Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00072/01-Porto
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:11/27/2014
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Cristina Flora
Descritores:AUDIÊNCIA PRÉVIA
PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DO ACTO
Sumário:I. Só com a entrada em vigor da Lei Geral Tributária (LGT) em 1 de Janeiro de 1999, aprovada pelo DL n.º 398/98 de 17 de Dezembro é que se consagrou em legislação tributária o princípio da participação dos contribuintes na formação das decisões que lhe digam respeito no âmbito do procedimento tributário (art. 60.º);
II. Não obstante, a Constituição da República Portuguesa (CRP), no n.º 4 do art. 267.º (na redacção de 1989, vigente à data da aprovação do CPT, a que corresponde o n.º 5 do mesmo artigo nas redacções de 1997 e posteriores) já consagrava o direito de “participação dos cidadãos na formação das decisões e deliberações que lhes disserem respeito”;
III. O direito de participação dos administrados, e a forma como deveria ser assegurado, à época, pese embora não tivesse consagração nas leis tributárias, já se encontrava concretizado no art. 100.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) que entrou em vigor em 15 de Maio de 1992 (cfr. arts. 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, diploma que aprovou o CPA), preceito legal aplicável ao procedimento tributário antes da entrada em vigor da LGT;
IV. A omissão da audição do contribuinte no procedimento antes da liquidação constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que, ao abrigo do princípio do aproveitamento do acto administrativo, seja manifesto que a decisão tributária em abstracto, não podia ser outra da que foi tomada no caso concreto, e por isso se impunha, o seu aproveitamento;
V. A possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto deve ser apreciada casuisticamente, não podendo restar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto tributário;
VI. Tratando-se de matéria de facturas falsas a participação do contribuinte pode ser essencial na decisão de corrigir a matéria tributável, pois sempre poderia ter apresentado documentos que contrariassem as conclusões da AT, poderia ter prestado informações essenciais que pudessem ser averiguadas e conduzissem a uma decisão diversa, qualitativa ou até mesmo, quantitativamente, ou seja, os pressupostos fácticos poderiam ser substancialmente diferentes daqueles subjacentes à prática do acto tributário, e assim “poderia ter sido praticado um acto diferente ou, até, nenhum acto”;
VII. Não são os fundamentos invocados em sede de impugnação do acto, nem o facto de terem sido julgados não verificados que permitem aferir da influência da participação do contribuinte na decisão do procedimento, mas antes a susceptibilidade dessa participação influenciar a decisão;
VIII. Para a formulação do juízo de prognose póstuma, no âmbito de aplicação do princípio do aproveitamento do acto tributário, é irrelevante a procedência ou improcedência dos vícios por invocados na Impugnação Judicial.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:C..., Lda.
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto, que julgou parcialmente procedente a impugnação deduzida pela sociedade C…, LDA, da liquidação de IRC relativa ao exercício de 1991, e respectiva derrama e juros compensatórios.

A Recorrente FAZENDA PÚBLICA apresentou as suas alegações, e formulou as seguintes conclusões:

A. O presente recurso tem por objecto a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, que julgou parcialmente procedente a impugnação deduzida contra a liquidação adicional de IRC, relativa ao exercício económico de 1991, relativa ao exercício económico de 1991, no montante de 5.267.675$00 (€ 26.275,05), por haver concluído que ao não ter sido assegurado o exercício de direito de audiência, preteriu-se formalidade essencial determinante da anulação da liquidação impugnada.
Ora,
B. O princípio da participação dos cidadãos na formação das decisões e deliberações que lhes digam respeito encontra consagração expressa no art. 267°, n.º 5 da CRP, tendo sido concretizado no art. 8° do CPA, de harmonia com as regras fixadas nos arts. 100° a 103° do mesmo diploma, aqui aplicável.
Assim,
C. E porque a audiência dos interessados se destina essencialmente a permitir a sua participação nas decisões que lhes dizem respeito, contribuindo para um cabal esclarecimento dos factos e uma mais adequada e justa decisão, a omissão dessa audição, ocorrida no caso em concreto, constitui a preterição de uma formalidade legal que poderá conduzir à anulabilidade da decisão da Administração Fiscal,
Porém,
D. O direito do contribuinte na participação da formação do acto de que é destinatário só será verdadeiramente violado se através dessa participação omitida houver a possibilidade, ainda que ténue, de vir a exercer influência, pelos esclarecimentos prestados e pela prova que poderia apresentar, na decisão a proferir, no termo da instrução.
E. A formalidade da audição prévia, sendo essencial, degrada-se em não essencial, não sendo, por isso, invalidante do acto controvertido, nos casos em que não tem a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, o que se impõe o aproveitamento do acto - utiie per inutile non viciatur,
F. O tribunal a quo deu como procedente o pedido de anulação da liquidação controvertida, estritamente, com fundamento na omissão, por parte da Administração Fiscal, da não notificação para o exercício do direito de audição prévia,
G. Entendendo que: "no caso dos autos, não pode dar-se por seguro que o exercício do direito de audiência não pudesse ter a mínima relevância na correcção levada a cabo, pois que a contribuinte sempre poderia tentado provar que, não obstante as facturas falsas, tinha suportado outros custos demonstrando, designadamente, a sua natureza, origem e valor, e comprovando a sua indispensabilidade.
Todavia,
H. A douta sentença recorrida não deixou de analisar os vícios apontados pela impugnante à liquidação controvertida resultante do procedimento inspectivo, cujo direito de audição foi preterido,
I. E nessa sede decidiu que a impugnante não tinha razão e de que, tal como resulta do probatório, não tinha efectuado a prova de que, não obstante as facturas falsas, tinha suportado outros custos, não comprovando a sua indispensabilidade, concluindo então, que a AT não tinha outra alternativa que não a de produzir a correcção efectuada.
Destarte,
J. Com o devido respeito que nos merece, que é muito, não pode a Fazenda Pública, conformar-se, com o doutamente decidido de que a impugnante poderia em sede instrutória, ter "tentado provar que, não obstante as facturas falsas, tinha, suportado outros custos demonstrando, designadamente, a sua natureza, origem e valor, e comprovando a sua indispensabilidade. ",
K. Porquanto, nem nos presentes autos o fez, nem documental nem testemunhalmente, como resulta do probatório assente na douta sentença.
L. Resulta assim, óbvio e intransponível que o formalismo do exercício do direito de audição prévia se degradou em não essencial, pois, nem tenuemente influenciaria na decisão final da AT, ficando assim demonstrado nos autos que, mesmo não tendo sido cumprida tal formalidade, a decisão final do procedimento nunca poderia ser diferente,
aliás,
M. Como resulta da sentença recorrida nos factos dados como não provados e na convicção formulada pelo Tribunal na análise dos vícios apontados e na ponderação da prova, de que a AT não tinha alternativa senão decidir como decidiu nas correcções efectuadas que estiveram na génese da liquidação posta em crise.
N. Nesta medida, decidindo da forma como decidiu, a douta sentença recorrida enferma de erro de julgamento, pelo que deve ser revogada, considerando-se a impugnação totalmente improcedente.”
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A Recorrida, não apresentou contra-alegações.
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Foram os autos a vista do Magistrado do Ministério Público que emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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A questão invocada pela Recorrente nas suas conclusões das alegações de recurso, que delimitam o objecto do mesmo, e que cumpre apreciar e decidir consiste em saber se a sentença enferma de erro de julgamento por ter considerado que a preterição do direito de audição prévia não se degradou em não essencial.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Matéria de facto

A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

1. No ano de 1991 a Impugnante dedicava-se à actividade de construção civil, projectos e montagens eléctricas – cfr. fls. 28 a 33 dos autos.

2. No ano de 1996, em resultado da Ordem de Serviço n.º 1098 de 06.02.1995 a Impugnante foi objecto de acção de fiscalização cruzada pelos Serviços de Prevenção e Inspecção Tributária – cfr. fls 28 a 33 dos autos.

3. Da acção referida em 2. resultou uma Informação e Nota da Fundamentação das Correcções Técnicas, do qual consta designadamente o seguinte:


(…)

- cfr. fls. 28 a 33 dos autos.

4. Em resultado da Informação e Nota da Fundamentação das Correcções Técnicas referida em 3. foi elaborado o mapa de apuramento Mod. DC-22 referente ao exercício de 1991, onde foram feitas correcções à matéria tributável no valor total de 6.000.000$00 e apurado um lucro tributável corrigido de 12.700.000$00 – cfr. fls. 34 a 35 dos autos.

5. Em 19.09.1996, a Administração Fiscal emitiu o Documento de Cobrança de IRC, derrama e juros compensatórios, relativo ao exercício de 1991, com o n.º 1996 8310018827, no valor de 4.370.179$00 – cf. fls. 14 dos autos.

6. Na sequência de deferimento, por despacho de 18.03.1997 do Sr. Chefe da Repartição de Finanças do 5.º Bairro Fiscal do Porto, do pedido de regularização de dívidas ao abrigo do Decreto-Lei n.º 124/96 apresentado pela Impugnante em 27.01.1997, e no qual indicou o Documento de Cobrança n.º 1996 8310018827, a quantia referida no ponto anterior encontra-se integralmente paga desde 18.6.1997 – cfr. fls. 41 a 45 e 120 dos autos.


*

Factos Não Provados



Dos factos, com interesse para a decisão da causa, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita, designadamente o seguinte:

1. No ano de 1991 a Impugnante suportou os seguintes encargos não documentados nas empreitadas indicadas:
Empreitada
Encargo suportado não documentado
Rede de cabos e iluminação da Escola Secundária de ...
3.444.480$00
Conservação da instalação eléctrica da Escola Preparatória de … e posto de transformação da Escola Secundária n.º 1 de …
408.000$00
Conservação da instalação eléctrica da Escola Preparatória de …
180.000$00
Instalação Eléctrica da Escola Secundária de …
1.235.195$00
Total
5.267.675$00
_________________________________________________________________________________

A não prova deste facto resulta de não ter sido produzida qualquer prova testemunhal e documental a respeito do mesmo. Apenas constam dos autos, a fls. 15 a 18, as relações de custos não contabilizados que a Impugnante apresentou, junto com a sua petição, como tendo sido por ela suportados com as empreitadas em causa. Contudo, estes documentos não fazem prova de que a Impugnante efectivamente participou nas empreitadas indicadas, ou sequer que as mesmas tenham ocorrido, e tão pouco deles se pode aferir que a Impugnante haja, efectivamente, comportado encargos naqueles concretos montantes.


*

A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame das informações e dos documentos, não impugnados, que dos autos constam, tudo conforme referido a propósito de cada um dos pontos do probatório.

Dos elementos dos autos não consta que a impugnante tenha sido notificada para exercer o direito de audição prévia ou que tenha apresentado qualquer pronúncia antes da decisão de proceder a correcções do IRC em falta ou antes da liquidação.”


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2. Do Direito

Conforme resulta dos autos, o TAF do Porto julgou parcialmente procedente a impugnação deduzida da liquidação de IRC relativa ao exercício de 1991, anulando o acto impugnado com o fundamento no vício de forma por falta de audição prévia do contribuinte, nos termos do disposto no art. 100.º do CPA.

Considerou ainda, a sentença recorrida, a possibilidade da preterição da audiência ser ter degradado em formalidade não essencial, entendendo, neste ponto, não aplicar o princípio do aproveitamento do acto, pelo que anulou o acto impugnado.

A Recorrente, assacando à sentença erro de julgamento sustenta que, in casu, a preterição do direito de audição prévia se degradou em não essencial, pois “nem tenuemente influenciaria na decisão final da AT, ficando assim demonstrado nos autos que, mesmo não tendo sido cumprida tal formalidade, a decisão final do procedimento nunca poderia ser diferente” (conclusão L)).

Entende a Recorrente que está demonstrado nos autos que a decisão final do procedimento nunca poderia ser diferente, pois a sentença recorrida analisou os demais vícios invocados pela Impugnante e concluí que esta não tinha feito prova de que tinha suportado os custos.

Apreciando.

Conforme resulta dos autos, a acção de inspecção ora em causa decorreu durante o ano de 1996, e nesse mesmo ano foi emitida a liquidação de IRC objecto dos presentes autos.

Estava, então, em vigor do Código de Processo Tributário (CPT) que não previa o direito de audição prévia do contribuinte antes da liquidação de imposto.

Só com a entrada em vigor da Lei Geral Tributária (LGT) em 1 de Janeiro de 1999, aprovada pelo DL n.º 398/98 de 17 de Dezembro é que se consagrou em legislação tributária o princípio da participação dos contribuintes na formação das decisões que lhe digam respeito no âmbito do procedimento tributário (art. 60.º).

Não obstante, a Constituição da República Portuguesa (CRP), no n.º 4 do art. 267.º (na redacção de 1989, vigente à data da aprovação do CPT, a que corresponde o n.º 5 do mesmo artigo nas redacções de 1997 e posteriores) já consagrava o direito de “participação dos cidadãos na formação das decisões e deliberações que lhes disserem respeito”.

Ora, o direito de participação dos administrados, e a forma como deveria ser assegurado, à época, pese embora não tivesse consagração nas leis tributárias, já se encontrava concretizado no art. 100.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) que entrou em vigor em 15 de Maio de 1992 (cfr. arts. 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, diploma que aprovou o CPA).

Assim, dispunha o art. 100.º do CPA que “concluída a instrução, e salvo o disposto no artigo 103.º, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta”.

Deste modo, a concretização do direito constitucional de participação dos contribuintes enquanto administrados, já se encontrava assegurado nos termos do art. 100.º do CPA, preceito legal aplicável ao procedimento tributário antes da entrada em vigor da LGT, conforme é aceite pacificamente pela jurisprudência da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. nesse sentido, por todos, vide o recente Ac. do STA de 08/10/2014, proc. 0114/11).

In casu, a Meritíssima juíza a quo, como já referimos, concluiu pela verificação do vício de forma por violação do disposto no art. 100.º do CPA.

Neste contexto, a Recorrente Fazenda Pública, pese embora não coloque em causa a verificação do vício de forma por preterição da formalidade legal prevista no art. 100.º do CPA, insurge-se contra a sentença recorrida na parte em que entendeu não ser de aplicar o princípio do aproveitamento dos actos administrativos.

Com efeito, a preterição daquela formalidade legal nem sempre conduz à anulação do acto, in casu, acto tributário, designadamente quando se determine em tribunal que “se ela tivesse sido realizada, o interessado não teria a possibilidade de apresentar elementos novos nem deixou de pronunciar-se sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final, ou acabou por ter oportunidade de pronunciar-se, e procedimento de segundo grau (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), sobre questões sobre as quais foi indevidamente omitida a audiência no procedimento de primeiro grau.” (Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada, 4.ª ed., Vislis, 2012, p. 515).

O Supremo Tribunal Administrativo tem reiteradamente afirmado que a omissão da audição do contribuinte constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que, ao abrigo do princípio do aproveitamento do acto administrativo, seja manifesto que a decisão tributária em abstracto, não podia ser outra da que foi tomada no caso concreto, e por isso se impunha, o seu aproveitamento (cfr. por todos, Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA de 22/01/2014).

Ao abrigo deste princípio, o Tribunal tem o poder de não anular um acto inválido quando a decisão administrativa não pode ser outra, uma vez que em execução do efeito repristinatório da sentença não existe “alternativa juridicamente válida” que não seja a de renovar o acto inválido, embora sem o vício que determinou a anulação (cfr. Acórdão do STA de 31/01/2012, Proc. n.º 017/12).

Mas como se salienta no Ac. do STA de 24/10/2012, proc. n.º 0548/12 “[o] princípio do aproveitamento do acto administrativo apenas é admissível quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insusceptível de influenciar a decisão final, o que acontece em geral nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente ou se trate de actividade administrativa vinculada, não se vislumbrando a mínima possibilidade de a audição poder ter influência sobre o conteúdo da decisão.”.

É hoje pacificamente aceite na jurisprudência que “a audiência prévia dos interessados não é um mero rito procedimental, a formalidade em causa (essencial) só se podia degradar em não essencial (não invalidante da decisão) se essa audiência não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e se se impusesse, por isso, o aproveitamento do acto – utile per inutile non viciatur.” (Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA de 22/01/2014, Proc. n.º 0441/13).

A possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto deve ser apreciada casuisticamente através da análise das circunstâncias particulares do caso concreto. Há que aferir se, no caso sob análise, a decisão do procedimento não poderia de forma alguma ser influenciada pela participação do contribuinte no procedimento.

Atento ao supra exposto, há que concluir que, para que se possa aplicar o princípio do aproveitamento do acto administrativo, há que aferir se, in casu, a audição do contribuinte no procedimento não tinha a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e só nesse caso é que o juiz poderá não anular o acto, aproveitando-o ao abrigo daquele princípio.

Neste contexto, a sentença recorrida decidiu, e bem, que “no caso dos autos, não pode dar-se por seguro que o exercício do direito de audiência não pudesse ter a mínima relevância na correcção levada a cabo, pois que a contribuinte sempre poderia ter tentado provar que, não obstante as facturas falsas, tinha suportado outros custos demonstrando, designadamente, a sua natureza, origem e valor, e comprovando a sua indispensabilidade. Por forma a que as correcções efectuadas não desconsiderassem, sem mais, os custos que estavam titulados pelas facturas falsas.”.

Não podemos deixar de concordar integralmente com o decidido pela Meritíssima Juíza do TAF do Porto, que aplicando o direito ao caso dos autos, fez uma adequada e acertada análise da questão.

Na verdade, in casu, não é possível afirmar que a audição do contribuinte no âmbito do procedimento tributário, antes da emissão da liquidação, não tinha a mínima probabilidade para influenciar a decisão tomada pela AT.

Tratando-se de matéria de facturas falsas a participação do contribuinte pode ser essencial na decisão de corrigir a matéria tributável, pois sempre poderia ter apresentado documentos que contrariassem as conclusões da AT, poderia ter prestado informações essenciais que pudessem ser averiguadas e conduzissem a uma decisão diversa, qualitativa ou até mesmo, quantitativamente.

Ou seja, os pressupostos fácticos poderiam ser substancialmente diferentes daqueles subjacentes à prática do acto tributário, e assim “poderia ter sido praticado um acto diferente ou, até, nenhum acto” (nesse sentido, vide, Ac. do STA de 18/06/2014, proc. 01102/13).

Saliente-se que, para a aplicação do princípio do aproveitamento do acto não se podem suscitar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto tributário.

Deste modo, não é possível, no caso dos autos, a formulação de um juízo de prognose póstuma que leve o Tribunal a concluir que a liquidação efectuada era a única possível, pelo que, não é de afastar a possibilidade de a decisão do procedimento tributário ser influenciada pela intervenção do contribuinte.

Por outro lado, não assiste razão à Recorrente Fazenda Pública quando entende que o facto de a Meritíssima Juíza a quo ter conhecido dos restantes vícios invocados pela Impugnante e ter concluído pela sua não verificação, implica que o exercício do direito de audição prévia se degradou em não essencial.

Ora, não são os fundamentos invocados em sede de impugnação do acto, nem o facto de terem sido julgados não verificados que permitem aferir da influência da participação do contribuinte na decisão do procedimento, mas antes a susceptibilidade dessa participação influenciar a decisão.

Com efeito, conforme se escreve no recente Acórdão do Pleno da Secção do CT do STA de 15/10/2014, proc. n.º 01374/13 “[n]ão será pelos fundamentos invocados em sede de impugnação contenciosa do acto que se poderá aferir da relevância ou não do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto, mas antes pela sua susceptibilidade de influir sobre o conteúdo decisório do acto, motivo por que aquele direito não poderá deixar de ser assegurado sempre que não seja de afastar a possibilidade de a decisão do procedimento tributário ser influenciada pela intervenção do interessado.”.

É preciso não esquecer, tal como se salienta naquele Acórdão do Pleno que a “aplicação do princípio do aproveitamento do acto implica[r] necessariamente um juízo a posteriori, este deve ser um juízo de prognose póstuma, pelo que não pode nem deve ser influenciado pela improcedência dos demais vícios (para além da preterição do direito de audiência) invocados no processo em que o acto foi impugnado, sob pena de esvaziamento do direito de participação e de impossibilidade prática de verificação do vício resultante da preterição desse direito.”.

É que nada nos garante, como se acrescenta naquele Acórdão, que o contribuinte, mesmo numa situação dessas, “se acaso lhe fosse dada oportunidade para o fazer, não fornecesse elementos úteis à liquidação, designadamente, quanto a deduções, matéria em que a lei não vincula a Administração”.

Ou seja, é irrelevante para o juízo de prognose póstuma a fazer para a aplicação do princípio do aproveitamento do acto tributário, a procedência ou improcedência dos vícios invocados na impugnação.

Em suma, a sentença recorrida não enferma do erro de julgamento invocado, e nessa medida, o recurso não merece provimento.

3. Sumário do acórdão

I. Só com a entrada em vigor da Lei Geral Tributária (LGT) em 1 de Janeiro de 1999, aprovada pelo DL n.º 398/98 de 17 de Dezembro é que se consagrou em legislação tributária o princípio da participação dos contribuintes na formação das decisões que lhe digam respeito no âmbito do procedimento tributário (art. 60.º);
II. Não obstante, a Constituição da República Portuguesa (CRP), no n.º 4 do art. 267.º (na redacção de 1989, vigente à data da aprovação do CPT, a que corresponde o n.º 5 do mesmo artigo nas redacções de 1997 e posteriores) já consagrava o direito de “participação dos cidadãos na formação das decisões e deliberações que lhes disserem respeito”;
III. O direito de participação dos administrados, e a forma como deveria ser assegurado, à época, pese embora não tivesse consagração nas leis tributárias, já se encontrava concretizado no art. 100.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) que entrou em vigor em 15 de Maio de 1992 (cfr. arts. 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, diploma que aprovou o CPA), preceito legal aplicável ao procedimento tributário antes da entrada em vigor da LGT;
IV. A omissão da audição do contribuinte no procedimento antes da liquidação constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que, ao abrigo do princípio do aproveitamento do acto administrativo, seja manifesto que a decisão tributária em abstracto, não podia ser outra da que foi tomada no caso concreto, e por isso se impunha, o seu aproveitamento;
V. A possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto deve ser apreciada casuisticamente, não podendo restar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto tributário;
VI. Tratando-se de matéria de facturas falsas a participação do contribuinte pode ser essencial na decisão de corrigir a matéria tributável, pois sempre poderia ter apresentado documentos que contrariassem as conclusões da AT, poderia ter prestado informações essenciais que pudessem ser averiguadas e conduzissem a uma decisão diversa, qualitativa ou até mesmo, quantitativamente, ou seja, os pressupostos fácticos poderiam ser substancialmente diferentes daqueles subjacentes à prática do acto tributário, e assim “poderia ter sido praticado um acto diferente ou, até, nenhum acto”;
VII. Não são os fundamentos invocados em sede de impugnação do acto, nem o facto de terem sido julgados não verificados que permitem aferir da influência da participação do contribuinte na decisão do procedimento, mas antes a susceptibilidade dessa participação influenciar a decisão;
VIII. Para a formulação do juízo de prognose póstuma, no âmbito de aplicação do princípio do aproveitamento do acto tributário, é irrelevante a procedência ou improcedência dos vícios por invocados na Impugnação Judicial.

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
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Sem custas pela Recorrente por delas estar isenta (art.º 3.º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas dos Processos Tributários).

D.n.
Porto, 27 de Novembro de 2014.
Ass. Cristina Flora
Ass. Cristina da Nova
Ass. Ana Paula Santos