepção dilatória de ilegitimidade activa sem, previamente, ter dado oportunidade às partes de se pronunciarem, e sem justificar que se tratava de um caso de manifesta desnecessidade do cumprimento do contraditório.

Com efeito, o princípio do contraditório constitui um princípio basilar do processo civil – garantido constitucionalmente enquanto valor estruturante do ordenamento jurídico português – com consagração legal expressa no artigo 3.º do CPC – visando assegurar às partes, em qualquer processo e em qualquer fase do mesmo, em plena igualdade, a participação real e activa no desenvolvimento do litígio que as envolve, em diálogo entre elas e com o órgão jurisdicional, influenciando dessa forma a formação de decisões a proferir nos autos.

Do que decorre, entre o demais, a proibição do órgão jurisdicional proferir decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes, mesmo de conhecimento oficioso, com surpresa para as mesmas, padecendo de nulidade secundária a decisão que assim proceda.

Note-se que o objectivo principal do referido princípio deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição das partes, para passar a ser a influência destas, no sentido positivo, no desenvolvimento e no êxito do processo.

Sendo, sobretudo, no âmbito das questões de direito de conhecimento oficioso que a observância do princípio do contraditório, na vertente da proibição da decisão-surpresa, tem fundamental relevância, pois as que estejam na disponibilidade exclusiva das partes são, em geral, objecto de discussão antes da decisão.

Neste sentido vide, entre outros, Lebre de Freitas/João Redinha-Rui Pinto in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 1999, p. 6 e ss, José Miguel Garcia Medina in Novo Código de Processo Civil Comentado, 4ª Edição, 2016, editora Revista dos Tribunais; Acórdãos do STA, de 09/10/2002, Rº n.º 48236, de 29.01.2014, Rº 663/13, de 29/01/2015, P. 01311/13; Acórdãos do TCAS n.ºs 8542/15, de 19.2.2015, 08998/15, de 17/03/2016; Acórdãos do TCAN n.ºs 01730/08.4BEBRG, de 22/04/2010, 2183/13.0BEPRT de 20.05.2016, bem como os Acórdãos do TRL n.ºs 572/11.4TBCND.C1, de 13.11.2012, 67/00.1DSTB-B.L1-2, de 04.06.2009 e TRC n.º 2582/10.0TBFIG.C1, de 05-11-2013, que a seguir se deixam, respectivamente, sumariados:

“I – O princípio do contraditório é um dos princípios basilares que enformam o processo civil (…) III - O cumprimento do princípio do contraditório não se reporta, pelo menos essencial ou determinantemente, às normas que o juiz entende aplicar, nem à interpretação que delas venha a fazer, mas antes aos factos invocados e às posições assumidas pelas partes. IV - A decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito. V - Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração.”.

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“1. Visa o nº 3 do artigo 3º do CPC banir as decisões surpresa e, por isso, se defende que o Juiz não pode decidir questões de conhecimento oficioso sem que previamente tenha sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, não podendo igualmente decidir com base em qualificação substancialmente inovadora que as partes não hajam considerado, sem antes lhes ter dado a possibilidade de produzirem as suas alegações, perspectivando o enquadramento jurídico vislumbrado pelo tribunal. (…) O conhecimento oficioso sobre a questão da incompetência material do Tribunal, não obstante o decidido no despacho liminar, sem previamente se ter dado oportunidade às partes de se pronunciarem sobre a questão, nem se ter justificado que se tratava de um caso de manifesta desnecessidade do cumprimento do princípio do contraditório, integra uma nulidade com influência no exame ou decisão da questão.”.
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“A questão da ineptidão da petição inicial, por incompatibilidade substancial de pedidos, não tendo sido suscitada, ainda que imperfeitamente, pela contestante, não deve ser conhecida pelo tribunal sem que se dê oportunidade ao Autor de se pronunciar sobre tal matéria, pois não se vislumbra que este procedimento seja de considerar como manifestamente desnecessário. Tendo essa questão sido conhecida oficiosamente no saneador, sem precedência da audição do autor, há omissão de um acto que a lei impõe (artº 3º, nº 3 do CPC).”.

A violação do princípio do contraditório insere-se pois “(...) na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do artº 201º, nº 1: dada a importância do contraditório, é indiscutível que a sua inobservância pelo tribunal é susceptível de influir no exame ou na decisão da causa.”. cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 2ª ed., 1997, p. 46 e ss.

Nulidade que se consuma com a prolação da decisão recorrida, na medida em que ocorrendo uma omissão processual prévia à prolação da decisão judicial recorrida e, portando, em momento em que o juiz a quo poderia ter ordenado a prática do acto em falta, a decisão judicial dá abrigo à falta cometida de omissão de acto que deveria ser praticado antes dela.

Pelo que, tal nulidade decorrente da preterição do contraditório pode ser impugnada no recurso da decisão em causa – cfr., por todos, o Acórdão do Pleno do STA, da Secção de Contencioso Administrativo, de 02/10/2001, Rº n.º 42385, publicado no AP-DR de 16/04/2003, p. 985 e o Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo, de 09/10/2002, R.º n.º 48236 in www.dgsi.pt; Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, II, p. 507 e s; Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1985, p. 393.

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No presente caso, como as partes nunca discutiram o direito e os factos pressupostos da decisão do juiz a quo, de procedência da ilegitimidade activa por si suscitada, a decisão em causa constitui uma verdadeira decisão surpresa.

Não sendo invocável a manifesta inutilidade ou desnecessidade de facultar à Autora/Recorrente o contraditório sobre a excepção – de natureza excepcional – pois é inequívoco que se tivesse sido ouvida sobre tal questão, não discutida pelas partes nos articulados – tratando-se de processo em que não é admissível o articulado réplica – nem em sede de audiência prévia, podia ter influenciado no exame ou na decisão da causa (no seu sentido) até porque a Autora ainda não tinha junto aos autos o alegado contrato de cedência – o que podia ter feito se tivesse sido cumprido o contraditório.

A tal não obstando o disposto no artigo 552.º, n.º 2, do CPC, na medida em que deve o julgador adequar a tramitação processual para posterior conhecimento da questão exceptiva, assegurando um processo equitativo – cfr. artigos 6.º (Dever de gestão processual), 547.º (Adequação formal) e 590.º (Gestão inicial do processo), n.º 2, alínea c), o qual prevê que, findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a: “Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.”.

De resto, em sede de processo de injunção, a prova é apresentada pelas partes na audiência de julgamento – cfr. art.º 3º/n.º 4 do DL n.º 269/98, de 1/09, na versão actualizada – pelo que à data da apresentação do requerimento de injunção, não era exigível à Autora a indicação da prova a produzir, cabendo ao julgador a quo providenciar pelo suprimento dessa falta.

Assiste, pois, razão à Recorrente, quando alega que a falta de notificação para se pronunciar sobre a excepção da ilegitimidade activa suscitada oficiosamente, previamente à prolação da decisão recorrida, integra uma omissão que configura preterição de formalidade essencial (cumprimento do princípio do contraditório imposto pelo art.º 3º n.º 3 do CPC) que pode influir no exame ou na decisão da causa, sancionada com nulidade – artigo 195.º/1 CPC/2013 – conducente à anulação de todo o processado a partir do momento em que se verificou, isto é, imediatamente antes da decisão recorrida – artigo 195.º/2 do CPC.

Termos em que se impõe declarar a nulidade por omissão do cumprimento do contraditório e, em consequência, anular o processado a partir do momento em que se verificou a referida omissão, e consequentemente a nulidade da decisão recorrida – artigo 195.º/2 do CPC – ordenando a baixa dos autos para cumprimento do contraditório sobre a matéria de excepção oficiosamente invocada.

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Face ao assim decidido, fica prejudicado o conhecimento do demais.
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DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal em julgar procedente o recurso, declarar a nulidade da decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos para cumprimento do princípio do contraditório, nos termos referidos.

Custas pelo Recorrido.

Notifique. DN.

Porto, 30 de Novembro de 2016,
Ass.: Alexandra Alendouro
Ass.: João Beato
Ass.: Hélder Vieira